sábado, 24 de novembro de 2012

LIBERALISMO E TEORIA DA ARQUITETURA parte III

Frank Svensson

Heidegger como expressão do parentesco entre fenomenologia e existencialismo

Martin Heidegger (1889-1979) é um dos representantes mais notórios do existencialismo cujo método provém da fenomenologia de Husserl e das obras de Sören Kierkegaard.  O encontro entre Husserl e Heidegger ocorreu em Freiburg, em 1916.  Os trabalhos e interesses próprios de Heidegger, cedo próximos do pensamento Husserl ano, movem-se, nessa época fora de um plano de reflexão histórica ou filosófica e não resultaram em nenhuma obra orientada nesta direção.  Crise moral e crise política com choques sociais resultaram no emprego pelo grande capital de seu braço armado (Primeira Grande Guerra - 1914-18) tendo a Alemanha como principal cenário.  O desespero e o abatimento suscitados pela derrota do militarismo kaiseriano, o medo perante a revolução proletária na Rússia e o movimento revolucionário em diferentes países, configuraram o ambiente político e espiritual em que cresceu a filosofia da existência; as distintas expressões do pensamento vitalista.  Em momentos históricos como esse muitos são tomados de preocupação sobre os problemas do indivíduo e sua sorte.  Isso ocorre quando há uma perda geral de confiança na estabilidade da ordem social, quando os conflitos sociais provocam crises morais e políticas, e quando há necessidade de fazer escolhas em situação na qual os critérios tradicionais já não existem.  Isso, entre outras coisas, explica a atração que o existencialismo tem para a massa em períodos marcados pelas conseqüências da guerra e de regimes fascistas os quais têm por característica básica recorrer às armas para o exercício do poder.  Muitos viram no seu tema o reflexo de suas próprias preocupações, e a atmosfera de depressão mental, o senso de resignação, de impotência do indivíduo em luta com forças onipotentes e irracionais, refletindo-se nos próprios sentimentos.

Heidegger tomou partido pelo nacional-socialismo (nazismo).   Via nele um partido forte capaz de impor uma nova ordem social.  Quanto à filosofia aderiu ao existencialismo,  dando ao enfoque fenomenológico herdado de Husserl uma dimensão vitalista.  Em 1923 Heidegger foi nomeado professor e diretor do seminário de Filosofia da Universidade de Marburg.   Em 1928 seria chamado para assumir a cátedra de Filosofia em Freiburg.  Sempre com o apoio e recomendações explícitas de Husserl.  É no período de Marburg que publica sua principal obra: Ser e Tempo/Sein und Zeit, 1926.  Essa obra não tem por único objeto a existência individual, isolada, fechada numa análise limitada ao sujeito.   Heidegger propõe efetivamente uma medida pela qual se possa avaliar a existência individual e coletiva: a tradi-ção que torna a existência autêntica enquanto esta a assume como herança cultural.  No entanto vê tradição e herança como duas formas de uma outra realidade, que as causa e que só ela as torna possíveis: o povo e, portanto, a comunidade-do-povo.

Heidegger envia-nos a uma estrutura totalizante (o povo) e à tradição (o que tem por hábito fazer a gente anônima de uma nação) que por direito próprio lhe pertence.  Essa concepção da comunidade-do-povo, com a sua tradição e a sua herança, coloca Heidegger em perfeita ressonância com as noções semelhantes que o nacional-socialismo propagaria.    Não se trata, portanto, nem da conservação tradicionalista de valores culturais recebidos do passado, nem da simples defesa das instituições e dos costumes.   Segundo Ser e Tempo, o ato constitutivo do ser-com-outro autêntico, no sentido em que ultrapassa o simples fato da associação entre indivíduos, é a luta/kampf.   Para Heidegger, em Ser e Tempo, não basta, a conjugação de tradição, herança e povo em geral.  A existência que-já-foi/gewesene e que o existente/ Dasein pode e deve eleger como exemplar é a do herói.    Na prática, no caso de Heidegger, os do nazismo.  O povo deve ser no futuro o que foi no passado.

