sexta-feira, 24 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE IV


Giulio Giorello (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.


Tradução: Frank Svensson



IV Dialética e materialismo

Admitindo com Althusser, que a categoria de matéria no sentido filosófico não pode mudar, é absoluta, somos levados espontaneamente a se perguntar se ela tem ou não uma relação com as concepções de matéria dada pelas diferentes teorias científicas. Ou seja, podemos nos perguntar, esquematizando, ser só um acaso se o mesmo termo designa duas noções tão diferentes. Um aspecto está claro: uma vez adquirida a distinção da qual falamos no parágrafo III – 4, a assimilação sumária da noção física no conteúdo científico, do conceito de matéria se revela ser artifício cômodo para poder atribuir a uma as características – e limites – da outra e abrir o caminho para a dissolução do materialismo integral de Marx e de Engels.

Isto posto, um materialismo que se propõe hoje como concepção racional do mundo, da natureza, e da história, evidencia a necessidade imperiosa de relacionar suas próprias  teses sobre objetividade da ciência com o desenvolvimento concreto das ciências. Deste ponto de vista, a interpretação de Althusser e de outrem do reflexo e do processo como teses para uma prática nova em filosofia parece eludir o problema. Faz justamente abstração, em última analise, do materialismo integral compreendido como uma concepção do mundo.

Objetar-se-á contra isso, a antiga acusação de uma construção filosófica imposta às ciências não ser válida; e uma vez feita a distinção de que falamos no parágrafo III – 4., não devemos aceitar, uma vez por todas, o caráter intrínseco do materialismo filosófico a toda concepção científica da matéria? Enfim, as referências de Lenin quanto à dialética, apresentadas em Materialismo e empiriocriticismo, mas mais ainda, como afirmou, em seus Cadernos, não indicam ao sistema hegeliano acusado por Helmholtz de impor à priori  suas próprias deduções às diferentes ciências?

Podemos lembrar que não é a única interpretação de certos aspectos do pensamento hegeliano. Observamos ainda a pouco que Hegel não é somente um irredutível apriorista, ele que buscava deduzir de relações entre conceitos abstratos as particularidades as mais insignificantes da natureza e da história.55

A este propósito, por exemplo, J. N. Findlay observou que Hegel confiava certamente numa Ciência Sistemática (Wissentchaft) na qual todos os conceitos aí contidos, incluindo os aplicados na ciência e na história, podem ser reunidos num encadeamento contínuo, no qual cada um encontra seu lugar único e necessário. As regras dessa Ciência Sistemática estão bem longe de serem dedutivas no sentido em que são as regras de um silogismo ou de um cálculo matemático. Trata-se mais de regras, que nos levam a passar de noções nas quais um certo princípio é latente de outros ou o mesmo princípio se manifestará: não se deslocam como princípios dedutivos, a um nível único do discurso mas progridem de um nível a outro sucessivamente.56

Nessa perspectiva, o intuito filosófico de Hegel não é de completar a obra da história e /ou da ciência, nem de lhe acrescentar novos resultados, mas de lhe atribuir um lugar na cadeia contínua de noções e de fases de ser através dos quais Hegel concebeu o mundo.57 Aqui o materialismo dialético falará francamente de concepção do mundo: se uma lição pode ser tirada dos exemplos importantes de caraterística  científica em Materialismo e empiriocriticismo, pelas quais Lenin refuta a tese ilusória de uma crise da ciência, é que nossas ideias de tempo, de matéria, de infinito, de ser, etc., estão todas, segundo um Findlay, em equilíbrio instável, de tal sorte que o menor toque que lhe seja dado por exemplos inabituais serão suficientes de lhes por em movimento.  Com franqueza, Findlay reconhece que frequentemente estamos inclinados mais a ignorar do que favorecer este movimento das noções.58 
      
Mais diretamente, a partir da reflexão sobre a dialética hegeliana Lenin chega ao cerne da questão, particularmente em “A propósito da dialética”, onde ele insiste sobre a universalidade da contradição: a constatação ou a descoberta de tendências contraditórias em todos os fenômenos e processos da natureza (inclusive  os do espírito e da sociedade) é a condição do conhecimento: das ciências as mais abstratas das ciências sociais (das quais Lenin dá o exemplo da luta de classes 59).

A analise deve começar do mais simples, do habitual, do mais divulgado [...]\ encontramos já ai a dialética. Assim começa a analise de Marx no Capital. Se a analise consegue descobrir num fenômeno extremamente simples o cerne de todas as contradições, esclarece como em cada célula, os embriões de todos os elementos da dialética, mostrando assim que a mesma é inerente a todo conhecimento humano.60

A constatação da universalidade da contradição não significa certamente a anulação da especificidade de cada ciência e não autoriza evidentemente transferir os encadeamentos específicos de um dado sistema teórico a outro.

A contradição (assim como a dialética) é um escândalo para os burgueses, que atribuem o primeiro lugar ao pensamento metafísico. O materialismo já foi metafísico na Europa quando do nascimento da burguesia. Como tal considerava as coisas como se estivessem isoladas, em estado de repouso; as considerava de modo unilateral. Por outro lado, a dialética não realiza todas as suas possibilidades senão no materialismo: o aprofundamento e a flexibilidade têm um significado que ultrapassa o relativismo como afirmamos no parágrafo III, justamente porque as abstrações como matéria, lei natural, volume etc., resumindo, todas as abstrações científicas: justas, sérias, não arbitrárias, refletem a natureza de um maneira mais profunda, mais verdadeira, mais completa.61 

O sentido exato, finalmente, do materialismo dialético, encontramos na maneira de Lenin considerar uma passagem de James Ward. Critica sua maneira de pensar naturalista. Lenin não pretende demonstrar que o idealismo é falso, não procura tampouco elementos que à priori permitam decidir entre idealismo e materialismo. Na passagem em questão, Ward, criticando o relatório de Rücker, admite modestamente que, enquanto a teoria atômica pode ser confundida com o materialismo, nenhum risco de confusão entre as ciências da natureza e a filosofia idealista (ou espiritual) desde que esta filosofia implica necessariamente a crítica das premissas gnosiológicas imposta inconscientemente pela ciência. Em verdade, comenta Lenin: As ciências da natureza admitem inconscientemente que sua doutrina reflete a realidade objetiva e que essa filosofia é a única compatível com as ciências da natureza.62  O idealismo filosófico, mesmo o idealismo objetivo de Hegel, dirá mais tarde Lenin nos Cadernos, tem, naturalmente raízes gnosiológicas, não é sem fundamento, mas é uma flor estéril.63

A filosofia tem um caráter revolucionário e os partidários em luta são o materialismo e o idealismo. Tomar partido pelo materialismo significa verdadeiramente partir da constatação que o materialismo permite a compreensão teórica da atividade e do desenvolvimento da ciência, não fez outra coisa que fornecer pontos de referencia durante as pretendidas crises da ciência.

Estimamos enfim que se o materialismo dialético se opõe, com Lenin, ao fenomenismo de Mach, ou sucessivamente se opõe às outras tendências fenomenista e néo-fenomenistas, é precisamente porque ele nota, de um lado, justas exigências que mesmo de tal ponto de vista provocam equilíbrio frequentemente com rara eficiência, mas realizam, ao mesmo tempo, que essas tendências – com as quais pode ter pontos objetivos de convergência, no que concerne a crítica de posições mais atrasadas 64  levadas a extremas consequências, arriscando desarmar a ciência face ao idealismo.

O materialismo dialético não pretende mostrar a impossibilidade de um idealismo coerente, e ainda menos, distinguir entre as teorias científicas dadas, aquilo que é materialismo e aquilo que não o é. Enfim não pretende mesmo existir uma espécie de experiência crucial em filosofia que poderia nos dirigir de maneira determinante para o materialismo e contra o idealismo. Isso seria característico de um materialismo metafísico ou mesmo uma caricatura do parti pris em filosofia, útil a quem queira taxar de dogmatismo o materialismo dialético. É somente uma caricatura, e uma caricatura mal feita. O materialismo dialético não tem essas profundas aspirações que os marxistas à la Bogdanov de ontem e de hoje lhe atribuem. Aquele que hoje estima que as noções leninistas do reflexo e do aprofundamento podem fornecer úteis indicações para a compreensão do sentido e do progresso das teorias científicas (no sentido mais amplo do termo, socialismo científico inclusive) não deve se sentir muito descontente: o julgamento contido na frase de Lenin quanto a Ward, citada acima, é suficiente.


