segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O CARÁTER DOENTIO DO CAPITALISMO – Para a crítica da psicologia burguesa



Sinopse (versões e livres exposições) do livro de Michael Schneider: Neurose und Klassenkampf (Neurose e luta de classes), Reinbeck bei Hamburg, 1973.

Frank Svensson, 2009.

O caráter do desejo e o da usura afeitos à circulação financeira marcam o movimento próprio da sociedade capitalista. Marx o exemplificou com Midas, um camponês feito rei pelo povo, que pediu ao deus Baco o poder de tudo transformar em ouro. Encarnou assim a negação de seu moto próprio, tornando-se arquétipo do neurótico capitalista.

O colecionador de tesouros caracteriza-se por abstratas virtudes. É assíduo, abstinente, parcimonioso e avaro, virtudes que ao fim são marcas da burguesia industrial e financeira como classe social. Sua razão econômica deixa de ser o valor de uso e de desfrute, torna-se valor de troca e de acumulação. Sua ancoragem religiosa dá-se nas neuroses coletivas das coerções no cristianismo, principalmente do protestantismo reformista e do evangelismo hodierno. Em termos políticos apregoa a ideologia da não-ideologia e do não-partidarismo.

A burguesa psicologia da abnegação e da performance só ganhou terreno entre o proletariado quando a burguesia conquistou o poder do Estado impondo a disciplina de caserna nos locais de trabalho. Os filhos dos proletários passaram a ser disciplinados segundo severas ideias de autoridade, higiene e ordem, com a função de arraigar disposição para o trabalho assalariado.

A sensorialidade do ser humano é, no modo de produção capitalista, submetida ao rígido e exato cálculo do ditame do mercado. Com a crescente coisificação das relações na sociedade, a libido, ou seja, a conformação dos desejos, entra em crescente contradição com a abstração do princípio de realidade da razão. Amor, poesia e originalidade tornam-se sinônimos de incapacidade ou recusa de submeter-se aos princípios do quantificável. A alma capitalista só consegue aceitar paixão e amor como ligados à ruína e ao castigo econômico. São vistos como risco, como desvantagem comercial, como fraqueza, como bobagem e até como forma doentia. O sensorial é concebido em inconsciente oposição ao insensível pagamento à vista que o capital impôs a todas as relações humanas.

Esta mistificação econômica é reproduzida no plano psíquico do capitalista. Sua índole apresenta-se ao sujeito como natural, apesar de tratar-se de uma segunda natureza, reflexo de uma sociedade na qual os meios de produção apresentam-se como um estranho poder, ao mesmo tempo em que seu anacrônico reflexo religioso ganha formas profanas de caráter psicopatológico.

A crescente contradição entre a autêntica proletarização e os ideais de autonomia pessoal expressam-se – principalmente nas classes intermediárias da sociedade – em forma de neurose e psicose. Os cada vez mais difíceis momentos de crise social e política dão origem a uma crescente presença de males psíquicos em todas as camadas sociais. Quando as mais acentuadas contradições de classe não são resolvidas de forma progressista – com o método da revolução socialista – evidenciam-se de forma regressiva, introvertendo-se doentiamente.

No capitalismo tardio, uma crescente frequência de doenças decorre da organização e da divisão do trabalho. Seguem-se a fragmentação e a parcialização das aptidões e das afeições do indivíduo. Sua estrutura de motivações persiste rudimentar, tendo seus últimos rudimentos de criatividade extirpados do contexto do trabalho assalariado. Simultaneamente, o processo do trabalho na sua totalidade torna-se mais complicado, mais coordenado e mais qualificado. Para grande parte dos trabalhadores torna-se mais simples, mais fácil, mais automático e mais desclassificado. A desclassificação do trabalho avança de mãos dadas com a impossibilidade de nele aplicar suas habilidades, alimentando uma das principais patologias industriais.

