domingo, 13 de outubro de 2013

DEPOIS DE 1848, NADA NOVO


Frank Svensson – Brasília, 2001.

Com Marx caracteriza-se um divisor no desenvolvimento do conhecimento histórico. Toma-se 1848 como marco temporal, por terem Marx e Engels elaborado e enunciado naquele ano o Manifesto do Partido Comunista, documento básico de conclamação ao proletariado para assenhorar-se de seus meios de produção e dos destinos da história, feito que ocorreu dentro da formação socioeconômica do capitalismo. Muito se pensou e praticou em matéria de conhecimento histórico pós-Marx, mas nada de essencialmente novo que em método e teoria pudesse ser entendido com a mesma importância histórica.

O conhecimento histórico e do pensamento a seu respeito caracteriza-se, pós-Marx, em desenvolvê-lo ou contradizê-lo. Travam-se conflitos e lutas no campo da superestrutura da formação do capitalismo, entre ideias que favorecem àqueles que só vivem de seu salário e não detêm os meios de produção e o ideário que favorece indivíduos e grupos detentores do poder na sociedade capitalista. Experiências significativas sucedem-se no mundo e configuram a nova formação socioeconômica, o socialismo, todas baseadas em teorias marxistas.

Em maior escala dão-se os problemas globais, expressão de crise da formação ainda predominante. Neste ocaso do capitalismo, as teorias do materialismo histórico são confrontadas por posicionamentos conceituais divergentes, fundamentalmente por interesses de classe. É comum negarem-lhes a validade de leis objetivas para desenvolver a sociedade. Quando não declaram extinta a história (como Fukuyama), consideram-na confusa, consagrando o caos e o casuísmo.

O caráter anticognitivo histórico, divergente do materialismo histórico, visa negar o desenvolvimento justo da sociedade. É avesso a considerar o fator trabalho como principal categoria do conhecimento histórico, Formula teorias arquitetônicas a partir de um subjacente conceito de convivência humana que não considera o fator trabalho. Esquece a importância que essa forma de conhecimento teve, na derrocada do sistema feudal, para a ascensão ao poder das classes que o negam ou menosprezam atualmente, por resistirem à substituição pela nova classe, a dos trabalhadores.

As teorias hoje divergentes das do materialismo histórico podem ter 3 enfoques:

1º -  psicologizante -- situa as bases do desenvolvimento social em fatores psicológicos: desejos, vontade, instintos, intuição, prazer e fruição, percepção e gosto, convivência fortuita e lazer não programado; a intranquilidade social no capitalismo explica-se menos por suas leis objetivas, mais por deficiências psíquicas; para sanear os sérios problemas sociais, aperfeiçoar a mentalidade da população é o remédio ministrado.22

2º - sociobiológico -- recomenda o conhecimento positivista ou o neopositivista.

3º - micro sociológico -- tem apoio na sociologia empírica.


ENFOQUE PSICOLOGIZANTE

Na história do pensamento social, dificilmente se encontrará teoria mais popular, de mais influência sobre a vida intelectual do que a teoria psicanalítica de Freud. Nasceu na primeira década deste século, como um método de tratamento de neuroses em ambiente hospitalar. Fundamentou uma nova área da psicologia e introduziu uma filosofia social cujos defensores sustentam que seus métodos solucionam problemas sociais tão bem quanto problemas médicos.

A teoria de Freud tem caráter biopsicológico, centra-se nos instintos. De instintos biológicos imutáveis, supõe inconciliável conflito entre vida e morte do indivíduo. Afirma ser a psique biológica por natureza, não depender do mundo externo, da realidade social. Minimiza categoricamente a influência do contexto ambiental na estrutura mental do Homem.23

Embora com a teoria dos instintos Freud buscasse as causas da atividade mental, na teoria da repressão explicou a dinâmica do comportamento do homem forçado (pela necessidade de preservar-se) a suprimir instintos e a orientar energias a direções aceitáveis. Desviada de suas originais finalidades sexuais, a energia mental redistribui-se para satisfazer necessidades socialmente motivadas. Freud sustenta:

A sublimação dos instintos é um notável feito do desenvolvimento cultural; é o que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas jogar um papel tão importante na vida civilizada. 24

Vê-se então que quando a demanda de sublimação civilizatoriamente imposta excede a capacidade do indivíduo, produzem-se neuróticos e criminosos. Se os impulsos interiores não são postos em xeque, o indivíduo se torna criminoso; se suprimidos, torna-se neurótico; se são sublimados em atividades socialmente úteis, está apto a viver em sociedade, sem maiores fricções.

