quinta-feira, 29 de novembro de 2012

NÃO É PORQUE SEJA ASSIM QUE CONTINUARÁ ASSIM ou APRENDER A PENSAR COM MARX


A teoria da ideologia de Marx
Uma herança de surpreendente atualidade

Tadução do 8º capítulo do livro::
Robert Misik: MARX PARA APRESSADOS

Tradutor: Frank Svensson
Brasília, 23.01.2006.

         
Da mesma forma como uma galinha cega pode catar grãos, os maiores pensadores podem cometer enormes erros. Algo que talvez se deva ao radicalismo intelectual necessário para reverter velhas ideias e derrotar os ídolos de antanho – um radicalismo que não se administra mais, mesmo se ele deve acionar até ao fundo a dinâmica de seu próprio arrazoado. Quase por definição, os pensadores radicais obedecem ao princípio que vale mais se equivocar nas grandes coisas do que ter razão nas pequenas. Os erros que encerra a obra de Marx são desses. Marx era convencido, de um extremo ao outro de sua obra, que as condições de propriedade burguesa, ou seja, mais de duzentos anos de formas de desenvolvimento das forças produtivas produziriam em breve suas próprias cadeias e que, como o feudalismo outrora, a gangue do feudalismo explodiria ela também, A socialização do trabalho e a centralização de seus meios materiais alcançam um ponto em que não podem mais ser contidas em seu envelope capitalista. Esse envelope se rompe em pedaços. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez expropriados. (C.I. 3, p. 205), previu Marx na célebre conclusão do Livro I de O Capital – e a produção capitalista engendra ela mesma sua própria negação com a fatalidade que preside as metamorfoses da natureza. A acumulação capitalista e o princípio da concorrência conduzem à queda dos pequenos capitais e à concentração dos grandes, analisa Marx. As novas formas de sociedades capitalistas – como, por exemplo, a formação de grandes sociedades por ações – criando grupos a uma escala sempre maior, conduzindo a um crescimento constante do numero de monopólios. Esse capitalismo suscita um desenvolvimento cada vez mais considerável das forças produtivas; portanto, chegando a um certo ponto não será mais capaz de inovar. Ele aperfeiçoará a distribuição social do trabalho, combinará os resultados cada vez mais complicados do trabalho combinado, mas tirará cada vez menos partido das chances oferecidas por esta nova organização da produção. Pois o princípio da concorrência não suporta o trabalho cooperativo e a propriedade capitalista que condena a maior parte das gentes a um trabalho assalariado estúpido, compromete as grandes possibilidades que oferece potencialmente a criatividade dos trabalhadores. O capitalismo é um entrave à inovação.

Apesar de rigorosamente lógico, esse raciocínio se mostra falso. Atualmente a economia capitalista conseguiu o salto da produção industrial de massa na era de novas tecnologias, na época do trabalho intelectual, da informatização, da produção telecomandada pela microeletrônica, da biotecnologia, e da Internet, ninguém, hoje, continuará pré-vendo, uma incapacidade de inovação do capitalismo. Melhor do que isso: este capitalismo se revela capaz de explorar a fundo a criatividade de seus trabalhadores intelectuais, considerar seus impulsos rebeldes, sua resistência a se integrar como forças produtivas, e ele os força a se inserir na malha do trabalho cooperativo e autônomo que se mostra naturalmente cheio de princípios do salariado, da concorrência, do valor. Seria hoje arriscado prever um revés do capitalismo por causa de sua inaptidão de organizar em cooperação um trabalho autônomo e responsável. De fato, as grandes empresas, os trabalhadores independentes do tipo Eu SA e, por exemplo, os que concebem logiciels não são mais instados a coordenar em alguns segundos o trabalho entre Nova Yorque, Ulm e Bangalore, a lhe reestruturar, e lhe administrar de forma criativa?

Apesar das megafusões destes últimos anos, o processo de formação de monopólio parece hoje muito ambíguo: os monopólios aparecem e desaparecem, os velhos mostram-se pesados; são objeto de desconfiança das empresas recentemente criadas que adquirem elas mesmas dimensões impressionantes, mantendo assim indefinidamente o princípio da concorrência. Sem considerar as leis antitrustes impostas pelo Estado, o que nos remete a uma das circunstâncias que motivaram mudanças as quais forçaram Marx a colocá-las entre parênteses em seu arrazoado. A pauperização prevista por Marx como consequência lógica do princípio capitalista – mesmo se em O Capital, ele fala mais de uma pauperização relativa do que absoluta – não se agravou; deixemos em suspenso a questão de saber se é da lógica da produção capitalista como tal de acrescentar também uma certa melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores (como o pretendem os pais da economia de mercado) ou se, também, esse fenômeno não seria mais o resultado de fatores de modificação, tais como as intervenções do Estado visando manter a estabilidade do sistema, ou consequência de vitórias obtidas pelas classes desfavorecidas em suas lutas por sua parte da riqueza social. Uma coisa é certa: os proletários têm hoje muito mais o que perder que só suas cadeias. 