O aumento de doenças funcionais e de desvios patológicos na população obreira deve-se sobremodo a mudanças estruturais na produção e a novos métodos de extração de mais-valia. A exclusão do trabalho manual em favor do trabalho mental no semiautomatizado trabalho industrial implica na substituição de doenças orgânicas por enfermidades funcionais. O incremento da exploração da mais-valia relativa pela intensificação do trabalho explica a depauperização psíquica em oposição ao recrudescimento brutal das formas de lucro.
Se a força de trabalho adoece por tornar-se objeto de inescrupuloso lucro, só se deixa reparar submetendo-se também a condições lucrativas. A frequência de doenças psíquicas entre os trabalhadores tem a função objetiva de favorecer a indústria farmacêutica, que se alimenta da crescente procura de remédios e aparelhamento médico, uma indústria que apresenta os mais elevados índices de expansão e lucro.

A imagem clínica da sociedade do capitalismo tardio caracteriza-se por um sensível aumento das doenças psicóticas, claramente super-representadas nos segmentos proletários. As rígidas práticas de formação e educação eivadas do desejo e do exercício de poder na família obreira; decrépita agressividade; obediência a regras e normas emanadas do processo de produção resultam numa formação de superego com elevada disposição psicótica. Já a prática formadora da família classe média, de orientação amorosa em busca de segurança, com absorção das normas de performance dos pais, resulta numa forma distinta de formação do superego de acentuada disposição neurótica. Os trabalhadores podem muito menos se dar o luxo de neuropsicoses, desde que suas decorrências sociais são muito mais graves do que para a classe média e a elite. A perda da noção de realidade resulta muito maior para uma psicose do que para uma neurose. Corresponde-lhe, portanto, o grau de dificuldade implícito à situação social do doente. O psicótico proletário regride mais do que o neurótico classe média, por ser sua alienação – decorrente de sua longa e obrigatória condição de assalariado – muito mais acentuada.

A crescente frequência psicótica na população proletária esclarece a opinião de que as ilusões psicóticas incluem a necessidade de uma outra e nova realidade. Sendo o proletariado o que mais sofre sob a realidade capitalista é o que objetivamente mais quer substituí-lo. Mas enquanto – por sua fraqueza organizativa e política – de fato não consegue mudar a realidade social, o isolado e impotente proletário passa a mudar suas ideias sobre a realidade, a alimentar ilusões. A radicalidade nelas inclusa sempre foi vista pela sociedade como séria ameaça. Por isso trata o psicopático revolucionário ou o revolucionário psicopata como um caso de se exorcizar um endemoninhado.

As atuais pesquisas progressistas de psicose e esquizofrenia expõem as velhas teorias manicomiais a sérias críticas. O clássico entendimento da esquizofrenia como doença mental hereditária tem sido confrontado pela pesquisa de orientação psicanalítica com uma interpretação psicoevolutiva. Segundo esta, os distúrbios esquizofrênicos de comunicação decorrem de contradições da sinalização de distintos planos, por sua vez resultantes de ambivalentes posições emotivas por parte dos pais ou de profundas divergências entre si. A velada luta entre os pais reflete-se na psique da criança, cindindo-a.

Esse estudo psicanalítico da esquizofrênica constelação familiar expressa duplas ligações na sociedade, veladas contradições de classes às quais se expõem pais e filhos na escola e no local de trabalho. A esquizofrenógena consciência nada mais é que uma obstruída consciência de classe.

A pesquisa de orientação mais sociológica evidencia que a mais elevada frequência de esquizofrenia na população proletária decorre principalmente de seu isolamento social na esfera reprodutiva (família, local de habitação), aumentando a disposição a colapsos esquizofrênicos. Do ponto de vista de dependência salarial, nada mais é que uma reação a participar, a continuar vendendo sua força de trabalho sob desumanas condições. Do ponto de vista do capital, entretanto, é típico de uma força de trabalho imprópria, não rentável e insubmissa

Para as ideias da psiquiatria social quanto à terapia e à reabilitação tomam-se por base outros conceitos capitalistas de doença e de saúde. O mais importante instrumento de reabilitação é a terapia laboral, visando tornar o doente em condições de novamente vender a sua força de trabalho. Uma mão lava a outra: a indústria clinica fornece os casos psiquiátricos arruinando a força de trabalho dos obreiros e sua saúde psíquica; a clínica industrial recupera a força de trabalho o suficiente para poder oferecê-la de volta a preço muito inferior. Comum ao trabalhador saudável e ao doente é ser externa a si a determinação das condições sociais sob as quais trabalha, ou seja, quando adoece e quando é recuperado. Esta decisão de estranha influência externa constitui a essência de todas as doenças psíquicas no capitalismo.