Heidegger foi um filosofo militante.  Além de professor catedrático da Universidade de Freiburg; de Reitor nomeado da Universidade de Marburg;  Em seu livro Heidegger e o nazismo, o pesquisador Victor Farias narra pormenorizadamente, com base em documentos, as atividades de Heidegger em favor da formação política do partido nacional-socialista (nazista).  Farias mostra, também, como Heidegger, que sobreviveu à Segunda Guerra, manteve-se até à morte fiel às questões de princípio ligadas aos valores genéricos do nacional-socialismo.  Heidegger desqualifica numa de suas derradeiras manifestações, uma entrevista à revista Spiegel, os outros sistemas políticos que não o nacional-socialismo.  Continuou, até o fim, desclassificando a democracia vendo-a como sistema político incapaz de fazer face à tecnicização do mundo.   Nunca rompeu os laços espirituais com a condição de possibilidade última do nacional-socialismo em todas as suas formas: a sacralização da alemanidade e a sua conversão em exemplo exclusivo e discriminante de outros regimes e culturas.


Conceitos de Heidegger considerados básicos por arquiteturólogos hodiernos

Um texto de Heidegger varias vezes lembrado por modernos teóricos da arquitetura é: "Construir, morar, pensar" /Bauen Wohnen Denken (conferência proferida 05.08.1951 para Discursos de Darmstadt II/Darmstädter Gespräch II sobre o assunto "O Homem e o Espaço"/ Mensh und Raum.   Nesse artigo Heidegger procura a essência desses três aspectos e da relação entre os mesmos num enfoque fenomenológico em que busca esclarecer o conceito de espaço com base em antigos usos da palavra pela língua alemã..  Deduz que o termo raum / lugar-espaço, deve ter surgido quando da construção de lugares vistos como continentes de conteúdos. Perguntando-se sobre a relação homem/lugar observa que nessa são introduzidas as relações entre o céu e a  terra, entre os deuses e os mortais, o que faz com que o conceito de lugar amplie-se para o de espaço.  Vale-se da tradição e do sobrenatural.  Os lugares entre si geram distâncias que incorporam os interstícios dos lugares reduzindo o próximo e o longínquo entre os homens a meras distâncias.  Da multiplicidade do conteúdo dos interstícios pode-se captar as dimensões; o que deles não captamos é entendido como extensão. 
 
Heidegger não entende o espaço como em contradição com o homem.  Segundo ele o homem não está no espaço e nem este é resultado da fruição ou da existenciação do homem.  Defende que à partir do lugar em que estamos podemos também estar num lugar distante:

Podemos, estando aqui, estar muito mais perto de outro lugar e das pessoas que essas mesmas pessoas e daquilo que as distância indica.   Os lugares e com isso o espaço estão sempre ocupados pelo habitar dos mortais.  Os mortais estão; ou seja, em decorrência da presença com coisas e lugares os habitantes, podem mediar os lugares, e por poder mediar os lugares podem, também perpasssá-los.  Perpassando continua-mente os lugares os temos próximos e distantes ao mesmo tempo.  Se vou no rumo da porta dessa sala, ao mesmo tempo já estou nela e simplesmente não poderia alcançá-la se assim não fora.  Eu nunca estou somente aqui encapsulado por meu corpo, mas sempre estou também lá ou seja eu perpasso o espaço e somente assim consigo atravessar o espaço.

A relação dos homens para com os sítios, e por meio desses com o espaço decorre do habitar.  A relação entre o homem e o espaço essencialmente nada mais é que o habitar imaginado.  Provando assim a relação entre sítio e espaço, mas também a relação entre homem e espaço esclarecemos a essência das coisas que constituem os lugares e que nós denominamos construção, edifícios.

Para Heidegger a essência do construir, o conformar lugares, é o permitirem morar.  No conceito de morar não inclui o de trabalhar.  O caráter ativo da vida considerado é o existencial e não o produtivo.  A questão da habitação não é resolvida, para Heidegger, com a construção de moradias mas com a educação do morar.  Morando o homem deixa de se sentir perdido pois é o morar que o chama para dentro do habitar.  De que outra forma, pergunta, podem os mortais, de sua parte e de seus sítios, introduzir o habitar na plenitude de sua essência?  O conseguirão somente se construírem à partir do morar e imaginando o morar.

Para fundamentar essa sua argumentação Heidegger busca apoio no significado de termos apresentados pelo alemão antigo.  Chega a afirmar ser o alemão a única língua capaz de tal esclarecimento e dá como exemplo o fato de os franceses  acabarem por aprender o alemão quando realmente interessados em filosofia.  Heidegger mistura o enfoque fenomenológico com o existencialista.  Seu conceito de história é limitado ao de tradição idealizada.  Sua idealização leva-o ao nacionalismo conservador, à religião e a um conceito de sociedade conformado e dirigida por heróis.   Na prática, Hitler e os que o apoiaram. 


