domingo, 29 de setembro de 2013

INTERESSE PELO ANTIG0 – Parte II.

Frank Svensson – Brasília 2001.



Vista aérea da Villa Médicis, onde funcionava a Academia Francesa em Roma. Montigny, laureado bolsista do Prix de Rome, foi designado Secretário da Academia pelo Clube dos Artistas Revolucionários de Paris. In Falda: Giardini de Roma.

Estado da propriedade – Fim do século XVI, início do século XVII.

Acesso aos jardins da Academia. Da parte posterior do prédio vê-se |Roma.


Estado dos jardins no século XVII. Gravura de Falda.

A aproximação com a antiguidade era entusiástica, porém desconexa. O reconhecimento da importância do conhecimento histórico quanto à arquitetura implicava saber escolher, na grande variedade de elementos arquitetônicos, os apropriados, corretos. Implicava abandonar os cânones da composição da arquitetura clássica e discutir se proporções e ordens enunciadas por um teórico eram preferíveis às enunciadas por outro.

Sobretudo em mansões de banqueiros ou outros favorecidos pelo capitalismo ascendente e contrariando hábitos de velhos arquitetos, os jovens aplicaram com liberdade valores e elementos observados na. arquitetura da antiguidade. À medida que a clientela dos arquitetos aumentava, abandonava-se a padronização desses elementos que constituíram a característica essencial da arquitetura clássica.

Em que pesem as implicações dos câmbios econômicos, as mudanças de expressão arquitetônica ligaram-se a questionamentos de ordem conceptual e a uma nova forma de saber: o conhecimento histórico. Necessitava-se esclarecer como ordenar e dar praticidade às informações advindas da leitura da arquitetura da antiguidade.

Voltaire (François Marie de Arouet) é visto como pai da historiografia, primeiro historiador moderno. Seus livros Luís XIV e sua Época (1751) e Ensaio de História Geral e dos Costumes (1754) indicam um novo enfoque da história e permitem abrirem-se caminhos para o pensamento arquitetônico.7

Voltaire mostra a transformação (el cambio) como elemento a ser considerado fundamental pelo conhecimento histórico; que como expressão de mudança da realidade o câmbio lhe é mais característico do que a condição permanente. A história da arquitetura passou a se preocupar com sua evolução. Em meados do século XVIII, os arquitetos veem a arquitetura como seqüência de formas cambiantes. Passa-se a querer ajudar a história propondo formas novas revolucionárias como as de Ledoux, Boulée e Lequeu.8


Tido como historiador social pioneiro, Voltaire preocupava-se mais com o progresso cultural do que com sucessos políticos e militares. Em Luís XIV e sua Época, nos 3 capítulos sobre Belas Artes, quase não menciona a arquitetura. No artigo "Historia", de A Enciclopédia, afirma que a história da arte é a mais útil delas, e se torna o primeiro a incorporar a história da arte à da civilização. O enfoque de Voltaire não favorece meramente a descrição do havido. Inclui a crítica sobre o havido, excluindo de seu interesse fábulas que julgara serem a base do fanatismo, da credulidade. No havido estava o que devia ser valorizado e o que podia ser desprezado. Noutras palavras, o conhecimento histórico exigia formulações teóricas que definissem o que considerar prioridade. Ate então não se duvidara da explicação mítica de Vitruvius nem da explicação de Tito Lívio sobre as origens de Roma.



C. N. Ledoux: Habitação para trabalhador rural. Maupertui, (-1780).




E. L. Boullée: projeto de cenotáfio para Isaac Newton, 1784,
.

Como comprovar a autenticidade de origens e fatos históricos substituiu as velhas mitologias pelos argumentos racionais. As formas da antiguidade consideradas autênticas foram tomadas como protótipos históricos reais. A pesquisa das origens históricas da arquitetura passou a ser tanto ou mais importante que a leitura dos 10 livros de Vitruvius.9

Os textos de Voltaire reportam-se à ideia de progresso como tendência, no sentido do aperfeiçoamento. O avanço na ciência e na indústria estimulou os pensadores a sustentarem-no para as artes, e Voltaire concebeu a história como universal. Antes dele, história universal relacionava-se essencialmente a cristianismo. Do mesmo modo, o que se escreveu sobre arquitetura ficou limitado às formas dos elementos de uso comum. Criticando Bossuet por não haver mencionado muçulmanos e hindus, Voltaire abriu caminho para estudos de todas as civilizações, à parte a relação com a cultura greco-romana. A arquitetura, em qualquer cultura, passou a interessar ao conhecimento arquitetônico.

A Idade Média chamou a atenção de Voltaire. As teorias arquitetônicas da Renascença haviam desprezado a arquitetura medieval. Ele englobava como importantes não só as culturas de todos os povos, como as de todos os tempos. Mais tarde na Inglaterra (não na França) desenvolveu-se rapidamente o interesse pela arquitetura medieval, induzindo os novos industriais a quererem mansões em estilo neogótico. Deve-se a Voltaire a atitude nova de respeito ao oriental e aquilo que os ocidentais viram como exótico. A idealização daquilo que está distante no espaço e no tempo veio a ser um dos principais traços do romantismo arquitetônico. A busca racionalista de instrumentos teóricos para formular o conhecimento histórico surgia mesclada de considerações sensoriais.

O pensamento de Voltaire integra os câmbios ligados à ascensão da burguesia inicialmente progressista. O novo conhecimento histórico desencadeado por suas teorias e vital para se entender a arquitetura ligada às grandes revoluções democráticas burguesas e está também na base da teorização do romantismo que tão fortemente a caracterizou.

Voltaire indicava a antiguidade como maior fonte do belo e do autêntico em arquitetura. Bonaparte queria transformar Roma em capital do Império Francês e do Mundo. Iniciava-se a História do restauro e da preservação arquitetônica.


Coliseu – Arena após escavações. S. Pomardi 1813. Bibliotecca degli Annali  dell’ Instituto di correspondenza archeologica. Roma. Foto C. Guidotti.