A argumentação segundo a qual o Estado, e principalmente o Estado social da Europa ocidental, de fato não passa de uma instância de dominação de classes, um instrumento da ditadura da burguesia à qual responder – após a revolução – por uma ditadura do proletariado a qual, uma vez consolidada, conduzirá, pouco a pouco, ao desaparecimen-to do Estado, só é sustentada hoje por adoradores inveterados de Marx.
Surpreendentemente a teoria formulada por Marx não tem sofrido por esses erros – nem mesmo da evolução social. No início do século 20, o marxista húngaro Georgy Lukàcs resumiu esse estado de coisas num paradoxo: Supondo, mesmo sem admiti-lo – que a pesquisa contemporânea tenha provado a inexatidão de fato de todas as afirmações particulares de Marx, um marxista ortodoxo sério poderia reconhecer sem condições todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses particulares de Marx – sem, portanto ser forçado, um só instante, a renunciar a sua ortodoxia marxista. (História e consciência de classe, Paris, Ed de Minuit 2004, p. 17).

O mérito intacto de Marx repousa sempre sobre o método de análise dos processos sociais por ele concebido. Assim, é verdade ainda hoje não existir melhor maneira de aprender pensar do que ler Marx. É verdadeiramente grotesco querer fazer deste pensador um doutrinário puro e duro, ele, para quem a história é feita de contradições, de surpreendentes paradoxos, de inesperadas piruetas e de dialéticas cambalhotas. Ele que soube nos mostrar que o mundo não é um conjunto de coisas findas, mas um complexo de processos como escreve Engels em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (p. 61). A leitura de Marx é um remédio contra todos os positivismos atrofiantes e as verdades definitivas. Preferimos o lema: não é porque seja assim que restará assim. Não importa qual situação social, por mais profundamente enraizada que possa parecer, encontra-se sobre o fio da navalha, sempre pronta a retornar. O mundo é estável, fixo e imóvel? Não, o mundo está em perpétua mudança, ele é submetido à lei de uma eterna dinâmica que não esconde nenhuma verdade metafísica, mas simples-mente a ação recíproca de necessidades, atos individuais e contingências. Estaremos no fim da história? É preciso se resguardar de tais predições; quem sabe o que o amanhã nos reserva? Como alguém de são juízo pode sucumbir à ideia que a ordem social que nos orientou até aqui é uma ordem definitiva e daqui em diante imutável? Como é possível, ao mesmo tempo, considerar a eterna renovação e a permanente transformação da sociedade que se acelera? Não podemos esperar nada além de uma coisa: o inesperado. Guardemo-nos também de deduzir dos limites do homem os limites do futuro. Os homens aprendem marchando, enquanto atuam, que têm uma atividade prática. E na prática social em que, alguns, podem tropeçar acidentalmente, eles che-gam repentinamente, diz Marx de uma maneira incomparável, a balançar toda a podridão do velho sistema ... [e vêm] aptos a fundar a sociedade sobre novas bases (I. A. p.37).

Um pensar decorrente da leitura de Marx é também imune contra os desencorajamentos propriamente conservadores contra explicações simplistas e constitui, por consequência, a condição do conhecimento. Ao mesmo tempo com, em e após Marx., nós podemos aprender como forças as mais diversas, tais como as ilusões e as condições materiais, as histerias de massa e as tradições, as estratégias de poder e as emoções rebeldes, agem umas sobre as outras, para chegar a resultados que ninguém realmente desejou e que constituem o conjunto de uma estabilidade precária das condições de vida que nos marcam e são, elas mesmas por nós marcadas. Porque se surpreender se os mais inteligentes entre os críticos de Marx o reprovam geralmente de tal maneira que não podem negar sua origem marxista.

Mais a mais a ciência marxista dos processos sociais é um medicamento contra todas as cretinices intelectuais. O marxismo é o modelo perfeito de uma total interdisciplinar-dade. Onde estariam as nossas teorias sociais as mais avançadas sem Marx? O que seria do estruturalismo francês sem a análise da estrutura econômica sem sujeito e as teorias de sistemas alemãs modernas sem a descrição grandiosa do mundo automático; enfim, que seria dos Estudos Culturais, tão modernos de nossos dias, sem os ensaios inspirados de Marx escritos por especialistas da cultura como Frédéric Jameson ou Terry Eagleton? Da mesma forma que a economia de O Capital não fala de coisas econômicas, mas de relações sociais, o empreendimento inteiro de Marx é uma ciência humana no sentido mais largo. A cultura torna-se mercadoria e a mercadoria cultura, o individualismo torna-se um fenômeno de massa e a desideologização ideologia. Como melhor descrever tudo isso sem a intuição de Marx para descobrir os paradoxos e as irônicas meia-voltas?