Extraído de um artigo publicado no volume coletivo, Attualità del materialismo dialettico, p. 24 à 53, Editori Riuniti, Rome 1974.

Traduzido do italiano por  FRANÇOISE PERSIAUX. 

Versão do francês por FRANK SVENSSON.


N o t e s :

51. Ibidem, p. 172.

52. L. Althusser, Lénine et la philosophie, Maspéro, 1969, p. 35.

53. Ibidem, p. 36.

54. Cf., por exemplo, L. Althusser, obra. cit., p. 34 e seguintes. Em particular  : « Esta é a tese conhecida de Engels: o materialismo muda de forma com cada grande descoberta científica; tese que Lenin defende mostrando diferente e melhor que Engels, o qual fascinado pelas consequências filosóficas das descobertas das ciências da natureza (a célula, a evolução, o princípio de Carnot, etc.), que a descoberta decisiva que provoca a mudança obrigatória da filosofia materialista, não provem tanto das ciências da natureza como da ciência da história, do materialismo histórico (p.40).

Não podemos deixar de nos surpreender com o caráter unilateral deste julgamento, quando se considera que:

1) A pesquisa num setor científico dado, parte de certos problemas: retirando o cerne, avaliando a importância, observando os instrumentos aptos a lhes tratar no contexto dos resultados já adquiridos. As teorias se estruturam em sistemas muito articulados, em programas de pesquisa, nos quais a sucessão de certas conquistas teóricas adquirem um sentido para a comparação com os problemas dos quais se partiu, por sua avaliação inicial, assim como pelo controle rigoroso no contexto destas mesmas teorias (Assim tem sido para toa as grandes descobertas que fascinaram Engels).

2) Do momento que ele á assinalado, um programa de pesquisa, bem maior e mais articulado que uma simples teoria ou que um resultado fragmentário, ainda não é uma concepção de mundo.

3) Mantendo salva a especificidade de cada área de pesquisa, ressente-se, especialmente face a denegrimentos neorromânticos, que parecem periodicamente surgir ao mesmo tempo que os grandes progressos  da ciência, a necessidade de dominar a fragmentação das distintas pesquisas, de não cair na especialização como em fim em si. Em mostrando uma concepção do mundo que busca encontrar uma unidade entre os setores não ligados aparentemente da pesquisa científica, Engels tentou dar um conteúdo à tese de objetividade da ciência, mostrando em suas ligações precisamente como é possível captar o sentido de um problema científico em fornecendo toda uma série de esclarecimentos correspondentes ao estado das ciências de seu tempo. O Lenin de Althusser, não fornece sobre estas questões nenhuma indicação, o que parece bem estranho vistas as numerosas passagens que somente uma pequena parte foi aqui citada, onde Lenin intervém justamente a propósito dos problemas evocados acima.
   
55. J. N. Findlay, Hegel aujourd'hui, cité dans l'édition italienne Milano, Ili, 1972, p. 11.

56. Ibidem.

57, Ibidem.

58. Ibidem, p. 18 : « rolling ».

59. Lenin, Obras completas, t. 38, p. 344.

60. Ibidem, p. 346.

61. Ibidem.

62. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 288-289.

63. Lénine, Cahiers philosophiques, p. 347.

64. Sobre este ponto de um extremo interesse aparece a possibilidade de convergência entre o materialismo dialético e o neo-empirismo sublinhado por Philipp Frank em A ciência moderna e sua filosofia. O autor foi, aliás, muito criticado por Lenin em Materialismo e empiriocriticismo por seu texto “Lei causal e experiência”,  publicado nos Anais de Filosofia da Natureza 1907, vol. VI (cf. Materialismo e empiriocriticismo, p. 170) Para Frank, a crítica leninista, e em geral a que se fundamenta no materialismo dialético, em relação ao empirismo, deve-se essencialmente, a uma incompreensão de termos. No nosso entender, o materialismo dialético vai mais longe sobre esta questão: ele reconhece nó somente as aquisições científicas vindas de programas de tipo neoempiristas, mas também certos objetivos comuns de crítica e de pontos comuns em lutas culturais nas quais as duas tendências se engajaram; ao mesmo tempo, no entanto, evidenciou os pontos de divergência fundamentais, que justificam, do ponto de vista do materialismo dialético, as críticas dirigidas às tendências neo-fenomenistas. Em todo caso, é incontestável a significação de tal oposição, como teve, de seu tempo a oposição feita por Lenin entre o materialismo integral e o fenomenismo de Mach. Parece-nos importante relembrar este ultimo ponto de oposição com as teses que não veem na polêmica Leninista mais que um compromisso com o materialismo burguês de estilo século XVIII, senão uma versão russa deste, teses desenvolvidas largamente em A. Pannekock em seu livro: Lenin como Filósofo, que conheceu um sucesso extraordinário entre os teóricos das linhas expontaneístas as mais variadas.
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segunda-feira, 20 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE III



Giulio Giorello (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.


Tradução: Frank Svensson



III Como se articula a teoria do reflexo?

Materialismo e empiriocriticismo não trata tão só de questionar o ponto de vista de Mach ou da física fenomenológica, mas também do materialismo mecanicista, assim como das formas de realismo que se reclamam concepções mecanicistas.  Combate às críticas feitas ao materialismo pelas tendências de tipo fenomenológico é visto por Lenin como da maior urgência. Mesmo com tal enfoque é indispensável recusar o antigo materialismo na medida em que, paradoxalmente, é justamente graças ao dogmatismo dessa concepção que as tendências fenomenológicas se desenvolvem. Lenin reconhece a Rücker o mérito de haver sustentado o ponto de vista do matéria-lismo espontâneo, na medida em que o cerne de seu pensamento é que a teoria da física é uma cópia (sempre bem exata) da realidade objetiva.

O mundo é matéria em movimento o que aprendemos a conhecer mais e mais profundamente. 37

A inexatidão da filosofia de Rücker decorre de sua defesa da teoria mecanicista, bem como, da incompreensão das relações entre verdade relativa e verdade absoluta. Ele conclui: Só falta a esse físico o conhecimento do materialismo dialético.38

A explicação apresentada pelo materialismo mecanicista era uma explicação última, a qual não previa a possibilidade de explicações ulteriores. Uma vez admitida, por exemplo, que a verdadeira essência do calor é o movimento ou que as substâncias físicas são compostas de átomos ou de moléculas, como componentes últimos da realidade, parece impossível, desse ponto de vista se chegar mais longe. No entanto a concepção mecânica do calor será reexaminada, com reversamento importante de categorias físicas implícitas à redução de processos termodinâmicos da mecânica. O átomo será decomposto em componentes ainda menores, o elétron poderá ser considerado com boa razão inesgotável. O fenomenismo tem, portanto boas razões de criticar as pretensões absolutistas dessa forma de materialismo, Mas a constatação que um tal ponto de vista é insustentável não significa necessariamente o abandono de todo materialismo e a aceitação do fenomenismo do tipo Berkeley ou Mach.

Esta constatação é justamente o ponto de partida da crítica de Lenin aos defensores russos de Mach que atribuem ao materialismo de Marx e Engels os traços característicos do materialismo mecanicista. Hoje podemos pensar que tal crítica é eficaz na medida em que Lenin indica, em oposição ao antigo materialismo por um lado, e o fenomenismo por outro, a possibilidade de uma concepção que descartaria a tentação de aplicações definitivas sem com isso aceitar aas premissas de um modo naturalista de pensar.