Coliseu – G. Balzar 1822. Bibliotecca degli Annali  dell’ Instituto di correspondenza archeologica. Roma. Foto C. Guidotti.

Forum Romano, 1822. L. Rossini - Bibliotecca degli Annali  dell’ Instituto di correspondenza archeologica. Roma. Foto G. Guidotti.

Forum Romano, 1829 G. Cottafavi - Bibliotecca degli Annali  dell’ Instituto di correspondenza archeologica. Roma. Foto G. Guidotti.

Forum Romano. Plano de G. Valadier. 1821. Archivo di Statto Romano. Foto J. Jonsson.

Trabalho forçado em Roma. Foto T. Thomas. Paris 1830.


Escavação do templo de Júpiter Stator, com trabalhos forçados. Bridgens, 1820. Foto Museu di Roma.


N o t a s :

9. L. Hautecoeur - História Geral da Arte. São Paulo, 1964.

10. P. Collins: Los Ideales ele la Arquitectura Moderna; Evolución (1750-1950).

11. Ídem.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

INTERESSE PELO ANTIGO – Parte I.


Frank Svensson – Brasília 2001.


A antiguidade ocupou o pensamento dos arquitetos, desde o século XVIII. A obra de Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto e engenheiro romano do século I A.C., no século XVI mereceu 26 edições, no século XVII outras 10, e no seguinte a quantidade novamente aumentou.1

Inicialmente esses livros serviram de base para levantamentos, documentação e para a reconstrução de monumentos arquitetônicos. Arquitetos, artistas plásticos e escritores de várias nacionalidades afluíam a Roma para aprender in loco. Em 1666, por iniciativa de Jean-Baptiste Colbert (1619-83), no reinado de Louis XIV, a França instituiu na Itália uma academia própria, para a qual enviava artistas e arquitetos promissores. Desenvolviam uma pós-graduação da época, após julgados aptos a merecer o Prix-de-Rome.2

Colbert, ministro das Finanças e ministro da Marinha, dos Portos e das Colônias, dirigia as artes na França. Antes de instituir a Academia Francesa em Roma, fundara a Academia de Arquitetura em Paris, dando a direção a François Blondel (1617-86). À Academia de Arquitetura incumbia elaborar uma doutrina cujos princípios fossem ensinados aos alunos -- e aplicados nos edifícios do rei -- ou àqueles que solicitassem opiniões sobre edifícios e projetos. A doutrina emergente foi mareada pelo enfoque racionalista, enfrentando o belo como problema maior. Como determinar beleza arquitetônica?

Louis Jean Desprez – Templo de Juno em Agrigento. Em Voyage pittoresque on description des royomes de Naples et de Sicile. Paris 1885.



Para resolver isto, os arquitetos deveriam inspirar-se na antiguidade. Para voltar aos bons princípios dirigir-se-iam aos antigos, e Colbert passou a enviar arquitetos para conhecer os edifícios romanos. Das determinações estabelecidas aos bolsistas constava a obrigação de fazerem levantamento de obras da antiguidade, e no século seguinte exigiu-se que os levantamentos fossem rigorosos, para permitirem restauro preciso e conservação das obras.3

Além dos de Vitruvius, vários livros foram sendo publicados visando ensinar como eram arquitetura e monumentos da antiguidade. Em 1682, Antoine Desgodetz publicou Les Édifices Antiques de Rome. Entre muitos outros que publicaram depois, Grandjean de Montigny, após ser arquiteto emissário de Napoleão na Vestefália do Norte e vir ao Brasil na missão francesa, escreveu Architecture Toscane (1815) e Le Recueil des plus Beaux Tombeaux Exécutés en Italie dans les XV et XVI Siècles.4


Capa do livro de Grandjean de Montigny e Antoine Famin publicado em Paris 1815.


Roma passou a ser prioridade de visita para os que se queriam cultos. Lá se estabeleceram cidadãos estrangeiros habilitados (principalmente ingleses, franceses e alemães) a servir de guias aos compatriotas visitantes. Atrações obrigatórias eram os museus pontifícios do Vaticano e do Capitólio e as ruínas em Roma e cercanias. Em 1720 iniciaram-se as escavações dos antigos palácios imperiais do Palatino e anos após as da mansão de Adriano, em Tivoli. Em 1738 reencontrou-se a antiga Herculaneum sob a cidade de Portici. Uma década depois se escavou Pompéia.

Na Inglaterra de 1732 foi fundada The Society of Dilettanti, no começo um clube de viajados turistas, que com o tempo congregou viajantes ricos para financiar escavações e publicações a respeito.5

Depois da queda de Constantinopla e de os turcos conquistarem a Grécia em meados do século XV, eram raras as visitas à Hélade. Era restrito o conhecimento de sua antiguidade. Em 1751, dois membros da Society of Dilettanti foram a Atenas interessados em produzir um trabalho correspondente ao de Desgodetz sobre Roma.  James Stuart, arquiteto, e Nicholas Revet, arqueólogo, fizeram levantamento dos monumentos de Atenas. Quando Stuart e Revet publicaram The Antiquities of Athens (1.0 vol.), já se havia divulgado material antigo e levantamentos sumários: Le Roy: Ruines des plus Beaux Monuments de la Gréce (1758) e Sayer: Ruines of Athens (1759), contribuições representativas para que aumentasse, às custas da romana, o interesse pela arquitetura grega.

Palácio público em Siena, desenho do livro de Montigny sobre arquitetura toscana.



Roma deixou de ser ponto final de interesses turísticos e se tornou passagem para o Oriente. Johan Joachim Winckelman (1717-68), estudando arte grega na própria Itália, não foi mais longe do que a Roma. Sua monumental História da Arte da Antigüidade fez a Europa admirar a Grécia, embora idealizada, descrita no estilo que ele mesmo atribuiu à sua arte. Em Vila Albani e nos pontifícios museus estudou-a sob forma (em parte) de cópias romanas, formulando teorias sobre a supremacia da arte helênica.


