terça-feira, 27 de novembro de 2012

ATUALIDADE DO MARXISMO - Aula i Parte II


Duas aulas proferidas pela da prof. Zuleide Faria de Mello na Universidade de Brasília, 08.11.2003. Curso de extensão: Arquitetura e Marxismo.

Transcrição: Frank Svensson



Vejam o que Marx faz:

As novelas são absoluta reprodução de uma sociedade do não trabalho. Interessante não é? Mas vejam só porque que eu sou marxista. Só para chegar aqui. Porque vejam, o que o Marx faz? Porque até agora eu falei da Grécia. Não falei de outra coisa. Marx em meados do século XIX é a rigor discípulo de Hegel. Fazia parte de um grupo chamado hegelianos de esquerda. E os hegelianos de esquerda eram filósofos alemães. Queriam, segundo Marx, produzir imensas transformações ao nível das ideias abstratas. Quando Marx escreve A Ideologia Alemã, começa dizendo de forma absolutamente sarcástica que naquele momento na Alemanha estava ocorrendo profundas transformações. Os filósofos alemães estavam transformando o mundo. Falam disso e falam daquilo e ele diz que todas essas transformações se dão ao nível do pensamento. Mas os filósofos alemães acreditam que a sua revolução deixa no chinelo a revolução francesa embora não saia da estrutura de pensar. Nenhum contato com a realidade do mundo.

Aí então é que Marx se propõe a crítica da filosofia clássica. E vai lá para a antiga Grécia. Marx era reconhecidamente da área de filosofia. Enveredou para a área da economia, da historia da política, mas era originalmente da área de filosofia. A tese dele foi A diferença da Natureza entre Demócrito e Epicuro, dois pré-socráticos. Demócrito já fala um pouco da teoria dos átomos, e o Epicuro avança e Marx analisa esta diferença entre o enfoque da teoria atômica de Demócrito e de Epicuro. Ele é um filósofo alemão. Ele, quando começa a escrever A Ideologia Alemã, presta primeiro o devido louvor a Hegel. Porque reconhece que o Hegel avançou na teoria do conhecimento ao resgatar pelo menos em parte a dialética que se produziu na Grécia, embora não a dialética pré-socrática, mas a dialética platônica.

Marx diz uma coisa que também parece um jogo de palavras. Ele afirma que Hegel colocou a dialética de cabeça para baixo e se há que repô-la sobre seus próprios pés. Se a gente não se der o trabalho de saber o que isso significa, acha que ele bebeu uma cervejinha a mais porque ele bebia cerveja. Bebeu uma cervejinha a mais e começou a fazer jogo de palavras. Mas não é isso. Marx retoma ipsis-literis os princípios de Hegel mas acrescenta: mas Hegel colocou a dialética de cabeça para baixo. E aí se a gente não tiver cuidado, dá um nó, está tudo certinho, mas está de cabeça para baixo, então não está certinho.

O que é que Marx vai dizer. Que os princípios da dialética estão corretos. E quais são os princípios básicos da dialética em Hegel? A luta dos contrários, o choque e a luta dos contrários; a transformação da quantidade em qualidade e a negação da negação. Esses são os três princípios gerais da dialética de Hegel e de Marx também. Mas quando Hegel retoma esses princípios da dialética como conteúdo idealista de que o mundo é uma mera projeção de um outro mundo, ele diz: aí o Hegel se perdeu e colocou a dialética de cabeça para baixo. Aí então ele se propôs resgatar a dialética na sua origem epistemológica que é, na verdade, a dialética materialista.

Daí Marx produzir dois grandes ramos do conhecimento: o materialismo dialético que diz respeito a todas as formas de pensar; e o materialismo histórico. Porque? Porque Marx se propõe entender afinal o que é o capitalismo e a revolução do capital; como surgiu este fenômeno histórico-social. Como é que o capital se reproduz e não mais do que de repente uns ficam muito ricos e outros muito pobres. Ele quer entender isso. Aliás, ele diz quando ele acaba de escrever o livro A Ideologia Alemã, o qual se perdeu durante muitos anos: eu quis acertar as contas comigo mesmo e ofereço esse livro à crítica roedora dos ratos. Botou numa gaveta e parece que só em 1932 descobriram os manuscritos de A Ideologia Alemã.