Lenin transforma de maneira fundamental as observações de fundo que podem ser tiradas do relatório de Rücker (a respeito por um lado dos diversos enfoques de tipo mecanicista caracterizados por hipóteses particulares sobre as propriedades estruturais das partículas, por outro lado a análise por graus sucessivos) na ideia de que a admissão de diferentes níveis de hipóteses capazes de explicação não contradiz, mas completa esta concepção fundamental: A natureza é inteligível ao homem (Helmholtz).   Há níveis de explicação relativamente simples; outras mais refinadas; outras ainda, mais complicadas: que o calor é uma forma de movimento pode ser deduzido pela filosofia da natureza, determinado com Joule e Helmholtz de uma forma mais rigorosa, a do primeiro princípio da termodinâmica, pode enfim encontrar uma explicação na teoria cinética da matéria, como Boltzmann a desenvolveu no início do século XX, servindo-se essencialmente da noção de probabilidade física. O mesmo se dá com a constituição da matéria, com a decomposição das moléculas em átomos, depois se descobriu serem os átomos novos sistemas compostos e em consequência veio o descobrimento das propriedades dos elétrons. Ou seja: novas teorias podem fornecer interpretações de fenômenos já conhecidos, distintas daquelas já conhecidas num primeiro momento de modo a alterar mesmo a intuição do pesquisador. Alterar-se-ia mesmo a noção física da matéria? Não é de excluir: mas tal mudança profunda não implicará imediatamente o abandono do materialismo dialético, mas esta revisão de que falou Engels. A multiplicidade de teorias que pretendem explicar os fenômenos observados corrobora, e não recusa, a tese segundo a qual a ciência, cujo objetivo real é compreender a natureza, deve partir da ideia de que a natureza é compreensível.39

Admitida uma teoria ou um sistema de teorias como definitivas, como depositárias de uma verdade absoluta, todo limite dessa teoria ou desse sistema torna-se um limite imposto ao conhecimento possível da Natureza. . O materialista mecanicista em sua pretensão ao absoluto tornou absolutos os limites de certos contextos teóricos. Disso resulta que toda tese tendente a esclarecer seus limites aparece automaticamente como uma tese compatível somente com uma concepção fraca de explicação científica e incompatível com a afirmação do caráter compreensível da Natureza.
Por isso, para Lenin tal materialismo é metafísico.

O realismo de Rücker desconhece as relações entre verdade relativa e verdade objetiva. A ideia leninista do reflexo é que as teorias que relacionadas a essa realidade objetiva não têm nada a ver, nesta perspectiva, com a noção de copia tal como é apresentada no parágrafo I deste texto. Particularmente se entendemos por copia uma correspondência exata entre um objeto e sua imagem. Só um materialismo ingênuo, débil face o modo naturalista de pensar, pode pensar assim. Falar de uma realidade objetiva refletida em teorias significa ao contrário para Lenin afirmar que essas teorias permitem compreender um mundo que não se reduz às aparências o que na concepção dos adeptos de Mach, a teoria deve simplesmente resumir.  A ciência compreende o mundo na medida em que vise às verdadeiras teorias. Não se pode pretender – como quer o materialismo ingênuo – que ideias fundamentais como as do átomo ou do elétron expliquem de forma definitiva a essência dos fenômenos naturais. Nem mesmo quere passar tais noções por noção de observação; fazendo isso expor-nos-emos às críticas fáceis de tipo fenomenista.

Concordamos sempre com um antigo juízo de Engels, para quem as propriedades atômicas não se esgotam a não ser com o progresso do pensamento. Enfim, a afirmação segundo a qual a ciência visa teorias de verdade  -- como o  quer a teoria leninista do reflexo – não é desmentida pelo fato de não se poder afirmar de forma absoluta a verdade de uma teoria particular. A ciência progride em elaborando teorias que comparadas às precedentes podem ser consideradas como melhores aproximações da verdade.

A noção de reflexo é inseparável à de progresso por aproximações sucessivas que enviam finalmente à de aprofundamento. Aprofundamento em que as modalidades podem ser extremamente variadas: mesmo por mudanças qualitativas quase imperceptíveis como profundas modificações qualitativas, por exemplo; isso é só uma ilustração que assume distinção como a de Engels (que Engels mesmo não considerava absoluta). Esse ponto de vista – o qual consideramos como um dos pontos que distinguem o materialismo dialético de Lenin de outras formas de materialismo – é corroborada hoje por todas as considerações que mostram não existir pura aparência – pura observação e que a experiência nua, ao contrário do que é para a atitude naturalista, não passa de um primum, mas sempre o resultado de uma certa interpretação compreendendo teorias e hipóteses. Quando às intuições que proporcionariam garantias a um materialismo ingênuo, parecem mais ligadas às condições históricas do que tal materialismo não quer fazer crer. Aquilo que hoje parece intuitivo pode parecer muito menos no passado, quanto se dispunha de referencias históricas que permitiam construir modelos menos articulados de compreensão da realidade.

Isto posto, devemos dar outros esclarecimentos sobre o modo como se articula a teoria de um reflexo. Limitar-nos-emos a quatro pontos fundamentais:


III – 1. Reflexo e dialética.   
   
Do momento em que reflexo e aprofundamento aparecem em Lenin como dois aspectos tais que um não ser compreendidos sem fazer referência ao outro, certas teses de Materialismo e empiriocriticismo têm seu desenvolvimento natural em passagens de Cadernos Filosóficos.40  Lenin escreve nessa sua célebre observação a propósito da dialética:

A dialética como conhecimento vivo, multilateral (o número de lados aumenta perpetuamente), com uma quantidade de nuances por todos os modos de abordar, de se aproximar da realidade [...] vejam aí um conteúdo incomensuravelmente rico, em comparação com o materialismo metafísico cuja maior deficiência é ser incapaz de aplicar a dialética à “Bildertheorie”, ao processo e ao desenvolvimento do conhecimento.41
 
Novamente, o reflexo relacionado ao desenvolvimento do conhecimento: e lá onde Rücker teria visto somente insuperáveis limites, Lenin percebe uma quantidade de aspectos em perpétua aumentação. Ou, em outros termos, débil e exposta a todas as críticas que a taxam de resíduo metafísico. Quando se resta no contexto do antigo materialismo, a teoria do reflexo é corroborada pela história da ciência, bando de ensaio da dialética. Se a tese do reflexo significa em Lenin retomar numa nova perspectiva da objetividade como conhecimento científico, a garantia dessa objetividade é fornecida pela historicidade da ciência, compreendida através das categorias leninistas da aproximação e do aprofundamento. 
     

III – 2. Limites temporais e crítica do kantismo

Reconhecer os limites de um conhecimento científico, por exemplo do mecanicismo, não significa considera-lo como absoluto. Como já sublinhamos, esses limites, em torno do fato evidente de que eles condicionam a pesquisa científica, são eles mesmos condicionados: são limites temporais, determinados historicamente e claramente identificáveis em fazendo referência ao contexto científico de uma dada época. Não podemos fazer passar por barreiras insuperáveis, configurada pela Natureza contra o conhecimento, nem mesmo como limites inerentes de forma essencial ao sujeito conhecedor. Recusando a acusação dos adeptos russos de Mach, segundo a qual a admissão de limites em certos sistemas teóricos, bem como, a noção mesma de aproximação sucessiva reduziria o materialismo dialético a uma fora de kantismo, retomando a opinião segundo a qual o conhecimento jamais lhe compreenderia.42

Lenin em Materialismo e empiriocriticismo, relaciona a temática kantista ao agnosticismo. Uma breve observação de caráter histórico se impõe aqui. A segunda metade do século XIX, principalmente da Alemanha, foi uma época de retorno a Kant: E. Zeller, H. Cohen, F. A. Lange, etc. Num primeiro momento, Engels viu nesse movimento um primeiro passo rumo a uma descoberta da dialética racional. Fenômeno complexo, o Zurück zu Kant (retorno a Kant) apresentara vários aspectos; alguns de natureza política: a escola de Marburg (Cohen, Natorp etc.) tinham ligações com a socialdemocracia, por exemplo, por meio de Lange, um dos alvos dos ataques de Plekhanov.  A crítica de Bogdanov, portanto, tinha todo um significado particular. O quadro mostrou-se ainda mais complicado pelo fato do Zurück Zu Kant ter tido enorme eco junto aos mais brilhantes cientistas alemães, que ao invés de se identificarem com uma escola kantiana ou neo-kantiana particular viam non kantismo uma doutrina filosófica genérica (se isso não é simplesmente filosofia em francês) que servirá de alvo a suas atividades. O retorno a Kant significa no mais das vezes uma recusa a Hegel considerado como criador de um sistema absurdo no qual se pretendia construir à priori os resultados das ciências: estas são as palavras de Helmholtz, que via em Hegel o principal responsável pela cisão entre ciências da Natureza e Filosofia. O caráter unilateral de tal crítica foi denunciada por Engels, em particular em Dialética da Natureza, mas incontestavelmente, o kantismo parecia ser a melhor solução que, de uma parte, como Helmholtz, insistia sobre o caráter inteligível da natureza, como premissa indispensável à ciência  e ao mesmo tempo não ousava se aventurar até uma tese de caráter nitidamente materialista (Lenin fala a esse respeito de materialismo envergonhado).