Não pode passar despercebido o caso de Grandjean de Montigny. Nascido em Paris, no bairro onde estavam sendo edificadas as mansões da burguesia parisiense, e tendo vivenciado intensamente a revolução em 1789, perguntava-se quanto a esse tipo de arquitetura ainda na Itália. Independentemente de outras particularidades, sua motivação ratificava-lhe o interesse pelas primeiras construções em Florença, mandadas erigir pelos Medici, Pitti, Sforzi e outros, primeiros burgueses mercantis da Itália. Escavações e levantamentos, bem como livros daí divulgados, excitaram imaginações. Na arquitetura juntaram-se a doutrinas acadêmicas e determinaram mudanças nas formas e nas teorias arquitetônicas que se ligariam à revolução democrática burguesa. O conhecimento arquitetônico passava a exigir também o conhecimento histórico.


N o t a s :

1. C. Cheschi - Teoria e Historia del Restauro, Roma, 1970. M. Jonsson - Os primórdios da preservação de monumentos. Escavações e restauro de monumentos antigos em Roma 1800-1830. Estocolmo, 1976.

2. H. Lapauze - Histoire de l'Académie de France à Rome - vol. I. Paris, 1924.

3. De acordo com o regulamento da Academia Francesa em Roma (1788).

4. Ver em Arquitetura e Conhecimento, n.º 3. Editora ALVA. Brasília, 1996.

5. Os irmãos James e George Gray participaram das escavações em Herculaneum e divulgaram-nas na Inglaterra. Sobre Pompéia, Sir William Hamilton divulgou Account of lhe discoveries at Pompeii cammunicated to the Society of Antiquaries of London (1777). Lord Charlemont foi pioneiro na visita às ilhas gregas (1749). James Dawkins também visitou precocemente a Grécia. Robert Wood esteve (1742-43) nas ilhas gregas, no Egito, na Síria e na Mesopotâmia; publicou The Ruins of Palmyra (1753) e The Ruins of Balbec (1757). Entre 1762 e 1816, Stuart e Revett  publicaram The Antiquities of Athens. Richard Payne contribuiu para se ver com novo olhar os templos dóricos na Sicília.

6. J. J. Winckelmann trabalhou em Roma (1755-68) e descreveu observações em Sendschreiben von den Herculanischen Enteckungen (1762) e Neue Nachrichten von den Neuesten Herkulanischen Entdekungen (1764), Ver O. M. Carpeaux – “Classicismo e Anticlassicismo” em Literatura Alemã. São Paulo, 1994.


     


sábado, 14 de setembro de 2013

CULTURA E DESENVOLVIMENTO -- PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL

Benedito Tadeu de Oliveira -- arquiteto graduado pela Universidade de Brasília – UnB (1980) e doutor em restauração de monumentos pela Universidade de Roma – “La Sapienza” (1985). É servidor da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz desde 1987 e foi diretor do IPHAN de Ouro Preto/MG (2002 – 2009).

Resumo:

Um dos grandes desafios da atualidade é a conciliação entre desenvolvimento econômico e preservação do patrimônio cultural. Essa preocupação está presente em diversos documentos e em particular no Manifesto de Amsterdã de 1975, ou Carta europeia do patrimônio arquitetônico que foi promulgada pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa. O documento lançou o princípio da Conservação Integrada propondo a utilização de medidas de toda ordem; legislativa, administrativa, financeira, técnica e educativa para a implementação de uma vigorosa política de preservação do patrimônio arquitetônico europeu. O presente artigo tenta descrever de maneira sucinta a política de preservação do patrimônio cultural brasileiro nas vertentes do patrimônio imaterial e material, móvel e imóvel e nas diversas esferas governamentais; federal, estadual e municipal. E aponta para uma outra preocupação atual: necessidade de incorporação da preservação cultural na agenda do desenvolvimento sustentável. Palavras chave: cultura, patrimônio, desenvolvimento.

A nobre tarefa de preservar, divulgar e valorizar o rico patrimônio cultural brasileiro, coube ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -- IPHAN, que foi criado por Decreto -- Lei nº 25 de 30 de novembro de 1937. No primeiro Governo Vargas, o então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema nomeou Rodrigo Melo Franco de Andrade para organizar e dirigir o Instituto que contou com a colaboração dos maiores intelectuais e artistas brasileiros da época: Mário de Andrade, Lucio Costa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos, Prudente de Moraes Neto, dentre outros.

O trabalho de identificar, inventariar, restaurar, preservar, valorizar e divulgar os bens culturais brasileiros revelou-se imenso em função das dimensões continentais do País, da sua diversidade, variedade e riqueza de acervo. Esta missão de conservar os nossos bens culturais faz se necessária para a preservação da memória e da identidade nacionais e para transmiti-las às futuras gerações de brasileiros. Fazem parte do nosso patrimônio cultural os bens materiais imóveis como os monumentos, os museus, os centros culturais, os conjuntos arquitetônicos, os jardins históricos, os parques nacionais, os sítios históricos e arqueológicos e ainda os bens culturais móveis como os documentos manuscritos e iconográficos e as obras de arte, como pintura e escultura. O trabalho do IPHAN abrange cerca de 21 mil edificações tombadas, 79 centros e conjuntos urbanos, 9.930 sítios arqueológicos cadastrados, e além de 37 sítios históricos e reservas ambientais declarados como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura -- UNESCO.


Fig. 1 – Vista de Ouro Preto, Patrimônio Cultural da Humanidade. Foto Benedito Tadeu de Oliveira, acervo Museu de Arte Sacra, Paróquia do Pilar.

Até a criação do Instituto Brasileiro de Museus -- IBRAM em 2009, o trabalho do IPHAN envolvia também a preservação de mais de um milhão de objetos, incluindo acervo museológico e a administração de 30 museus. Hoje cerca de 834.567 volumes bibliográficos, ampla documentação arquivística e inúmeros registros fotográficos, cinematográficos e videográficos, estão sob a responsabilidade do IPHAN e do IBRAM, que é uma autarquia vinculada ao Ministério da Cultura responsável por desenvolver e aplicar a Política Nacional de Museus. O IBRAM foi criado por meio do desmembramento da antiga Diretoria de Museus e as Unidades Museológicas do IPHAN.