Quando Marx quer entender o que o capitalismo e suas leis históricas são, ele vai pegar o materialismo dialético aplicando a leitura histórica e à partir daí ele se dá conta de uma série de questões e com este ramo que brota do materialismo dialético, que ele chama de materialismo histórico, uma nova historiografia. Marx faz aí um corte epistemológico. Todos sabem naturalmente o que é um corte epistemológico. Eu não vou nem explicar, pois tenho certeza que todo mundo aqui sabe. Sabem?  Então fala aí (Thiago fala mas eu não  consigo ouvir o que ele disse)

Porque que os gregos criam alguns conceitos que chegam até nós? Quando a gente fala que se faz um corte epistemológico se faz um corte da teoria do conhecimento. Como a gnose que é a teoria da origem. Da gênese, enfim, da reprodução da vida. Só para a gente se situar de vez nesta questão: na antiga Grécia, Platão, por exemplo, em sua obra A República, uma palavra composta da palavra grega respública, rés = coisa e pública = pública mesmo. Portanto república é coisa pública, nem mais nem menos. A gente está tentando, fazendo uma força danada para ver se a república vira coisa pública não é verdade? Até hoje não tem sido. Mas a gente está ai tentando mais um tempo.

A república, diz Platão, é a mais alta forma de governo. Por definição sim. Às vezes na prática não bate bem, mas enfim. Platão também cria o conceito de cidadania. Isso que a gente briga por hoje em dia: A gente precisa ser cidadão. Continuamos querendo também. Nós queremos a coisa pública. Queremos a cidadania. Brigando por isso. É verdade que tem uns três mil anos já. Mas não há de ser nada. E democracia. demo = povo e cracia = governo. Outra coisa fantástica. Governo do povo. E aí repetimos todos: Não é verdade? Não, vivemos num sistema democrático, a gente vota e reduzimos a democracia a uma mera representação eleitoral. Isso com muito esforço.

Então vejam. A gente enche a boca e diz: eu sou um democrata, mas o fulano não é. O Fidel não é um democrata, mas que coisa. O Bush diz: tem que mudar; não quer saber, vivo ou morto tem que mudar, para instaurar a democracia, a liberdade  em Cuba. Como no Iraque. Bush está dizendo que a quantidade de atentados no Iraque é contra a liberdade que os americanos estão implantando lá. Viva a liberdade! E democracia é governo do povo. Aí, a gente repete: somos democratas, agente vota, eleição direta, ta-ra-rá, ta-ra-rá.  Mas, creio eu, creio eu, que de um modo geral as pessoas não param para entender ou perguntar o que é afinal democracia?

Se a gente não precisa fazer força só repete. Qualquer papagaio também repete. Na minha casa lá no interior do nordeste, havia papagaios geniais que repetiam tudo. Mas parece que não pensavam. Só repetiam. Então, para a gente não só repetir que é democrata e vive numa democracia, acho que valia a pena a gente perguntar como que era na Grécia? Quem era povo na Grécia? Nelson Werneck Sodré, um dos maiores historiadores deste país, escreveu um livro: Quem é povo no Brasil? Estamos tentando saber até hoje. Um dia a gente vai ficar sabendo quem é povo no Brasil. Mas quem é povo? Quem era povo na Grécia? Ah é fácil, qualquer estatística resolve isso. Os escravos. Os escravos não tinham qualquer direito nem da própria vida, pertenciam ao seu senhor e dependiam do humor de seu senhor a cada dia. Portanto não eram cidadãos. As mulheres estavam todas segregadas. Todas. Submetidas a regime de cativeiro. Independente do que os homens digam, não mudou muito. Não mudou muito. Mas está mudando. Um dia chegaremos lá. Chegaremos lá. Mas vejam, então as mulheres não tinham nenhum direito. Nenhum. E eram, como sempre foi, pelo que se saiba mais ou menos metade da Grécia. Qualquer sociedade de um modo geral cinquenta por cento é de homens e os outros cinquentas são mulheres. Então cinquenta por cento, de mulheres não tinha nenhum direito. Não sei quantos milhares ou milhões de escravos não tinham nenhum direito. Os estrangeiros também não tinham nenhum direito. Então, brincando, brincando, perfaziam uns oitenta por cento. Lá e cá. Ontem e hoje. Sobra vinte. Esse é um cálculo meio furado, porque na verdade eu apenas estou dando um exemplo. Por favor, não digam que eu disse que era vinte por cento. Eu não tenho dados precisos, estou dando um exemplo.

