sábado, 31 de agosto de 2013

DE MARX AO MARXISMO CONTEMPORÂNEO

Frank Svensson

                               

Texto distribuído aos alunos a título de introdução do curso de extensão ministrado na Universidade de Brasília em 08 de novembro de 2003.



        A revolução russa (1917) e a revolução alemã (a República de Weimar, 1918-19) caracterizam períodos de desenvolvimento do marxismo. Pela primeira vez dois partidos socialistas adotaram-no declaradamente como ideologia, ao deterem o poder do Estado. Evidenciaram-no como das principais correntes de pensamento do século XX. Diferentemente d'antanho, o marxismo ganha sua Meca. Passa a ter referências geopolíticas concretas: capta orientações sem limitar-se a pronunciamentos de personalidades como Engels, Kautsky, Plechanov.

          De 1920-70, o marxismo-leninismo soviético e do leste europeu marca-se no desenvolvimento do marxismo. A social-democracia abandona ou se liga a distorções do marxismo. Pós-Segunda Grande Guerra reduziu-se a liderança teórica dos pensadores. No ocidente, o marxismo evolui como corpo teórico  e olha para o mundo acadêmico. Susan James (1985) revela: esses novos teóricos marxistas, à diferença de seus antecessores, não viram a obra de Marx como fonte de previsão do futuro ou como elaboração de um manual de ação revolucionária, mas como origem de um rico e instigante método explicativo da realidade.1

           Dividido o socialismo internacional (comunistas x socialistas) e contradições à baila entre marxistas revolucionários e partidos institucionalizados por enfoques díspares da teoria marxista, decompôs-se a original unidade dialética de Marx (conhecimento histórico, revolução, teoria econômica e organização do movimento obreiro). Haver-se desintegrado a obra de Karl Marx quiçá ratifique o principal problema marxista atual: divisão em áreas e projetos, tendências teóricas e práticas discordantes. Que se pergunte: que restou do projeto original de Marx? Sua totalidade dialética constituía um sistema garan-tido por relações internas de componentes que se condicionavam.

Nem a teoria de Marx (filosófico-econômica) nem a práxis (estratégia revolucionária e organização de trabalhadores como classe) basearam-se nalgo fora dos homens, entendidos nas atividades, em condições históricas partículares. A disparidade entre a síntese de Marx e as que dele decorre resulta dele incluir o concreto trabalho humano em sua dialética histórica.

        Composto de lógica dialética, filosofia da natureza e filosofia do espírito2, o sistema hegeliano formava a totalidade das partes inter-dependentes. Interrelacionar áreas da realidade entre si como tomos da totalidade caracteriza tanto Hegel como Marx e o marxismo inicial. Nisto é concreta a continuidade Hegel...Marx...primeiros marxistas. Distinguiam partes constituintes das totalidades produzindo distintos conceitos sobre elementos mantidos no desenvolvimento do marxismo em decurso.   A principal mudança imposta por Marx foram suas restrições ao conceito hegeliano de absoluto, ao entendimento de uma idéia ou de um espírito desde o surgimento do universo e independentemente da história humana. Hegel via na natureza objetiva uma expressão dessa idéia em segundo estágio, quando não tinha consciência de si, sua precondição para estruturar seu sistema. A crítica de Marx à noção hegeliana do absoluto fundava-se na crítica naturalista de Feuerbach a Hegel, Feuerbach concebendo o homem dotado de sentidos numa totalidade verdadeiramente terrena. Diversamente de Feuerbach, Marx via o homem como ser objetivo e ativo, atuante em circunstâncias históricas. Desenvolveu sua filosofia da história com conteúdo distintíssimo da de Hegel. Para Marx, a essência da história humana residia no desenvolvimento das forças produtivas dentro das suas condições sociais. Nada como pensava Hegel, defensor de que o desenvolvimento espiritual dos homens era a questão-mor.

 A economia constituí em Marx a base das relações sociais, do comportamento social. O restante de sua totalidade é a elaboração de uma estratégia da revolução socialista:

1) a teoria da revolução socialista;

2) a teoria e o trabalho de organização da classe obreira (havia inter-dependência; não se entendia a teoria marxista desligada da teoria da organização da classe obreira e vice-versa). Condições históricas conduziram essas duas partes a se separarem com o tempo.

        O conceito de totalidade de Marx baseia-se numa práxis filosófica de caráter político. A práxis revolucionária é sua principal categoria. Sem ela, as demais partes da totalidade de Marx ficam elementarmente isoladas. Vê-se na revolução socialista resposta a uma objetiva necessidade histórica e econô-mica, dependente de uma prática revolucionária, e a organização da classe trabalhadora como movimento independente de prática revolucionária. No caso pode-se reduzir a totalidade de Marx a uma teoria da história e a uma teoria econômica, objetivas porém isentas do processo histórico como teoria sobre a história ou teoria sobre a economia capitalista, para a continuidade da história.

Embora a ideia de um socialismo científico baseado em leis dialéticas fosse decisivo para a vitória do marxismo como ideologia de movimento, há que considerar que seu desenvolvimento teve como determinantes as condições sociopolíticas reais da Alemanha e da Rússia. Na Alemanha existia  (1880-90) um movimento obreiro politicamente orientado para o socialismo, mas faltava um movimento revolucionário que com todos os meios lutasse  pela queda do regime reinante. Na Rússia, havia mais de meio século, ocorria o oposto: uma tradição de luta clandestina revolucionária sem um movimento operário autônomo. Foi pelo marxismo que o movimento operário alemão teve sua identidade caracterizada como revolucionária, enquanto o movimento revolucionário russo teve raízes teoricamente identificadas pelo marxismo no proletariado. Com a ajuda do marxismo podia-se ignorar que o movimento operário alemão não fora um movimento revolucionário; tanto quanto na Rússia - com a ajuda do marxismo - foi possível legitimar surgir um movi-mento operário independente, às vezes em contradição com sua intelectuali-dade revolucionária.

          Quando a tendência reformista do movimento alemão e a tendência economicista do movimento obreiro russo despontaram (anos 1890), a ideologia do marxismo teórico estava desafiada. Na Alemanha perguntava-se se era revolucionário o movimento operário. Na Rússia se questionava sobre a posição do movimento operário frente à revolução burguesa.

Tendência perceptível foi a maior compreensão pela dialética da natureza desenvolvida por Engels do que pelo conceito de atividade humana por Marx. Em muito se entendeu o desenvolvimento do capitalismo e sua passagem à sociedade socialista como decorrência de um processo histórico sujeito a leis assemelhadas às da natureza. Mesmo que um socialismo científico (à guisa das leis naturais) fundado em leis dialéticas haja sido valioso como ideologia comunista, o desenvolvimento e o conteúdo do marxismo foram determinados mais por relações sociopolíticas factuais.

Comparamos a Alemanha - movimento operário organizado e voltado para o socialismo - à Rússia, com tradição de oposição clandestina de meio século de trabalho contra o tzarismo. A dualidade histórica do desenvolvimento marxista sintetizou a dialética entre filosofia da história, teoria econômica, movimento revolucionário e organização da classe operária – a problemática.

Sabe-se dos esforços de Bernstein, Lênin e Rosa de Luxemburgo para resolvê-la. Condições como as de Marx e as de décadas posteriores não se reapresentaram. Marx inegavelmente apontou processos fundamentais da economia capitalista melhor que qualquer concorrente: a vitalidade da economia capitalista, seu poder de concentração, de centralização, e as inevitáveis crises econômicas. Previu que a classe trabalhadora tornar-se-ia específica da sociedade burguesa; que ao desenvolvimento do capitalismo haveria um movimento sociopolítico intertrabalhadores. Nisto reside a força do corpo teórico e do exemplo de vida de Marx.

Seus esforços pela síntese das condições burguesa e proletária, do objetivo e do subjetivo, de materialismo e idealismo, de ciência e crítica, de reforma e revolução, resultaram post mortem na ciência objetiva materialista revolucionária de expressão maior no marxismo-leninismo. Nele se quis man-ter a ação recíproca dos componentes da totalidade reconhecida por Marx, bastante por formas afins às da dialética da natureza. O grande embate con-temporâneo é reconhecer ativamente que o marxismo constitui corpo teórico identificado por caráter ativo e político, pelo esforço em prol da síntese dos seus componentes essenciais.

Não bastam ações e reflexões individuais, interessantes e instigantes que sejam. Implica na ação e na reflexão resultantes de formas socialmente organizadas. Partidos e agremiações que se querem de base marxista estão instados a assumir o papel de vanguarda.

N o t a s : 
           
1 - Susan James: capitulo “Louis Althusser”, in Skinner, Quentin: Return of Grand Theory in the Human Sciences. Cambridge, 1985.


2 - A Filosofia do Espírito de Hegel tem: a) Espírito subjetivo = trata das denomináveis questões psicológicas e das aptidões do humano como ser pensante; b) Espírito objetivo = espírito corporificado na sociedade humana, em sua Filosofia da História e na Filosofia Política; 3) Espírito absoluto = conhecimento absoluto de si expresso em arte, religião e filosofia.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

HÁ MALES QUE VEM PRA BEM! *


Claude Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris), militante comunista franco-suiço, arquiteto e teórico da arquitetura.*



Tradução: Frank Svensson


Há males que vem pra bem. Ao contrário de muitos outros, este dito popular não é falso. Os males da queda dos países do Leste europeu, da guerra do Golfo, da nova ordem mundial, tiveram a vantagem de nos abrir os olhos.

Do rio Elba aos montes Urais, o socialismo pôs-se de joelhos por haver decidido alcançar o capitalismo. Como assim? Como concebido no século passado, o socialismo deveria superar o capitalismo mais desenvolvido, industrialmente falando. A História fê-lo começar em países atrasados, semi colonizados, arruinados por guerras, exceção feita da Checoslováquia. Desestruturados por penúria e agressões de toda sorte. O socialismo teve que se organizar enfrentando carência econômica e superar penúria acreditando poder alcança-lo com mudanças radicais. Implicou um método de acumulação pública acelerado e planificado, certamente eficaz, mas muito desgastante quanto ao teor humano. A democracia na base foi subordinada à realização de planos impostos. O produtivismo lançou às calendas gregas a abolição do trabalho desumanizante. Necessidades não levadas em conta foram censuradas.

Tal política foi vista como legítima na medida em que correspondia a uma etapa inevitável na criação das forças produtivas indispensáveis à elevação do nível de vida. No que viria após essa etapa perdeu-se de vista -- a profundidade da perspectiva do comunismo poder ser desencorajante e desmobilizante -- o socialismo leste-europeu, ao invés de antecipar outra civilização, se pôs pouco a pouco a imitar a produção e o consumo capitalista. Um caminho que só poderia resultar em fracasso por, de uma parte não dispor do sistema de exploração planetária próprio do capitalismo, e de outra ter que financiar suas realizações com atrativos como os de países capitalistas. Privados de outras medidas, as massas dos países do Leste europeu passaram a considerar o acesso ao bem-estar suposto dos seus vizinhos ocidentais como um fim em si. Obtendo poucas soluções originais dos problemas de desenvolvimento, o socialismo reduziu suas iniciativas. Não ultrapassando o capitalismo nesse terreno deixou de se afirmar como uma força de futuro. Pensando fazer prova de realismo, estreitando seu horizonte, perseguiu uma quimera incapaz de sobreviver sem devorar seus concorrentes.