Fig. 2 – Sítio arqueológico do Morro da Queimada, Ouro Preto, MG. Foto Raphael Aston, acervo Museu de Arte Sacra, Paróquia do Pilar.

Os tombamentos, as regulamentações das áreas tombadas e de entorno, os registros, os inventários e os planos de proteção são os instrumentos utilizados para conservar o patrimônio histórico e artístico nacional. Os bens culturais brasileiros protegidos pelo IPHAN estão inscritos nos seguintes livros de tombo: Arqueológico e Etnográfico, Histórico, Belas Artes e Artes Aplicadas. Para auxiliar o IPHAN na gigantesca tarefa de preservação do acervo cultural brasileiro, foram criados a partir da década de 1960 diversos institutos estaduais de patrimônio.




Fig. 3 – Antiga Diretoria Geral de Saúde Pública - DGSP, tombado pelo Instituto Estadual de Patrimônio Cultural, INEPAC/RJ. Foto Benedito Tadeu de Oliveira, acervo INCA.




Em Minas Gerais o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico - IEPHA preserva os bens culturais de importância regional. Minas é o estado pioneiro no programa de municipalização do patrimônio cultural por meio da Lei do ICMS cultural conhecida também como Lei Robin Hood. Essa lei determina que 1% de todo o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) recolhidos em Minas Gerais seja repassado às prefeituras tendo por indicadores a população de cada cidade e sua atuação na preservação patrimonial e ambiental. Outra iniciativa do IEPHA de grande importância para a conservação dos bens culturais mineiros é o incentivo para que os próprios municípios criem os seus conselhos municipais de preservação de patrimônio cultural.


Fig. 4 – Sítio arqueológico da Pedra do Índio, Extrema, MG. Foto Benedito Tadeu de Oliveira, acervo Departamento Municipal de Cultura.

O estado de Minas Gerais possui hoje os seguintes bens culturais inscritos pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade: cidade histórica de Ouro Preto (1980), Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo (1985) e centro histórico de Diamantina (1999). A Lei nº 8.313/91, mais conhecida como Lei Rouanet é outro instrumento valioso de incentivo à cultura permitindo que os projetos aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) recebam patrocínios e doações de empresas e pessoas físicas, que poderão abater, ainda que parcialmente, os benefícios concedidos do imposto de renda devido. A preservação do patrimônio cultural brasileiro está garantida também pela Constituição Federal de 1988 por meio dos seguintes artigos:

Art. 216 -- Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais incluem: V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. & 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Art. 30 -- Compete aos Municípios: IX -- Promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

De grande importância para a preservação do patrimônio cultural urbano brasileiro é a Lei nº 10.257, de 10/07/2001 conhecida como Estatuto da Cidade que estabelece o Plano Diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Essa lei regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e no seu artigo 41 estipulou até outubro de 2006 para que todos os municípios brasileiros elaborassem os seus planos diretores desde que estivessem em uma das seguintes categorias: população com mais de vinte mil habitantes; serem integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas; pertencerem às áreas de especial interesse turístico e estarem inseridos em áreas de empreendimentos ou de atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

A responsabilização dos municípios para que preserve o seu patrimônio cultural urbano é uma política que há muitos anos tem provocado resultados eficientes em países da Europa como, Portugal, Espanha, França e Itália, resultando em um vigoroso programa de preservação dos seus bens culturais. Nesses países os Planos Diretores tem se tornado valiosos instrumentos de preservação dos seus patrimônios cultural urbano. Na Itália a legislação sobre a matéria avança no sentido de se estabelecer o planejamento territorial envolvendo dessa forma a preservação dos bens culturais de um conjunto de municípios englobando também suas zonas rurais.


Fig. 5. Pastel sendo frito em barraca em frente à Rodoviária de Pouso Alegre, MG. Foto Liliane Corrêa, acervo Secretaria Municipal de Cultura.

A questão da preservação dos bens culturais brasileiros está presente ainda em artigos específicos de diversas constituições estaduais e leis orgânicas municipais. A legislação sobre preservação do patrimônio nas diversas esferas públicas tem como objetivo retirar as cidades brasileiras das rotas das expansões desordenadas e destrutivas e colocá-las no caminho do desenvolvimento e da preservação sustentável. É perfeitamente possível e necessário conciliar o desenvolvimento territorial urbano com a preservação do valioso patrimônio cultural brasileiro. Outra tarefa urgente e de grande envergadura é o mapeamento cultural do Brasil. O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial foi instituído por meio do Decreto nº 3.551 de 4 de agosto de 2000 para viabilizar projetos de identificação, inventário, registro, salvaguarda e promoção do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Os bens da cultura imaterial estão sendo classificados da seguinte forma: -- saberes, atividades desenvolvidas por meio de técnicas e materiais que identificam determinados locais ou grupos sociais; -- celebrações, festividades ou rituais desenvolvidos por atores sociais por meio de técnicas e matérias primas que identificam um lugar ou um grupo social; -- lugares, espaços onde se desenvolvem atividades de diversas naturezas constituindo referências para as populações locais; - formas de expressão, modos de comunicação de um determinado grupo social ou de um lugar que se manifestam por meio da música, da literatura ou pelas artes cênicas e plásticas. O registro e o inventário dos bens culturais de natureza imaterial são instrumentos importantes para a elaboração dos seus planos de salvaguarda e incentivo que podem ser implementados por meio de apoios institucionais e materiais garantindo assim a transmissão desses bens para as futuras gerações. 