Oitenta por cento não tinha nenhum direito. Oitenta por cento não era cidadão. Portanto oitenta por cento não estava abarcado pelo conceito de democracia. Quem era povo na Grécia era a elite; a nobreza, a aristocracia. Como hoje. Eu só estou colocando isso aqui para que quando a gente falar em democracia pelo menos dar assim um estalo de Vieira: gente que coisa é essa de que eu estou falando, será que existe, é verdade, como é que é, como deixa de ser ou como é que a gente faz que seja? É outra coisa.

Então, esses conceitos são conceitos produzidos historicamente em determinados tempos históricos e em determinadas circunstâncias históricas. Mas, por um bondinho que sai de lá e vem para cá, ele chega despido de todas as considerações e a gente que perdeu o conhecimento da gênese, do que aconteceu, do processo histórico, que de um modo geral a gente não conhece sabe, a gente repete: não, viva a democracia, eu defendo a democracia. Agora, eu defendo a democracia como a lei, não é essa que anda por aí.
Do ponto de vista dos conceitos, também é preciso botar os pingos nos iis. Universidade produz conceitos. Porque o conhecimento tem uma base conceitual, como tem uma base metodológica. Não há ciência, seja da natureza, seja da sociedade, que não trabalhe com conceitos. Que não trabalhe, na verdade, com metodologias. Porque o método é um instrumento de trabalho. Alguém pensa que é uma coisa complicada, mas não é. Por exemplo: uma costureira. Você pega um vestido; tem que ter a fazenda, a tesoura, a máquina, são instrumentos de trabalho. Portanto ela precisa dessas coisas para produzir um vestido. E o cientista? O cientista preciso do conhecimento, de um método de análise da realidade concreta e da epistemia, de uma teoria do conhecimento.

Agora, também tem uma pequena questão só para embananar, que é a seguinte: a teoria marxista trabalha com uma ideia, de que neste período chamado primitivo, de propriedade coletiva, enfim, não havia ideologia como a gente a conhece hoje. Havia um corpo de ideias, por favor, não vão dizer, sair por aí dizendo que a Zuleide disse que não havia corpo de ideias. Eu não disse isso. Ideologia é outra coisa. Ideologia é um conceito. Porque? Porque todos pensavam no fundamental mais ou menos da mesma forma. O mundo se representava, na cabeça, nas ideias, no pensamento, mais ou menos da mesma forma. Quando surge o estado, a propriedade privada, a escravidão, naturalmente, você agora tem que começar a trabalhar com pensamentos divergentes entre si. Sabem porque? Por uma coisa simples. Eu fico só imaginando que os interesses de um senhor de escravos não correspondem aos interesses do escravo. Se corresponder, a coisa está pior do que a gente imagina. Não é verdade? Porque o interesse de um senhor de escravos não pode corresponder ao interesse do escravo por serem coisas absolutamente divergentes entre si. Portanto não têm momento de compatibilização. Mas no processo industrial, do mundo moderno, também. Porque os grandes interesses da grande burguesia mundial também não correspondem aos interesses dos trabalhadores. Não é verdade. Portanto é isto, a essa produção de ideias contrapostas entre si, que defendem coisas absolutamente diferentes, para grupos humanos grandes, é que se chama de ideologia.  Ideo vem de ideia e logia vem de logos, conhecimento, a razão que os gregos instalam no processo do conhecimento. Eu, ser que penso o mundo, eu tenho condições de explicar o mundo.

Então é essa razão que vai dar racionalidade, a gente fala de pensamento racional, somos todos racionais, não é verdade? A gente não acredita nisso piamente? Acredita, claro que sim. Acreditamos todos porque somos racionais. Somos os únicos animais que pensam. Como os outros animais nunca foram consultados, acredito. Também não estou dizendo que pensam. Estou dizendo que nunca foram consultados. As mulheres também não pensam. Mas também nunca foram consultadas. E quando começam a pensar dá um rolo que não tem tamanho. Não é verdade?