O resultado final, como sublinha Lenin em Materialismo e empiriocriticismo, não pode ser outra coisa que a coisa em si, por demais que seja desconhecida. Em consequência, em inúmeras passagens de Cadernos Filosóficos, Lenin insiste sobre a necessidade de uma crítica do kantianismo (e do agnosticismo implícito na doutrina da coisa em si) não do ponto de vista do materialismo metafísico – como o fez essencialmente Plekhanov – que teve que recusar a priori as teses do criticismo, mas do ponto de vista do materialismo dialético, que tem por traz de si a mesma crítica de Kant por Hegel. Crítica que mostra, por Lenin, que O caráter findo, transitório, relativo, convencional do conhecimento humano (suas categorias, causalidade etc.) Kant tomou por subjetivismo e não como dialética da ideia (da sua própria natureza) quando ele separa o conhecimento do objeto.43

Os limites das teorizações científicas não se definem a não ser a preço dos limites do sujeito (no sentido kantiano). Consequentemente, os kantianos associam os materialistas aos dogmáticos, tanto que com menos coerência Bogdanov descobre no materialismo dialético o espectro da coisa em si. Na base deste duplo erro, há o fato para Lenin, que kantianos e fenomenista, com seus distintos pontos de vista, não compreendem o ponto fundamental que é o seguinte: O curso do conhecimento leva à verdade objetiva.44


III – 3.  Flexibilidade das categorias e teoria do conhecimento.

Nesta perspectiva estudaremos como Lenin vê no sujeito do criticismo kantiano uma forma vazia (uma representação por si) sem análise concreta do processo do conhecimento. Isso mostra já que toda tentativa de readaptar o marxismo à la gnoseologia kantiana será objetivamente anti-leninista. Além disso há um outro ponto fundamental de divergência. Se uma teoria do conhecimento (o termo Erkenntnistheorie nasceu do meio kantiano da segunda metade do século XIX, por exemplo, com Zeller) consiste no estudo de categorias ou se quisermos estruturas que tornem possível a constituição de objetos científicos que organizem à priori, por assim dizer a possibilidade da experiência e tornem possíveis as distintas ciências. O materialismo dialético não é uma teoria do conhecimento: não é a confrontação fora do tempo do sujeito e do objeto. Tal oposição limita para Lenin toda a filosofia crítica, Os conceitos lógicos são subjetivos – escreve Lenin nos Cadernos Filosóficos – na medida em que restam abstratos em sua forma abstrata, mas expressam também ao mesmo tempo as coisas em si. Os conceitos humanos são subjetivos em sua abstração, em seu isolamento, mas são objetivos na totalidade, no processo, na soma.46

Um pouco depois, a propósito das categorias kantianas, acrescenta: Kant não mostrou a passagem das categorias de uma à outra.47   Mas uma vez admitido que as categorias são flexíveis, uma vez que a teoria do conhecimento (o termo foi apresentado aos marxistas por Plekhanov) referindo-se ao desenvolvimento histórico do pensamento humano (Engels), a oposição entre coisas em si e coisas para nós perde seu caráter absoluto.

 Na teoria do conhecimento como em todos os domínios da ciência – observou Lenin em Materialismo e Empiriocriticismo – importa raciocinar dialeticamente, ou seja, não supor nossa consciência imutável e pronta, mas analisar [...] como o conhecimento incompleto, impreciso, fica completo e mais preciso. 48

Inúmeros exemplos mostram a transformação de coisas em si em coisas em nós. No entanto quando uma concepção estática de categorias é função de uma oposição estática do sujeito e do objeto, a aceitação da flexibilidade das categorias e de sua dinâmica interna permite achar as conclusões que ocorrem a todos os homens em sua vida e que o materialismo tem conscientemente como a base da gnoseologia, ou seja, fora de nós existem objetos, coisas, corpos e nossas sensações são imagens do mundo exterior.

Uma vez articulada assim a teoria materialista segundo a qual os objetos existem em torno de nós [entretanto que] nossas representações são suas imagens, esta discriminação entre [as imagens] verdadeiras e falsas dada por Lenin pela prática mostra-se ser um momento essencial do desenvolvimento do conhecimento, uma motivação mesmo de aprofundamento teórico. Isso não significa que Lenin esboce uma concepção pragmática da teoria ou que reduza o pensamento a simples momento de ação. A possibilidade de controlar uma teoria de uma parte por um cientista em laboratório – como a mesma possibilidade de realizações de caráter técnico – é garantida pelo fato que o conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem, parafraseando uma fase dos Cadernos Filosóficos. Nessa perspectiva, as teorias científicas que conhecem um sucesso prático, por exemplo nos setores da tecnologia – como de resto as análises do socialismo científico no domínio da política econômica, da história – não podem ser aceitas como verdadeiras na medida em que elas tenham sucesso mas elas têm sucesso justamente porque são verdadeiras (naturalmente no sentido definido no início do parágrafo 3).


III - 4. Noção física de matéria e conceito de matéria em física.

Compreendemos como Lenin, já em Materialismo e Empiriocriticismo refere-se a Engels e Hegel. A afirmação apresentada acima implica aceitar a relatividade de nossos conhecimentos, mas não por isso abandonar a objetividade da ciência.

A dialética como já explicava Hegel, integra como um de seus momentos o relativismo, a negação, o cepticismo, mas não se reduz ao relativismo.  A dialética materialista de Marx e de Engels inclui sem contestar o objetivismo sem se reduzir a tanto; ou seja, admite a relatividade de todo conhecimento, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da relatividade histórica dos limites da aproximação de nossos conhecimentos em relação à verdade.49 

Nessa perspectiva não só compreendemos o erro do fenomenismo que pretende considerar as sensações em sua singularidade descoladas do processo do conhecimento de que fazem parte, mas ainda realizamos como toda sensação, mesmo suscitada por coisas em torno da consciência por sua ação sobre os órgãos do sentido não nos fornece uma primeira imagem aproximativa da realidade: trata-se de examinar com os instrumentos teóricos adequados o conjunto das imagens fornecidas pela sensação.