Freud não viu o conflito natureza humana x sociedade como um todo dialético de interpenetração de opostos, mas apenas como confrontação de partes independentes. Não considerou serem as condições sociais externas à existência do homem determinantes de sua atividade mental. Viu-as dificultando a manifestação da atividade, freando a realização das exigências instintivas do homem. Essa interpretação sociopsicológica da relação natureza humana e sociedade levou-o a um dilema não resolvido: por um lado, repressão e rejeição de instintos como essencial condição para a existência da sociedade, da civilização como um todo; por outro, a desimpedida satisfação de instintos como essencial condição para a saúde mental do homem. Analisou a sociedade como produto de 3 variáveis: 1º - necessidades oriundas da natureza; 2º - dualismo de instintos: amor e morte (Eros e Thanatos);   3º instituições e ideais que formam a sociedade.

A visão freudiana de sociedade é pessimista, trágica, instável e desacreditada, posto que a síntese das variáveis nunca é plenamente obtida. .A despeito de a sociedade valer-se dos impulsos instintivos para a garantia da vida social, os instintos não conseguem mais que duvidoso equilíbrio:

A civilização é um processo a serviço de Eros, cujos propósitos são de congregar os indivíduos, e depois famílias, raças, povos e nações numa grande unidade: a humanida-de. Se isso se consegue, não sabemos; a obra de Eros é precisamente essa. Esses conjuntos de homens devem ser libidinalmente unidos uns aos outros. Somente as vanta-gens do trabalho em comum não são capazes de mantê-los unidos. Instintos naturalmente agressivos, a hostilidade de cada um contra todos os outros e de todos os outros contra cada um opõem-se a esse programa civilizatório. Esse instinto agressivo é derivado e constitui a principal expressão do instinto da morte que trazemos em nós.25

Vê a existência de variados sistemas sociais como na luta entre as tendências do amor e da morte.26
E também crê que...

... a história decorre de nossa vontade consciente, não da capacidade da razão, mas sim da destreza dos desejos.27

Posição implícita à tese de Fukuyarna que contradisse o princípio basilar do materialismo histórico de Marx quanto à prioridade ontológica do objeto sobre o sujeito e ao reconhecimento da existência de leis históricas. A base filosófica da teoria psicanalítica, em particular a sociologia nela apoiada, tem origem nos princípios idealistas de Platão, Kant, Hartmann, Schopenhauer, Nietzsche, e Bergson. Mesmo se mostrando não adepto de doutrinas filosóficas, atraíam-no os sistemas filosóficos que defendiam o irracionalismo. Em Edward von Hartmann e Henri Bergson, Freud buscou a ideia do inconsciente. Nietsche e Schopenhauer despertaram-lhe interesse pela importância da sexualidade e das emoções inconscientes como determinantes de aspectos da vida humana. Em Um Problema em Psicanálise, Freud escreveu:

Famosos filósofos podem ser citados como precursores, particularmente o grande pensador Schopenhauer, cujo inconsciente pode ser igualado aos impulsos emocionais na psicanálise.28

Atribui-se ao inconsciente, a instintos biologicamente determinados, o vital papel da diversificada atividade mental. A razão é um elemento subordinado. Idealismo e metafísica constituem a base sobre a qual se constrói a psicanálise. Dentro da história do pensamento social, Freud reflete o terror e o desespero que atingiram os segmentos pequeno-burgueses europeus no fim do século XIX. Estudando a desordem mental das camadas inferiores da burguesia austríaca, concluiu que a maioria dos casos dependia das exageradas restrições impostas pela moral da época aos naturais desejos sexuais do homem, atribuindo validade universal a casos particulares.29

À medida que Freud relacionava sua teoria psicanalítica e as aplicações clínicas ao estudo de problemas sociais, a teoria ganhava status de método específico para explicar fenômenos da vida social. Ele se convencera de que, sem prejuízo para a essência da psicanálise, poder-se-ia usá-la com sucesso em mitologia, língua, folclore, estudo das religiões, e para tratar neuroses. As conclusões sociopolíticas permitidas pela psicanálise foram aceitas e têm defensores em diferentes setores do conhecimento.


PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO NEOFREUDISMO

Contradições entre princípios da teoria freudiana e a formulação da psicologia, da antropologia e da sociologia experimentais originaram tendências neofreudistas, entre as quais, na psicanálise, Erich Fromm, Karen Horney, H. S. Sullivan, Abram Kardiner, Franz Alexander, H. D. Lasswell e Margaret Mead. Alguns, especialmente Fromm, tentaram unir o pensamento de Freud ao de Marx.30

Graduado inicialmente em filosofia e inspirado pelas idéias de Freud, Fromm escolheu ser psicanalista. Dedicou boa parte do tempo a pesquisas em psicologia social e foi o primeiro a apontar que a teoria freudiana não estava equipada para explicar as relações entre indivíduo e sociedade. Após emigrar para os EUA (1934), iniciou com Horney e o apoio de Sullivan uma nova escola na área da psicanálise. A observação de pacientes norte-americanos dos anos 30 induziu-os a admitir que o inconsciente do homem depende da essência e das particularidades específicas de uma sociedade Substituíram o enfoque biológico ante pacientes desempregados e necessitados de ajuda, sem abandonar a concepção freudiana dos instintos humanos.

As intensas contradições nos EUA dos anos 30 e 40, com depressão econômica, desemprego crescente e instabilidade de vida, eram muito distintas das dos pacientes de Freud na Áustria do fim do século anterior. O paciente estadunidense necessitava de ajuda, de orientação para entender e enfrentar as pressões sociais. Compreendia-se um analista transformar-se em pensador social ante a impossibilidade de interpretar problemas individuais sem relacioná-los à sociedade. Daí Fromm encontrar-se com Marx, reconhecendo-o pensador de muito mais profundidade e objetividade do que Freud.31

Ao se aproximarem de Marx, Fromm e o neofreudismo não se tornam marxistas; modernizam o freudismo. Vendo o corpo teórico de Marx como uma interpretação antropológica da história e um existencialismo espiritual, fundado num conceito genético do homem, evidenciam a necessidade de distorcer o enfoque marxista para torná-lo suficientemente existencialista e aceitá-lo passível de relacionamento com o freudismo.32


A APROXIMAÇÃO DO MARXISMO LIMITADA AO PROBLEMA DA ALIENAÇÃO

O principal contato entre o enfoque psicologizante da realidade e o marxismo é a alienação, tornada clara pelo fetichismo da mercadoria e pela alienação do trabalho. Reconhece-se a alienação dos homens como característica na sociedade burguesa, mas pelo enfoque psico-antropológico. A alienação independe de concretas condições socioeconornicas da atividade humana. A vida se rege por interesses mercantis, dirigin-do a ética dos homens. Nas grandes cidades, os cidadãos são engolfados pelo consumismo e pela circulação financeira.

Indivíduo alienado é o que não se percebe centro de seu mundo, criador de seus atos. Atos e consequências assenhoram-se do alienado e o tornam serviçal deles. O indivíduo, na sociedade capitalista, com a produção em massa, é coisificado. Coisas passam a ter mais importância que a maioria das pessoas. Para Fromm, no século XIX questionou-se a existência de Deus. No XX a existência do Homem.

Lamentavelmente, o neofreudismo estacou na constatação do imediatamente manifesto, vendo alienação mais como estado psicológico do indivíduo, amortecendo a capacidade crítica da sociedade capitalista. Resultou em crítica moralista, perfeitamente aceita só por círculos românticos da intelectualidade e da pequena burguesia. Não resultou em ação revolucionária das massas, que por contradições de classe alterasse estruturalmente a ordem estabelecida. Incorreu no humanismo naturalista caracterizado por Marx como sabendo julgar e condenar o presente, sem saber compreendê-lo.33

Sua critica inofensiva constitui muito mais que um protesto eficaz, é confissão de impotência da intelectualidade radical. Bem ilustra ilusões e enganos da pequena burguesia e da intelectualidade liberal da fase decadente do capitalismo, sem meios para evita-los.

Declarando a sociedade capitalista doente e neurótica, o neofreudismo propugna por uma sociedade sadia, conforme as necessidades do homem, necessidades com raízes em sua existência, diferentemente de Freud, que via como trágico o desenvolvimento do conflito instintos pansexuais humanos x demandas morais da sociedade. O neo-freudismo sugere a possibilidade de se criarem na Terra condições sociais que permitam ao homem realizar suas potencialidades interiores. Segundo Fromm, por meio de uma terapia social a sociedade capitalista pode ser transformada numa sociedade sã, mudan-do-se o asseio psicológico de cada indivíduo, substituindo-se a orientação mercantil, consumista, pelo comportamento produtivo. A reeducação moral é prioritária, mas como o enfoque não passa pelo fulcro do capitalismo -- a propriedade privada -- defrontam-se a lógica entre o dilema da relação homem/sociedade e os aspectos práticos de sua proposta para tornar a sociedade sadia.