Então vejam gente, eu acho que é disso aí que nós estamos falando. Marx em A Ideologia Alemã tem dois capítulos em que ele coloca o seguinte: como se produz a consciência. Eu que conheço o mundo, eu que tenho consciência do mundo, como é que esta minha consciência se produz no mundo? Esta é uma questão. E por isso mesmo vem uma série de outras questões. Porque o trabalhador que trabalha de sol a sol para ganhar um salário, ou um sem terra que não tem terra, ou um desempregado que não tem trabalho nenhum, naturalmente seus interesses gerais e a sua forma de inserção no mundo são distintas, porque consciência é a minha inserção no mundo. Eu conheço o mundo no qual estou inserida, eu não conheço outro. Está certo? Então, se eu conheço o mundo a partir de tudo o que eu conheço desde quando eu bebi o leite materno; isso é bom, isso é feio, isso é bonito, isso é preto, isso é branco, não é assim que a gente ensina para as criancinhas? È verdade, e não tem nenhuma gama intermediaria. O cinza não existe. Ninguém se lembra de dizer que preto e branco dá cinza. E a cor cinza chumbo ou cinza claro vai depender da quantidade de preto ou da quantidade de branco. Então gente, eu só estou colocando aqui para vocês alguns rabos de foguete, fazendo aqui papel de advogada do diabo. Sentem nalguma praça pública, olhem para a lua e pensem: Amanhã o que aconteceu? Quem sabe dá certo.

Marx em A Ideologia Alemã escreve dois capítulos excelentes. Um é A produção da consciência. Como é que eu  produzo a consciência que eu tenho do mundo, de acordo com o mundo em que estou inserida? Eu lembro que eu fiz um trabalho numa favela no Rio de Janeiro durante seis anos. Aí as cartilhas de alfabetização diziam: A ave viu a uva. A pobre criança da favela tinha uma dificuldade impressionante para aprender. Não ela não tinha dificuldade de aprender. Ela tinha dificuldade de saber o que era uva. É só isso. Ela não sabe o que é uva. Portanto não é o cérebro dele que tem dificuldade. Ela não sabendo o que é uva, ela não decodifica, ela não visualiza, não imagina, não conscientiza.

Uma vez eu fui a uma médica, Ela passou uva chilena. Eu olhei para ela e disse a senhora por acaso perguntou o que eu faço na vida. Não, porque? Eu sou uma mera professora da universidade que ganha pouco, hoje eu dou oito horas por dia sem nenhuma reposição salarial e nem sei onde se compra uva chilena.  Então não vou usar. Não é verdade? É verdade. Será que é porque eu não tenho condições de saber o que é uva chilena? Não. É porque está fora do meu alcance. E eu estou dando um exemplo rasteiro. Mas como isso tudo, se eu nunca visualizei, se eu não tive nenhum tipo de contato nem que seja intelectual, eu não posso decodificar. Eu não posso traduzir isso com as minhas formas de conhecer. E depois não posso dizer que o menininho da favela não é inteligente suficiente para aprender. Claro, botando lá um monte de coisas que ele nunca viu, ele não imagina. Ele não consegue conceber ao nível de seu pensamento. Então ele vai ter muita dificuldade de se alfabetizar.

Mas a gente fazia lá uma gincana e passava uns desafios para os meninos, e uma vez a gente deu uma tarefa (todo mês a gente fazia isso): descobrir o sócio da associação da favela que mais devesse à associação da favela e trouxesse o cara para pagar. Duas horas depois chegou o menino de doze anos com um cara pela mão. Eu estaria até hoje procurando porque não era minha realidade. Não sei se o menino é mais inteligente do que eu. Não faço ideia. Mas uma coisa é o seguinte: ele em duas horas chegou com um cidadão e disse esse é que mais deve e ele disse que vai pagar. A gente quase cai da cadeira e perguntou: é verdade? O homem disse: é, a senhora faz ai a conta, eu só não vou pagar de uma vez porque não posso mas esse menino foi tão brilhante que eu me sinto no dever de  pagar e acabou pagando.

Se eu fosse subir a favela, andar naqueles barracos estaria fazendo isso até hoje. Portanto o conhecimento do mundo é produzido pelo mundo no qual eu estou inserido. Eu numa favela com certeza terei muito mais dificuldade do que o menino da favela. Agora, quando eu levo o menino para o meu terreno aí se dá o contrário. Portanto essa é a base da ideologia. A base da consciência.