O pensamento -- é visto nos Cadernos filosóficos – arraigado na representação refletindo ele também a realidade.50  Consideramos que, por um lado, essas teses dos Cadernos são o resultado da aliança entre a noção de reflexo e aquela de dinâmica do conhecimento realizada em Materialismo e Empiriocriticismo. A utilização do relatório de Rücker ao mesmo tempo em que a crítica dos materialismos mecanicistas e ingênuos (ver. § 1 e 2) conduzem a uma concepção do reflexo extremamente articulada segundo a qual este reflexo não é simples, nem imediato, nem total, mas um processo feito de uma série de abstrações, que tomam forma de conceitos, de leis etc. esses conceitos e leis abarcam relativamente, aproximativamente, as leis universais da natureza em movimento e desenvolvimento perpétuo.51

Nesse contexto fica clara a distinção fundamental introduzida por Lenin: a distinção entre a matéria entendida como noção filosófica e a matéria como conceito científico.  A matéria tal qual é apresentada pelas teorias mecanicistas em física, pelas teorias atômicas, etc., é um conceito relativo à condição histórica das ciências. O conteúdo científico dessa noção muda com o desenvolvimento do conhecimento, ou seja com seu aprofundamento. A noção filosófica da matéria não muda, na medida em se afirma como observou Althusser,  a objetividade de todo conhecimento científico de um objeto. 52


N o t e s :

37. Sou eu que sublinho (G.G.)

38. Lênin, Materialismo e empiriocriticismo, p. 288.

39. Helmholtz, citado em Rücker, obra. cit., p. 21 573.

40. Não abordamos a questão da continuidade entre Materialismo e empiriocriticismo e Cadernos Filosóficos. Contra a tese dois filósofos de Lenin, ver os argumentos feitos por L. Geymonat em Histoire de la pensée philosophique et scientifique », Milan, Garzanti, 1972, v. VI, chap. IV, particularmente no que ele sustenta em pp. 114 et ss. Sobre o relatório teórico-prático e em pp.116-117 sobre o sentido da referência de Lenin à Hegel. Isto posto, a seguir abordaremos várias passagens de uma ou outra obra de Lenin, buscando mostrar como se articula de forma fundamentalmente certa a teoria do reflexo e do aprofundamento.

41. Lénine, « Cahiers philosophiques », CEuvres complètes, t. 38, p. 346.

42 -- Os materialistas, dizem-nos admitir qualquer coisa de impensável e de inconcebível, a coisa em si, a matéria além da experiência, além do nosso conhecimento. Caem num verdadeiro misticismo admitindo qualquer coisa além, situada fora dos limites da experiência e do conhecimento. Quando declaram que a matéria, agindo sobre os nossos órgãos dos sentidos suscitam sensações, os materialistas se baseiam sobre o desconhecido, sobre o nada, pois que eles mesmos – dizem eles – reconhecem nos sentidos como a única fonte de conhecimento. Os materialistas caem no kantismo [...] duplicam o mundo, apregoam o dualismo, pois que para eles, por trás dos fenômenos, há ainda a coisa em si, por trás dos dados imediatos dos sentidos admitem outra coisa, não se sabe que fetiche, um ídolo, um absoluto, uma fonte de metafísica, uma dublagem da religião (a santa matéria, como diz Bazanov) Lenin Materialismo e Empiriocriticismo, p. 20. 
   
43. Cahiers philosophiques, p. 197.

44. Ibidem, p. 192.

45. Ibidem, p. 194.

46. Ibidem, p. 198.

47. Ibidem, p. 199.

48. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 104.

49. Ibidem, p. 140.

50. Lénine, Cahiers philosophiques, p. 216.

51. Ibidem, p. 172.

52. Althusser. Lenine et la filosofie, Maspero, Paris 1969, p.33. 

OBS. Em seguida Parte IV

sexta-feira, 17 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE II




Giulio Giorello  (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.

Tradução: Frank Svensson



II Reflexo e aprofundamento

A diferença entre Lenin e Rücker reside, a nosso ver, na correção que Lenin opôs à defesa do realismo como entendido por Rücker: não realidade última, mas realidade objetiva, refletida pela teoria. É preciso lembrar, no entanto, que a defesa do realismo feita por Rückert é antes de tudo uma defesa do atomismo mecanicista. Sua argumentação está fundamentada em duas partes distintas:

Existe fundamento válido para estimar que toda matéria é constituída de um certo número de partes (átomos, moléculas, ou mais genericamente de partículas)?

Podemos ter conhecimento da estrutura e das propriedades de que tais componentes elementares são dotados?

Rückert responde afirmativamente não obstante sinta necessidade de diferenciar profundamente as respostas. Uma resposta afirmativa à primeira questão não implica uma resposta afirmativa à segunda. Um exemplo: o mecanicista consequente  certamente sustentará que o calor que aparentemente não é um movimento, não é outra coisa que uma forma de movimento, mas será obrigado a observar:

O ponto de vista segundo o qual a estrutura da matéria será atômica – e o é de fato – para as teorias que apresentam posicionamentos precisos quanto às estrutura dos átomos; mas quando, como frequentemente ocorre, tais posicionamentos acarretam dificuldades, introduzem dificuldades novas e mais sutis, devemos lembrar que a hipótese fundamental segundo a qual a matéria é composta de partes capazes de movimentos independentes. Esclarecidas por meio de observações e raciocínios independentes do que possa ser a natureza e as propriedades de cada corpo.23


Nessas palavras está implícita a possibilidade de diferenciar a concepção genérica mecânica dos fenômenos da natureza (por exemplo, o calor) de um atomismo que se estrutura com hipóteses específicas que tentem a excluir as propriedades estruturais das partículas em movimento. Existe, portanto, distintas formas possíveis de mecanismo, conforme as hipóteses específicas que se esteja disposto a aceitar. Segundo Rücker isso não é devido somente a diferenças entre várias escolas as quais, na Inglaterra ou no continente europeu, tendem todas a se considerar mecanicistas (mesmo criticando-se entre si), mas também ao fato que, numa mesma pesquisa são possíveis graus sucessivos de análise da matéria.24

Mencionemos ainda um exemplo sugerido por Rücker e repetido por Lenin.25  Ao estudar a atmosfera admite-se ser uma combinação de gazes: oxigênio, azoto, árgon, gás carbônico, vapor d’água etc. A análise não se limita entretanto a isso. Podemos dar um passo além, por exemplo, decompondo o valor da água e do gás carbônico em seus distintos elementos, hidrogênio, oxigênio, carbono. Ou, observa Rücker, atingido esse ponto ninguém ousa dizer que substituímos um compreensível por muitos incompreen-síveis: os componentes do ar e do vapor d’água aparentam ser tão reais quanto o próprio ar. É isto razão para se limitar a esta pesquisa?

Atingimos o limite entre dados de fato e ficções? Não podemos dar um passo mais decompondo todo gás elementar numa combinação de átomos e éter? E, portanto alcançado tal ponto estabelecer um pare. Observamos que os átomos e as moléculas não podem ser diretamente percebidos, não podem ser nem vistos nem manipulados: isso são conceitos, que podem ser de certa utilidade, mas não podem ser considerados como realidades.26   Essa objeção pode, entretanto, segundo Rücker, ser descartada recorrendo a simples analogias: os anéis de Saturno, vistos em telescópio, aparentam uma massa compacta e são as considerações teóricas, de tipo matemático, que refusaram a opinião fundamentada por essa aparência, desde que a análise espectral reforçou as conclusões fundamentadas pelos cálculos.

Um físico que acredita na realidade dos átomos estima ter tantas boas razões para decompor um gás aparentemente contínuo como as tem para dividir em satélites os anéis de Saturno, aparentemente contínuos. Engana-se, não tem certeza que moléculas – e satélites – não possam ser vistos e manipulados separadamente ... 27

Na realidade, enquanto a experiência não oferece indicações as quais, corretamente interpretadas, implicam a negação de átomos e de moléculas, para Rücker há que reconhecer que as provas da realidade física, das entidades, descobertas aos distintos níveis de análise devem ser essencialmente diferentes, na medida em que forem condicionadas pelo nível considerado. Assim as observações por telescópio ou pelos sentidos não constituem evidências por níveis de análises mais profundas, como são aquelas que reconhecem os anéis de Saturno como constituídos de satélites ou que os corpos são formados de moléculas. Por outro lado, a realidade de moléculas e de átomos não será assegurada com absoluta certeza: entre as ficções da imaginação científica e uma representação perfeita da realidade, existe para Rückert uma via intermédia.29

Recorramos a ainda uma analogia: Um homem num quarto escuro não consegue senão confusamente distinguir os objetos; se ele não esbarra com os móveis e não toma um espelho por porta, é porque vê até bem. Lenin usa essa mesma analogia: Não devemos evitar penetrar mais profundamente a natureza, nem pretender já haver retirado todos os véus do mistério do mundo circundante.30 

E finalmente Lenin cita com satisfação as últimas palavras do artigo de Rückert:

Nós ainda não formamos uma imagem nítida da natureza dos átomos ou da natureza do éter como meio dos mesmos. Tentei mostrar que apesar do caráter tateante de certas das nossas teorias, apesar das inúmeras dificuldades de detalhes que enfrenta a teoria dos átomos ... essa teoria é justa quanto a suas grandes linhas; os átomos não são conceitos auxiliares em ajuda a matemáticos embaraçados; trata-se de realidades físicas.31

Lenin substitui o termo inglês tentative nature por caráter de aproximação:32 novamente, na tradução de um termo de Rücker, encontramos o ponto de partida para uma observação leninista destinada a caracterizar o materialismo dialético no que concerne o problema do conhecimento: o conhecimento científico se desenvolve por aproximações sucessivas, pois nenhuma pode pretender atingir um universo definitivo, nem haver esvaziado todos os problemas. Aproximações precisamente, cada uma penetra mais profundamente a natureza que as precedentes, revelando seus limites.

