segunda-feira, 5 de novembro de 2012

HUMANISMO EM MARX


 Frank Svensson, prof. Titular aposentado da Universidade de Brasília, membro do CC do PCB.

O pensamento humanitário em Marx
Ser crítico implica julgar. O crítico social não se pode limitar a relevâncias. Precisa de um referencial para aferir o fato considerado. Em Marx, há referencial para fundamentar as apreciações que faz?
Proudhon1 afirmava encontrar na natureza de seres e coisas referência para seu sistema jurídico. Bentham2 e colaboradores seguiam conceitos de fundamentação psicológica, defendiam que o humano quer o máximo de bem-estar contra o mínimo Constran-gimento. O indivíduo era a unidade; nada além da unidade. Deduzia-se a principal norma legislativa: a maior quantidade de felicidade para a maior quantidade de indivíduos.
Marx recusou o ahistórico direito natural de Proudhon, e a utilitária doutrina de Bentham. Refletiu se se dispõe doutros valores afora os que se fundamentam em modo e relações de produção, sem o que pensa impossível julgar uma sociedade. Pode-se ver que essa sociedade que Marx considera – a Inglaterra vitoriana – apresentou traços desconexos quanto ao puro capitalismo, inibiu a crítica avalia tória.
O relativismo de Marx não é extremado como parece. Trabalha perspectivas opostas. Vê o homem produto de relações sociais que não controla, enquanto o vê produtor dotado de consciente vontade de criar utilidades que respondam a suas necessidades. Num aspecto o desenvolvimento obedece a leis sociais independentes da vontade humana. Noutro, é o homem a figura central. Supera carências sociais do mesmo modo que supera a imposição das condições naturais. A história é obra sua. Marx a adota como base da avaliação da sociedade capitalista.

Marx é um humanista?
Depende do que se atribua a esse multivalente vocábulo. Se por humanismo se entender visão de mundo que nega pontos de vista naturais, soberania de vida espiritual sobre a matéria, Marx é opositor ferrenho. Interpreta que os mais elevados anseios ligam-se à base natural e à terrena infraestrutura social. Ao se entender humanismo como pensamento que cria o homem-objeto-gladiador oposto às tentativas de degradá-lo por outros objetivos, é Marx um genuíno humanista. Avalia in O Capital o que é humano:
Forma social superior, tendo por princípio fundamental o desenvolvimento livre   e integral de cada indivíduo 3.
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Substituir o indivíduo parcial, pelo indivíduo integralmente desenvolvido para      o qual as diferentes funções sociais não passariam de formas diferentes e sucessivas de sua atividade 4 .
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O trabalho da fábrica exaure os nervos ao extremo, suprime o jogo variado dos músculos e confisca toda a atividade livre do trabalhador, física e espiritual 5 .
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Tempo para educação, para desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais de convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais 6.
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A manufatura deforma o trabalhador monstruosamente, levá-lo artificialmente a desen-volver habilidade parcial, à custa da repressão de um mundo de instintos  e capacidades produtivas7.
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O modo de produção capitalista destrói a saúde física do trabalhador urbano e a vida mental do trabalhador do campo. Ao destruir condições naturais que mantêm o intercâmbio cria a necessidade de restaurá-lo como lei reguladora da produção  e em forma adequada ao desenvolvimento integral do homem8.