A hidra capitalista mal digerira os bom-bocados eslavos, húngaros, romenos e alemães lançou-se sobre o prato oriental que lhe preparara Sadam Hussein. O pais desse antigo favorito dos gendarmes do mundo pagou por haver se imposto como uma forte potencia do Oriente Médio, defendendo seus interesses pela força e querendo assumir a liderança dos Árabes contra todas as humilhações por eles sofridas. A emergência de potencias regionais ativando uma politica autônoma se foi tolerável quando USA e URSS disputavam zonas de influencia e mantinham em respeito pela ameaça nuclear que tornava uma confrontação geral relativamente improvável, não o é hoje, sendo uma região principalmente de interesse econômico e estratégico vital para o imperialismo.

A invasão do Kuwait deu pretexto aos Americanos e seus aliados para uma intervenção militar, destinada num primeiro momento a abater o Iraque, e depois a longo termo submeter a região à sua tutela, ou seja sua ocupação direta. Os Estados Unidos transformaram imediatamente a crise numa situação exemplar que lhes permitisse mostrar aos olhos do mundo inteiro que o período desmontado das lutas de libertação dos povos aos olhos do mundo inteiro cessou e que uma nova ordem mundial, baseada na dominação dos países capitalistas desenvolvidos, sob a direção dos Estados Unidos, se instaurara. Foi isso que explicou George Bush após a guerra:

O espectro do Vietnam foi enterrado para sempre nas areias do deserto da península árabe (...) Hoje nosso moral é tão alto que nossa bandeira e nosso futuro tão brilhante como a tocha da liberdade. A nova ordem internacional passou seu primeiro exame. O duro trabalho da liberdade nos aguarda.

A mensagem transmitida a todos os povos do planeta, notadamente do terceiro-mundo, é bem clara:

Podeis ser bilhões, mas nós somos os mais fortes. Vossos exércitos podem ser os mais numerosos; nós os reduziremos a pó sem derramamento de sangue nosso. Podeis vos proteger sob metros de concreto; nós faremos saltar vossos abrigos. Podeis chamar os Russos, mas é a nós que deveis vos render. Podeis fugir em debandada e implorar absolvição; sereis exterminados sem piedade se decidirmos vos punir. Trata-se de um complemento essencial ao silogismo adotado de há muito. A nau dos ricos está superlotada. Aceitar pobres a bordo significaria naufragar a todos. Deixemos os pobres se afogarem. Considero de minha parte, muito reconfortante constatar que no momento em que o capitalismo jubila e proclama o fim da História (todas as viagens estando repletas e conscientes do fim das mesmas), os fatos atestam que sua civilização, por sua natureza cada vez mais predatória, é estritamente reservada a uma pequena minoria da humanidade.
  
O capitalismo ainda dispõe de recursos, mas não tem futuro. É sinônimo de retorno à barbárie. É incompatível com a perpetuação da espécie humana. Fundado sobre ganancia e sobre acumulação do capital produtor de lucro, condicionado a produzir e vender cada vez mais, é incapaz de suprimir a carência. Deslocando-a, reproduzindo incessantemente a insatisfação de necessidades alimentando desigualdades ao ponto de ameaçar hoje a morte de três-quartos da humanidade.

Cubanos, não pensem que a fronteira entre os ricos e os pobres, entre colonizadores e colonizados, só passa separando o Norte do Sul. Ela serpenteia também no interior de cada nação do Norte. Na França, por exemplo, 10% dos mais afortunados dispõem de 54% do patrimônio de nosso povo, os 50% menos afortunados repartem entre si 6%. Quase 3 milhões de desempregados, centenas de milhares de idosos, de trabalhadores imigrantes encontram-se na miséria. Nossas províncias são as colônias das multinacionais e da metrópole parisiense. Nossos campos são saqueados pelos bancos, pelos trustes da indústria alimentar, por pastagens, para alimento do gado que integra a economia rural, privando-o de desenvolvimento autônomo apropriando-se da mais valia para reinvestir fora da agricultura e fora da região produtora.

Em todo o mundo capitalista se instaura uma sociedade a duas velocidades: de um lado os que se apropriam, os que têm e participam do trabalho; do outro os destituídos, os desempregados, os miseráveis, os desnecessários, economicamente inúteis.

Aqui um hipermercado, de diferenciados artigos de alto custo; lá escolas decadentes, salas de aula superpovoadas, centros urbanos deficientes, transporte coletivo saturado. O capitalismo não é só gerador de desigualdades e de desumanização. É propriamente inviável no sentido que sua logica de crescimento gera um imenso desperdício de recursos insubstituíveis, deterioração do meio ambiente, poluição e destruição dos processos naturais à preservação da vida.  Como jamais se viu multidão de homens se comprazer na escravidão e se alegrar com a morte, como é pouco provável que ceifemos um dia nosso trigo em outro planeta, estamos autorizados a pensar que a nova ordem mundial não será tão inabalável como deseja George Bush. Podemos mesmo afirmar, como bons dialéticos, que os ares triunfantes apresentados pelos capitalistas são destinados a mascarar as sérias angustias existenciais e a prevenir o surgimento de uma gigantesca aspiração de mudança.

Os revolucionários não são mais os únicos a querer ultrapassar o modo de produção, de consumo e de vida do capitalismo, Ao sentimento de intolerância imediata do sistema pelas massas se ajunta a conscientização dos condicionantes ecológicos e antropológicos que enfrenta. Um exemplo entre milhares à escala mundial, o modelo de indústria agroalimentar francesa ou americana absorverá para seu funcionamento a totalidade de grãos disponíveis na terra, o que seria uma aberração.

Marx esclareceu o porquê e o como do esgotamento da terra e do trabalhador pelo capital, Não pode, no entanto, prever que o desenvolvimento universal das forças produtivas atingiriam tão rapidamente limites que não contradizem sua análise, mas evidenciam, ao contrário, a urgência de um outro tipo de crescimento. O tempo urge. Sabeis algo disso em Cuba, por terem atravessado a mais dura prova de vossa história recente. Chamou a atenção de milhões de observadores. Alguns por ódio. Outros por uma curiosidade malsã -- Por quanto tempo resistirão? – ou por uma boa-vontade interesseira – É o momento de firmar contratos com eles.

Em todos os outros constatamos o respeito pela coragem, o reconhecimento pela solidariedade internacional, pela honra salva no Conselho de Segurança. O credito do qual beneficiais no mundo não é indiferente à questão do futuro da civilização. Muita gente compreendeu vossa contribuição depois de trinta anos com respostas decisivas a esta questão. Vosso desenvolvimento tem de novo ser o desenvolvimento de todos os homens, do Homem todo, e não unicamente a valorização de coisas, que em si não passam de um meio. Recusou o lucro, a rentabilidade financeira das empresas como único critério de gestão para substituí-los pelo de riqueza social. Não vos deixastes seduzir pelos encantos do mercado. Vosso desenvolvimento não vem daí. Ele nasceu no interior de vosso povo o qual aprendeu a contar principalmente com suas próprias forças e a exercer o poder com grandeza.

Sim compañeros, estão no bom caminho e tendes muitos amigos que vigiam para que não seja interrompido.

Quando despontam pressupostos de um novo mundo através de uma exacerbação de antagonismos ou de outros que os marxistas percebam a urgência de uma civilização diferente, basta, voltar aos ideais revolucionários, considerar o projeto intermediário de um socialismo a meio caminho? 1

Eu digo não sem hesitar a esta questão posta pelo filósofo Lucien Sève. A advertência dos guardiões da ortodoxia do socialismo cientifico é previsível: Camarada, não sonhe, não se queimam etapas.

É verdade que entre o capitalismo e o comunismo ocorre uma fase intermediária que chamamos de socialismo. Pois se tratando de uma transição, convém definir o socialismo em relação ao comunismo, senão o socialismo não será transição nem mesmo socialista.  Donde a fórmula de Marx:

O socialismo é a fase inferior do comunismo.

Do que se pode deduzir que o comunismo é a fase superior do socialismo. Apesar das aparências, essas duas fórmulas não são equivalentes. A primeira implica a modéstia e a ação; a segunda justifica a autossatisfação e o voluntarismo. É isso que sem duvida conduziu Marx a preferir a noção de fase inferior do comunismo à de socialismo por William Morris: o socialismo (ele acrescenta sistematicamente de Estado) é uma etapa de transição inevitável que ele prevê com uma apreensão resignada. Ele teme os excessos de poder, a burocracia de um Estado fortemente centralizado e autoritário, o risco de que não se tenha outra ambição do que de atingir o nível de vida da burguesia refinada de hoje, só subtraindo-lhe o poder de viver do trabalho de outrem.2

Àquilo que Morris mais reage, é a possibilidade do primeiro estágio da revolução, o socialismo de Estado, se tornar um fim em si mesmo, o que bem expressa o velho Hammond em Noticias de lugar nenhum quando diz a seu interlocutor que nesse caminho a geração revolucionária iria dar num atoleiro.Quero lembrar que essas linhas foram escritas a exatamente cem anos. Com todo respeito por William Morris, pena que os dirigentes dos países do Leste europeu não o tenham tido como livro de cabeceira.

Em Cuba nunca se deixou em quarentena o projeto de uma sociedade comunista. È isso que gera vossa força e vos autoriza a me dizer: O comunismo pressupõe a abundancia que ainda estamos longe de conhecer. Assim somos mais prudentes que tú. Percebo que pode ser inconveniente de minha parte introduzir o tema da abundância, Espero no entanto merecer vossa indulgência quando souberes que meu único luxo é o de fumar vossos puros quando posso encontra-los com abatimento.