O outro capítulo de Marx em A Ideologia Alemã de Marx é exatamente: A base real da Ideologia. Como é que as pessoas conseguem, constroem, na sua relação com o mundo, uma visão de mundo. Uma visão de mundo que precede as formas de conhecimento posteriores. Certo? Este é um outro pequeno problema. O estou colocando aqui para não sair do terreno da filosofia até agora. Aí é um problema de convencimento meu, vocês desculpem, mas eu estou convencida que se todos nós não fizermos um esforço de conhecermos melhor os conceitos e as formas de pensar não vamos resolver os problemas. Não vamos. Até porque cada um fala mais grego do que o outro. Além do grego dos gregos tem o grego que a gente não decodifica. Ou inglês se quiserem. Porque? Porque as visões de mundo e os interesses do ser no mundo não são iguais. Porque os trabalhadores todos no geral, no geral, tem mais ou menos o mesmo corpo de interesses. Qual é o interesse geral dos trabalhadores? Primeiro, um bom salário. Segundo, boas condições de trabalho, férias, descanso, semana inglesa. E tudo mais, não é isso? E o patrão tem todos esses interesses? Claro que não. Ele não é suicida. Ele quer saber como é que numa jornada de trabalho se produz muito mais do que se produz. Para eu poder jogar o produto na mais alta faixa de lucro, para poder reproduzir o capital, para enfrentar concorrência.

Então gente, eu creio que é uma questão de pensar, uma questão de entender e penso também o que Marx diz em A Ideologia Alemã que se a essência e a aparência se confundissem não haveria necessidade da ciência. O que Marx está dizendo é que o conhecimento científico não pode se basear apenas na aparência dos fenômenos até porque essa aparência pode ser falsa. Porque pode partir de bases falsas. E não é nem sempre por má fé não. Por engano mesmo, por isso, por aquilo. Não quer dizer que é só por má fé. Não é. Entendido isso qual é o papel de uma pessoa que está numa universidade? É exatamente produzir conhecimento e fazer do conhecimento um instrumento de mudança. Porque também tem o seguinte: as formas de conhecimento e as formas como o conhecimento foi apropriado, faz com que hoje a gente só tenha meia dúzia de doutores, meia dúzia em relação aos seis milhões, e um bilhão de analfabetos. Ultimo dado das Nações Unidas.

Aí, vamos e venhamos, como é que a gente resolve problemas com um bilhão de analfabetos que não aprenderam a pensar, que não tem uma estrutura organizada de pensamento? Que não sabem o que é ciência, aliás, não sabem nada praticamente. Aí a gente fala que eles não entendem. Apenas não dominam os mesmos artefatos que nós dominamos. Porque não tiveram, provavelmente, as mesmas oportunidades que nós não é? Porque o pão e o conhecimento deviam ser divididos por todos. Porque essas são as duas coisas fundamentais. Sem o resto a gente sobrevive. Não tem carro. Eu nunca tive carro. Eu penso que se eu for dirigir eu só vou fazer bobagem. Eu pego o ônibus, lá o motorista que se vire. Quando chega no ponto eu salto. Vou-me embora. Se estiver muito atrasada eu pego um táxi. Bom, mas o que eu estou dizendo é que a gente sobrevive sem quinhentas mil quinquilharias, mas não sobrevive sem pão e não sobrevive sem conhecimento.

Se me disserem que uma pessoa sem conhecimento tem condições de intervir na sua realidade eu me dou o direito de achar que não. Porque ela não consegue siquer entender a linguagem que a gente fala. Essa linguagem mais sofisticada vamos dizer que uma pessoa da favela não entende. Criança não sabe. Não é porque ela seja burra. É porque ela não aprendeu.

Deixa-me perguntar aqui uma coisa. Quem saberia aqui descrever o que são as noites brancas? Um de cada vez. Vamos lá. Alguém responde: O sol da meia noite acima do circulo polar

Como é que vocês imaginam uma noite branca? Só para a gente tentar decodificar. Noite por definição é negra. Tanto que os teólogos da Idade Media quando uma pessoa estava muito cheia de dúvidas em relação à teologia etc. eles diziam que estavam vivendo a noite negra da alma. Porque negro é comparado na verdade a tudo que não permite a entrada da luz quer dizer o conhecimento. Portanto se noite por definição é a falta de luz como é que eu posso falar de noites brancas?