A fenomenologia do lugar de Norberg Schultz

Norberg Schultz é professor emérito em teoria e história da arquitetura da universidade de Oslo.  Foi um dos primeiros pesquisadores de arquitetura a apoiar-se no enfoque fenomenológico, exercendo hoje, indiscutivelmente, a liderança dos que buscam tornar frutífera essa maneira de teorizar a arquitetura.  De sua produção constam significativos livros como: Existence, Space and Architecture (1971); Meaning in Western Architecture (1975); Mellon jord og himmel/Entre o céu e a terra (1978); Genius Loci - Towards a Phenomenology of Architecture (1980);  The concept of Dwellin.  On the Way of Figurative Architecture (1985); Stedskunst/Arte urbana (1994).
  
De seus escritos deduz-se, e ele mesmo o confessa, considerar-se fenomenólogo situando-se como tal na tendência existencialista da fenomenologia.  O fenomenólogo que maior influência exerce sobre a obra de Norberg-Schulz é Martin Heidegger, ao qual já nos referimos, o que não exclui referir-se ainda a outros nomes dessa visão de  mundo.    Os escritos de Heidegger que mais influenciaram a obra de Norberg-Schultz são: Sein und Zeit / O ser e o tempo; Bauen, wohnen, denken /"Construir, habitar, pensar"; Das Ding / "A coisa", e Hebel - o amigo de casa /Hebel - der Hausfreund.

À partir desses escritos Norberg-Schultz desenvolve uma fenomenologia do lugar pró-pria, cujos componentes formam uma teoria do lugar.  De início teoriza sobre o que caracteriza um lugar:  um lugar não é algo desligado de quem o usa e conhece;  o lugar detém, ainda, significado para as pessoas com ele relacionadas, faz com que o homem seja o que é, sua identidade e respectivamente perda de identidade, deriva do lugar.  Na teoria de Norberg-Schultz há, ainda, espaço para a história do lugar:  em tempos modernos, impondo-se a industrialização e a  urbanização, evidencia-se um processo de demolição e decadência que se expressa sob forma de falta de referências locacionais.  O intuito dessa teoria locacional de Norberg-Schultz é: preservar, resgatar, e criar lugares que coincidam com as bases ontológicas do lugar e assim livrem as pessoas de se sentirem perdidas e alienadas.

Não há como por em dúvida a boa intenção implícita a uma teoria que busca a essência de um fenômeno, que não se perde em detalhes, e que deixa se guiar por princípios éticos relatando a conformação dos lugares a seus autores e usuários.  As questões que dai emergem  é que precisam ser respondidas: Para que forma de vida são criados os lugares?  Quais as possibilidades de vivência, de atividade, e de relações humanas permitirão  os novos lugares?

Norberg Schultz descreve a relação das pessoas com o lugar apoiando-se em sete momentos.  O primeiro momento é a chegada.   Chegamos sempre de alguma parte, de algum lugar onde estivemos antes e nos preparamos para chegar a outro passando por lugares intermédios.  A relação dentro-fora é vista como fundamental para a identidade locacional.  Como ilustração busca na tradição norueguesa a imagem da porta da aldeia.  Só encontramos o lugar quando entramos nele.  Já no lugar defrontamos multiplicidade e unidade, o que nos impõe escolha.  A identificação com o lugar implica empatia com a constituição do mesmo.  Implica vivência e convivência.   No lugar podemos guardar distância uns dos outros, mas podemos também estar em acordo uns com os outros.  O acordo exige lugares próprios sob forma de instituições.   Entre as instituições as igrejas jogam um papel especial.  Representam não só uma concordância mas também uma explicação que incorpora o lugar numa ordem cósmica.  O templo explica o lugar específico e sua vida como parte de uma ordem mundial de caráter geral. A relação dentro-fora ganha no templo uma compreensão holística na qual a fachada expressa a porta coeli e o interior a Ierusalem coelestis

A ação recíproca da vida e o lugar leva-nos a três aspectos essenciais da presença: lembrança, orientação, e identificação.  Enquanto os momentos chegada, encontro, permanência, convivência, acordo e explicação indicam como a vida se localiza, os outros três aspectos indicam o entendimento necessário para que isso possa se dar.  São esses aspectos que possibilitam o uso dos lugares.  Como tais não podem decorrer de uma experiência mas implica serem dados de antemão. Implica, como explicara Heidegger em Dasein / ser-no-mundo, ser o homem dotado de um valor existencial  que a priori define os traços básicos de sua existência. A estrutura que nesse contexto é especialmente relevante Heidegger chama de Räumlichkeit / espacialidade.  Para explicar a relação com o uso do lugar Robert-Schultz traduz Räumlichkeit por existenciação e entende que estamos no lugar por meio de lembrança, orientação e identificação.