Abundância é a quantidade superior à necessidade.4  Entender o que são necessidades é muito difícil, porque antes de definir que coisas, estas implicam situações diferentes umas das outras. O que o indivíduo sente espontaneamente como uma necessidade, crê ser uma necessidade, não lhe é exclusivo. É da configuração global da sociedade que depende ter tal ou tal necessidade. As necessidades não são dadas pela natureza. São determinadas pelo mercado e acima de tudo pelo modo de trabalho. Um exemplo: Os desejos de consumo opulentos solicitados pelo capitalismo avançado só em parte são artificiais. Por outra parte são os desejos do trabalhador decomposto e mutilado, que impossibilitado de se interessar e se dedicar a seu trabalho, é presa fácil, fora do trabalho pelos mercadores de divertimento, de conforto, de compensações privadas aos traumatismos que lhe inflige a atividade social.5

Nossa abundancia capitalista é um oculta-miséria ilusionista.  Quando Marx escreveu que a condição do comunista é quando todas as fontes de riqueza coletiva jorrarem com abundância ele certamente não imaginava supermercados, sedes e clubes sociais alemães do fim do século XX.  Marx não podia estimar o preço e as consequências que nosso viria ter o que ele chamava desenvolvimento das forças produtivas donde logicamente pressupor abundancia. Soubera ele o que sabemos hoje, que os recursos da terra não são infinitos, teria sido o primeiro a proclamar que sempre querer mais dessa terra é um criminoso absurdo. A bulimia, a orgia quotidiana não são as características da Inglaterra comunista imaginada por William Morris em Noticias de lugar nenhum.  A abundancia reina no país como resultado da supressão das fabricações inúteis (os artigos de luxo para os ricos e os artigos de má qualidade, as pacotilhas, para os pobres famintos) e da volta à produção de desocupados, intermediários mercantis e parasitas da antiga sociedade. Energia disponível por toda parte em quantidade ilimitada. O dinheiro deixou de existir. O valor das coisas volta a ser o de seu uso. Não se pesam mais as mercadorias, mas as pessoas não tomam sem ceder o que precisam. A comida é copiosa e delicada, mas não se deseja comer salmão todos os dias.  Esses ingleses vivem de modo simples, não diferentemente dos trabalhadores de Las Terrazas de hoje. Construir o comunismo desde hoje, é trabalhar pela fusão da cidade e do campo. Nesse domínio, vós estais, um século adiante. Eu não tenho nada a vos ensinar, senão que lendo os textos dos fundadores do marxismo, descobri que a posição dos mesmos foi ainda mais radical do que geralmente se crê. Considerando o Anti-Düring, os Princípios do Comunismo, A questão da habitação, a Ideologia alemã verão que as palavras são claras e precisas: Fusão (Verschmelzung) da cidade e do campo comparece inúmeras vezes.

O exercício da agricultura e da indústria pelos mesmos homens é condição necessária da associação comunista.A civilização nos deixou, com as grandes cidades uma herança que exigirá muito tempo e esforço para eliminar. Mas terá que ser eliminada e o será (Aber sie müssen und werden beseitigt vverden) mesmo sendo um processo de longa duração.7

A outra civilização que iremos produzir confere a esses enunciados uma atualidade impressionante. Se é verdade que pô-la em prática será extremamente custoso, e por consequência irrealista, mesmo permitindo economias de escala substanciais. As comunidades agroindustriais não exigem o emprego de meios pesados e sofisticados inerentes a enormes combinados. O tratamento dos dejetos, a economia de energia, a adução e evacuação de águas aí são mais fáceis que nas grandes aglomerações. Nenhuma perda de tempo no deslocamento entre o domicilio e o local de trabalho. Vocês certamente fizeram contas interessantes a esse respeito. Não insistirei quanto a isso. 

O povo cubano já reconhece largamente ser nas comunidades agroindustriais à escala humana que há adequação a necessidades. E de necessidades a recursos, bem como, o manuseio do meio ambiente, podem ser atender decisões D. (mais democráticas que sob diretivas burocráticas).

O comunismo, não é a equiparação no trabalho; é o fim do trabalho desumanizante. Sabemos já que este não começa automaticamente com a propriedade coletiva dos meios de produção e com o poder da classe trabalhadora. Se ao longo da fase inferior do comunismo os homens continuam a trabalhar como abelhas, a sociedade resta um instrumento de acumulação e o trabalho resta uma atividade puramente utilitária, sendo inútil esperar que um belo dia se chegue à fase superior.
 
Se organizar mais racionalmente, trabalhar menos, ganhar mais, tudo é bom, mas não suficiente. A superioridade fundamental do socialismo sobre o capitalismo não pode residir fora da liberação do trabalhador ao nível do ato produtivo e das relações de produção. Tal liberação não é conquistada antes que a propriedade coletiva das empresas signifique também que o trabalhador aí esteja e se sinta integrado, porque detém o poder de regular a economia, tanto pelo que é produzido como pelo modo de produzir.

No combate pelo trabalho emancipador, as técnicas têm sua importância. Fomos todos marcados por uma versão do materialismo histórico elaborado no momento da industrialização da URSS segundo o qual o movimento da história é essencialmente determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Forças produtivas destinadas a elaborar os bens materiais necessários à vida, e que, além de sua função ecxistencial fundamental, são externas e anteriores à consciência e à vontade dos homens. Em 1968, quando eu era questionado pelos esquerdistas sobre o caráter de classe da técnica e da ciência, eu resistia  ainda firmemente sobre esta posição e me satisfazia a retorquir que as leis que condicionam a forma de um perfil metálico não as mesmas na China como no EEUU. 

Depois eu me vi obrigado a trocar as lentes dos meus óculos. Como permanecer insensível aos sintomas de demência da nossa civilização, ao questionamento sobre o sentido do progresso? Eu reli com proveito Lewis Mumford 8  que antes me aborrecia. Eu me incomodava com advertências como as de Chup Friemert.9  

Deixei de duvidar da lucides de William Morris. Não. As forças produtivas, as ciências, as técnicas não são neutras, não crescem como flores  no campo, independente da vontade dos homens. Não basta mais, no fim do século XX, acusar o dano feito pelo capital. Sua concepção mesmo, oriunda de condutas de potencia e dominação, deve ser posta em questão. Pois no momento em que os poderes concedidos a humanidade ultrapassa o que os indivíduos e a terra podem suportar, a questão é o que fazer? para que esta Terra continue habitável e a condição humana possível.

Nós outros marxistas, não amamos o Estado. Pensamos que nele – nascido da divisão da sociedade em classes antagonistas – o homem vê separar de si e voltar contra si suas próprias forças sociais. Consideramos o Estado socialista como um rodeio que convém encurtar o mais rápido possível. Nosso objetivo é a democracia direta, a autogestão, a passagem do governo dos homens para a administração das coisas.

As gentes – no dia após a enésima morte anunciada do comunismo – nos dão razão. Se os do Norte tendem a se unir contra os famintos do Sul que ameaçam apropriar-se de sua parte das riquezas, insurgindo também contra as grandes maquinas que lhes desagregam. Vejam como corre um fio unindo o deslocamento da URSS, o avanço dos movimentos separatistas, a recusa de Noruegueses e Suíços de provar das delicias do Espaço Econômico Europeu, a indignação dos camponeses, o fatigar dos comités de cidadãos de todo tipo, a transformação da ação reivindicatória sindical, a erosão dos partidos políticos tradicionais ...?

As gentes aspiram, frequentemente confusamente e à revelia do bem senso, decidir eles mesmos, lá onde estão, à partir de seus próprios empreendimentos, particularmente  a edificação de seu modo de vida. Algo que nos concerne diretamente como arquitetos. A arquitetura de uma outra civilização em gestação no tumulto do fim do século XX será obra, felizmente imperfeita, do povo soberano da terra. Falta do que, a abertura de valas comuns da nova ordem mundial poderão ser a única e ultima ocupação dos arquitetos.

Avante compañeros, Ce n’est pas fini. Venceremos !


N o t e s :

* HÁ MAL QUE VEM P’RA BEM (À OUELOUE CHOSE MALHEUR EST BOM) Texto oriundo da conferência feita de mesmo título na Faculdade de Arquitetura do Instituto superior politécnico José Antonio Echeverria de Havana; publicada com o mesmo título in: Schnaidt, Claude: Ce n’est pas fini/No se acabò. Paris/ La Habana, École d’architecture Paris-Villemin/ /Instituto superior politécnico José Antonio Echeverria 1999, pp. 9-17. Partes desse texto foram usados em conferencia feita sob título Der Anfang vom Ende des Produktivisrnus no atelier « Positionen zur Gestaltung » da Escola Superior de Arteede la Hochschule für Künste Bremen, 30 de novembro de 1993;  reproduzida em versão abreviada sob o mesmo título in : positionen zur gestaltung. Brême, Hochschule für Künste Bremen 1995, pp. 58-67.

1. Sève, Lucien: Communisme: quel second souffle ?, Paris, Messidor/Éditions sociales 1990, P. 96.

2. Meier, Paul La pensée utopique de William Morris. Paris, Éditions sociales 1972, P. 441.

3, Morris, William : Nouvelles de nulle part, Paris, Éditions sociales 1961, p. 202.

4. É interessante notar que em dicionários antigos (le Larousse do século XIX, por exemplo), a abundancia é definida como o estado em que se desfruta de tudo que é necerrário à vida, bens, riquezas, etc.

5. Gorz André Le socialisme difficile. Paris, Seuil 1967, p. 37.

6. Engels, Friedrich: „Grundsatze des Kommunismus,“ in Karl Marx, Friedrich Engels : Werke,   t. 4. Berlin, 1959, p. 376-377.

7. Engels, Friedrich: Anti-Dühring. ln: Karl Marx, Friedrich Engels: Werke, t. 20. Berlin, 1962, pp. 276-277.

8. Mumford, Lewis: La cité à travers l'histoire, Paris, Seuil1964 ; Le mythe de la machine, Paris, Fayard 1974; Technique et civilisation, Paris, Seuil 1950, pp.17-18: As técnicas e a civilização, tomadas como um todo, são resultado de escolhas humanas, de atitudes e esforços, deliberados mesmo que inconscientes, frequentemente irracionais, mesmo que aparentemente objetivos e científicos. E apesar, quando sob controle, não são exteriores. A escolha se manifesta na sociedade tanto por pequenas adições e decisões quotidianas do que por lutas ruidosas e dramáticas ( ... ). A técnica não constitui um sistema independente como o universo: ela existe como elemento de cultura humana. Ela implica o bem ou o mal na medida em que os grupos sociais implicam o bem ou o mal. A maquina em si mesma não apresenta nenhuma solicitação e não estabelece nenhuma promessa: é o espirito humano que solicita e cumpre promessas.


9. Friemert, Chup :„Zu kulturellen Aspekten der industriellen Massenproduktion“. In: Wissenschaftliche Zeitschrift der Hochschule für Architektur und Bauwesen Weimar, Weimar (1987) 4-6, pp. 210-212; „Zur Kritik des industrialismus”. Oder: „Weiteres zur anmassenden Etescheidenheit“, in: Wissenschaftliche Zeitschrift der Hochschu le für Architektur und Ba uwesen Weimar, Weimar (1 990) 1-3, PP. 46-48.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte V.



Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.

Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson


REPRISE

Agora quando já quase esquecemos a morte de Deus, é proclamada, nos meios pós-modernistas, a morte do moderno.84  Independente de como a morte do moderno possa ser entendida por aqueles que a anunciam, o certo é que sempre é bem aceita: como o fim de uma terrível heresia, como uma loucura coletiva, como um aparato de opressão, ou como uma ilusão mortal. Os necrológios sobre o moderno são frequentemente cheios de desprezo, de amargura e de ódio. Nunca um projeto que começou com tantos bons pressupostos -- eu falo do projeto europeu das luzes -- foi enterrado com tantas maldições. Outros defensores do pós-modernismo desenharam uma imagem com mais nuanças. Neles o moderno não é visto como morto, mas como envolvido num processo em que muda de pele -- o moderno em transição para uma nova forma; ainda não descortinamos se será uma modernidade que se superou ou se será uma sociedade informatizada, cultural e politicamente regredida.

Apontei para essa e similares dubiedades do pós-modernismo -- que também são dubiedades nos próprios fenômenos sociais -- em minha exposição e para dubiedades da critica racionalista no trecho Execução. Gostaria de retomar o tema da exposição e tentar mostrar um determinado aspecto da imagem fixa do pós-modernismo, ou seja, o esforço de uma superação da razão (Castoriadis) que poderia ser um projeto histórico dos homens e nem um messianismo reconciliador ou uma regressão cultural e política.

Vou recomeçar com uma imagem simplificada da constelação do moderno que me parece ser o ponto de partida do pós-modernismo. Tal imagem é composta de duas partes:

1) Já em Max Weber não restou muito mais do projeto iluminista -- o qual com as palavras de Kant tratava da saída do homem de sua autoproduzida maioridade -- do que um processo de crescente racionalização, burocratização e cientificação da vida social. A economia capitalista, a burocracia moderna, o avanço técnico e finalmente a disciplina do corpo, que Foucault analisou, desenvolveram-se como poderoso processo de destruição: para começar com a destruição de tradições, depois do meio ambiente e finalmente do sentido do eu unitário que uma vez foi tanto o produto como a força motriz do processo iluminista. A razão historicamente ativa nesses processos de racionalização é uma razão lógico-identificadora, planejadora, controladora, objetivadora, sistematizadora e unificadora, ou seja, uma razão totalizante. Seus símbolos são a dedução matemática, as formas geométricas básicas, o sistema fechado, a teoria geral dedutivo-nomológica, a máquina e o experimento  (a intervenção técnica). Nesse processo de modernização a práxis política torna-se uma técnica com a qual se assegura, se manipula e se organiza o poder. Democracia passa a ser uma forma efetiva da economia capitalista, da mesma forma que a indús-tria da cultura (reduzida a urna vida aparente e pseudo-autônoma).

2) Desde o inicio, o moderno vez por outra mobilizou consideráveis forças de oposição ao Iluminismo como processo de racionalização; corno exemplo podem-se citar os românticos alemães, o jovem Hegel, Nietzsche, o jovem Marx, Adorno, os anarquistas. Boa parte da arte moderna pertence a essas correntes contrárias. Observando melhor vemos que as forças românticas de oposição ao racionalismo moderno -- na medida em que não sejam estética mas teórica e politicamente articuladas -- permaneceram particularmente dependentes do mito do moderno racionalista: desde o jovem Regei até Adorno a ideia de reconciliação foi uma imagem contrária à da reificação, da desintegração e da alienação, urna imagem contrária ligada à razão identificadora, tanto por meio da pura negação como da esperança de um sentido completo. No Hegel maduro e em Marx, a razão totalizante comemorou novos triunfos: a critica da sociedade burguesa e sua racionalidade utilitária é comprimida a uma dialética da história, a qual em Marx incorpora e racionaliza a imagem adversa e utópica do romantismo. O conhecimento totalizado do materialismo dialético oferece-se finalmente como um conhecimento legitimador e universal a serviço de elites modernizadoras. Enquanto a dialética totalizante sanciona a opressão estatal organizada -- inclusive o terror de Stalin --, a negação anarquista do Estado parece sancionar o terror individual. Mas nem mesmo esse implica sair, mas, sim, entrar ainda mais no mau círculo. E dessa forma parece que o iluminismo europeu consumiu-se a si mesmo por meio de uma série de confirmações e negações antidialéticas, enquanto a modernização industrial progride ininterruptamente.

Na minha imagem excluí as irrupções de irracionalismo, que o tempo todo seguiram o iluminismo europeu, entre as quais o fascismo alemão foi a mais terrível. Deixei de lado, ainda, versões regressivas e neoconservadoras de pós-modernismo, as quais sem dificuldade poderiam ser incluídas nessa imagem. A contradição entre racionalismo e irracionalismo, entre racionalização e regressão pode ser vista como o lado exótico da esotérica contradição en-tre iluminismo e romantismo à qual recentemente me referi, Finalmente, evitei mostrar o lado das tradições democráticas ocidentais contra tradições políticas, sociais e culturais ainda invocar ou se deixar inspirar. Esta última ausência é, além disso, um ponto que será de central importância para a minha interpretação do impulso pós-moderno.

Mais uma vez retorno à arte moderna. Vimos que o pós-modernismo é sobremodo um modernismo estético ou profundamente ancorado no moderno estético. A arte moderna apresenta-se aqui como um campo onde a forma de racionalidade do moderno há muito vem sendo questionada -- e justamente ao nível do moderno. Isso é um pensamento constante já na estética negativa de Adorno. Creio que basta ler a estética de Adorno ao contrário para encontrar tentativas de uma filosofia pós-moderna em lugar de uma filosofia da reconciliação. Para Adorno,85  a arte moderna implicou o adeus a um tipo de unidade e plenitude de sentido que durante a época da grande arte burguesa foi representada pela unidade da obra fechada e do eu individual. Tanto na unidade da obra de arte tradicional como do sujeito burguês o iluminismo estético descobre -- como Adorno o vê -- um elemento violento, irrefletido e ilusório, ou seja, um tipo de unidade só possível ao preço de opressão e exclusão do disparate, do não-integrado, do emudecido e reprimido. Trata-se de unidade imaginária e simulada da totalidade significativa, sempre em analogia com a totalidade significativa de um cosmos por Deus criado. As formas abertas da arte moderna são, segundo Adorno, uma resposta de urna consciência estética emancipada ao ilusório e violento de tais totalidades significativas tradicionais.

Os aspectos ilusórios e violentos das tradicionais sínteses de significado são o que Adorno visa quando por um lado caracteriza a arte moderna como um processo voltado contra a obra de arte como uma síntese de significados e quando ele por outro lado, em favor da arte moderna, defende o princípio de individuação e a cada vez mais profunda configuração do singular. Ambas as alas podem ser pensadas em união, de forma a tornar necessária uma organização mais flexível e individual que traga o não-integrado, o avesso-ao-sujeito e o sem sentido para dentro da arte moderna. A abertura da obra ou a eliminação de suas fronteiras deve ser entendida como correlato de uma crescente capacidade de integração, estética do difuso e do parcelado. Desde que não pensemos só nos produtores, como Adorno sempre fazia num peculiar estreitamento da perspectiva, mas também nos receptores, poder-se-ia dizer que as formas abertas da arte moderna não constituem somente a imagem inversa (espelhada) do sujeito descentrado e de seu abalado mundo, mas respondem também pelas novas possíveis formas do sujeito lidar com sua descentração. Isso quer dizer: para uma forma de subjetividade que não mais corresponde à unidade rígida do sujeito burguês, mas expressa uma forma mais flexível de organização de um eu-identidade comunicativamente desestabilizado.86  Ambos -- o estremecimento do sujeito e de suas estruturas de significado no mundo moderno e a possibilidade de uma nova convivência com um mundo descentrado pela ampliação das fronteiras do sujeito -- são enunciados na arte moderna. A arte moderna poderia evidenciar o potencial emancipador do moderno contra as ampliações técnicas e racional-burocráticas, ou seja, contra a dominante forma racionalizante na sociedade moderna. Na arte moderna, uma nova espécie de síntese, de unidade, aparece, por meio da qual o difuso, o não-integrado, o sem-sentido, o parcelado poderia ocupar um espaço de não-oprimida comunicação nas formas abertas da arte bem como em estruturas abertas, permitindo a individuação e a socialização sem rigidez.

Como disse antes, é necessário ler Adorno um pouco ao contrário para em seu entendimento do moderno estético encontrar elementos de um conceito pós-racionalista -- pós-moderno -- da razão e do sujeito; precisamos por assim dizer arrancar a sua estética do contexto da filosofia dialética da reconciliação. Fazendo-o, não é mais possível encarar os processos sistêmicos e culturais de diferenciação da modernidade -- a cristalização da economia, do direito e da política e a diferenciação das esferas de valor (Habermas), tais como ciência, arte e moral -- como somente um sintoma de racionalidade reificada, ou seja, a partir da perspectiva de uma unidade a ser erigida (reconciliação). Implica realmente que nós, como dito por Lyotard, temos de abandonar a esperança de urna reconciliação dos jogos da língua. O resultado de minha primeira leitura de Adorno parece contradizer a segunda; a tentativa de resolver essa aparente contradição parece consistir naquilo que já caracterizei corno impulso pós-moderno: o impulso em favor da auto-superação da razão.

O meu ponto de partida, assim como o de Lyotard, é que cada sociedade -- moderna ou pós-moderna -- detém uma irredutível pluralidade de intrincados jogos linguísticos. Tanto no sentido kantiano de diferenciada localização da razão teórica, da razão prática e da razão estética (dos discursos científico, prático-moral e estético) como no entender de Wittgenstein de uma pluralidade de formas de vida, jogos linguísticos locais e intrincados, formas de legitimação, ultrapassagens continua-mente renovadas, esclarecimentos e acordos -- sem a possibilidade de um meta-discurso que tudo abrigue -- uma metateoria ou uma fundamentação extrema) e sem a possibilidade, nem mesmo o desejo, de um consenso geral. Até aí tudo bem. Mas que isso não é uma resposta quanto a uma razão pós-moderna é mais do que claro - trata-se somente de urna resposta negativa. A pergunta sobre justiça sem consenso é deixada em aberto por Lyotard: para quem vale a regra deixe-nos jogar em paz e quem a seguirá? No fim de seu ensaio La condition pós-moderne, Lyotard formula uma alternativa que de certa forma repete as ingenuidades das tradições anarquistas:

Finalmente podemos ver quais os efeitos que a informatização da sociedade tem sobre essa problemática. Pode satisfazer o 'sonho' de um instrumento de controle e regulação do sistema de mercado, que agora se amplia para abrigar também o conhecimento que é exclusivamente dirigido pelo princípio da performance. Traz consigo, inevitavelmente, o terror. Mas pode também servir àqueles grupos que discutem decisões metaprescritivas, dando-lhes a informação que geralmente lhes falta para poder decidir plenamente consciente o que fazer. A linha a seguir para alcançar essa trilha dentro da informatização é muito simples, ou seja, permitir livre acesso do interesse público aos bancos de dados.87 

Um interesse público livremente debatido é, apesar de tudo, um reconhecimento do universalismo do iluminismo democrático e uma surpreendente confirmação da ideia fundamental da teoria de Habermas sobre a racionalidade comunicativa. Será que Marx pensava outra coisa ao se referir aos produtores livremente associados que fornecem pela produção comumente regulada a transformação da natureza? Quando acima me referi à ingenuidade, não tive outra ideia e sim a confiança de que se trata de algo simples. O que Lyotard praticamente só menciona de raspão -- o que é característico do anarquismo pós-moderno e pós-empírico -- é aquele problema em torno do qual se desenrola a luta dos povos oprimidos, os movimentos de libertação, luta por uma psiquiatria democrática e finalmente todos os conflitos e as crises da sociedade industrial, sem que nenhum diga como e em que forma a ideia de uma autodeterminação gerai, individual e coletiva, para indivíduos, grupos e povos se possa realizar.