Pode-se encontrar expressões semelhantes de avaliações, mas estas se bastam. Valor positivo é pleno desenvolvimento de riquezas humanas. Negativo é o que limita e compartimenta o livre crescimento das aptidões. Marx parte do ideal humanitário. Um ou outro quiçá se surpreenda num empedernido materialismo que suponha o interesse aferido na questão do estômago. Em realidade, há o raciocínio clássico calcado no idealismo alemão, oriundo da ética aristotélica.
Aristóteles objetivou melhor desenvolver aptidões da natureza humana. Nessa plenitude residia a verdadeira felicidade. Seu tipo ético ideal é o senhor amplamente culto, afeito a encargos práticos, receptivo a valores estéticos e familiarizado com o mundo do pensamento teórico. A conceituação de Aristóteles influiu nos modelos de homem culto da Idade Média e da Renascença. Na sociedade industrial reaparece no huomo universale (IT), no gentil homme (FR), no gentleman (ING), no nosso cavalheiro. Para o neo-humanismo e o romantismo alemão o ideal ganha forma: não era implantar novo modelo genérico. Era maximizar a individualidade singular.
Karl Marx formou-se segundo o programa neo-humanista, familiarizado com seus vultos em literatura, filosofia. Pertence a uma geração de pesquisadores sociais para a qual autores da Antigüidade ofereciam literatura viva, atual.
Em O Capital menciona economistas ingleses e franceses, intervenções nos debates parlamentares, opiniões de empresários. Cita Homero9, Tussídides10, Xenophon11, Platão12, Isócrates13 e principalmente Aristóteles, pesquisador que primeiro analisou tantas formas de pensamento naturais e sociais. Tinha por parâmetro o pleno e o livre desenvolvimento de atividades espirituais e sociais. Seguia a tradição humanista de acentuar o singular pessoal.
Sua concepção de vida, no entanto, era aristocrata, ligava-se a uma perspectiva de classe historicamente dada. Aristóteles voltava-se a atenienses bem situados, não dedicando seu pensamento a escravos ou massa de marinheiros, camponeses, artesãos. Dans les temps modernes os pregadores do livre humanismo focam grupos detentores de privilégios de boa formação e bom nível de vida.
O humanismo de Marx é radicalmente democrático. Se argumenta em favor de pleno e livre desenvolvimento individual pensa no segmento social econômico de modo espiritual despojado. Descreve as condições reinantes e denuncia as forças que decepam e deturpam a individualidade do trabalhador. Indigna-se violentamente à luz da formação humanista.
Pode-se desperceber seu motivo, porque Marx (por princípio) recusa revestir seus pensamentos com a retórica professoral idealista. Segue Hegel: a filosofia deve evitar parecer edificante. Se parecer um cínico realista - assim tem sido apresentado por escritores queixosos de sua falta de sentimentos favoráveis a valores éticos - é porque a não-atenção deles ao ofendido idealismo baseia os irados e obstinados ataques.

O novo homem
O proletário, o destituído trabalhador assalariado, traz curiosa dubiedade à historia da filosofia de Marx. É indefesa vítima da desumana ordem social que lhe explora a força de trabalho, a fim de criar contínuo acréscimo de lucros. Sua posição é anômala para quem esposa a ideia do livre desenvolvimento humano. Justamente por indigência e alienação predispõe favoravelmente o novo e desenvolto tipo humano. Melhor se entenda com Marx e Engels, n' O manifesto comunista de 1848, que Marx reconhece expressão de suas intenções.
  Descrevem o proletário como um apartado da sociedade burguesa, destituído dos privilégios que são o conteúdo da vida desta, que tem ação social, enquanto o proletário fica de fora; nada mais é que um elementar humano. Não respeita os valores oficiais da burguesia, seus conceitos de religião, moral e patriotismo. Para o proletário são somente preconceitos burgueses, por traz dos quais ocultam seus interesses.
A classe dominante o excluiu de participar dos recursos materiais e das tradições espirituais com a sensatez de analisar as coisas com clareza. Liberto de herdada bagagem conceitual, o proletário detém a capacidade de edificar nova cultura em nova ordem social.
Marx praticamente não encontrou o trabalhador destituído de tradição e ilusões nos crescentes distritos industriais da Europa. Esta é uma construção literária que não tem origem em Manchester ou Lyon, mas em radicais filósofos culturais. Em Descartes surge a ideia do homem liberto apoiado na razão natural, sem valer-se de erudição nem de bazófia escolástica.
Conhecimento real via John Locke14, adquire-se por experiência e reflexão, não por uso de expressões de professores preferidos. Não é privilegio de um segmento acadêmico; é frequentemente mais acessível a leigos inteligentes que nada sabem sobre formas substanciais, mas pensam sobre coisas que significam algo para a vida prática. Boyle15, físico, aconselha pesquisadores a frequentar oficinas de artesãos e a adquirir ensinamentos práticos.
 No século XVIII, instituições sociais e convenções herdadas desfilavam para o observador desconhecido que as mirava com olhos firmes. Podia ser um viajante oriental persa de Montesquieu ou um homem primitivo como o filho da natureza, de Voltaire16. Hábitos e maneiras de pensar, óbvios para a sociedade em Paris, são-lhes invenções estranhas, anormais. Em suas críticas especulações transparece a postura de oposição do escritor.
Em Rousseau17, a intocada natureza do homem se posta contra o artificial mundo onde todos jogam seu papel, segundo prescreve a conveniência. Sua mensagem deságua em atitude conservadora, idealização de simples e felizes formas de vida do passado, quando o homem era ele em si, não o produto de uma carcomida civilização. A idéia do humano elementar contra o artificial e o convencional até inspirava radical crítica social, indicativa do mundo futuro, mais feliz em se opor a esclerosadas, doentias tradições.
Quando no Manifesto se permite ao proletário sem tradições ver sob o olhar do estranho: a civilização burguesa, torna-se o representante do homem natural, sem mensagem no mundo sobrecarregado de tradições. Nele Marx deposita esperanças de futuro, ao desmoronar a última forma de domínio classista. Não foi o único a acreditar na evolução dos trabalhadores. A filosofia social de Comte18 propõe que se construa uma sociedade cientificamente organizada.
Ter-se-ia uma reserva de aptidões a empregar por meio de esclarecimento popular, no melhor espírito positivista. Crias da época industrial estão relativamente livres das maneiras teológicas e metafísicas de pensar. Espera-se que sejam mentes receptivas à filosofia cujo programa dita: conhecer para prever e agir. Comte, contudo, estava totalmente distante do pensamento em favor da missão histórica do proletariado. Com força própria, criar um novo mundo. Era um conservador reformista, não um radical extremista. Queria unir a ideia de progresso a cristalizadas tradições da restauração. O desenvolvimento se orientaria por homens de científica formação, com base em experiências comprovadas, evitando repentinas mudanças que cedo ou tarde gerariam retrocessos. 
Os sonhos da época das revoluções pertenciam (Comte) a uma metafísica pré-científica, assim como fantasias de reacionários à restauração do antigo regime e a abstratos ideais de liberdade dos liberais. Era questão candente da época:
Como o crescente operariado poderia melhor ser inserido na sociedade industrial que se configurava? A resposta rezava: Tornando-o participante nos resultados da moderna ciência e na forma de pensar que fundamenta suas grandes conquistas. Assim se faz contraponto à tendência de românticas aventuras que resultariam em negativas surpresas.18