Robert-Schultz  guarda distância do funcionalismo substituindo as funções por momen-tos.  A arquitetura não é vista como algo que decorre das atividades humanas; afasta-se do fator trabalho como fulcro da história.   Vê a arquitetura como a concretização de um mundo que permite as atividades humanas.  Como a constituição desse mundo adquire qualidade espiritual, não pode ser compreendida logicamente, tem que ser expressa poeticamente.  A obra de arquitetura faz isso, pelo fato de seu entendimento fenomenológico congregar e produzir a multiplicidade de espaço,  forma e figura que conforma o mundo.

Robert-Schultz refere-se a um pequeno livro de Heidegger sobre o poeta Hebel, onde esse afirma:

As construções transformam a terra, como sítio habitado, em vizinhança e agrega sob o infinito do firmamento a convivência dos vizinhos.

Vê a arquitetura como fator de congregação dos homens aproximando o mundo, na medida em que capta as configurações e as consolida como lugares definidos e de formas construídas.  O infinito do céu também participa como uma ordem geral para todos os lugares.  A paisagem habitada torna-se uma paisagem compreensível, onde o homem se encontrou entre o céu e a terra através de respeitáveis atividades.  Isso é o que chama de habitar poeticamente.

O estar (ser) arquitetonicamente implica para Robert-Schultz numa estrutura de três componentes: espaço, forma e figura. Não nos localizamos somente por força de orientação, ou somente de identificação, e todo lugar congrega implicitamente organização espacial, forma característica e figuras humanas motivadas.  Mas no uso de um lugar específico pode predominar a presença de um desses componentes.  Os afazeres da vida quotidiana pedem uma estrutura espacial de fácil leitura enquanto que a primeira impressão de uma cidade desconhecida é a sua ambiência e o seu caráter.

A organização espacial pode ser mais topológica e/ou geométrica.   A ordem topológica é a original desde que só se baseia na continuidade dos caminhos, no caráter dos pontos focais, e na delimitação dos sítios.  Considera interessante o fato de que nas crianças constitui o inicio de seu pensamento espacial.  A ordem geométrica pressupõe, no entanto, uma espacialidade contínua na qual caminhos e sítios são localizados.  Nas crianças essa se desenvolve relativamente tarde, e estudos de povos primitivos revelam ser condicionada culturalmente.  Para essa sua posição Schultz invoca Heidegger o qual vê nessa relação que: O espaço adquire sua essência dos lugares e não do próprio espaço.  Genericamente organização espacial resulta da correção da amplitude horizontal em que a vida primária encontra lugares na Terra.

Por forma entenderíamos aquilo que se ergue no espaço, tanto por força da Natureza como construído pelos homens.  Materiais, cores e texturas, bem como as maneiras de utilizá-los, passam a fazer parte do espaço.  Seu entendimento implica num pré-conhecimento como identificação das formas do entorno pelo próprio corpo.  Conforme a feitura da organização espacial resultará a ambiência ou o caráter do mesmo.
 
Robert-Schultz faz distinção entre forma e figura.   Entende como forma a ordenação daquilo erguido verticalmente que expressa a existência humana abaixo do céu.  Por figura entende a forma das coisas concretas que constituem o entorno dos lugares.  A Natureza é composta por montanhas, istmos e baías, rios e pântanos, árvores e arbustos, ou seja, tudo o que tem nome.  Analogamente a arquitetura tem coisas como cúpulas e abóbadas, colunas e vigas, corredores e nichos, arcos e empenas etc. que constituem a substância do seu pré-conhecimento, e a distinção entre os mesmos depende de nossa aptidão em reconhecer algo como tal.  São as coisas que funcionam como elementos de identificação, tanto no meio circundante como em contextos mais amplos.