Ligada à psicose do conjunto de formas esquizofrênicas é a psicose das drogas, que sobremodo define a paisagem clínica da sociedade do capitalismo tardio. O consumo de psicotrópicos cresce também entre a população de trabalhadores adultos, que só consegue suportar e atenuar a fadiga psíquica no super-racionalizado processo de trabalho e as crescentes perturbações funcionais com o recurso de estimulantes químicos. Os donos de fábricas têm por isso acentuado interesse de estimular substâncias psicotrópicas. Em parte, esses preparados incrementam a performance, garantem máxima exploração da força de trabalho; em parte escamoteiam o constante incremento das piores consequências à saúde dos trabalhadores. Por isso os legisladores não penalizam o consumo de drogas em si, hoje indispensável à exploração máxima da força de trabalho, mas só os que se desgarram com ajuda de drogas, isto é, os que se eximem da exploração legal.

A patologia que resulta das funções totalitárias é principalmente psicossomática, psicossexual e psicótica: é a dos distúrbios de comportamento. A patologia que resulta das funções totalitárias comerciais apresenta-se, ao invés, como patologia das perfeitas imagens estético-comerciais. Para resolver seus problemas de venda, o capital monopolista desenvolve o inflacionário mundo da bela aparência, um mundo de infindáveis promessas de felicidade e de valor de uso, com uma perversa primazia das energias de um mundo de coisificadas pessoas em favor das coisas personalizadas. As exposições do mundo das mercadorias são transformadas em gigantescos e emocionantes cenários que com suas inusitadas formas mistificam a consciência do comprador. A decomposição da mercadoria em artificiais processos de animação desperta uma tendência no consumidor de só apreciar aquilo que se expressa por categorias mercantis
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Seus sentidos são transformados em passivos receptores de sinais puramente comerciais. Suas relações com o mundo das mercadorias tornam-se cada vez mais irreais, na medida em que seu alucinante mundo de associações por métodos que – cada vez mais refinados – buscam evitar a função da comprovação realista. O hábito do consumo ganha assim mais e mais características projetivas; o aparato psíquico é reestruturado num painel de projeção para o filme de propaganda do momento.

A abstração do sensorial, implícita ao princípio da troca, influi na projeção assexuada da mercadoria, forma que assim como as necessidades sexuais assemelham-se cada vez mais a dinheiro e transações monetárias, algo que se evidencia sintomaticamente na promíscua práxis sexual dos consumidores de pornografia, dominada pela ilimitada convertibilidade do objeto sexual. A total sexualização do mundo do mercado e a generalização das formas de convívio sexual implica a total abstração do valor de uso da sexualidade. Das constantes ofertas de valor de uso sexual as energias eróticas são levadas a uma fixação exibicionista, ou seja, transferidas para parciais canais da libido.

A característica das estruturas sociais de impulso e caráter é hoje determinada menos pelo processo de socialização individual, pelo desenvolvimento infantil instintivo. Por outro lado, a atenuante estrutura estético-mercantil, por meio de sua crescente valorização capitalista, joga hoje um papel cada vez maior. Qual objeto sexual é percebido como mais belo, mais merecedor de apreço, e o que é visto como mais másculo, mais juvenil etc. é muito menos determinado por relações entre objetos e identificações familiares na infância do que pela anônima ditadura estético-mercantil. Quais os estímulos parciais desenvolvidos e quais os acentuados depende sobremodo das estratégias de venda e de lucro dos ramos industriais predominantes.