O que Lyotard formulou a respeito do conhecimento pós-moderno resta agora formular em relação à práxis pós-moderna. Implicaria interpretar o ideal democrático e universalista do iluminismo numa filosofia política, na qual o pluralismo dos jogos linguísticos se apresentasse como um pluralismo das instituições -- formais e informais, locais e centrais, ocasionais e permanentes. Um tal pluralismo institucio-nal, corporificando a auto-organização da sociedade e de grupos, seria impossível sem que a ação comunicativa, no sentido de Habermas, fosse o mecanismo de coordenação das atividades e se o indivíduo não tivesse a possibilidade de adquirir a capacidade de racionalmente evitar conflitos e incorporar ao individual e ao coletivo formas secundárias de autodeterminação. Quando na idéia do pluralismo dos jogos lingüísticos descobrimos o problema com as instituições democráticas que possibili-tariam urna mediação entre o individual e o coletivo, duas coisas ficam evidentes:

1) Em primeiro lugar, não podemos ultrapassar o universalismo democrático do Iluminismo sem reconquistá-lo, sem o abolir. Esse é o tema central tanto na filosofia de Habermas corno na de Castoriadis sobre a sociedade moderna. Esse universalismo democrático não pode, em seu sentido prático-político, ser reduzido a um projeto da modernidade no sentido de uma razão lógico-identificadora -- fazê-lo seria marxismo de má qualidade. Também não podemos pensar esse universalismo democrático sob as condições pós-modernas, sem um entendimento básico a respeito do próprio universalismo democrático, não como um princípio abstrato, mas como um conjunto de medidas práticas, de fundamentais maneiras de ser e de significados comuns. Talvez devêssemos antes falar de medidas práticas, de fundamentais maneiras de ser e de significados de uma segunda ordem, pois não se trata de um ou de outro valor, de uma ou de outra forma de vida, de um ou de outro arranjo institucional. O que é necessário é uma base comum em matéria de hábitos de vida de segunda ordem: hábitos de autodeterminação racional, quando de decisões democráticas e de solução não obrigatórias de conflitos. Isso seria urna concretização de liberdade, igualdade e fraternidade no sentido de que os problemas, uma vez assim expressos, não mais fossem atuais para uma humanidade madura.

2) Refletindo sobre a dimensão política de uma razão pluralista, fica claro, em segundo lugar, que não podemos ir além da problemática marxista sem antes resgatá-la. E excelente que nos processos de diferenciação da história moderna (economia, Estado, direito, administração, ciência, arte, etc.) possamos ver a inatingível multiplicidade de esferas de vida, de sistemas, de práticas e de discursos em ação recíproca que não possibilitam uma eliminação de diferenças num estado imediato e harmônico. Resta não menos o problema do controle do sistema de mundo pelo mundo vital, como Habermas expressou, e tal problema me parece muito mais complexo do que Lyotard, na citação acima, dá a impressão de ser. Não é só questão de acessibilidade geral das informações, mas também tanto da relação como da influência mútua entre, por um lado, processos técnicos, sistêmicos e econômicos e, por outro lado, processos políticos como a organização e a auto-organização dos processos políticos como tais.

Contra o universalismo democrático da sociedade burguesa opomos hoje que a democracia não é real enquanto não entranhar os poros da vida social. Contra Marx  e o anarquismo temos de opor que não se pode tratar de um estado imediato e harmônico. Contra o racionalismo opomos que nem legitimações extremas nem soluções finais são de se esperar. Mas isso não significa que diremos adeus nem ao projeto marxista de uma sociedade autônoma, nem ao universalismo democrático e seu sujeito autônomo, nem tampouco, à razão. Implica, antes, termos de pensar de urna forma nova o universalismo moral e político do Iluminismo, as ideias sobre uma autodeterminação individual e coletiva, e a razão e a história. É nessa tentativa que eu veria um impulso pós-moderno genuíno no sentido de uma auto superação da razão.

Fiz ver antes o significado das reflexões de Wittgenstein a respeito da língua no sentido de uma salvação filosófica da razão e do sujeito. Poder-se-ia afirmar que tal salvação reside na radicalização de um ceticismo que, em forma radical, poderia funcionar como um antídoto à cética destruição do sujeito e da razão -- uma volta, por assim dizer, ao comon sense. À medida que a reflexão wittgensteiniana destrói o ideal da razão -- a fé fundamentalista em bases extremas e a crença utópica em soluções últimas --, localiza, ao mesmo tempo, a razão mima teia de mutáveis jogos linguísticos sem fim nem inicio e sem nenhuma garantia, mas também sem limites nítidos e sem ultrapassagens obstruídas.

Localizar a razão dessa forma implica ao mesmo tempo mostrar que não existem limites apriorísticos para uma discussão racional e que as distintas aptidões, no sentido de Kant, não são separadas entre si por um abismo, como Lyotard objetou contra Habermas.88  Gostaria de considerar a formulação de Habermas à qual Lyotard se opõe para demonstrar que quando de urna razão localizada não se trata mais da alternativa separação ou reconciliação dos jogos linguísticos, mas da comunicação dos mesmos. Habermas escreve:

A experiência estética renova.., não só a interpretação das necessidades à luz das quais compreendemos o mundo; intervém ao mesmo tempo nas interpretações cognitivas e nas expectativas normativas e altera a forma pela qual todos esses momentos interagem.89

Habermas afirma que a experiência estética, as interpretações cognitivas e as expectativas normativas não são independentes umas das outras. Isso significa naturalmente que discursos estéticos, prático-éticos e fatuais não são separados por um abismo, mas intrincados uns aos outros de múltiplas formas mesmo se pretensões estéticas, morais e de validade cognitiva representam distintas categorias de validade que não podem ser reduzidas a urna única categoria de validade.90  Aqui não se trata de uma reconciliação dos jogos lingüísticos mas da permeabilidade mútua dos discursos. Trata-se de salientar uma única razão numa ação recíproca de múltiplas racionalidades.91


Coda

A dialética entre o moderno e o pós-moderno ainda está por ser escrita. Mas antes de tudo tem de ser transformada em práxis. Nossa época, diz Castoriadis,

urge uma mudança da sociedade, mas a mesma não se pode dar sem uma auto superação da razão.92

O pós-moderno, entendido corretamente, poderia constituir um projeto. Na medida em que o pós-modernismo é mais do que uma moda, uma expressão de regressão ou uma nova ideologia, pode ser mais bem entendido como uma busca, como uma tentativa de registrar os rastros da mudança e deixar os contornos desse projeto mais nítidos.


N o t e s --

84. O título de um volume de Konkursbuch (Livro de falência), editado 1983, ver nota 11.

85. Ver "Verdade, imagem e reconciliação" em Allbrecht Wellmer, Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunft-kritik nach Adorno (A dialética entre o moderno e o pós-moderno. Critica da razão em Adorno). Frankfurt sobre o Meno, Suhrkamp Verlag, 1985.

86. Ver Jürgen Habermas, Konnen komplexe Gesellschaften eine vernünftige Identitat ausbilden? (Podem as sociedades complexas apresentar uma identidade racional?), em J. Habermas e D. Henrich, Zwei Reden (Duas falas), Frankfurt sobre o Meno, p. 68 e a seguir.

87. Das postmoderne Wissen, cit., p. 124.

88. "Resposta à questão...", op. cit.

89. Jürgen Habermas, Die Moderne - ein unvollendets Projekt (O moderno - um projeto...), Theodor W. Adornos-Preis der Stadt Frankfurt am Main (Prêmio Theodor W. Adorno da cidade de Frankfurt sobre o Meno). Frankfurt sobre o Meno, 1981, p. 23.

90. Ver "Verdade, imagem e reconciliação" em Allbrecht Wellmer. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunft-kritiknach Adorno (A dialética entre o moderno e o pós-moderno. Critica da razão em Adorno), Frankfurt sobre o Meno, Suhrkamp Verlag, 1981, p.23.

91. Ver Martin Seel, Die Kunst der Entzweiung, Zum Begriff der õsthetischen Rationalitãt, monografia em Konstanz, 1984.


92. C ornelius Castoriad is, Durchs Labyrint, Seele, Vernunft, Gesellschaft. (Através do labirinto, Alma, Razão, Sociedade.), Frankfurt sobre o Meno 1981, p 192.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte IV.


Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.

Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson


INTERPRETAÇÃO III 

Para a metacrítica da razão da identidade lógica

Com a descentração linguístico-filosófica do sujeito e a critica das objetivações dos significados linguísticos destroem-se ao mesmo tempo as condições para a interpretação da unidade do sujeito e o conceito identificador corno os dois polos de uma consciência inicial instrumentalmente reificadora. Resta mostrar quais as consequências dessa destruição das condições filosófico-conscientes para urna critica do próprio pensamento identificador. Para Adorno (como para Nietzsche) o próton peudos* discursivos da razão reside na generalidade dos conceitos, ou seja; em que identificam o denominado outramente.

* Proton pseudos – expressão em grego: a primeira mentira. Uma falsa condição da qual decorrem outros equívocos. A frase de Schopenhauer afirmando que este mundo é o pior deles é considerada como p. p. em sua filosofia.

A impressão de identidade, diz em Negative Dialektik, é implícita.., ao próprio pensamento segundo sua forma pura.65   E a forma pura do pensamento tem sua base na generalidade do conceito, o que Adorno também caracterizou como acrescida ou violada.66  A rigidez do conceito geral, como Adorno a descreve, é, no entanto, em si urna ficção racionalista. Wittgenstein observa que a gramática da nossa língua geralmente nos mostra que as palavras podem ser usadas de muitas formas, sem que com isso deparemos algum significado fundamental, próprio ou primário. Wittgenstein emprega o termo familiar e a comparação com urna corda composta por inúmeros fios para ilustrar como as diferentes formas de se usar uma palavra se intrincam umas às outras. Essa multiplicidade de formas de uso refletem a abertura dos significados linguísticos a que me referi. Poder-se-ia até afirmar que uma força mimética atua na vida do significado linguístico, por meio do qual o não-idêntico na realidade -- parafraseando Adorno -- é refletido como algo não-idêntico nos significados linguísticos. Com isso, o desprezo para convive, para expressá-lo paradoxalmente, com a consideração do diferente de.