Quando da constatação da paisagem habitada, espaço, forma e figura manifestam-se em ação recíproca formando a identidade do lugar, aquilo que desde muito é conhecida como o genius loci.   A conjugação das identidades dos lugares pela memória vai nos permitir as ordens regionais e nacionais sob forma de imago mundi, de visão de mundo.

A identidade dos lugares vista no tempo vai nos permitir a tradição.   Afirmando que cada lugar tem seu genius loci é implícito possuir uma identidade que deve ser mantida.  É nossa atribuição, também, fazer o lugar situar-se na história. Uma tradição é, portanto,  constituída de possibilidades e não de regras rígidas.  É nessa perspectiva que devemos entender a  memória do ser. A memória não é um conjunto de lembranças, mas o reconhecimento das estruturas básicas da vida entre o céu e a terra. A memória manifesta-se sob forma de resgate e de projeto, incluindo, assim, tanto passado, presente e futuro.  Para os gregos a memória era a mãe das musas e a filha do céu e da terra.  Era com outras palavras a fonte da arte.  Sendo a arquitetura aquilo que faz com que a  vida encontre os lugares entre o céu e a terra, merece ser reconhecida como a mãe das artes.   Podemos definir isso melhor como a arte dos lugares.  É como tal que uma simples construção ganha sentido.  Cada obra deve ser marcado pelo lugar, que tanto é dado como uma totalidade natural e como tradição arquitetônica.

Ser marcado pela totalidade não significa, no entanto uma relação causal, como era a intenção funcionalista.  Como interpretação a obra é tanto nova como antiga, permitindo múltiplas relações e não uma simples harmonia estática.  Com isso a história ganha vida e o desenvolvimento dos estilos uma decorrência disso.  Hoje a arte de construir é coisa do passado, e a originalidade foi substituída por invencionice.   O único remédio contra isso é o resgate da arquitetura como arte dos lugares.

Norberg-Schultz considera que arte implica conhecimento e por isso é necessário desenvolver a compreensão dos lugares num enfoque fenomenológico do que seja.  Considera que a lei básica da compreensão dos lugares é comum a toda a humanidade.  Sendo uma lei comum a todos a pré-compreensão dos lugares é parte de nossa avaliação da existência e nos seus principais aspectos independente de lugar e tempo.   Por isso a nossa análise do uso dos lugares é atual mesmo se os exemplos sejam históricos.  De um modo geral chegada, encontro, permanência, convívio, acordo e explicação são os momentos capitais do uso dos lugares e também de um modo geral lembrança, orientação e identificação os aspectos que permitem as formas de uso.  Por isso as estruturas arquitetônicas básicas são atuais mesmo se sempre empregadas novamente.
 
Graças a sua origem, essas estruturas básicas são o ponto de partida da análise dos lugares no sentido de que nos façam entender o nosso estar-no-lugar.  É necessário que a apreensão das características do lugar se dê a partir de uma visão holística à luz da qual analisar os aspectos antes mencionados.  Só assim a análise terá uma ponto de partida realista para a busca da identidade do lugar. Assim será possível, também, demonstrar se o lugar se localizou historicamente. E só assim será possível apontar o que deve ser preservado e o que deve ser desenvolvido para que o lugar continue a viver.   Pois a vida do lugar não implica mudanças contínuas mas guardar sua identidade dentro das transformações.
Norberg-Schultz considera que hoje cada vez menos arquitetos demonstram respeito por meio de obras que interpretam a buscam a auto realização dos lugares. Ao invés as obras são cada vez mais projetadas isoladamente como expressões exclusivas de arquitetura.


Considerações à fenomenologia locacional de Norberg-Schulz

Uma tese central da teoria locacional de Norberg-Scultz é a ideia de uma crescente perda locacional nos tempos modernos.  Como vimos Norberg-Schultz define o lugar com a ajuda de três aspectos ontológicos quanto aos homens e ao lugar.  Por um lado a lembrança, a orientação e a identificação são concomitantemente dependentes entre si e estão presentes em toda e qualquer situação.  De per se nenhum desses três aspectos consegue produzir uma compreensão locacional.  Por outro lado organização espacial, forma e figura agem em ação recíproca para formar a identidade do lugar, o seu genius loci.
 