O fato que erros tenham sido cometidos – observa Rücker em sua defesa apaixonada do mecanicismo – que certas teorias tenham sido propostas e aceitas durante um certo tempo (depois abandonadas) não desacredita necessariamente o método adotado.

Sobre esse ponto Lenin certamente concorda com Rücker. Já em Materialismo e Empiriocriticismo, Lénin não assume a defesa do materialismo mecanicista: remete frequentemente a físicos como Hertz ou Boltzman, a referência à concepção que tem como fundamentais as noções de matéria ou de energia querem esclarecer, não tanto uma validade intrínseca da concepção mecanicista a qual falta a fundamentação das críticas que lhe são dirigidas pelos defensores de Mach ou de representantes da física fenomenológica, em suma, não é errado por Lenin criticar o materialismo dialético, mas é errado o modo como é criticado.

Principalmente como em Ward, a crítica do materialismo dialético é o primeiro passo no sentido de uma forma de idealismo subjetivo. Como já afirmamos, o fato que numerosas teorias tenham sido ultrapassadas por outras mais refinadas, não desacredita necessariamente o método adotado, não implica necessariamente renunciar um função essencial de elaboração teórica entendida como qualquer coisa nada mais que uma simples ajuda memorial.

A solução particular oferecida por Rückert pode parecer insuficiente. Seus adversários, Poynting, Poincaré, Ward, puderam, se opor a ele – e de fato alguns o fizeram – tornando a história da física do século XIX um cemitério de teorias mortas que haviam pretendido ultrapassar os limites da experiência, mas a preço de um fracasso reticente: filogístico, calórico, corpúsculos portadores de luz e de calor. Partículas e átomos – elementos teóricos essenciais da posição mecanicista, mas não diretamente observáveis – não teriam também o mesmo destino? Mais uma vez, como já em Mach depois em Duhem, a história da ciência vai de encontro do mecanicismo e ao mesmo tempo, contra a afirmação de que teoria conheceria a realidade.

Aqui a defesa de Rücker mostra-se fraca. Por um lado repete:

É um erro considerar que em geral as teorias físicas, e em particular a teoria atômica, como se fizessem parte de um esquema que fracassaria deixando qualquer coisa sem explicação. As teorias físicas se desenvolvem ao principio partindo dos fenômenos que sensibilizam nossos sentidos. Quando não alcançam mais profundamente os segredos da natureza, é mais que provável encontrarem barreiras insuperáveis. Isso não significa, entretanto, que as premissas fundamentais sejam falsas e que a questão de saber se um obstáculo particular é sempre insuperável recebe raramente uma resposta confiável.34

Por outro lado, uma vez feita distinção entre as teorias mecanicistas que aceitam a ideia geral segundo a qual as substancias são compostas de partículas distintas, bem como as teorias que vão além, formulando teorias específicas quanto a suas propriedades estruturais empreendem viagens arriscadas. Rücker insiste sobre o fato  que na física. como em toda ciência, existem ideias fundamentais (root ideas) baseadas na razão e na observação que não podemos deixar de considerar como um aspecto da verdade.35 tal é precisamente a ideia básica da concepção atomista. Quanto a diferentes hipóteses específicas, nos pronunciaremos caso a caso. Se possível sobre sua validade e sobre o caráter adequado dos mesmos.

Esse ponto é de extrema importância: aqui aparece nitidamente a divergência entre Lenin e Rücker. Se bem que precisamente sobre este ponto, o materialismo dialético tem sido mal compreendido atribuindo-lhe teses que acordariam melhor com um realismo ingênuo o qual distingue as duas concepções e é justamente o apego de Rücker ao realismo, do qual as ideias de base da concepção atomista são um exemplo típico, senão o protótipo, de verdades que, uma vez consideradas não podem ser abandonadas, formando assim um nódulo de verdades incontestáveis.

O rigor das demonstrações matemáticas por um lado, as observações de outro – o que é uma das conquistas da reflexão sobre a ciência do nosso tempo – jamais é absoluta. Submissa ela também a um desenvolvimento continuo, não fornece nenhuma garantia definitiva: e uma vez reconhecido este fato, não se pode admitir verdades incontestáveis e ao mesmo tempo reconhecer o desenvolvimento crítico contínuo de uma ciência. Um conjunto estranho de dogmatismo, historicismo e pragmatismo pode talvez constituir uma defesa do materialismo mecanicista moribundo (no tempo de Rücker) ou morto (hoje), mas nem defensores independentes nem adversários esmerados podem fazê-lo passar por materialismo dialético. 

Elevar-se a conhecimentos sempre mais profundos da realidade, não na ilusão de chegar cedo ou tarde a esvaziá-lo, mas com plena consciência de se aproximar pouco a pouco, significa o aprofundamento dos problemas fundamentais, que partem de premissas as quais, consideradas apenas como um aspecto da verdade não podem ser postas em discussão ou submetidas a severos controles. Nessa perspectiva, um abismo separa a análise por etapas sucessivas de Rücker daquela de inexauribilidade dos elétrons da qual fala Lenin. Se o átomo é decomposto e se não é indivisível, um salto qualitativo foi dado, e não se deve diminuir o sentido considerando o elétron como um componente último da matéria. Último somente para o nível da análise considerada pela ciência em 1908, mas não em absoluto. A aproximação sucessiva sofre verdadeiros saltos qualitativos quando resulta de uma renovação audaciosa dos postulados de nossas teorias e de uma mudança radical das próprias categorias do conhecimento. Se aproximação sucessiva é uma expressão que pode induzir a erro, deve-se lembrar de que com Lenin esses termos indicam aprofundamento de nosso conhecimento, ligado à ideia constantemente repetida, de extrema flexibilidade das categorias.36  Pensar que são fixadas uma vez por todas é típico de um materialismo metafísico, mas não do materialismo dialético do qual a tese das ideias fundamentais nada mais é que uma variante.

Ela não considera que a proposta de uma nova teoria passe por toda uma série de mediações: a avaliação da importância dessas questões – que não podem ser simplesmente remetidas à constatação do fato de que existem limites talvez insuperáveis – a análise lógica dos problemas, a escolha de instrumentos conceituais e também as referencias do contexto de outras teorias, não só não se sucedem numa ordem temporal determinada uma vez por todas, mas comportam frequentemente atrasos, decalagens, diferenças, quando não mudanças bruscas e radicais já mencionadas. Tudo isso é, a nosso ver, a característica do materialismo dialético em relação às concepções – realismo de Rücker, materialismo mecanicista de Mach ou idealismo de Ward – que não veem na história da ciência nada mais que uma história de catástrofes. Quanto aos aspectos aos quais já fizemos alusão, têm frequentemente sido sublinhados, a partir de Lenin, por historiadores marxistas da ciência; geralmente, no entanto, -- e referimo-nos principalmente aos estudos marxistas ocidentais – limitados ao contexto político.

Há ainda esse limite: sem redução, segundo nosso ponto de vista, completamente injustificado do materialismo integral tal qual Lenin concebia o de Marx e Engels, e em todo caso , uma má compreensão da noção leninista de aprofundamento, o qual, em sua complexidade, permitiu melhor apropriar-se como mesmo o sentido político dos câmbios fundamentais do desenvolvimento científico não se captam plenamente senão tendo em conta a significação objetiva da posição de um problema e das soluções propostas.