Adorno atribuía à língua força mimética, caso contrário não poderia cobrar da filosofia um esforço que permitisse por meio do conceito ir além do mesmo.67  De certa forma, a língua sempre exerceu esse aparentemente paradoxal trabalho, ou melhor, aqueles que a falam o exerceram. Mas se assim é, a cobrança de um uso reflexivo da língua, não reificado e sem consideração, fica menos paradoxal e desesperado do que em Adorno. Será algo em estilo com o que cuidadosamente se poderia chamar de capacidade de discernimento, imaginação e razão, sem com isso recusar uma utopia conciliatória.
Isso é somente um primeiro esboço de uma metacrítica que precisamos continuar a construir. Não é possível ignorar o significado dos problemas que fundamentam a crítica de Adorno ao pensamento identificador; o necessário é dominá-lo. A maneira correta de desenvolver uma metacrítica da crítica conceitual de Adorno seria reformular os problemas que ativam a sua filosofia. A seguir quero pelo menos dar algumas indicações concernentes a essa problemática.

O que é preciso compreender -- ou melhor, decifrar em seu sentido latente -- é o discurso de Adorno sobre o não-idêntico, que por meio da generalidade do conceito é reduzido a um só exemplar, que passa a ter a sua integridade acrescida ou violada. Adorno pensa também a violação do não-idêntico como urna inverdade da compreensão conceitual. Nisso inclui o paradoxo de expressões linguísticas que nós comumente chamamos de verdadeiras e as classifica de não-verdadeiras. Não que com isso o seu enfático conceito de verdade, o qual ele (à diferença de Nietzsche) opõe à verdade da narrativa, não possa ser nitidamente relacionado com aquilo que nós chamamos de verdade. Não se trata tampouco de afirmar o quão injusto o conceito geral é para com o particular -- mais do que as circunstâncias especificas, não é devidamente contemplado pelo uso dos signos devido à generalidade dos con-ceitos. Nisso se pode ver uma falsificação da realidade c -- como pensa Adorno -- uma injustiça para com o particular somente quando de fora procuramos compreender a dialética entre o geral e o particular, tal como se dá no âmbito do sentido linguístico, entendendo, por exemplo, a língua como instrumento -- como se as palavras fossem ferramentas com as quais se pudesse agarrar a realidade, como expresso em A dialética do Iluminismo.68  Não relacionando as metáforas acréscimo e violação à língua no seu todo, elas revelam um preconceito intencional quanto à esta; trata-se mais precisamente, como é fácil de se constatar, de uma variante naturalista da filosofia do sujeito formador de sentido.

O duvidoso em Adorno não é o paradoxal e o aporístico de seus principais pensamentos, mas um resto de ingenuidade quanto à filosofia linguística. Adorno reconheceu, é bem verdade, e acentuou várias vezes que a filosofia não pode posicionar-se fora da língua para formular uma crítica do pensamento conceptual, mas a ideia de uma crítica do conceito identificador pressupõe um tal posicio-namento fora da língua. A filosofia de Adorno é um ataque à língua como limite da filosofia do sujeito; sem saber revela tal segredo. O paradigma da filosofia do sujeito para o conhecimento da realidade foi buscado -- desde Kant até o jovem Wittgenstein -- na física matemática. A critica do pensamento identificador censura consequentemente o conceito geral como tal, e, assim, censura a razão discursiva pela relação interna entre teoria e técnica, entre conhecimento e ação, ideias implantadas na gramática lógica das teorias físicas. Dessa forma, pode parecer que o uso normal da língua comete a mesma violência sobre a realidade histórico-social como na natureza de urna rede de relações nomológicas, e que violenta justamente essa natureza. Essa constelação fundamental do pensamento explica a perspectiva filosófica reconciliadora e explica ao mesmo tempo as insolúveis aporias de sua filosofia: Adorno só pode pensar a outra consciência instrumental longe da razão discursiva e só pensar a ordem não imposta da sociedade numa natureza redimida em sua totalidade.

A consciência do caráter natural do sujeito, que A dialética do Iluminismo exige,69 não é suficiente para desmitologizar a idealista filosofia do sujeito. Primeiro a consciência de que o caráter linguístico do sujeito pode quebrar o encantamento da filosofia do sujeito e fazer aparecer a práxis comunicativa que fundamenta a base da vida do significado linguístico, desde que o representativo e o crítico são somente imagens do sujeito conceptualmente "identificador" e instrumentalmente ativo.7° Com isso arrancamos a base da crítica do conceito identificador. Se queremos falar seriamente de uma relação entre os momentos violadores ou violentos, não-verdadeiros ou genéricos em matéria de crítica linguística, só pode ser questão de problemas dentro da língua. Dessa forma, os momentos de acréscimo e de violação não a sobrecarregariam sem um uso específico de conceitos genéricos, e o não-verdadeiro seria tomado por uma não-verdade da língua (e não como uma inverdade criada pela língua). A critica de Adorno pode ser reformulada (e diferenciada) nesse sentido se entendermos a violência no pensamento identificador como bloqueios especificos, patologias ou perversões na comunicação linguística ou na práxis da sociedade. Então e só então fica claro em que sentido a generalidade dos significados linguísticos pode violar a integridade do não-idêntico ou ocultar o específico de um fenômeno. Somente quando trazemos de volta o não-idêntico existente dentro da língua para um horizonte de práxis linguística intersubjetiva fica claro quando e em que sentido a desproporção entre geral e específico pode implicar uma violação ou amputação do não-idêntico, e quais as perturbações, bloqueios e limitações específicas da comunicação que são revelados em tais desproporções. Na medida em que conseguimos nominar a injustiça que o uso reificador das generalizações e dos clichês linguísticos acrescenta ao específico, mostramos implicitamente os recursos inerentes da língua que podem ser usados para fazer justiça ao mesmo. Para explicitar isso quero valer-me de três exemplos (ou tipos de exemplos), nos quais a questão da desproporção entre o geral e o particular surge de diferentes formas.


1. A experiência de carência lingüística em relação à experiência própria.

O limite da capacidade de comunicação da língua que aqui enfrentamos certamente está ligado à generalidade e à intersubjetividade dos significados linguísticos, os quais, por outro lado, são uma condição a possibilidade de comunicação linguística (e auto compreensão). Aqui poderíamos falar de uma carência linguística da própria língua. Adorno refere-se a algo semelhante quando fala da desproporção entre opinião e conceito. O mesmo acontece ao decisivo significado que Adorno atribui a todas as formas de uso literário da língua e à objetivação estética como corretivo do uso discursivo da língua. O uso poético, literário, retórico e configurativo da língua constitui urna ampliação produtiva da capacidade de uso da língua, por meio da qual o indizível pode ser dito e aquilo encapsulado na mudez da experiência individual torna-se disponível e comunicável. Trata-se realmente de uma prestação paradoxal da língua. Por meio da introdução da expressão lingüística no espaço da comunicação geral, essa se torna algo mais do que meramente urna expressão individual: põe a nu um pedaço de realidade comum. Assim como o exemplo de Wittgenstein quanto a impressões, o "não-idêntico" na experiência torna-se comunicável pela expressão intersubjetiva, ou seja, pelo fato de seu caráter privado ter sido expresso.

A investida aos limites da língua é, nas expressões da arte, bem como nas expressões menos significativas de nossa capacidade linguística produtiva, a resposta à sempre renovada carência linguística da língua. Mas a língua, ou seja, a capacidade linguística, compreende ambas: a possibilidade de o significado esvaziar-se e emudecer, bem como de renovar-se e ampliar-se. Somente se, conforme Adorno, pensamos a superação da carência linguística em termos messiânicos, ou seja, como a conquista de uma língua verdadeira na qual o próprio conteúdo revelar-se-ia, nos recursos imanentes da língua, que vez por outra tornam fácil ou difícil superar a carência linguística, revelar-se-iam desesperadamente inacessíveis. Não se trata de contestar que nossa língua sub specie aeternitatis* é desesperadamente inatingível, mas de verificar se pode fornecer um correto conceito sobre como nossa língua realmente funciona e quais as possibilidades que permite.

* Expressão em Latim: sob a forma eterna, ou seja, ver as coisas como qualificadas pela essência divina, originadas eternamente de Deus.

A carência linguística em relação à experiência própria é ao mesmo tempo uma carência linguística para com a realidade -- nesse sentido a capacidade linguística produtiva a que me referi tem um significado para a descrição da realidade, para o discurso moral e para a argumentação filosófica. Adorno mostra, como ninguém o tinha feito antes, o significado da expressão e da representação para a filosofia, o significado do momento estético que não é ocasional para a filosofia.72 Adorno somente articula os problemas na polaridade entre sujeito e objeto, não conseguindo esclarecer corno o problema da apresentação e o problema da verdade se interlaçarn. Tais diferenças em problemas serão esclarecidos nos próximos dois exemplos.


2. Sobre o uso "enriquecedor" e o uso "limitador" da língua, bem como o entrelaçamento da inverdade com a injustiça podem ser vistos no conto Wittgensteins Neffe, de Thomas Bernhard, que contém uma sugestiva narrativa:

Os chamados psiquiatras caracterizaram a doença de meu amigo corno isso, como aquilo, sem a coragem de reconhecer que não há um nome determinado para essa doença ou para qualquer outra, o que há são sempre denominações errôneas, enganadoras, desde que eles e os demais médicos, por meio de denominações hospitalares sempre errôneas, tornam a vida fácil e criminosamente cômoda para si mesmos. Continuamente pronunciam as palavras maníaco e depressivo, e em todos os casos sem razão. Continua-mente se refugiam (como todos os outros médicos) em novos termos científicos (protegendo-se a si, mas não aos pacientes).73

Escolhi essa curta citação de Bernhard por ser tão plurivalente que permite associações de direcionamentos os mais diversos. Poder-se-ia, de início, dizer que Bernhard descreve uma práxis psiquiátrica que do ponto de vista cognitivo é acrítica e do ponto de vista terapêutico é desumana. Termos psiquiátricos são empregados para objetivar e classificar as pessoas empurrando-as para as rotinas de tratamento. Continuamente refugiam-se... em novos termos científicos, fazendo-nos pensar em falta de conhecimento específico encoberta com o emprego de uma terminologia de diagnóstico superficial e ligeira, usada para defender a autoridade do médico ou só por comodidade (criminosa), ou seja, que os médicos por causa das eficientes rotinas não se dão ao trabalho dos casos específicos. Os médicos no nosso exemplo tornaram a vida fácil e criminosamente cômoda para si mesmos, isto é, sua incompetência e comodidade têm consequências criminosas. Ao invés de proteger os pacientes (ajudá-los, engajar-se em seus problemas), protegem a si mesmos. As denominações hospitalares são falsas pelo motivo de serem usadas impropriamente e para proteger a si mesmos. Sua falsidade é parte de uma falsa práxis, que é falsa por divergir da obrigação do médico. Numa tal práxis todas as denominações são falsas pelo fato de terem sido empregadas falsamente.