Perda locacional seria portanto a falta de identidade de um lugar, ou seja, a falta de organização, forma e figura.  Mas como é isso possível?  É possível haver lugares sem identidade?  Se assim for temos que admitir uma patologia humana.  Implicaria o ser humano não poder vivenciar o lugar.  Por outro lado teremos que admitir que o lugar pode perder as suas propriedades como tal.  Obteríamos um lugar sem propriedades.  Nenhum dos dois casos nos parece verosímil. Mesmo os lugares modernos têm identidade.  O que ocorre é que os lugares da vida mudam de caráter com o decorrer o tempo.  Isso é uma constante da história da arquitetura.  Outra questão é se as mudanças são bem sucedidas ou não.  É necessário, também, ter cuidado com o risco de pensar que somente o presente gera arquitetura de má qualidade.
 
Norberg-Schultz nos recomenda proteger os lugares para que permaneçam como foram conformados.  Isso implica, no entanto num paradoxo: pressupõe que tudo o que tenha sido produzido como arquitetura seja bom e que tudo o que seja novo constitua uma ameaça.  No nosso entendimento tanto velhos como novos lugares podem ser bons ou maus.   Substituindo a concepção de história pela de tradição , como o fazem à partir de Heidegger os fenomenólogos em geral, excluímos os fundamentais elementos de avaliação da qualidade dos lugares da vida.  Principalmente aqueles de caráter objetivo.
 
Norberg-Schultz relaciona sua teoria locacional à identidade existencial das pessoas.    A identificação dos homens com os lugares é, segundo ele, determinante para a definição da identidade também daqueles.   Ocorrendo que alguém não se identifica com o lugar, a sua própria identidade seria perturbada.  Baseado nessa teses é que ele argumenta e considera que os lugares modernos, caracterizados por falta de proprie-dades locacionais alienam as pessoas, bem como, que os homens necessitam raízes concreta nalgum lugar.

A alienação é definida por Norberg-Schultz como perda de propriedade, no sentido de não pertencer ao lugar.   O entorno de nossas grandes cidades são exemplo gritante de lugares em decadência ou com falta de identidade.  O vemos quotidianamente nos jornais da televisão.  Jornalistas condenando arquitetos e urbanistas pela má qualidade de vida decorrente da falta de melhor planejamento são vivamente contestados por moradores ressentidos.  Por estes os lugares são tidos como parte de sua identidade o que explica porque se sentem agredidos.

Sua outra tese vai noutro sentido.  Indica que as pessoas não conseguem desenvolver uma identidade sem pertencer a determinado lugar, não adquiririam a devida dignidade sem raízes concretas.  Pobre sentença para com os inúmeros imigrantes que hoje se aproximam das antigas metrópoles em busca de uma melhoria de vida com relação à degradação de suas antigas colônias!  Aqui Norberg-Schultz corre o risco de simpatizar com ideais racistas tanto como o fez Heidegger.  Parece esquecer que fora Oslo já morou em Zurique, Boston, Chicago e Roma.  E não é preciso viver em país estrangeiro para ter que trocar de lugar.  Qualquer pequeno artesão ou pequeno comerciante sabe a pressão que sofre para ceder seu lugar a empresários e capitalistas mais fortes.

O radicalismo de Norberg-Schultz é falso quando iguala homens a plantas.  "Plantando-as" ele as botaniza e, portanto as desumaniza desautorizando a sua mobilidade física e social.   A identificação existencial de uma pessoa não pode ser limitada a determinado lugar. A identificação com determinado lugar joga um certo papel, mas são muitos mais os componentes da formação de sua identidade: família, coletivos de trabalho, cultura, visão de mundo (política, religião, ética etc.).  Esses componentes do processo de formação da identidade são supra- locacionais.

As relações sociais e de produção (trabalho) não necessitam obrigatoriamente de serem limitadas a relações de vizinhança.   Uma pessoa do outro lado do mundo pode significar muitos mais do que um vizinho para a formação da identidade de alguém.  Paixão e simpatia pode unir muito mais, e à distância, do que relações de vizinhança.  Coitadas das pessoas que se casam com estrangeiros!  Num mesmo lugar podem conviver pessoas de convicções as mais opostas.  Quanto mais as propriedades do lugar significam em detrimento de outros aspectos da formação da identidade pessoal tanto mais destorcida será.  Uma das medidas fundamentais para enfrentar o conservadorismo social e político é o de desviar o olhar preferencial para coisas pelo olhar preferencial para a dimensão social da vida!