Quando as abstrações da filosofia iluminista atingiram os moradores dos subúrbios, alastraram-se incêndios revolucionários. Quando os sóbrios métodos de laboratórios e oficinas influíram sobre o pensamento das massas, elas aprenderam a distinguir entre bem intencionadas reformas e projetos futuristas vagos. A crise social passa a poder ser resolvida, em época de maior organicidade social.
 Comte e Marx partem da alienação dos trabalhadores na sociedade estabelecida. O que os diferencia é: a) Comte quer superar o antagonismo de classes apoiado na científica engenharia social e na planejada formação popular de princípios positivistas; b) Marx quer tornar os trabalhadores conscientes da sua condição de educarem-se para a sociedade que sucederá a burguesa. Só aí se realizará o sonho humanista de desenvolvimento democrático pleno.

Notas:
1. Proudhon, Pierre Joseph. 1809-65. Dizia-se anarquista, defensor da sociedade livre baseada no direito natural, sem regulação estatal. Legou importante papel ao anarco-sindicalismo na França e noutros países latinos.
2. Bentham, Jeremy. 1748-1832. Filósofo e político. Suas pesquisas visavam à reforma do sistema jurídico inglês. Opunha-se ao direito natural, que concebia de fundamentos psicológicos. Defendia: quanto mais indivíduos participassem da felicidade, maior felicidade individual haveria. Ao indivíduo competia esforçar-se pela felicidade de todos.
3. Marx, Karl: O Capital . Civilização Brasileira, Rio (livro I p. 688)
4. Ibidem. (livro. I p. 559). 5. Ibidem. (lv. I p. 483). 6. Ibidem. (livro. I p. 300).
7. Ibidem. (livro. I p. 412). 8. Ibidem. (lv. I p. 578).
9. A Homero se atribuem os maiores poemas épicos da Grécia antiga, de intensa influência ocidental: "A Ilíada" e "A Odisseia".
10. Tucídides (460-400 a.C.). Como Heródoto, é dos maiores historiadores do mundo antigo.
11. Xenofonte (427-355 a.C.) Soldado, historiador, escritor grego natural de Erkhia, na Ática. Participou da Guerra do Peloponeso.
12. Platão nasceu em 428 a.C. É o primeiro grande filósofo ocidental a deixar considerável obra escrita, pedagogo, político-teórico. Criou a mais importante escola de oratória da Grécia, de poderosa influência intelectual e política na luta pela unidade do povo helênico.
13. Sócrates. Ateniense retórico.
14. John Locke. (1632-1704). Filósofo iluminista inglês.
15. Boyle, (1627-1691). Químico e físico de origem anglo-irlandesa.
16.Voltaire, François-Marie (1694-1778) Escritor francês. Citem-se Cartas Filosóficas, Tratado sobre Tolerância e Contos.
17. Jean Jacques Rousseau. (1712-78). Destaquem-se as obras Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens; Do contrato social; Emílio ou Da Educação (1762).
18. Auguste Comte. (1798-1857). Engenheiro politécnico e filósofo francês. Obras principais: Sistemas de política positiva ou Tratado de sociologia = institui a religião da humanidade e o calendário positivista (santos são grandes pensadores da história); forjam divisas: Ordem e Progresso; Viver para o próximo; Amor por princípio, ordem por base, progresso por fim. Funda igrejas positivistas (ainda as há).
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