O IPHAN registrou os seguintes bens culturais de natureza imaterial: -- no Livro dos Saberes; Modos de Fazer da Viola-de-Cocho (agosto de 2000), Ofício das Paneleiras de Goiabeiras em Vitória, Espírito Santo (dezembro de 2002) e Ofício das Baianas de Acarajé na Bahia (dezembro de 2004); -- no Livro das Celebrações; Círio de Nazaré de Belém do Pará (setembro de 2004); - no Livro das Formas de Expressão; Arte Gráfica Kusiwa, pintura corporal dos índios Wajãpi do Amapá (dezembro de 2002), Samba de Roda do Recôncavo Baiano na Bahia (setembro de 2004) e Jongo do sudeste (setembro de 2005). Já foram realizados os seguintes planos de salvaguarda: Arte Kusiwa -- pintura corporal e Arte Wajãpi, Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Ofício das Paneleiras de Goiabeiras e Viola-de-Cocho. A Convenção Internacional para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial foi adotada na Conferência Geral da UNESCO em outubro de 2003 e depois de ser ratificada por 30 países entrou em vigor em 20 de abril de 2006. A Convenção completa o padrão dos instrumentos determinados pela Unesco para a Preservação do Patrimônio Cultural e tem como objetivo salvaguardar as tradições e expressões orais incluindo a língua como um veículo de patrimônio imaterial cultural; artes perfomáticas; práticas sociais; rituais e eventos festivos; conhecimentos e práticas referentes à natureza e ao universo e o artesanato tradicional.


Fig. 6. Baianas. Foto Francisco Costa Moreira, acervo IPHAN.

Em fevereiro de 2006 o Congresso Nacional ratificou e promulgou o texto da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial por meio do Decreto nº 5.753/2006. Em 29 de junho de 2006, juntamente com outros 17 países o Brasil foi eleito integrante do Comitê de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco. A Arte Gráfica Kusiwa dos índios Wajãpi do Amapá recebeu da UNESCO o título de obra prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.

O estado de Minas Gerais há algum tempo trabalha com a preservação de bens culturais de natureza imaterial. Acionado pela Associação dos Amigos do Serro -- AASER, o IEPHA investigou e interpretou o modo de fazer do queijo do Serro, registrando-o como o primeiro patrimônio imaterial do estado em 2003. Ainda em Minas Gerais alguns municípios já trabalham na preservação do seu patrimônio imaterial como o de Cambuí que elabora estudos para o registro do Virado de Banana, o de Pouso Alegre que registrou o Pastel de Farinha de Milho e o de Ouro Preto que registrou os Doces Artesanais da região de São Bartolomeu e trabalha nos seguintes projetos: - Acordo Popular que envolve doze festas tradicionais e religiosas da cidade que foi financiado pelo Programa Monumenta; -- Congados e Folias com o projeto específico Festa da Coroação do Chico Rei financiado pelo Fundo Nacional de Cultura envolvendo as oficinas de Construção de Tambores, Indumentária e Culinária Afro.

Dentre os últimos Processos de Registro no IPHAN destacam-se os seguintes: -- em Minas Gerais, Cantos Sagrados de Milho Verde, Queijos Artesanais e Linguagem dos Sinos das cidades históricas; -- em Goiás, Alfenim e Empada ou Empadão de Goiás; -- em Pernambuco, Frevo, Feira de Caruaru e Mamulengo; - em São Paulo, Sanduiche de Bauru; - na Bahia, Teatro Popular de Bonecos Brasileiros, Feira de São Joaquim de Salvador, Capoieira, Circo de Tradição Familiar/ Nacional; -- na Paraíba e no Rio Grande do Norte, Mamulengo; -- no Maranhão, Cuxá; -- no Pará, Festival Folclórico de Parintins dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso; -- no Rio de Janeiro, Samba Carioca -– Jongo, Capoieira, Circo de Tradição Familiar/Nacional.

O conceito de patrimônio cultural ampliou-se consideravelmente nas últimas décadas.  A adoção da transversalidade como princípio e as leituras territoriais como meio, onde os aspectos naturais e culturais se entrelaçam, tornaram as abordagens mais complexas e múltiplas. Seja em sua dimensão material estendendo a ação preservacionista a um espectro maior de bens em várias escalas, como, por exemplo, -- nas paisagens e itinerários culturais -- seja em sua dimensão imaterial, cujos avanços foram notáveis, no registro, salvaguarda e difusão de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares que constituem o cerne das culturas em suas diversas manifestações.


Fig. 7. Caboclo de pena. Foto Edgar Rocha, acervo IPHAN.

Pode-se afirmar que na atualidade, a preservação do patrimônio cultural não é apenas mais abrangente, ela reflete com maior intensidade a diversidade, as várias identidades formadoras das nações, povos e etnias. Especialmente aquelas que por estarem vinculadas a agrupamentos sociais restritos, muitas vezes marginalizados e de limitada expressão demográfica e econômica, apresentam riscos elevados de desaparecimento. (Torelly: 2011, 14) Tema de fundamental importância e objeto de discussão atual é a necessidade de que a preservação do patrimônio cultural se torne um dos agentes do desenvolvimento includente e sustentado. Donde se conclui sobre a urgência de compatibilizar e integrar a preservação patrimonial sustentável, com as políticas públicas de saúde, de combate à pobreza e o desemprego; de distribuição de renda; do uso e ocupação racional do solo urbano e rural; e da conservação ambiental. A política atual do IPHAN e dos institutos estaduais e municipais de preservação tem como objetivo a preservação integral e articulada do patrimônio cultural brasileiro constituído de bens móveis e imóveis, materiais e imateriais envolvendo a produção dos diversos grupos sociais e étnicos nacionais. É importante ressaltar que para vencer esse desafio de escala continental é necessária a participação das instituições não governamentais e governamentais das esferas municipal, estadual e federal e sobretudo da população brasileira como protagonista, parceira e guardiã do patrimônio nacional. No mundo em processo acelerado de globalização a preservação do patrimônio cultural brasileiro pode garantir e fortalecer a presença do País na esfera mundial desempenhando tanto o papel de uma ação de política estratégica nacional como também de vanguarda contribuindo para a valorização do patrimônio cultural da humanidade. Obra citada: Patrimônio Cultural e Desenvolvimento Sustentável, org. Luiz Philippe Peres Torelly. Brasília: Edição: IPHAN - Anais nº3, 2011.