Norberg-Schultz opõe-se a grandes lugares, citando algumas das principais cidades de seu pequeno país, a Noruega.   Exclui assim a possibilidade de cidades de maior porte poderem constituir a conjugação de bons lugares.  Onde é que deve-se determinar os limites de tamanho de uma cidade para garantir a qualidade do processo de socialização de seus habitantes? Ou é quanto menor que a cidade garante a melhor formação da identidade pessoal?

Norberg-Schultz busca apoio, também, no pensamento apoiado na consideração da língua como fator de interpretação da realidade.  Nisso também lembra Heidegger que buscava apoio em palavras antigas como mais fidedignas que os termos mais modernos. O enfoque linguístico da arquitetura defendido por Norberg-Schultz, levando em conta a mensagem normativa contida no conceito nameable objects quer fazer valer que a arquitetura funcionalista não tinha objetividade suficiente. 

A condição de objeto é condicionada por Norberg-Schultz ao fato de ser representado por um nome.  Não é sem importância a maneira como a arquitetura é relatada a conceitos e palavras, mas que a arquitetura dependeria das palavras a tal ponto é uma construção idealista.  Isso sabem todos os que tentaram descrever arquite-tura com palavras.

Considerando as relação entre coisas e palavras verificamos forte ação recíproca.  Uma cadeira está fortemente ligada à palavra cadeira e a nítidos conceitos de como deve ser uma cadeira.  Sentimo-nos tranqüilos se uma cadeira corresponde a nossas expectativas quanto à sua constituição e aparência.  Uma tranquilidade que não é perturbada pelo fato de escultores e designers tratarem isso com uma certa liberdade.  Mas a teoria será enganosa se tentarmos transferir sua objetividade para relações espaciais mais complexas.  Os textualistas incorrem no erro de pensar que há correspondência direta entre distintos fenômenos e um mundo externo à consciência e as palavras faladas, e uma correspondência direta, palavra por palavra, entre palavras faladas e palavras escritas.  Muitos dos fenômenos sobre os quais necessitamos falar são múltiplos e complexos.  A tentativa de representá-los por meio de palavras precisas e definidas implica negar ou ocultar importantes aspectos dos mesmos e além disso impossibilitar uma natural ação recíproca ao nível da abstração.

A necessidade de precisar distintos lados em distintos contextos não se obtém somente acrescentando conceitos.  Tentativas de diferenciar a língua com apoio de definições próprias nem sempre são bem acolhidas.  As tentativas de ser exato quanto a terminologias científicas em trabalhos acadêmicos nem sempre resultam em melhor aceitação.  A maioria dos escritores abandonam a exatidão de seu vocabulário quando o engajamento toma conta. 
          
A fenomenologia pretende, em princípio, fazer justiça a todos os fenômenos inde-pendente de caráter dos mesmos.  Quer alcançar "as coisas como tais", como anunciado já nas primeiras páginas de Logische Untersuchungen (Verificação lógica).      - - - - -


CONCLUSÃO

O desmantelamento de todas as barreiras que possam oferecer alguma resistência ao livre curso da concentração de capital e à concretização da mais-valia do neoliberalismo é um processo altamente excludente do ponto de vista social.  È natural, assim, que os excluídos, para superar o seu estado de exclusão, de distintas maneiras ponham em questão o direito de propriedade privada, provocando crises as mais variadas na ordem estabelecida.  Como reflexo, no campo do pensamento, digladiam-se dois enfoques contraditórios: 1) aquele que busca o conhecimento das leis mais gerais que governam toda a realidade; e 2) o que vê nela principalmente a contemplação da vida humana, sem exigir dessa contemplação os métodos altamente precisos para o aprofundamento da compreensão precisa do indivíduo como ser social e portanto histórico.

A questão fundamental que se coloca é: Cria o indivíduo a sociedade, escolhendo seu comportamento com total espontaneidade e completa liberdade?  Ou é a sociedade que cria o indivíduo e determina seu comportamento?  São essas indagações que estão na essência da contradição entre o pensamento vitalista e o marxismo.  Todo o resto são consequências da resposta que lhes for dada.

O marxismo não apresenta obstáculos doutrinários à análise dos problemas sobre o papel e o lugar do indivíduo, problemas esses que o pensamento vitalista tem a pretensão de monopolizar.   Pelo contrário, o marxismo surgiu, em grande parte, precisamente desse campo de interesse, embora desde o princípio Marx formulasse os problemas de modo contrário ao adotado pelos existencialistas.  Assim, por exemplo, todo o conceito de alienação nos primeiros escritos de Marx pertence a esse campo.  Não obstante, ao longo do desenvolvimento do corpo teórico do marxismo, esses problemas tem sido negligenciados deixando-os a outros, especial-mente aos existencialistas, permitindo-lhes pretender um monopólio de problemas importantes e criar assim a falsa impressão de que tais problemas só poderiam ser resolvidos por uma abordagem idealista, subjetivista.