Na incessante busca de novos mercados o capital abarca novos continentes da sensorialidade humana, desertificando outros já longamente cultivados. O enfermo quadro da sociedade consumista do capitalismo tardio não pode mais ser diagnosticado com ajuda dos clássicos conceitos de doença apontados por Freud. Se o neurótico clássico (também o psicótico) ainda padecia de desejos de infância, o capital comerciante o salvou desse sofrimento oferecendo imagem estandardizada por iniciativa estético-mercadológica. Na medida em que a libido, o desejo, são satisfeitos sob a forma de compra (ou parece ser satisfeita dessa forma) é arrecadada pelo princípio de realização do capitalismo. Quando o comprador é levado a vender os seus desejos, perde a condição de poder adoecer em função deles. Em lugar do clássico antagonismo entre os princípios de realidade e desejo, entre o eu e o isso, dá-se uma perversa ação recíproca entre ambos os lados do aparato psíquico. Não é mais a repressão de certas necessidades instintivas que determinam a doentia imagem de vendedor ou comprador.

Isso vale somente para as esferas da circulação e do consumo na sociedade do capitalismo tardio. Já na esfera da produção, o aumento dos distúrbios das funções psíquicas indicam uma crescente resistência aos princípios capitalistas de realidade: a vitalícia obrigatoriedade do trabalho assalariado. É também por isso que na esfera da produção a sintomática e patogênica oposição ao princípio capitalista de realidade pode e irá se mudar em consciente oposição política.


Perspectiva

Debilitação psíquica em massa é tarefa para uma subversiva psicanálise de base materialista

Talvez o mais popular e mais flagrante argumento da crítica burguesa do marxismo é que a teoria do empobrecimento é refutada pelas condições econômicas de fato; a ascensão do nível de vida da classe trabalhadora nos países altamente industrializados comprova que a teoria do empobrecimento se confirma pela própria história. Essa comprovação antimarxista oculta que o conceito de Marx não se refere ao salário absoluto, e sim ao relativo. Tais conceitos infelizmente nem sempre foram vistos como distintos pelas lideranças teóricas e pelos organizadores do movimento trabalhista; por exemplo, Lasalle. O conceito de empobrecimento implica o salário, sendo com isso que o nível de vida do trabalhador decresce, não em termos absolutos, mas em relação ao lucro do capital. Na realidade, não é diferente nem mesmo a denominada sociedade do bem-estar: a diferença entre o salário e o lucro do capital só aumenta, ou seja, aquela parte do produto nacional bruto que cabe à classe trabalhadora diminui, apesar de aumento dos salários

Pretensos entendedores burgueses ocultam ainda que o conceito marxista de empobrecimento não se refere a determinado proletariado nacional, mas ao subjugado proletariado internacional. O proletariado dos países capitalistas altamente industria-lizados tem escapado, no entanto, do empobrecimento econômico absoluto (ao qual eram expostos no século XIX e durante as crises do século XX) só porque indiretamente dispuseram do sobrelucro que o capital monopolista europeu e o norte-americano extraíram dos povos do terceiro mundo. Em razão dos enormes sobrelucros, o espaço de concessões ao proletariado local foi relativamente maior na fase imperialista do que na fase pré-imperialista. O relativo conforto atingido e desfrutado pelo proletariado nos países desenvolvidos foi pago, portanto, com um absoluto empobrecimento do proletariado na África, na Ásia e na América Latina: empobrecem cada vez mais, enquanto os ricos países imperialistas enriquecem.

O conceito de empobrecimento de Marx ganha, além disso, uma especial atualidade nos nossos dias, se o complementarmos com a dimensão psicológica. O proletariado nas metrópoles imperialistas é, como mencionado, ainda submetido a uma relativa extorsão econômica, mas seu processo de extorsão psíquica toma a dianteira de tal forma que merece especial atenção justamente por parte do pensamento marxista:

Nossa sociedade é uma sociedade de classes, ou seja, tem exploradores e explorados. Hoje a exploração não se apresenta imediatamente como miséria material (mesmo se esta persiste de forma escandalosa no entorno das grandes cidades [obs. do autor]), mas toma a forma de uma extorsão psíquica de massa. (U. Ehebald: Psychische und soziale Motivation zum Drogenkonsum – Motivações psíquicas e sociais do consumo de drogas).