Bibliografia:

Brandi, Cesare. Teoría del Restauro. Roma: Giulio Einaudi Editore, 1977.

Carbonara, Giovanni. La reintegrazione dell’ imagine. Roma: Bulzoni Editore, 1976.

Cartas Patrimoniais, org. Isabelle Cury. Rio de Janeiro: Edições Patrimoniais, 2ª edição, 2000.

Ceschi, Carlo. Teoria e Storia del Restauro. Roma: Mario Bulzoni Editore, 1970.

Furtado, Celso. O Capitalismo Global. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1998.

Gurrieri, Francesco. Dal Restauro dei Monumenti al Restauro del Territorio. Firenzi: Sanzoni Editore, 1983.

Patrimônio Cultural e Desenvolvimento Sustentável, org. Luiz Philippe Peres Torelly. Brasília: Edição: IPHAN - Anais nº3, 2011.

Sachs, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2002.

Registro de Bem Cultural Imaterial, Pastel de Farinha de Milho. Coord Isabella Corrêa Dias. Pouso Alegre, MG: Secretaria Municipal de Cultura, 2012.

Site do IPHAN www.iphan.gov.br/

Site do IBRAM www.museus.gov.br/

Site do IEPHA www.iepha.mg.gov.br

domingo, 8 de setembro de 2013

O PROCEDIMENTO ANALÍTICO DE CAMILLO SITTE




George R. Collins, 
Christiane Grasseman Collins.*



Tradução: Frank Svensson.



Um das peculiaridades do livro de Camillo Sitte: City Planning according to Artistic Principles como tratado de Planejamento Urbano é a maneira como extrai princípios universais de exemplos específicos apresentados por antigas cidades. Faz sentido perguntar: de que pontos de vista generalizados, e em que premissas ele baseia suas análises tornando seu livro um documento tão atemporal?  Ele mesmo afirma no prefácio da edição de 1901 que a ideia básica deste livro é a de educar considerando a Natureza e também os velhos mestres em matéria de planejamento urbano.1
Ou seja, planejamento urbano é um exercício artístico e como tal sua prática lucraria com a orientação dada desde imemoráveis tempos a pintores e escultores.

Tal slogan, no entanto, foi entendido de distintas maneiras ao longo do desenrolar artístico dos anos 1889-1901. Sitte deve ter percebido uma ligeira diferença entre o início e o fim desse período.  Certamente em 1901 um artista consideraria algum pintor -- de Polygnotus a Delacroix -- como um reconhecido velho mestre; Natureza entendida não necessariamente como paisagem, por muitos durante o período Art Nouveau como uma ideia de força interior ou uma propriedade orgânica.

Por Natureza Sitte parece referir-se a funções naturais da cidade: o meio ambiente do homem como ser social artisticamente sensível. A questão não se resume a drenagem sanitária ou a fluidez de circulação, mas como criar o algo mais que permite à cidade ser psicológica e fisiologicamente adequada às necessidades de sucessivas gerações de cidadãos usuários quanto a seus encontros e reuniões; ao seu caminhar ao ar-livre para satisfação e fruição individual, etc.  Trata-se, admitamos, de uma imagem de metrópole livre do sinistro caráter que se lhe atribuiu por toda parte no século dezenove. Para Sitte o exemplo de cidades do passado é instrutivo não por particulares estilos de arquitetura e configuração urbana. Ao escrever sobre arquitetura eclesiástica em 1887 observou que o livre ecletismo moderno tornara estilo algo sem sentido – menos para ideias básicas sobre a arte de viver. A contribuição de Sitte, assim como as de Riegl e Wotan em outras artes, foi notável para sua redução do conceito de meio ambiente urbano a aspectos essenciais presentes a qualquer estilo em qualquer época. Assim como esses dois teóricos baseou sua análise no modo de percepção do moderno espectador bem como do período em questão.  Percebe-se após a leitura de ensaio de Sitte em 1887 que, como artista, estava cansado de arquitetura e pronto para planejamento urbano pelo fato deste lhe permitir uma oportunidade única de falar em termos teóricos de arte ao invés de limitar-se a detalhes de específicos estilos históricos. Urbanismo era uma arte de ordenação. Reconhecer esse Homem Medieval, Barroco, ou Romântico é absurdo; desde que os resultados podem variar em cada caso. O método de Sitte é igualmente aplicável na Europa Central, na China, ou no altiplano do Peru. Nesse aspecto ele sem dúvida foi moderno.

Sitte era fascinado por perspectiva, especialmente como empregada no período Barroco, preferindo pessoalmente panoramas de caráter pintoresco. Seus contemporâneos chamavam isso de vistas de efeito arquitetônico (geschlossense Architekturbild).2
  