Psiquiatria e medicina são naturalmente exemplos arbitrários (mesmo se não para Bernhard) por nós escolhidos; poderíamos muito bem haver falado de (exemplos buscados de) sistema judiciário, burocracia ou bobagens corriqueiras. Mas fiquemos com a psiquiatria. Poder-se-ia pensar que um outro uso de termos profissionais como maníaco e depressivo (ou mesmo de termos mais apropriados) não marcaria o fim das tentativas de classificação, mas sim o início de um tratamento terapêutico. No primeiro caso, empregam-se os termos profissionais psiquiátricos justamente como classificações de espécimes de frutas e de legumes que devem ser sortidas para estocagem, no segundo caso, constituem as primeiras tentativas a respeito do caráter e da etiologia de uni enfermo fazendo com que a imaginação do terapeuta seja dirigida num outro sentido. No último caso, a classificação serviria a uma primeira orientação de um processo terapêutico, no qual se trata da concreta conquista de sua história. Não é possível ver nas próprias palavras (ou frases) se são usadas de uma ou de outra forma. Só no segundo caso há condições de corretamente formular perguntas sobre a verdade ou a falsidade de previsões e suposições.

Poderíamos passar de classificações de pessoas e doenças para a classificação de fenômenos socioculturais, por exemplo, obras de arte. Há uma forma de classificar empregando conceitos de forma e estilo que têm muito em comum com o uso de expressões profissionais e chavões quanto à vida social. O conceito da forma das sonatas pode por exemplo ser usado abrigando tudo desde Haydn até Beethoven e Schubert num mesmo escaninho, mas pode também -- junto a outros conceitos de teoria da música -- ser diferenciado historicamente permitindo uma frutífera análise individualizada (algo demonstrado de forma inigualável por Adorno). Mas ao invés de arrastar associações deste campo para o das ciências sociais e da cultura, retornarei à psiquiatria. Bernhard emprega a palavra falso de uma forma que lembra a caracterização feita por Adorno do pensamento identificador. O não idêntico é aqui as pessoas individualmente e suas histórias como doentes, violadas a ponto de impedir um tratamento comunicativo, perdendo assim a possibilidade de reconquistarem a si mesmas. As pessoas são coisificadas, transformadas em meros exemplares e postas de lado. Assim se comportam os médicos na narrativa de Bernhard, como todos os demais médicos.

Aqui não nos interessamos pelas raivosas e injustas generalizações de Bernhard. Podem ser lidas, no entanto, como observações de que práticos da medicina coisificam os pacientes comportando-se como instituições (também fora da psiquiatria). Como institucionalizados, esses práticos da medicina adquirem um poder impenetrável, que excede qualquer alcance moral. Todos os médicos -- não se trata mais de pessoas que agem incorretamente como indivíduos, mas de membros de uma instituição que cumprem seus papéis preestabelecidos. (Marx teria chamado de máscaras de caráter.)
Poder-se-ia falar ainda da institucionalização de falsos usos da língua. No modernismo, tais institucionalizações são ligadas a uma sistemática produção de conhecimento, a discursos institucionalizados das ciências empíricas. Para captar todas as conotações da palavra falso em Bernhard necessitamos também falar das ciências que fornecem o quadro cognitivo dos profissionais coisificadores. Isso nos leva de volta a Adorno. Para ele os profissionais coisificadores estão indissociavelmente ligados à reificação das pessoas pelas ciências. Uma ciência humana é reificadora se toma a física como ideal metodológico, pois então seu procedimento inclui as mesmas relações entre saber e técnica da gramática lógica das teorias da física. Consideremos -- hipoteticamente -- que uma ciência psiquiátrica entendesse assim. Então a recusa de comunicação da qual Bernhard culpa os médicos já estaria compreendida na língua e na técnica da psiquiatria. Nesse caso a pala-vra "falso" não poderia ser entendida em Bernhard como indevida em seu emprego como expressão específica e significativa da psiquiatria, mas como caracterização de uma linguagem científica: seria falso em razão de suas regras de uso normal já implicarem uma coisificação dos pacientes.

A partir do texto de Bernhard podemos, portanto, pensar diferentes formas de uso indevido da língua tais que a inverdade das afirmações está ligada à injustiça dos atos. O pensamento identificador é ligado aqui à recusa de comunicação e a uma vio-lação da integridade pessoal. Não poderíamos, naturalmente, pensar uma tal relação entre inverdade e injustiça se não entendêssemos o objeto da pesquisa corno interlocutor potencial de uma comunicação linguística.74    Fatos sociais e psicológicos só são em última instância acessíveis a partir de atitudes dos participantes da comunicação. Nisso reside não só a base dos limites de uma possível objetivação de fenômenos sociais e psíquicos, mas também um uso indevido de conceitos genéricos (ou um uso de indevidos conceitos genéricos): em nível de declarações pode manifestar-se corno inverdade e em nível dos atos e das atitudes como violação do "não-idêntico". Não se trata aqui de desenvolver uma alternativa da teoria científica empírica. Quero apenas afirmar: somente se, como Adorno, encararmos o fisicalismo como uma objetivação anticomunicativa da realidade, estabelecida já nos pressupostos de uma produção linguística da realidade, podemos pensar que uma crítica de empregos reificadores -- em estilo como o acima mencionado -- nos obriga a ir além do conceito em seu nominalismo. Na realidade, obriga-nos somente a ultrapassar um entendimento científico e linguístico dogmaticamente limitado.


3. Opressão do sistema e raiva do não-idêntico;75  bloqueios da reflexão.

A dialética do Iluminismo reza que a lei da contradição é o sistema numa casca de avelã. A aparência de identidade, que segundo Adorno é implícita ao pensamento conceptual, é ao mesmo tempo a imagem de uma ordem das coisas gerada pela opressão sistêmica do pensamento conceptual. Adorno entende a opressão psicológica do sistema corno correlação do princípio do eu, obrigação de formar um eu unitário. À luz da opressão sistêmica revela-se o não-idêntico, o incomensurável, o inordenável, como ameaça: fúria e medo são formas típicas de reagir à experiência do não-idêntico. O não-idêntico deve ser evitado, afastado (corno no processo de socialização), ser visto como tabu (como nas sociedades primitivas),76 renegado (como em todas as formas de dogmatismo) ou psiquicamente eliminado.

Para Max Weber, o processo de racionalização no mundo moderno é, em grande parte, um processo de sistematização, tanto no nível do conhecimento corno no da ação. Essa ideia de Weber sobre urna relação prática e teórica entre racionalidade e sistema foi adotada por Adorno, mas de certa forma com indicações inversas: Adorno acentua a loucura na opressão sistêmica. Não só sistemas paranoicos, ideológicas visões de mundo e burocráticos modelos de ordem são vistos por Adorno como loucura; ele encontra momentos de loucura e paranoia também nos sistemas filosóficos. Em Adorno, a critica do pensamento identificador torna-se uma critica da razão totalizante, e a sua própria filosofia torna-se uma tentativa de desembaraçar-se da opressão sistêmica do pensamento conceptual.

Agora, novamente, é cabível, dentro do quadro de modelo unidimensional da relação sujeito-objeto, responsabilizar o caráter discursivo do pensamento conceptual pela rigidez do sistema. Adorno pensa a palavra discursivo monologicamente: ele pensa infraestrutura e argumentação segundo o modelo de um contexto de frases dedutivo. Por isso é forçado a reinterpretar as idealizações que estão na base da lógica formal -- ou seja, a aceitação idealizada de significados fixos -- como uma característica dos próprios conceitos. Para ele a rigidez do sistema dedutivo reside no próprio conceito. As explicações psicológicas da opressão sistêmica dadas por Adorno são, no entanto, mais convincentes do que aquelas lógico-conceptuais. Não menos, a descentração lingüístico-filosófica do sujeito exige o reconhecimento de que o caráter discursivo do pensamento conceptual não pode ser plenamente caracterizado em termos de uma relação dedutiva entre frases. À argumentação é inerente não só oscilar entre conceito e coisa, mas também oscilar entre um conceito e outro quanto à coisa. A argumentação, que segundo seu conceito tem vários sujeitos participantes (mesmo quando esteja interiorizado corno reflexão, não carece somente de relações dedutivas linearmente estabelecidas entre frases, mas também de significados fixos. À medida a que distintos enfoques, atitudes e empregos da língua colidem entre si e são postos em questão na argumentação, esta ganha uma dimensão "formadora de significado", e a vida do significado linguístico assume uma forma reflexiva dentro da mesma. Eu gostaria de dizer: mesmo se uma dimensão de identidade lógica é essencial para a argumentação (assim como para a fala em geral), não se compreende o especificamente racional na argumentação se a reduzirmos a essa dimensão teórico-cientifica. É justamente isso que se tem mostrado na mais recente discussão teórico-cientifica. Nem mesmo a racionalidade nos avanços científicos da física pode ser entendida por meio de um modelo formal de racionalidade de argumentação. Nesse sentido poder-se-ia acusar Adorno de haver tornado a si um conceito racionalista da razão discursiva, e somente por isso a sua crítica da razão totalizante torna-se uma crítica da razão discursiva.

A fúria contra o não-idêntico que se expressa na opressão pelo sistema não é expressão de racionalidade discursiva mas, pelo contrário insinua uma falta de racionalidade discursiva. Tal falta de racionalidade discursiva se expressa como incapacidade e bloqueio de argumentação. Falei de bloqueio da reflexão por reunir a incapacidade de experiência (de engajar-se na coisa ou na realidade) e a incapacidade de autocorreção. Esse rígido sistema é correspondido por um rígido eu — nisso Adorno estava certo. Mas não é preciso sair da razão discursiva para, corno Adorno tentou, imaginar uma coerência fora da opressão do sistema,77 uma forma de individuação além da rígida opressão da identidade. A perspectiva normativa de uma unidade livre de opressão é praticamente inerente às bases linguísticas da razão discursiva.