Vamos fazer aqui um exercício de reflexão. Noite. Ai você diz, mas noite não pode ser branca porque noite é negra. Mas se eu falo de noite branca tenho que procurar entender como é que esta noite negra deu uma noite branca.

Alguém responde: noite cheia de neve. No Sul tem duas noites brancas, quando neva e quando a lua é cheia.

Mas isso não é uma noite branca. É uma noite com neve. Eu vou aqui fazer duas deduções. A primeira coisa é que realmente vocês não conseguem descrever uma noite branca porque não tiveram contato com isso, seja na realidade concreta, seja a nível intelectual. Dostoievski, por exemplo, tem um livro belíssimo chamado As Noites Brancas que deu peças de teatro. Eu chego à conclusão de que além de vocês não conhecerem o fenômeno das noites brancas não leram Dostoievski para saber pela leitura e pela descrição do Dostoievski o que é. Então vejam só, isso na teoria do conhecimento não é uma coisa tranquila porque eu me aproprio do mundo pelas representações do mundo. Eu me aproprio daquilo de que de alguma forma ouvi falar. Eu ouvi, ou alguém contou e detalhou. Como pelo visto isso não aconteceu vocês não têm condições de decodificar, de minimamente dizer mesmo por aproximação o que são as noites brancas. As noites brancas são um fenômeno da natureza e não são noites com neve não. Noite enluarada é noite enluarada, a noite não deixou de ser negra. Apenas há um contraste com a luz da lua. São coisas distintas.

As noites brancas são um fenômeno polar. O que é esse fenômeno? Uma coisa fantástica. É o seguinte: vocês já devem ter ouvido falar que no pólo norte durante dois meses pelo menos o sol não se põe. É um fenômeno da natureza no pólo, ou seja, que o sol não se põe significa que não escurece. É por isso que depois os animais e até as pessoas vão embernar. Passam um tempão sem dormir e depois embernam. Eu estive lá, na Finlândia, e vi que o sol não se põe. E o que é que acontece? A noite não se faz porque a noite é a ausência da luz do sol. Não foi isso que a gente aprendeu? Assim simplesinho, simplesinho? Durante doze horas o sol fica de um lado e durante doze horas, do outro. Quando um lado fica iluminado o outro está escuro. O sol só consegue pegar a parte da terra que está virada para ele. Ora, com este fenômeno que se dá no pólo norte o que é acontece? O sol fica com a mesma intensidade até perto de meia noite e quando dá meia noite exata, uma coisa fantástica, o sol vai se pondo, só que ao mesmo tempo em que vai se pondo na linha do horizonte, ele vai nascendo em seguida fazendo com que não escureça. Então não é neve nem a luz da lua. A luz da lua na verdade parece amarelada, mas as noites brancas é porque o sol e a luz do sol bate naquela quantidade imensa de geleiras resultando uma luz esbranquiçada que não é a luz do sol a qual exatamente é amarela. O sol não chega a se por. Ele se oculta e imediatamente sai. Então não há um momento de interregno que permita dizer que escureceu. Não há. Você pode em determinado lugar, lá na Suécia, ou na Finlândia, ver a noite branca. Ou então comprar e ler o romance de Dostoievski o que fica um pouco mais barato. Então vejam porque é que vocês não puderam conhecer. Procurem ler a peça que é magnífica.

Então vejam, porque é que vocês não puderam dizer isso? Porque nunca por nenhuma forma vocês tinham tomado conhecimento. Deixe-me contar aqui uma piada. Eu só sei piadas de salão. Fiquem tranquilos. Disseram que um amigo ia passando e ai viu um amigo dando uma surra num judeu. Estava quase matando o judeu de tanta pancada. Diante disso retrucou: mas amigo, desse jeito você vai acabar matando esse homem; o que é que ele fez? Ao que o amigo indignadíssimo respondeu: mas você não sabe o que eles fizeram?  Eles quem? Os judeus. Eles mataram Jesus Cristo.  É mas isso tem dois mil anos. É, mas só agora é que eu que eu soube.