N o t e s :

23. Rücker, obra. cit., p. 21 571. Esta citação faz parte do paragrafo cindo do relatório sobre a estrutura granular da matéria.

24. Ibidem, p. 21 561.

25. Ibidem, paragrafo quatro do relatório. Retomado por par Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

26. Esta citação e as que precedem são tiradas de Riicker, obra. cit., p. 21561.

27. Ibidem.

28. Ibidem, p. 21 562.

29. Conforme o último paragrafo de Rücker intitulado os limites da teoria física.

30. Lénine Matérialisme et empiriocriticisme, p. 287.

31. Rücker, obra. cit., p. 21 573.

32. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 288.

33. Rücker, op. cit., p. 21 572. A citação é tirada do paragrafo seis  do relatório consagrado às propriedades fundamentais da matéria.

34. Ibidem, sou eu que sublinho.

35. Ibidem.

36. O termo flexibilidade por sua vez não induzindo a erro não permite pensar que o aprofundamento é realizado somente por modificar localmente uma teoria dada. A certos momentos do desenvolvimento, teorias inteiras são criticadas globalmente e numa tal crítica, das categorias antigas podem ser desprezadas e ideias, tomadas por fundamentais.


OBS. Em seguida as partes III e IV.

domingo, 12 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE I




Giulio Giorello  (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.

Tradução: Frank Svensson



I – Serão as ideias cópias das coisas?

A concepção de ciência baseada na física fenomenológica, bem como sua recusa da explicação mecânica dos fenômenos naturais, considerava as hipóteses matemáticas que permitiam em casos particulares o recurso à mecânica, somente para calcular certos resultados. Para Berkeley, uma hipótese matemática não era nada mais que um dispositivo engenhoso l  : nada revela sobre a natureza de um fenômeno físico, nem sobre suas propriedades particulares, na medida em que sua verdade não está em questão, mas só sua utilidade, sua exclusiva eficiência como instrumento de cálculo.
      
Em outros termos: a física fenomenológica não renuncia a explicação científica dos fenômenos, mas deixa de lado a compreensão do objeto explicado, a partir do momento que estima que a explicação acessível, graças ao trabalho do pesquisador, não pode permitir uma mais profunda penetração da natureza das coisas.

No capítulo V de Materialismo e empiriocriticismo, Lenin criticando a revolução moderna nas ciências naturais e o idealismo filosófico, justamente sobre esta questão, faz referência ao discurso inaugural (da cessão de física) no Congresso dos cientistas ingleses, tido em Glasgow em 1901.2

Nessa apresentação, Arthur W. Rickert compara as duas tendências da física contemporânea, o mecanicismo e a física fenomenológica, examinando os fundamentos da primeira tendência – existência dos átomos, natureza mecânica do calor, existência do éter – e os objetivos formulados por filósofos e cientistas, como Poincaré, Ward, Poyinting que, em medida distinta, aderem a concepção oposta. Trata-se de se pronunciar sobre as hipóteses que constituem a base das teorias científicas, em relação à definição e os objetivos da atividade científica, vista como aquela que se propõe não só demonstrar que muitos fenômenos, à primeira vista vistos como tendo pouca ou nenhuma relação com os mesmos, são ligados, mas também explicar as relações entre os mesmo..3

Uma vez aceito o ponto de vista da física fenomenológica, a teoria científica só pode ser aceita como um gigantesco apoio de memória, ou seja como um meio para trocar ordem por desordem codificando observações e leis segundo um sistema artificial e ordenando assim nosso conhecimento com um número relativamente pequeno de princípios fundamentais. Esta simplificação, introduzida por um esquema, o qual, por imperfeito que possa ser, nos permite deduções a partir dum reduzido número de princípios primeiros, tornando as teorias úteis do ponto de vista prático.4

Mas, contesta subitamente Rücker, é possível obter tais vantagens graças a axiomas, teorias baseadas em ideias completamente falsas?5 Uma situação que a filosofia da ciência bem conhece. Basta aqui um exemplo:6

Um geógrafo estuda a direção de um rio em se servindo de um mapa no qual os rios são indicados na cor azul. Nosso geógrafo está profundamente convencido que o mapa reflete a região que está a estudar a ponto de considerar que os rios são realmente azuis. Convicto disso ele determina a direção do rio. Direção exata, se for um bom mapa, mesmo se a dedução do geógrafo decorreu de uma falsa premissa.

Como o geógrafo do exemplo, comporta-se em geral o cientista, pelo menos o físico, que, observa Rücker, se habilita de representações da realidade dotadas de uma propriedade paradoxal; uma tal representação ou modelo, é por um lado extremamente diferente daquilo que são as coisas realmente; por outro lado, mesmo se a correspondência entre o modelo e o comportamento das coisas que deve representar, é provavel-mente imperfeito, contudo um é o fac-símile do outro.7

A correlação dos fenômenos naturais não pode ser compreendida na sua plenitude, mas pode ser explicada na medida em que possa ser imitada pelo modelo com boa margem de sucesso. Um modelo é um instrumento imaginário, construído artificialmente pelo homem, que pode ser aplicado ao setor da realidade em estudo justamente para que o comportamento das coisas que representa, ou seja, que imita, possa ser previsto graças à parte correspon-dente desse instrumento imaginário. 8

Os rios reais representados sobre o mapa não têm a mesma natureza, ou seja, não são feitos da mesma substância; mas o traço azul sobre o mapa imita curso d’água com precisão suficiente para permitir ao geógrafo prever a direção dos rios. Num segundo momento refletindo sua própria atitude, o geógrafo cessa crer ingenuamente que o rio é azul e reconhece que sobre um mapa criado artificialmente pelo homem, é uma coisa (azul) que se comporta como a coisa real (o rio). Está pronto então para a fase seguinte, a que permite ao cientista abandonar sua atitude ingênua em favor de uma atitude crítica.

Deixemos a metáfora, se as leis da elaboração do modelo podem ser expressas por abstrações, como, por exemplo, formulas matemáticas. Uma vez obtidas tais formulas, podemos abandonar o modelo ... simplesmente instrumento auxiliar, útil para obter as equações, podendo ser abandonado uma vez construído o edifício dos símbolos matemáticos. 9

Uma vez adotado este ponto de vista, a física fenomenológica, tendo agora renunciado à tentativa de conhecer a natureza dos objetos mais que nos cercam além dos possíveis de se obter por observação direta, mas que nos permitem conhecer como se comportam em dadas circunstâncias. 10

O geógrafo entende que para determinar a direção do rio, nenhuma hipótese quanto a natureza do mesmo é necessária, nem o é saber se de fato é de cor azul ou mesmo de água, mas é necessário dispor de um sistema de símbolos que permitam deduzir sua direção. O mapa resume, congrega todos os fatos observáveis sobre seu curso d’água.  A física fenomenológica passa assim ao modo naturalista de pensar, ou mais precisamente à perspectiva concernente ao conhecimento da natureza. Lenin chama agnosticismo. Rücker diz a propósito:

Sem dúvida que esse seja o caminho mais fácil a seguir. Qualquer crítica é proibida, se, desde o início, admitamos não poder ir além das aparências; que nada podemos conhecer sobre a constituição dos corpos materiais; mas devemos nos contentar em formular uma descrição de seu comportamento graças às leis da natureza expressas em equações. 11

A reconstituição feita por Rüker da posição fenomenológico-agnóstica serviu para defender a concepção mecanicista, em particular da teoria atômica que ele estima essencial ao progresso da ciência. Postulados da crítica fenomenólogica resulta necessariamente em que a forma a mais elevada de teoria é aquela que doravante renuncia formar uma imagem mental clara da constituição da matéria. Aquela que expressa observações e leis naturais pela linguagem e pelos símbolos que conduzem a resultados verdadeiros, independente de qual seja nossa concepção da natureza real dos objetos em questão.
 