Ao modo de produção capitalista é inerente a contradição que tem por um lado valor de troca e capital e por outro destruição do valor de uso, principalmente considerando que o valor de uso da força de trabalho aguça-se hoje cada vez mais. As forças produtivas de caráter tecnológico – e assim as forças produtivas do trabalho social – desenvolvem-se na medida em que o trabalho para o trabalhador individual perde cada vez mais significado, torna-se abstrato, limitado e monótono. Com a constante intensificação, automatização (sob condições capitalistas) e abstração cresce também o seu caráter patogênico. Hoje, com a possibilidade de sustar a divisão capitalista do trabalho, apresenta-se como nunca antes na história a submissão dos homens ao capitalismo.

A mesma contradição é reproduzida no campo do consumo: ao consumidor é posta uma crescente quantidade de mercadorias, tornando-o cada vez mais incapaz de beneficiar-se sob forma de desenvolvimento qualitativo de sua aptidão sensorial e espiritual. Quanto mais a sua vida sensorial é meio de acréscimo de valor, tanto mais se distancia de seus sentidos, tanto mais sem sentido torna-se em relação a si mesmo. Hoje, quando as forças produtivas adquirem uma forma universal, as forças sensoriais libidinosas mostram-se mais tacanhas e atrofiadas do que nunca.

A transformação das forças produtivas em forças destrutivas prevista por Marx ressurge – na economia monopolista – reproduzida num plano superior da economia de produção da sociedade. As armas de destruição imperialistas ameaçam com destruição física imediata não só os povos do terceiro mundo que se opõem à exploração, mas ameaçam também a população nas metrópoles imperialistas com abrangente atrofiamento e destruição psíquica. A avassaladora destruição das forças produtivas da sociedade sob forma de anulação do capital físico (crises econômicas, produção bélica etc.) e a anulação funcional do capital (automação interditada em áreas não rentáveis para o capital, desativa mento planejado etc.) tem sua correspondência psicológica na incessante destruição de energia psíquica, sob forma das energias de resistência e fuga necessárias à manutenção do equilíbrio psíquico. Os crescentes custos mortos do desenvolvimento econômico correspondem aos crescentes custos mortos das energias despendidas para financiar a redução de doenças em nível pessoal.

Num aspecto, a contradição entre aperfeiçoamento técnico e o aumento de riqueza material (da qual a classe detentora de capital incorpora parte leonina), e noutro a crescente depauperação psíquica é historicamente recente em seu aguçamento. A relação entre acumulação de capital e empobrecimento psíquico deve por isso ser posta no centro da propaganda política. Ligada à tradicional argumentação político-econômica, esclarecedora dos mecanismos de exploração econômica, urge hoje a argumentação político-psicológica, esclarecendo os efeitos patogênicos do capitalismo. Esta ganha crescente significado para a agitação e a propaganda revolucionária. Não só os aumentos de lucros, preços, aluguéis, impostos e armamento etc., mas também a crescente frequência de doenças psiconeuróticas e psicóticas, funcionais, de distúrbios, impotência e comunicação etc., devem passar a ser vistos como objetos de análise política e agitação.

Somente quando a dupla face do capitalismo – crescente conforto material e depauperação psíquica – possa ser vista de ambos os lados, ao mesmo tempo a exploração capitalista passará a ser percebida como o enorme escândalo que sempre foi. Percebida não só objetivamente, mas também subjetivamente. Somente quando as massas assalariadas tiverem consciência do preço econômico e psíquico que sustenta as relações produtivas do capitalismo, ou seja, ao preço de exploração econômica e depauperação psíquica de sua força de trabalho, ao preço de crescente miséria espiritual e psíquica de todo o mundo do bem-estar ocidental é que as ações, a televisão em cores, o aparelho de som estereofônico, o voo charter etc. perdem seu conciliador efeito em relação à desumanidade das formas de produção capitalistas. Somente quando o balancete psíquico da chamada sociedade do bem-estar estiver à vista de todos, juntamente com o balancete entre lucro e exploração, a ideologia consumista será definitivamente desacreditada.