Gosto semelhante ao do Impressionismo tardio, uma semelhança bem ilustrada em conformações urbanas propostas por seu contemporâneo Camille Pissarro (1831 – 1903). Pissarro deliciava-se em usar perspectivas, mas frequentemente deslocando o eixo da mesma da visão do observador (como nas séries da Pont Neuf em Paris); ele valorizava também a beleza das ruas curvas (krumme Strassen) principalmente em suas gravuras de Rouen em 1880. Uma paisagem urbana (Stadtbild) assim tratada sugeria mais o efeito da visão do espectador do que de uma perspectiva de um projeto da configuração proposta (gridiron); Sitte menciona constantemente o que o espectador poderia estar vendo. Tudo isso levava-o a uma interpretação bastante pessoal da ideia de orientação na cidade, o que planejadores urbanos evidentemente nunca compreenderam e nunca comentaram até então.  Valeram-se do uso da palavra malerisch limitado ao sentido de pintoresco como certa dose de precariedade medieval, classificando Sitte e seus seguidores de românticos. É certo que alguns desses incorreram na mesma incompreensão de suas críticas, muito de estranho e romântico foi perpetrado em nome de Sitte. Embora possa parecer inconsistente ao enfoque bidimensional, um segundo posicionamento de Sitte, que provocaria uma profunda revolução em matéria de urbanismo. foi insistir em que a cidade era uma obra de arquitetura a ser concebida tridimensionalmente.  Com a publicação de seu livro, nenhum planejador urbano de respeito em terras germânicas se limitou a pesquisas planimétricas. Não tendo demonstrado que velhas cidades cresceram por lentas etapas, possivelmente sem planos, mas sob supervisão de profundo sentido espacial de sucessivas gerações de construtores? Sitte simplesmente devolveu o planejamento urbano aos arquitetos.  Sua imagem de cidade sendo um tanto pessoal, não era compartilhada por seus contemporâneos. Via uma especial forma de continuidade na feitura das cidades. Para Sitte, praças, simples ou em grupo, deviam gerar unidade e contenimento, como expresso na conclusão de seu livro, talvez por sobreposição de seus muros. Não deveria haver elementos independentes como igrejas ou  monumentos centrais e autônomos, o mobiliário urbano tinha que ser parte inclusa do todo maior onde estivesse. Arcos e colunatas em torno de espaços abertos permitiriam -- como aconselharam Vitruvius e Alberti – interação com os espaços fechados. A despeito disso se referir às paredes das praças e das ruas, não era a arquitetura dos componentes construtivos, mas o espaço gerado pelos mesmos que o interessava. Para Sitte, o caráter de uma cidade ou metrópole residia na sua capacidade de gerar espaços públicos para seus cidadãos, e a beleza dos mesmos era fruto da rítmica de suas interpelações. Para praças preferia definitivamente o encadeamento de distintas formas integradas entre si. Sua eloquente descrição de Veneza no Capítulo VI o demonstra. Algo que de fato se tornou ideia arquitetônica amplamente aceita; em 1950 Walter Gropius explicava a seus alunos em Harvard que: O encanto de Sitte por Veneza atesta o caráter teórico de seu método analítico:3 ele conseguia tratar vias aquíferas como equivalentes a ruas pavimentadas e quarteirões.4

Sitte não discute o caráter espacial das ruas em detalhe (o capítulo que trata disso na edição Francesa não é de sua autoria) exceto para quando espaço de ruas vizinhas saem de uma mesma praça. Praças ajardinadas e parques, diferente de quarteirões, devem ser localizados a certa distancia uns dos outros, separados pela interveniente massa de edifícios, tendo os pátios internos dos edifícios também separados uns dos outros. Para Sitte, Desenho Urbano consistiria no ordenamento de espaços atrativos e sequenciais mais do que a divisão de um sítio para blocos de edifícios separados por artérias de transito, como numa malha. Stubben discordava dele desde o princípio, mas seus admiradores achavam que Sitte propunha tornar arte cívica uma verdadeira arte espacial (Raumkunst).5

É notório, além disso, que Sitte atribuía a si mesmo outro aspecto intangível do cenário urbano – a ramificação.6   Sobre essa sua ideia, no que podemos entender, diferente de tudo o usual em seus dias, independente de propósitos higienistas ou decorativos, considerava a ramificação das árvores e arbustos algo de gosto judicioso, não de consistência geométrica.   A árvore adulta e grande, cuja influencia civilizatória ele idealizava, devia ser localizada, à guisa de um monumento, no eixo ou no vértice de um espaço. Árvores e ou arbustos em quantidade deviam ser dispostas em moitas ou ilhas segundo ritmos instintivos ao invés de filas geométricas sem sentido. Para Sitte esses elementos constituem aparatos arquitetônicos da cidade, devendo, portanto ser concebidos em harmonia com edifícios, monumentos e fachadas ao invés de competir com aqueles obscurecendo-os. Especulava portanto as formas que plantas melhor podiam induzir recreação e contemplação aos usuários da cidade moderna: em parques, quadras, bem protegidas do transito de veículos e também nos pátios internos dos edifícios. Na realidade essas ideias exerceram pouca influencia na Alemanha, pelo fato de periódico para o qual escreveu era obscuro e seus ensaios raramente foram percebidos antes de seus filhos publicá-los como apêndice de seu livro na edição de 1909. A versão francesa incluiu alguns fragmentos a esse respeito já em 1902; até hoje os leitores ingleses nunca tivera acesso a seu formato original.7  Desse modo arquitetura e natureza, bem como cheios e vazios eram para Sitte os elementos com os quais fazer a cidade a totalidade que sempre almejou como uma síntese popularde todas as artes. Tão teórico ponto de vista prepara-nos para suas frequentes comparações da cidade com outros tipos de composição artística: seu emprego de analogias musicais, sua comparação de paisagens urbanas com encenações teatrais, e seus argumentos em favor de uma cidade perfeita em ordenada exibição. Seus biógrafos enfatizam que um tema favorito era a relação entre arquitetura e música.

Está claro que a contribuição teórica de Sitte à nova ciência de planejamento urbano da Alemanha é um conjunto de princípios bastante subjetivos. Aparentemente não lhe era confortável quando no eixo ou no centro, e sabia que muitos jogavam lixo em amplas quadras vazias. Uma cuidadosa e minuciosa observação da forma de cidades antigas sugeriram-no que tais fobias não o visavam pessoalmente mas eram muito mais universais, e que antigos mestres faziam tais considerações visando o desenvolvimento de suas cidades.  Sua descrição de passeios carentes de proteção faz lembrar cenas contemporâneas de ruas em quadros do pintor Edvard Munch. Compreendemos porque para alguém com tal sensibilidade freudiana quanto a assuntos de equilíbrio, superfícies como se fossem tabuleiros de xadrez não eram desprezíveis, mas simplesmente banais e sem sentido, por serem neutras configurações sem nenhum conteúdo humano. Para Sitte era óbvio que o desenvolvimento da cidade moderna não podia ser de interesse exclusivo de técnicos, de repartições municipais, de manuais ou de concursos, mas uma atividade eminentemente criativa.
   