Não é possível aceitar, simultaneamente, as afirmações do existencialismo e do marxismo sobre os problemas filosóficos em geral e os problemas do indivíduo em particular, sem cair no ecletismo e na conciliação da verdade com o erro.  Abordando o problema do indivíduo de forma marxista, ou seja, histórica e socialmente, devemos abandonar as bases idealistas e subjetivas do vitalismo.  O marxismo ensina que as atitudes do indivíduo são produtos sociais e que, ao adotá-las, ele "pertence na realidade a uma forma particular de sociedade.  Há uma contradição fundamental entre o marxismo e o existencialismo.  É possível escolher entre esses dois pontos de vista, mas impossível combiná-los num mesmo sistema coerente de pensamento.

No mundo capitalista Lenin é pouco conhecido por seus trabalhos filosóficos.   Lenin tem, no entanto, o mérito de haver analisado a "terceira via" filosófica desde o início de sua evolução.  Faz ver que a filosofia antiga sustentava o progresso das ciências enquanto que a filosofia moderna desempenha o papel de freio porque idealiza as tendências conservadoras.  Com o avanço da ciência confrontamo-nos inevitavelmente com a questão do primado da existência ou primado da consciência e a filosofia moderna insiste em idealizar esta última, ou bem, aspectos da mesma como algo em si.
 
Em sua evolução, as ciências fornecem novos dados e indicações para a filosofia.   Tornam a filosofia aprendiz das ciências, mas graças a aptidão humana de teorizar à partir do conhecimento científico, obtém-se um instrumento, também em evolução, capaz de guiar as ciências todas as vezes que os cientistas ameaçam perder-se por força dos interesses da classe dominante ou por falta de cultura filosófica.  Lenin sublinha a importância do materialismo sem desprezar a importância da dialética.  Vendo o entendimento materialista como em evolução, Lenin percebe que o método dialético não pode evoluir sobre outra base que não a da ideologia materialista.  As ciências prosseguem sua evolução e os problemas sociais apresentam novos problemas para o futuro da humanidade.  Constituem processos que continuam seu curso independente do que pensam os filósofos.  Há que se admitir a relatividade e o desenvolvimento do conhecimento admitindo, ao invés de verdades absolutas, processos de aproximação da verdade.   Somente o pensamento dialético pode fornecer resposta a tal fato:

Para o materialismo moderno, somente os limites da aproximação da verdade objetiva são historicamente determinados, enquanto que a existência dessa verdade mesma é absoluta, tanto quanto nosso progresso em direção a ela ...  O que é historicamente determinado é a data e as circunstâncias da conclusão de nosso conhecimento da essência das  coisas... mas o fato de que toda descoberta de tal natureza é um progresso do "conhecimento absolutamente objetivo", é ele mesmo absoluto.  Em suma, toda ideologia é historicamente determinada, mas é absoluto que a toda ideologia científica corresponde uma verdade objetiva, isto , um elemento da natureza absoluta.  Objetar-me-ão sem dúvida que essa distinção entre verdade relativa e verdade absoluta é bem vaga.  Responderei a essa objeção dizendo que minha distinção é suficientemente vaga para impedir a transformação da ciência em dogma no sentido pejorativo da palavra, isto é, em uma coisa morta, rígida, petrificada, mas que é ao mesmo tempo suficientemente nítida para traçar, nítida e irrevogavelmente, a fronteira entre o fideísmo e o agnosticismo de um lado, o idealismo filosófico e os sofismas dos discípulos de Kant e de Hume, de outro.

Para o pensamento idealista, não dialético, resta a escolha entre mitos confessados ou mitos que procura-se esconder.   Em ambos os casos o resultado fatalmente torna-se anticientífico e antiprogressista.  As distintas expressões do "terceiro caminho" do idealismo moderno na medida em que deixam de ser a representação móvel do conjunto da natureza e da sociedade em seu movimento, passam a constituir as armas filosóficas, políticas e sociais da reação mundial.  O testemunho histórico dos exemplos abordados neste texto dão prova disso.   

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