Hoje, quando em todas as circunstâncias desponta um deslocamento do centro de gravidade da depauperação econômica para a psíquica, a teoria político-econômica propriamente dita tem que incorporar uma teoria de enfermidade e a prática política incluir uma prática terapêutica. A sumamente importante tarefa de uma psicanálise materialisticamente esclarecida – ou talvez seja melhor classificá-la como uma teoria de doenças psicanaliticamente esclarecidas sobre base materialista – implica desenvolver todas as formas de resistência psíquica aos condicionamentos laborais e de socialização, expressos como doença, como alavanca da luta política. Uma tal teoria psicanalítica das doenças materialisticamente esclarecida evidenciará que a doença psíquica, independentemente de sua forma, contém traços subversivos e progressistas: constitui uma ainda inconsciente forma de protesto contra as vigentes condições de exploração e opressão na família, na produção e no consumo. Então, as contribuições de William Reich poderiam ser atualizadas e complementadas, desde que não se trataria tanto de demanda de liberdade sexual, mas de combate à moral sexual burguesa (sempre minada pela apropriação estético-mercantil da sexualidade), mas principalmente para transformar o momento de passiva resistência expressa em doença em ativa resistência política à sociedade doente. Uma psicanalítica teoria de doença materialisticamente esclarecida pressupõe – e o deve propagar – que uma doença psíquica tem de ser vista de pontos de vista opostos, embora se trate de neurose ou de psicose: do ponto de vista do bem-estar da saúde oficial, trata-se de etiquetar uma força de trabalho deficiente, não rentável e talvez insubordinada; do ponto de vista do trabalho assalariado não se trata de outra coisa que uma consciente fuga psíquica ou tentativa de rompimento com as condições capitalistas de trabalho e de socialização, uma sintomática recusa de continuar participando. 
          
A consciência de classe em grande parte tem, no entanto, por meio do fascismo e de sua posterior restauração, sido ocultada ou desviada para outro plano, o do aparato psíquico, isto é, expressa-se cada vez mais como recusa ao trabalho por motivo de doença. As doenças como fenômeno de massa precisam mais do que nunca ser consideradas como motivo de pública discussão e agitação política, para que a raiz comum das muitas distintas formas de doença e depauperização psíquica seja enfocada. Somente desse modo o enfermo individual, acostumado a aceitar sua moléstia como seu destino pessoal, pode compreender seu caráter social. Somente dessa forma a perda de prestígio que na sociedade capitalista é vinculada a enfermidade, pode ser sustada.

Visto do marxismo, atribuiu-se à psicanálise até agora uma função limitada. Isso com toda razão, visto que suas mencionadas categorias dependem da superestrutura, são cegas em relação às determinantes não familiares de socialização, bem como aos processos de formação ideológica. Uma teoria sobre doenças psicanaliticamente esclarecidas, com base materialista, como aqui esboçada, decorre oposta e diretamente da base, mostrando que psicologia passa a ser psicopatologia, ou seja, enfermidade, na mesma medida em que é submetida ao processo de acumulação do capital; implica também em estratégia terapêutica: se as reações psicossomáticas, psiconeuróticas e psicóticas nada mais são que cegas e inconscientes reações de defesa ou mecanismos de defesa (como denominado no campo da psicanálise) contra as funções acumulativas do capitalismo, sob as quais as pessoas geralmente são organizadas atualmente, é necessário transformar essas reações de defesa em ação política contra uma sociedade enferma. Se a classificação em sadio e enfermo, em última instância, expressa a seleção capitalista em intacto e defeituoso, rentável e dispendioso, em força de trabalho adaptada e adversa, é necessário mobilizar doença, sob todas suas formas, como resistência à saúde reinante.