Como podemos saber tudo isso sem dar lugar a uma consciência trágica ou a um cinismo doentio – quando todo desejo de propriedade não faz outra coisa que penetrar na malha cerrada dos condicionantes externos, quando o crescimento incessante dos potenciais econômicos e tecnológicos só faz aumentar o abestalhamento e a cegueira? Para dissimular as depressões há o gesto de Marx: saber que tudo o que nasce, morrerá infalivelmente, que o pior pode resultar no melhor, que toda regressão comporta uma parte de progresso e que nas pequenas coisas existem grandes. As árvores não alcançam o céu. Somos assegurados por outro lado que tudo vai também no sentido contrário.

É certo que a teologia secular que encontramos no mundo das ideias de Marx, como o papel messiânico do proletariado ou essas reminiscências da História Sagrada que guardam ainda a noção de progresso, nos parecem atualmente vindas de outro planeta. Fato é que é difícil de ver uma espécie de progresso de Beethoven a Dieter Bohlen* (posto de lado o progresso incon-testável que representam as forças produtivas de um estúdio de gravação informatizado) e o progresso que há do bodoque à bomba atômica é pelo menos discutível

E, portanto não podemos nos submeter à lógica de uma consciência somente trágica e depressiva. Certo, a história não é uma História Sagrada ao fim da qual se encontrará a sociedade sem classes, de sujeitos autônomos; mas ela é também um processo ascendente e dotado de uma finalidade: existe entre a Europa do neolítico e a Europa contemporânea uma diferença que merece certamente o nome de progresso. Se, hoje, Marx não pode mais nos ensinar um otimismo irrefletido, ele pode pelo menos nos proporcionar uma certa confiança argumentada no futuro.

Cada instante histórico, mesmo o mais insignificante, é sempre um início; aquilo que segue é sempre contingencial. Daí porque tudo o que fizermos ser importante.

Pensar com Marx significa, portanto, neste início de milênio, pensar com as condições de existência contra as condições de existência que contribuem sempre a produzir – se isso não é sua negação – pelo menos energias rebeldes. Se for verdade que o capitalismo sem limite, refinado, baseado no saber se entende tornar produtiva por si mesma a vontade dos sujeitos, é igualmente verdade que ele suscita essa vontade sobre uma base cada vez mais larga. O capitalismo não se esvazia, como pensava Marx, porque não sabe tirar partido da criatividade que tem o poder de suscitar, é precisamente porque tem o poder de despertá-lo, explorá-lo, de alimentá-lo e cultivá-lo que cria um potencial de emancipação – não mais sob a forma da unidade da classe obreira como organizaram os Antigos, mas sob a forma da vontade de um grande número. Uma multidão de homens não unidos por muita coisa, mas donos de uma ideia de vitória que escapa a simples racionalidade pecuniária, de uma dignidade que sonha autodeterminação – e esta não só em metrópoles isoladas, mas também à escala planetária. Sonhos (ou mal-estar quando são irrealizáveis), que – notemo-lo – não inventados por espíritos sonhadores ou por teóricos da esquerda-caviar (Possivelmente também), mas sonhos realmente imbricados nas condições elas mesmas.  A dinâmica interna do capitalismo condiciona as idéias de autonomia que se chocam sem cessar com as realidades da produção, da organização, da relação com o capital, e as estruturas de dominação. As consequências são múltiplas: frustrações, revoltas abortadas e existências subjugadas, mas, por outro lado, invenções lúdicas de novos contextos de vida – pelas jovens gentes que fazem seu truc – tentativas de resistência, as Eu SA e uma arte de viver. Esse capitalismo é um teatro, um laboratório que tem por bela particularidade que as experiências feitas sobre esta cena podem ao mesmo tempo esvaziar e acertar. O movimento material fez os sujeitos e não os adiciona sem contradições. Ao contrário, não cessa de reproduzir as contradições. Como um nó inextirpável, o potencial de emancipação ocupa o espaço paradoxal ocupado pelo capitalismo. Sobre este capitalismo da era informacional, com as surpresas que ele proporciona, Karl Marx, o velho doutor de um pensar com condições contra as condições, tem muito a dizer -- e foi o que quisemos tornar acessível ao leitor.

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