Isso é uma piada, mas na verdade é assim. Eu só falo de um fenômeno após tomar conhecimento. E essa é uma colossal complicação na teoria do conhecimento. Porque se eu não tomei conhecimento eu sequer imagino. Portanto o mundo que eu conheço é o mundo no qual eu estou inserido diretamente.  Por isso Marx dizer que a consciência do homem é a consciência de um determinado momento, de uma determinada classe social ou de uma determinada região do mundo. Fora disso eu vou fazer igual ao amigo que só sabendo naquele momento que os judeus mataram Jesus resolveu ir à forra. Dois mil anos depois. Não tem importância. Ele não sabia. Não é?

Portanto esta é uma complicação. O real concreto só existe para mim quando eu me aproprio dele. Daí também isso permitir ao nível da construção do pensamento e das idéias uma série de equívocos por desconhecimento. Nem sempre por ma fé. Às vezes é também. Um mundo de pilantras aí querendo ganhar dinheiro às custas da gente inventando modas. Mas não é. Não é sempre e não é todo mundo. É porque a gente realmente não tomou conhecimento. Portanto tentar conhecer ajuda a gente. Conhecer o mundo, conhecer a realidade do mundo. E mais. Adquirir instrumentos de análise.  Para poder então a gente decodificar este mundo. Até para a gente decidir afinal que mundo nós queremos. E a gente tem pouco tempo. Não estou aqui fazendo catastrofismo não. É que o grau de poluição do planeta, o grau de fome, de miséria, de degradação, está colocando a humanidade toda afinal numa encruzilhada. Não há nenhuma garantia e não está escrito em lugar nenhum que a humanidade sobreviverá apesar de tudo. Não está escrito.
Portanto o mundo é o mundo que a gente construir. O mundo é o mundo que a gente queira ter. E o mundo será um mundo melhor se a gente decidir o que vem primeiro. Não basta ir para os fóruns sociais mundiais e dizer queremos um mundo melhor. Queremos todos um mundo melhor. Agora, também é verdade que o mundo que está aí, com guerras, com fome, com todo o tipo de devastação, é um resultado das formas de organização social que os homens produziram no mundo. Portanto só os homens alterando as formas de organização social, podem afinal criar esse mundo melhor para todos.

Mas, aí algumas perguntas?
  
1ª pergunta: Professora, eu sou professora da Fundação Educacional aqui de Brasília, e na minha escola estamos desenvolvendo uma atividade de representação artística sobre a consciência negra.  Um trabalho em etapas. A primeira é trabalhar as cores preta e branca para os alunos associarem às condições de raça. A segunda é usar as cores da integração africana, o verde, o amarelo e o vermelho. E hoje foram eles criarem uma propaganda colocando a questão da inserção do negro. Aí um aluno, Vinicius, que deve ter seus treze anos, negro, o material era de jornal, aí ele veio com essa frase que me inquietou: o negro é o passado do branco. Eu queria que você me ajudasse a refletir sobre essa afirmativa.

Resposta: Isso significa que os meninos pensam, não é? Eu acho que isso é um pouco figura de retórica. É uma imagem. O que ele quis dizer eu não sei, mas eu imagino que ele mais ou menos quis dizer.  Ele mais ou menos sabe que houve escravidão e que ele na verdade foi construído pela escravidão. E aí tem alguns lados que a gente também não sabe, por exemplo, quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, o Brasil tinha a mata atlântica. Tudo era a mata atlântica, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Os mapas dão conta disso. Mas a cada ano a mata vai diminuindo. Hoje tem regiões inteiras sem árvore. A mata atlântica toda destruída. Os índios eram no mínimo cinco milhões. Hoje com muito esforço a gente conta duzentos mil. Foram todos mortos. Os negros também. Houve períodos no Império em que a vida média de um escravo era de dois anos. Do dia em que chegava ao dia em que morria. Dois anos. Chegava aquele negro de 2 ms de altura da África dois anos depois estava morto pelo grau de espoliação da força de trabalho. Então eu imagino que o menino com o pouco que ele deve conhecer está se referindo a isso. Na verdade ele vê o passado dos brancos como um passado negro. Estou certa? Um passado na verdade de um alto grau de destruição, de ambos, os indígenas e os negros.  Para as mulheres era comum, quando as mulheres escravas engravidavam, para o seu senhor era uma coisa ruim porque era mais uma boca para comer além do que ninguém vai me dizer que uma mulher com nove meses de gravidez faz o mesmo que uma em estado normal. Não é verdade. Eles faziam as negras abortarem com cabo de vassoura. Pode fechar a boca porque é isso mesmo. Não havia médico, não havia penicilina. Foram milhões de negros que chegaram ao Brasil, para um passado negro. Nós somos na verdade os brancos que resultaram desse passado. 