Desse ponto de vista, a teoria atômica não resulta tão falsa que desnecessária: ela pode ser considerada como uma tentativa de dar precisão contra a natureza de ideias vagas  que deverão continuar vagas. 12

Duas observações aqui se impõem: para evidenciar a proximidade e ao mesmo tempo a extrema distância entre Lenin e Rücker.

1) Rücker toca, nas palavras acima abordadas, o cerne de um problema destinado a reaparecer várias vezes na reflexão sobre a ciência do século XX. Aquele da neutralidade teórica da ciência, entendida por neutralidade teórica.13  A afirmação que as visões de mundo são essencialmente equivalentes, ou melhor, insignificantes para o desenvolvimento das distintas teorias científicas. Ponto de vista que pelo menos implica uma perspectiva da física fenomenológica, um princípio extensível à biologia, psicologia etc., e culmina numa atitude de tipo fenomenológico, acentuando a insignificância de nossa concepção da natureza real dos objetos considerados.

2) Rücker defende explicitamente a concepção mecanicista, em particular teoria atômica, na medida de estar convencido da legitimidade intrínseca da mesma. Contestar física fenomenológica e concepção mecanicista é uma verdadeira e justa luta em favor da verdade.14   Nessa luta o enfoque da física fenomenológica trata a matéria somente como nossos sentidos a conhecem e não pretende ir além da superfície. A passagem é amplamente ultrapassada por Lenin uma vez que a sensação é admitida como um primum, para fazer dessa nova física uma arma de ataque ideal do idealismo filosófico, Sobre esse ponto Rücker observa:

a) No que concerne a questão da constituição da matéria – e do modo que pode ser representada com precisão, devemos por em princípio uma vez por todas que a natureza das coisas é e deve restar ignorada;

b) mas não resulta imediatamente disso que sob a complexidade dos fenômenos superficiais que tocam (afetam) nossos sentidos não possa existir um mecanismo mais simples de existência do qual possamos obter uma prova indireta, naturalmente, mais decisiva.15

Quanto aos pontos a) e b) as convergências e divergências de Lenin e Rücker são significativas. Sobre o ponto a) a teoria oposta à vontade do materialismo dialético reconhecendo os limites que um programa dado de pesquisa enfrenta como limites internos ao mesmo, em certas condições históricas, e não como limites absolutos do conhecimento humano em sí (cf.§ 3. 2.);

Em b), Rückert esclarece como, mesmo premissas de uma filosofia que admite esses limites, não resulta necessariamente a impossibilidade de construir imagens sempre mais adequadas (ou pelo menos sempre mais simples) da realidade, em aprofundamento de nossas ideias sobre a constituição da matéria além da superfície das aparências.

A questão controvertida na reflexão filosófica sobre a ciência da natureza ao início do século XX se expressa no seguinte dilema: As hipóteses que constituem a base das teorias científicas atualmente mais difundidas devem ser consideradas como descrições precisas da estrutura do mundo que nos cerca (exata descrição da constituição do universo que nos cerca) ou somente cômodas (convenientes) ficções.16

Rücker responde: descrições da estrutura do mundo, exatas até cero ponto. Citando justamente essa passagem para uso contra os companheiros, russos de Mach, Lenin retoma a questão: Para empregar os termos de nossa discussão com Bogdanov, Iouchkévitch e Cia: são cálculos da realidade objetiva, da matéria em movimento ou trata-se tão somente de metodologia, puro símbolo, formas de organização da experiência ? 17

Lenin retoma aqui o termo calculo diretamente de Rücker: o que é extremamente significativo. Para esclarecer a oposição entre as duas escolas, Lenin empresta o termo fundamental de uma passagem de Rücker onde afirma que nós temos razão para estimar que o esboço que nos dá a ciência, é em certa medida uma cópia (copy) e não um simples diagrama da verdade.18

Quando o geógrafo descobre que o rio não é constituído de cor azul, mas de água, ele certamente não precisa para tanto se servir de um mapa, entretanto, ele sabe indubitavelmente qualquer coisa sobre o rio: e é o rio e não o mapa o objeto de sua pesquisa. Adotar um concepção adequada dos objetos físicos constitui um sólido ponto de referência, mesmo se isso não tenha imediatamente consequências práticas.   O que não exclui finalmente que pesquisas e reflexões ulteriores possam fornecer uma representação mais precisa que a precedente, mais aproximada da realidade.

Aquilo que em Rücker é oposto entre a teoria atômica, ou seja, a física do mecanismo, por um lado e por outro é a física fenomenológica. Já em Lenin é uma oposição de tipo puramente filosófico entre uma física realista, da qual Rücker é o representante, e uma física simbolista, ou seja, fenomenista, para utilizar a terminologia de Ward.  Lenin escreve: a diferença entre as duas escolas da física contemporânea é somente filosófica, somente gnosiológica. A diferença fundamental entre as duas escolas consiste somente no fato que uma admitia a realidade “ultima” (deveria se dizer a realidade objetiva), refletida por nossa teoria19, enquanto a outra a nega e considera a teoria somente como uma sistematização de experiências, um sistema de empíreo-símbolos, etc.  20

Se, portanto Lenin traduz a natura última de Rücker como realidade objetiva, porque não também copia como reflexo ? 21   A ideia fundamental que nossas ideias refletem os objetos reais, ponto de ruptura com os partisans russos, de Mach mas também com a tradição empirista remontando a Berkeley nasce ela então, em Lenin, da retomada da temática realista, como aquela de Rücker, contra a física fenomenológica e suas conclusões anti-materialistas?

Atenção: a concepção de mundo e imagem da ciência do burguês Rücker não tem certamente nada a ver com o materialismo dialético de Engels, mas provém de uma forma de realismo mais difundida entre os físicos ingleses contemporâneos de Maxwell, uma forma de realismo considerada por seus adversários, como James Ward, como quase medieval.

O aspecto interessante da utilização de Rücker por Lenin reside no fato  do mesmo por sua proximidade com Rücker considera a oposição entre idealismo e materialismo no terreno das teorias científicas de seu tempo, visando uma solução adaptada à prática seguida pelos cientistas que lhe foram contemporâneos, sem dever portanto tomar a posição de Rücker a qual o idealista Ward 22, talvez com um pouco de razão, difama como metafísico.


N o t e s :

1. Berkeley, The Analyst, 50, Qu. 31, London-Dublin, 1734.

2. Lénine, Œuvres complètes, t. 14, p. 285, 286.

3. Arthur W. Rücker, Presidential adress, allocution présidentielle. The British Association at Glasgow, 1901, in The Scientific American Sup-72 planent, 1901, e 1 345 et 1 346, p. 21 561, Arthur William Rucker (18481916), professor de física em Leeds, depois em Londres, se ocupou em particular de géofísica e de eletromagnetismo.

4. Ibidem.

5. Ibidem.

6. Este exemplo é de Rücker e foi retomado por Lenin, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

7. Rücker, op. cit., p. 21 561.

8. Ibidem.

9. Ibidem.

10. Ibidem. 

11. Ibidem.

12. Ibidem. Esta citação e as precedentes foram tiradas do terceiro parágrafo do relatório de Rücker, intitulado La construction d'un modèle de la nature.

13. Segue aqui a distinção introduzida por L. Geymonat, em Scientia, septembre-octobre 1972, p. 753, que ele retoma em Scientia, janvier-février 1973, p. 7.

14. Rücker, Struggle for the truth.

15. Riicker, op. cit., Esta citação é tirada do quarto parágrafo do citado relatório (Degrés successifs dans l'analyse de la matière).

16. Riicker, ibidem, p. 21 561, no início do terceiro paragrafo.

17. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

18. Rücker, op. cit., p. 21 561

19. C'est moi qui souligne.

20. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 290.

21.  Em russo (Lenin) como em inglês (Rücker), existem dois termos distintos para cópia e reflexo;  kopiha corresponde a copy e otratenie a reflection, o termo leninista de reflexo. Como veremos nos parágrafos 3 e 4, a noção de Lenin difere profundamente em vários aspectos da de Rücker.

22. James Ward (1843-1925), psicólogo e metafísico inglês, engajado numa interpretação de mundo no sentido teísta.


OBS. A seguir Partes II, III, e IV.