A necessidade de exercício artístico em planejamento urbano era óbvia em 1889, e os arquitetos muitas vezes já haviam aderido animadamente a tanto.    Ao defender a partici-pação de artistas em questões da conformação urbana de antigas cidades, por haver identificado a participação desses nos traçados irregulares das mesmas, Sitte gerou um argumento mal resolvido até hoje. Rinckmann e muitos outros consideravam-no irremediavelmente romântico quanto a isso. Sitte fazia alusões a arte infantil  e a arte primitiva em seus discursos sobre princípios de urbanismo. Descobrir e verbalizar as propriedades artísticas das coisas antes considerado ser sub-artístico ou acidental e postular haver entre os mesmos profundas ligações, era subverter os herdados dogmas e modelos do século XIX. Fazê-lo foi típico dos anos em que Site escreveu: inevitavelmente pensamos em seu contemporâneo Alois Riegl e no conceito  de will-to-form (Kunstwollen). A atmosfera de Viena nesses dias, tanto para teorizações de  Psicologia como de História da Arte deve ter sido intensa; 
    
Desnecessário é enumerar aqui os papeis sugeridos por Sitte para que seus propósitos fossem alcançados. Basta verificar os títulos dos seus capítulos ou consultando as passagens em que Sitte recapitula seus próprios argumentos.8  Deve-se, no entanto, enfatizar que seu livro é constituído de duas partes. A primeira parte é de análise. Nela ele examina admiravelmente a estrutura da cidade pré-industrial da Europa Ocidental. O interessante com esses capítulos é bastante, mas não totalmente medieval, desde que as cidades por ele escolhidas eram antigos assentamentos que ganharam formas medievais. Muitos de seus quarteirões, mesmo incluindo a sua favorita junto à S. Marco em Veneza, tiveram boa porção construída tão tarde como no século XIX. Na segunda parte do livro, que é de sínteses, ele critica muitos procedimentos do urbanismo moderno e sugere como, em sua opinião, os inevitáveis sistemas mecânicos dos tempos modernos podem ser melhorados. Suas curas são baseadas justamente nessas medidas com as quais seus contemporâneos são obcecados – estudos de uso do solo, limites de elevação, fluxos de transito, densidade de área construída, etc. exceto serem consideradas por ele por sua potencialidade estética.  As medidas por ele sugeridas advinham daquilo que o período Barroco apresentou como forma urbana ou derivativos Semperianos do Barroco, pois só esse período apresentou formas de suficiente poder de suportar a escala de modernas metrópoles. As tendências altamente irregulares do período medieval que descrevera ná primeira parte de seu livro raramente considerou ou de muito simplificadamente – como em torno da neogótica Votive Church. 
  
Sitte sofria com o fato de muitos de seus discípulos, e também de seus críticos não entenderem sua mensagem. Por exemplo embora advertir contra simplesmente copiar cidades antigas, especialmente suas irregularidades, seus seguidores, especialmente Henrici e Gurlitt  incorrendo em tais hábitos, o culparam disso.  As incompreensões em relação a Sitte foram muitas, e podem ser melhor estudadas observando edições e resumos posteriores  a seu livro – especialmente as edições em Frances e os resumos em Inglês.

  
N o t a s :

* Ver:  George R. Collins and Christiane Garesseman Collins: Camilllo Sitte - The bird of Modern City Planning - Rizzolli International Publications, New Yoek, 1996. Capítulo 6 pp. 64-70


1 - Die Alten. Essa palavra era uma das expressões favoritas de Sitte. Nós a traduzimos de várias formas: nossos antigos, nossos predecessores, os velhos, os velhos mestres etc.

2 - F. Hoeber, in StBK, 1, 1920, p. 233. Isso nem sempre era usado como elogio. Na visão de Brinckmann o planejamento de Sitte limitava-se a ordenação pictórica.  Seu gosto por cenários arquitetônicos lembrando pinturas impressionistas lembra ilustrações de guias de viagem. Compare-se uma pintura de Pissarro com a vista de uma rua Florentina projetada bem depois por Bauerfeind. Na precariedade de teorias baseadas em qualidades visuais do ordenamento territorial antes de Sitte, ver S. Lang, The Ideal City from Plato do Howard in ARev, CXII, Aug. 1952, pp. 76,90-101.

3 - Walter Gropius, Tradition and the Center, Harvard Alumni Bulletin, LIII, 1950, pp. 68-71.

4 – É necessário observar que a tradição de Paisagem Urbana – Stadtbilder – para a qual Sitte tanto contribuiu deu-se, em parte, entre pintores -- Canaletto e Guardi – e porque os impressionistas tardios compartilhavam o entusiasmo de Sitte por Veneza.  Provavelmente deve-se à descrição estética de Sitte, que a Piazza San Marco tenha merecido tamanha atenção em subsequentes livros de planejamento urbano. Para uma inteira historia de Paisagem Urbana (Stadtbilder) realçando os pintores do padrão de vida veneziano, ver de J. G. Link: Townscape Painting and Drawing, New York, Harper & Row, 1972. 
     
5 - Schumacher considerava a ênfase na rítmica das relações espaciais dos usuais blocos construídos como uma contribuição básica de seu livro. Ver também as observações de Goecke a respeito.

6 – Quanto a isso já existe um considerável bibliografia e muito mais como sabemos do apêndice I do livro de Sitte. Os britânicos foram indiscutivelmente os pioneiros nessa matéria, liderados por Sir Edwin Chadwick (1800-90). Assumiram um ponto de vista moral em questão de planejamento urbano. Horsfall em seu relatório é obcecado pela ideia de que se deve ao seu meio ambiente ser mais saudável, o fato dos Alemães beberem e jogarem menos que os Britânicos. Basta considerar o longo trecho sobre plantas do manual de Stubben a respeito e constatar como Sitte em sua análise recupero o mesmo assunto.     

7 – Para ver como essas ideias de Sitte surtiram efeito na Alemanha em torno de 1910, basta consultar: Hugo Koch, Neue Gardenkunst, StB, IX, 1912, pp. 25-31. A republicação do artigo de Sitte em 1901 foi providencial. Tal artigo foi omitido na edição Norte-americana desse livro em 1945.