Antes de tematizarmos os problemas teóricos de fundo subjacentes ao teoricismo, seria fértil avaliar os desdobramentos práticos da aplicação da sua tese básica. Partindo do pressuposto de que o equilíbrio de forças político em cada conjuntura depende do grau de organização e consciência das classes em luta, podemos deduzir que a generalização da proposta teoricista, a abstenção da política por parte da esquerda, levaria a um aumento exponencial da presença da direita na sociedade civil e do poder da burguesia, praticamente cancelando todos os direitos sociais e políticos dos trabalhadores, instituindo mesmo a barbárie social, o que destruiria os direitos de pensamento e expressão até dos circunspectos teoricistas, pois a liberdade formal seria eliminada nos espaços acadêmicos, como ocorreu após o golpe de 1964, no Brasil.

Assim, se levarmos em conta a realidade, precisamos reconhecer que a proposta de que deveríamos todos permanecer exclusivamente no gabinete de estudos e no ambiente acadêmico nega a si mesma. No limite, para que toda a tese não fosse negada, poderia se efetivar uma divisão de trabalho rígida entre aqueles que só pensariam e aqueles que apenas atuariam politicamente. Alguns seriam alocados na academia, elaborando a teoria revolucionária “perfeita” e tentando provocar um renascimento do marxismo, e outros seriam posicionados na suposta inconsciente e inglória luta nos sindicatos, associações civis, movimentos sociais, frentes e partidos políticos. Os teoricistas, que rejeitam o praticismo também por este provocar uma divisão rígida de trabalho entre pensamento e ação, precisariam desta mesma divisão para manterem o privilégio de pensar e salvar a humanidade com o produto de sua reflexão e de sua volta supostamente triunfal e lúcida à prática.

Esse resultado estranho nos informa sobre a existência de vários problemas conceituais no teoricismo. Na tese da necessidade de uma espécie de acumulação primitiva da teoria revolucionária e de suspensão da prática política há uma transposição para outros complexos sociais do que se supõe ser a relação entre o momento da prévia-ideação (do planejamento, para usar, por enquanto, uma linguagem menos especializada) e o da efetivação das atividades práticas no processo de trabalho. No processo de trabalho como ele de fato é (e não desconjuntado artificialmente em fases para fins didáticos), imerso numa totalidade de vários outros processos sociais e no fluxo da vida cotidiana, não há uma separação temporal significativa entre planejamento e a prática produtiva, ele vai se dando em sucessíveis ciclos com inevitáveis imperfeições e os problemas práticos vão informando a um gradiente de trabalhadores com maior ou menor poder de reflexão, com maior ou menor contato com as dimensões materiais do trabalho, estabelecendo um contínuo e complexo fluxo de informações e decisões entre as instâncias mais práticas e as mais científicas. Nenhum ramo da economia capitalista ou mesmo uma empresa irá parar sequer um dia esperando o desenvolvimento da pesquisa relativa ao seu processo laboral. Seria um suicídio econômico. Isso ocorre em qualquer modo de produção, pois processo de reprodução da vida social precisa ser efetivado continuadamente, sem intervalos temporais significativos entre planejamento e execução.

Os mesmos fenômenos ocorrem no universo político, mas apresentam singularidades. O planejamento na política, a construção metal de um objetivo estratégico e dos caminhos táticos pertinentes à sua materialização é um momento de uma atividade efetivada para satisfazer a vontade de um grupo de reconfigurar, construir ou destruir instituições sociais e não, como no caso do trabalho, de transformar parte da natureza em objetos úteis. O trabalho tem a natureza como elemento a ser transformado. A política é uma atividade coletiva sobre a própria sociedade. Assim como ocorre com o trabalho, as atividades políticas não comportam uma ruptura temporal entre o planejamento e a execução, pois os sujeitos precisam garantir sua posição continuamente no sistema de poder no qual estão inseridos, sob pena de arruinarem-se. Também como se dá no processo laboral, a atividade política edifica, necessariamente, um agente coletivo no interior do qual se estabelece uma divisão de funções entre indivíduos responsáveis por ações mais práticas e ações mais teóricas (divisão incontornável, por mais que nos revoltemos contra ela, antes que se edifique uma sociedade sem classes), constituindo um gradiente por onde passa nos dois sentidos, seja de modo democrático ou autoritário, um fluxo de informações e decisões.

A proposta teoricista de transformar todos os militantes em cientistas, para a glória do princípio da superação da divisão do trabalho aplicado de modo não realista ainda no capitalismo, termina causando o seu isolamento da luta política, eliminando, assim, os melhores estímulos e focos de atenção trazidos pela luta de classes e as informações recolhidas pelos agentes proletários capazes de desafiar de fato a ciência e, assim, auxiliar no desenvolvimento do marxismo, pois os tornam alheios ao debate dos temas de fato decisivos para a compreensão e a transformação da realidade. Resta, então, aos teoricistas uma reflexão isolada do mundo que ganha contornos cada vez mais abstratos, transformando a reflexão marxista em contínua exegese dos textos clássicos, que se expressa em diversos tipos de textos que tendem a repetir a doutrina e eliminar o cotejamento dos conceitos com a empiria. Numa tentativa de esclarecimento infinita que não esclarece o fundamental, a não ser aspectos filológicos, pois nunca foca nos principais problemas postos pelo movimento político. Levando à paradoxal situação nas quais uma montanha de erudição vai parir a negação da abordagem científica das conjunturas e uma grande dificuldade na análise dos caminhos táticos necessários, abrindo espaço para a repetição autossuficiente de todos os erros táticos anteriores ao leninismo, que é tomado como o principal adversário, pois se presente nele a superação do praticismo e do teoricismo. A teoria da transição se transforma numa espécie de Santo Graal, uma futurologia na qual se deseja antecipar cada momento concreto de transições que poderão ou não ocorrer em diversos países, com cultura específicas e vias particulares de desenvolvimento capitalista.

Não se pode duvidar da ética revolucionária dos teoricistas. Apenas desdobram com radicalidade um desvio teórico particular frequente entre os trabalhadores com funções científicas, que são tentados, como o são trabalhadores de outras categorias, a considerar suas condições particulares de trabalho e sua cultura corporativa como pressupostos do movimento político geral dos assalariados. Mas os resultados são trágicos. Por anular a intervenção política de um segmento importante dos intelectuais revolucionários, o teoricismo diminui os recursos científicos transferidos do meio acadêmico para a luta do proletariado, ajudando por omissão a consolidar o senso comum e a empobrecer o diagnóstico, a estratégia e a tática das instituições políticas do proletárias. Transforma-se em uma profecia que realiza a si mesma, pois leva muita água, por omissão, ao moinho do praticismo, da ação política irrefletida e ineficiente. Abre o flanco para o surgimento entre os intelectuais de um marxismo apenas defensivo, esquerdista, abstrato, displicente com as particularidades, incapaz de construir o momento superador da crítica ao capitalismo e, pior, desconfiado do próprio sujeito revolucionário. Fica faltando apenas um passo para transformar um marxismo distanciado da política numa apologia indireta da ordem do capital (na medida em que o momento negativo da crítica não é sucedido por um momento positivo, de superação) e numa simples senha para a ascensão acadêmica. "Os filósofos têm interpretado o mundo de diversas maneiras; é necessário transformá-lo" (K.Marx).