O conceito de Adorno sobre a razão discursiva assemelha-se àquela imagem da razão delineada pelo limitado cientificismo iluminista. Apresenta-se em Adorno com indicações invertidas. Enquanto o iluminismo cientificista extrai de dentro da matemática e do paradigma da matemática a sua imagem afirmativa da razão, a ciência natural matemática e a própria matemática tornam-se paradigmas de uma racionalidade que reifica sob forma do discursivo. Descentrando-se linguisticamente o sujeito, tese e antítese também ficam erradas. Isso implica ao mesmo tempo uma desmitologização (ou desdiabolização) da lógica formal, da matemática e da física.   A sua racionalidade não corresponde à imagem que o iluminismo cientificista havia configurado a respeito das mesmas. Matemática e física também são ligadas a sistemas de signos linguísticos, cujo significado só pode ser formado. estabilizado e modificado por meio de uma práxis comunicativa. Eles também pedem profissionais de perfis imprecisos, o que se evidencia em crises de identidade. A física é por certo o protótipo da maneira de pensar objetivante. Pelo fato de construir e pesquisar a realidade como uma rede de contextos nomológicos, abre ao mesmo tempo um campo para possíveis intervenções instrumentais e controle técnico. Mas como objetivante, a física não pode ver seus fundamentos como não-objetivantes, sua base numa práxis histórica. Da mesma forma que a lógica formal se abstrai da vida do sentido linguístico, a física se abstrai da dimensão comunicativa da práxis humana. É, por assim dizer, conhecimento sobre a realidade sub specie aeternitatis um sujeito singular. Daí o papel central do sujeito singular na filosofia dos novos tempos. Mas o cientificismo não foi estabelecido na física, mas sim na filosofia do sujeito, e a crítica do pensamento identificador é de certa forma cientificismo com sinais trocados. Reprova o conceito por aquilo que uma metafísica que despreza a língua lhe ocasionou. O fato de o que realmente interessa não poder ser dito nem segundo Adorno nem segundo o jovem Wittgenstein (mesmo se a filosofia depois de Adorno contra Wittgenstein insiste em dizer o que não é possível dizer78  liga-se ao fato do sujeito não poder existir sob as premissas da filosofia do sujeito como o limite do mundo fisicamente objetivável.79   Dessa forma a tentativa de ultrapassar os limites da consciência instrumental torna-se urna tentativa da filosofia aporética (de aporia) de por meio do conceito ir além do conceito.80  Adorno só pode pensar que a parte da razão verdadeira que ultrapassa o instrumental -- ele a classifica de mimese -- se encontra fora da esfera do pensamento conceptual. A descentração linguístico-filosófica do sujeito não implica entretanto a demonstração de uma dimensão mimético-comunicativa no interior da razão discursiva. A razão discursiva sempre foi mais do que lógico-formal, razão instrumental e opressão do sistema. Por isso as suas potencialidades imanentes só precisam ser liberadas para pôr a razão instrumental em xeque e dissolver a falsa imagem da totalização.

A crítica filosófico-linguística do subjetivismo possibilita uma diferenciação da crítica da razão lógico-identificadora que também implica uma relativização. O que resta é um fulcro relativo na crítica do pensamento identificador que diz respeito à própria posição da filosofia. A definição da filosofia de Adorno -- que o esforço cabe aquele que por meio do conceito ultrapassa o conceito -- permanece válida num certo sentido mesmo depois que o seu conceito de conceito identificador é posto em questão, Com isso referimo-nos ao ponto em que o pensamento de Adorno coincide com o de Wittgenstein, mesmo o do Wittgenstein tardio. Não se trata mais da utópica perspectiva de uma razão transdiscursiva, mas do caráter impróprio do discurso filosófico, da relação entre falar e mostrar em filosofia. A filosofia mostra aquilo que evita um enunciado linguístico -- não porque o específico evite a generalização conceptual, mas pelo fato de a filosofia tematizar a própria relação entre o específico e o geral, entre a língua e o mundo. Ao mesmo tempo, a filosofia trata da questão de como entendermos a nós mesmos como seres falantes. Juntamente com a relação entre língua e mundo, o problema da racionalidade constitui o principal tema da filosofia. Mas o objetivo da filosofia não é nem demonstrar opiniões sobre a realidade nem fundamentar normas morais, mas evitar confusão, lembrar o já sabido (Wittgenstein) ou lembrar o esquecido (Adorno). O entendimento para o qual a filosofia aponta é o de se localizar acertadamente o que fazemos com a língua e o que somos por meio da língua. As descrições da filosofia, suas explicações, argumentações e exposições visam a esse intuito. Mas essas descrições, explicações, argumentações e exposições valem-se de uma linguagem objetivante que emudece ante o tema da filosofia que não é objetivável -- da mesma forma como os significados linguísticos não o são -- os quais não por acaso passaram a constituir um tema central na filosofia contemporânea. Isso não implica que as sentenças filosóficas sejam falsas ou sem sentido; implica, pelo contrário, que o uso correto de frases filosóficas é impróprio. As sentenças filosóficas cumprem seu objetivo quando chegamos ao ponto de ver as coisas com clareza. Querem mostrar o que dizem. Por isso, parafraseando Adorno, a filosofia não é indiferente e superficial quanto à exposição ... pelo contrário, é imanente em sua ideia;81 por isso é essencialmente impossível de ser referenciada  e por isso comporta a ideia de sistema filosófico -- literalmente sistema cognitivo -- um mal-entendido filosófico quanto à própria natureza da filosofia.83 Na filosofia deparamos realmente, como pensou Adorno, o limite do conceito, mas só filosofando consideramos os limites da língua e não nos encontramos inteiramente dentro da língua ou -- como talvez quiséssemos -- além de seus limites.
Tenho examinado a crítica da lógica identificadora e totalizante encontrada em Adorno pelo fato de parecer ser o mais importante defensor da mesma. A critica pós-modernista da razão totalizante difere naturalmente daquela de Adorno por meio da decidida recusa de uma filosofia de reconciliação. Nisso reside somente uma imaginária vantagem sobre Adorno. Nele a perspectiva filosófico-reconciliadora implica não menos uma defesa da razão contra o irracionalismo, um interminável esforço dialético para na má razão descobrir rastros de uma melhor. A metacrítica da crítica do pensamento identificador mostra que tais rastros são mais nítidos e difíceis de apagar do que Adorno quis reconhecer: não é preciso nenhuma esperança messiânica para aclará-los.

Mas se abjurarmos a esperança messiânica quanto ao absoluto sem ao mesmo tempo revidar o caráter absolutista da crítica racional, uma crítica da razão totalizante só pode desembocar em afirmação, regressão ou cinismo. O exemplo de Adorno mostra na realidade que a descentração do sujeito torna necessária uma relativização da crítica racional: a crítica da razão totalizante não atinge mais a razão discursiva como tal, mas um emprego incompleto, imperfeito ou pervertido da razão. Relativização não implica necessariamente atenuar, quer dizer que mais ou menos delineamos os limites dentro dos quais a crítica racional faz sentido sem reverter em metafísica ou cinismo. Isso implica dar uma nova chance à razão e ao sujeito. Tal possibilidade não pode naturalmente ser do tipo que o iluminismo racionalista profetizou para o sujeito e a razão. Mas que tipo de possibilidade então seria? Com essa pergunta retorno ao terna sobre o moderno e o pós-moderno.


N o t e s :

65. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 17.

66. Ibidem, p21.

67. Ibidem, p 27.

68. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit. p. 56/69.

69. Ver ibidem, p. 57.

70. Este é também o pensamento capital na crítica a Adorno feita por Jürgen Habermas (ver principalmente J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns [Teoria dos atos comunicativos].). Frankfurt sobre o Meno, 1981, vol. I, p. 489 e a seguir, principalmente p. 522 e a seguir. Habermas descreve os limites da filosofia do sujeito da seguinte forma: "Como 'objeto' a filosofia do sujeito vê tudo o que se pode imaginar como sendo; como 'sujeito' vê antes de mais nada a capacidade de objetivamente relacionar-se com tais entidades no mundo e - teoricamente ou praticamente - dominar os objetos. Os dois atributos da consciência são imaginação e atuação... Essas duas funções da consciência estão intrincadas uma à outra: o conhecimento objetivo é estruturalmente ligado à possibilidade de intervenção no mundo como intervenção objetiva; e a ação consciente exige por seu lado conhecimento do contexto no qual intervém" (ibidem, p. 519). Com Habermas poderíamos, no entanto, caracterizar o surgimento de uma dimensão comunicativa da língua em que por meio da relação simétrico-performativa entre sujeito e sujeito se obtém a mesma importância que entre sujeito e objeto. A objetivação da realidade indica uma comunicação interna à língua. Por trás da instrumentalmente ativa estrutura monológica da língua surge, assim, uma complicada estrutura dialógica: dois sujeitos fazem-se compreendidos a respeito de algo no mundo. A gramática para os pronomes pessoais na primeira e na segunda pessoa do singular refletem a relação simétrico-performativa entre orador e ouvinte numa conversa "comunicativo-orientada". Fatos objetivos só podem existir num espaço de tais relações entre potenciais oradores e ouvintes - donde as relações gramaticais entre primeira, segunda e terceira pessoas refletem as condições especificas de objetivação de fatos sociais,

71. Theodor W. Adorno, Fragment Ober Musik und Sprache (Fragmentos sobre música e língua), em Gesammelte Schriften (Obras reunidas). Vol. 16, Frankfurt sobre o Meno, 1978, p. 252.
72. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 26.

73. Thomas Bemhard, Wittgensteins Neffe (O sobrinho de Wittgenstein), Frankfurt sobre o Meno, 1982, p. 13 e a seguir.

74. Ver a teoria de Habermas sobre a ação comunicativa como um desenvolvimento sistemático desse pensamento. Meu argumento contra Adorno é, no entanto, independente da sistemática na teoria linguística de Habermas.

75. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 34.

76. Ver Mary Douglas, Purity and danger (Pureza e perigo). Londres, 1966.

77. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 34. O pensamento de Adorno gira sempre em torno da ideia de uma unidade livre de opressão - como forma de conhecimento, como forma de individuação e como forma de solidariedade social. Expressões como a coerência do não-idêntico e conceito livre de opressão expressam tal idéia. O problema mais agudo de Adorno é possivelmente a questão sobre como ambas as formas de unidade -- por um lado a do conceito e a obrigação de identidade e sistema do eu-princípio, e por outro lado a coerência do não-idêntico -- podem ser relacionadas uma à outra. Em duas mudanças típicas em Negative Dialektik consta: Unidade e concordância são, no entanto, a tênue projeção de urna situação reconciliada, não mais antagônica, das coordenadas de um pensamento senhorial (p. 35). E: A concepção do sistema lembra, de forma distorcida, coerência do não-idêntico, que foi violada pela sistemática dedutiva (p. 36). Tais formulações comportam ao mesmo tempo a defesa de Adorno da razão discursiva contra o irracionalismo (ver ibidem, p. 20). Mas a filosofia de Adorno carece do grau de liberdade conceitual necessário para responder à questão por mim colocada.

78. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 21.

79. Ver Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, Lund 1982, p. 632.
80. Ver Negative Dialektik, op. cit, p. 27.

81. Ibidem, p. 29.

82. Ibidem, p. 44.

83. Ibidem, p. 33 e a seguir. 

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Segue parte V