2ª pergunta: Eu queria um esclarecimento sobre o conceito de ideologia. Eu sempre entendi a ideologia como uma forma de escamotear a verdade para as pessoas prejudicadas visando entenderem que na realidade existem os superiores e existem os inferiores. Existem os que pensam e existe os que trabalham. A senhora mencionou a ideologia como o confronto de ideias. Eu queria um esclarecimento a respeito disso.

Reposta: Grosso modo é isso aí. Porque quando a gente fala de ideologia, você de um modo geral está se referindo à ideologia dominante. Você não está falando da ideologia dos dominados. Até porque a história que foi escrita até hoje é a história dos dominantes. Não há a história dos dominados. Essa história não existe escrita. A ideologia também não de um modo geral. Então você diz que a ideologia é um corpo de idéias que se destina a manipular, escamotear a realidade. Grosso modo é isso. Mas quando você se refere à ideologia dominante. Porque para que a ideologia dominante mantenha os níveis de dominação ela tem que se valer de uma série de artifícios. Se ela disser exatamente as coisas como elas são, eu digo que ela não vai muito longe. Agora, o que você também não pode é universalizar esse conceito porque por outro lado é verdade que a gente espera que uma classe que não está comprometida com a dominação e a extorsão possa afinal eleger a verdade como critério, para enfim melhorar as coisas. Que aprenda a dizer a verdade. Porque de um modo geral, por exemplo, numa favela de um modo geral as pessoas dizem o que elas pensam, sentem, elas são muito simples e o pensamento é o que ela externa o que ela devaneia. Você pega uma criança. Uma criança de um modo geral não mente. É bobagem dizer que criança mente. Criança fantasia. Depois de seis, sete anos, começa a inventar um monte de fantasias, mas não é mentira. Ela não mente. Quem mente é o adulto para ela e ela aprende a mentir. Aí quando ela faz dez, onze anos ela já é doutora em mentir.  Ela já tem doutorado em várias academias do mundo, mas porque que ela aprendeu  a mentir. Então, a ideologia é mais ou menos isso.

A ideologia da classe dominante usa artifícios e naturalmente obscurece a verdade porque se  um industrial disser para um trabalhador que a mais valia de seu trabalho no processo de trabalho e é com esse mais valor agregado ao produto que no mercado permite a taxa de lucro, o patrão manda ele para outro lugar. E ele não volta no dia seguinte para trabalhar.  Então ele tem que dizer que não é mais valia mesmo. O que é isso? Quem foi que meteu isso na tua cabeça? Só pode ter sido comunistas. Não pode ser outra categoria de gente. Isso foram os comunistas que inventaram para você se voltar contra mim. Agora, também é verdade que o patrão diz isso porque a maior parte dos trabalhadores também não sabe. Nunca ouviu falar. Então, essa mentira acaba ganhando foros de verdade. Ele pode até ter uma certa desconfiança de que tem alguma coisa errada, mas ele não sabe o que é.

Só para dar um exemplo. Você pega um metalúrgico de São Paulo, da Volkswagen. Ele sai da fábrica e olha o pátio coalhado de carros. Aí você pergunta: um desses carros é seu? De jeito nenhum. São de meu patrão. Ele é capaz de morrer dizendo que não é dele porque ele não se reconhece como produtor daquele produto. Por uma série de artifícios Na medida em que ele não se reconhece como produtor desse produto ele não pode reivindicar parte desse produto como seu.  Porque num processo de produção em cadeia cada trabalhador realiza uma pequena parte do produto. Ele aperta parafusos. E com o carro pronto ele sabe o que á o parafuso, mas o carro pronto ele não sabe o que é. Não conhece o resultado todo de seu trabalho. Isso tudo escamoteia. Isso tudo coloca um véu, mascara a realidade. Mas é verdade também que os trabalhadores não sabem. Se souber vai para o sindicato e diz que quer uma jornada de trabalho menor, quer férias, quer isso, quer aquilo. Quero aposentadoria. Não quero a previdência que está aí. Quero outra melhorzinha.  E isso dá um trabalho danado.
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