Isso não significa que de uma carência psíquica coletiva se faça uma virtude revolucionária e que se proclame a doença como a força produtiva n.º 1 para uma conversão das relações produtivas capitalistas. Doença não inclui somente traços positivos, traços de resistência e protesto, como uma alavanca subjetiva para a luta política, mas também um traço negativo, manifesto em fraqueza do eu, regressão, perda da noção de realidade etc.

Cada modelo de organização política necessita incluir também um modelo terapêutico. Também deste ponto de vista ultrapassados modelos de organização política precisam ser repensados e questionados. Com relação ao novo nível histórico da depauperação psíquica, as estruturas das novas organizações de luta não podem mais ser definidas tendo somente a objetividade organizacional como objetivo. O ponto de vista terapêutico – criar formas de comunicação qualitativamente novas, não alienadas, não coisificadas – precisa hoje exercer determinante influência sobre a estrutura da organização revolucionária. A auto-organização política necessita ser também uma auto-organização terapêutica, na qual os enfermos indivíduos, atomizados, psiquicamente depauperados, de inibida comunicação, ganhem uma ego-consciência coletiva, uma coletiva ego-força, junto à consciência política. A forma de organização de promissor futuro não é aquela de linha política mais pura (no sentido de ligar-se a determinada tradição leninista, stalinista ou maoísta), mas a forma de organização ligada às novas necessidades históricas das massas sendo capaz de apreendê-las.

Quando os moradores de certos conjuntos habitacionais durante o levante de maio em Paris derrubaram muros de concreto entre seus próprios apartamentos e os de vizinhos, deram mostra das exigências terapêuticas que hoje devem ser feitas a uma organização revolucionária: concomitantemente à superação da propriedade privada, também superar os muros patogênicos que a propriedade privada erigiu entre os homens. Em relação ao novo nível histórico da depauperação das massas todas as estratégias econômicas atuais são insuficientes. Só com exigências políticas e econômicas não se conseguirá mobilizar as jovens massas marcadas pela ideologia do consumo. O movimento revolucionário de nossos dias precisa oferecer mais do que somente um compreensível aparelho socialista para o Estado e a economia. Tendo o caráter mercado, durante o capitalismo tardio, tornado-se um caráter universal, a revolução socialista só pode ser entendida como uma conversão universal de todas as relações sociais onde o caráter mercadoria compareça.

O deslocamento da ênfase de depauperação econômica para depauperação psíquica é algo que o movimento revolucionário tem de considerar no mais alto grau: precisa oferecer um novo modelo de comunicação que se contraponha à depauperação política e terapêutica das massas, precisa confrontar os sintomas de depauperação psíquica das massas do capitalismo tardio com a imagem do humanismo comunista, do universal desenvolvimento da sensorialidade humana, tal como Marx esboçou em seus manuscritos de Paris.

Assim como a propriedade privada é só a expressão sensorial do fato do homem tornar-se um objeto para si mesmo – e dessa forma um objeto estranho e desumano – fazendo com que sua vitalidade seja apagada, sua realização o seja de falta de realismo, de uma realidade que lhe é estranha, não consegue perceber o positivo na eliminação da propriedade privada, que se dá para e pelo homem, ou seja, a realização concreta do ser e da vida humana, do homem como objeto e da obra humana, como o desfrute e a apropriação imediata. O homem se realiza como ser diversificado de forma diversificada, ou seja, como totalidade humana. Cada um de seus posicionamentos humanos para com o mundo, a visão, a audição, o cheiro, o gosto, o tato, o pensamento, a observação, a percepção, a vontade, a atividade, o amor, resumidamente todos os órgãos de sua individualidade, assim como os órgãos de sua sociabilidade, são apreendidos pelo objeto em suas relações objetivas [ . . . ] A extinção da propriedade privada implica portanto na completa emancipação de todos os sentidos e propriedades humanas (Karl Marx).                    

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