Passando ao largo da luta de classes como questão central das relações capitalistas de trabalho, o neofreudismo substitui o conhecimento objetivo do processo de socialização pelo desejo de humanização do modo de produção industrial. Sugere-se: o fim de um industrialismo burocraticamente dirigido, a ser substituído por um industrialismo humanista no qual o homem e o pleno desenvolvimento de suas potencialidades -- as do amor e da razão -- são o motivo das relações sociais. Como o freudismo, o neofreudismo enxerga a história como resultado de nossa vontade consciente e da destreza de nossos desejos.


ENFOQUE SOCIOBIOLÓGICO

Comte (1798-1857), professor da École Politechnique de Paris e contemporâneo (1848-49) de Marx em Paris, é pai do positivismo e da engenharia social, hoje sociologia. Ao contrário da concepção metafísica, que opõe conhecimento filosófico a conhecimento científico e a conhecimento histórico, o positivismo vê a ciência específica como sua própria filosofia, menosprezando o conhecimento do materialismo histórico.

O ingresso da burguesia no âmbito social e o desenvolvimento marcante das forças produtivas trouxeram novos problemas ao pensamento teórico. Necessitava-se de um conhecimento que explicasse o mundo ambiente e servisse de modo imediato à atividade prática, dominando as forças da natureza.

Conquista importante na época foi a incorporação à ciência do método das observações sistemáticas e da experimentação, propiciando ao conhecimento científico bases materiais sólidas e permitindo surgirem as ciências naturais teóricas. Limitadas inicialmente à física, diversificaram-se em química, astronomia, geologia e mineralogia (quanto a não-orgânicos) e botânica e zoologia (quanto a seres vivos). Disciplinas que se caracterizam por empregar métodos empíricos de aproximação dos resultados das observações a leis de caráter matemático.

Gradativamente, a ciência separou-se da filosofia e adquiriu status independente. Exercendo crescente influência sobre as culturas espiritual e material, conquistou domínio conceituai. A cientistas se confiaram postos na administração do Estado, e a igreja viu-se obrigada a modificar sua atitude para com eles.

Relembre-se que no século XIX a ciência desenvolveu-se em luta contra a escolástica, filha protegida da religião. Daí o cepticismo dos cientistas com expressões apresentadas pela filosofia. Muitos não identificaram no materialismo histórico dialético possibilidade de reunificação harmoniosa da ciência e da filosofia, por meio do reconhecimento do caráter social da ciência.

Influenciados pela autonomia das pesquisas científicas específicas e criticando os aspectos negativos do pensamento filosófico tradicional, os positivistas proclamaram a total incompatibilidade entre ciência e filosofia. Ao declararem guerra à metafísica, vitimou-os um misticismo semelhante: a ciência é a sua própria filosofia.

Uma tarefa a que Comte se propôs, classificar as ciências, apresentou num Curso de Filosofia Positiva em Auguste Comte (1798-1857). Paris (1826) e publicou em forma de livro (1830). Apoiou-se nos sábios franceses, nos matemáticos Lagrange, d'Alembert, Fourier e Gauchu, no geômetra Monge, nos físicos Biong, Dulong e Ampère, nos astrônomos e matemáticos Laplace e Arago, nos químicos da escola de Lavoisier e Berthollet (dentre eles Gay-Lussac), nos biólogos e naturalistas Buffon, Lamarck, Etienne Geoffrey Saint-Hilaire, Cuvier, de Blainville, etc., todos seguidores dos fundamentos de Descartes.

Recusando princípios subjetivistas, Comte pensava dever-se buscar resposta quanto a corno se produzem os fenômenos e não a por que se dão os fenômenos. Para sua classificação respeitava que a dependência entre as diferentes ciências se determina pela dependência existente entre os fenômenos do mundo externo ao pensamento. Dependência a ser determinada a partir da observação, não de uma conceituação apriorística. Por este princípio, Comte chegou a 6 ciências gerais: a matemática, incluindo a mecânica; astronomia, física, química, fisiologia e sociologia.

Após caracterizar as ciências decorrentes das gerais, viu-se ante o problema de agrupá-las em serie, numa lógica precisa. Essa pretensão de resultado lógico, para Comte, deveria apelar ao conhecimento histórico. Mas ao passo que a ciência faz progressos, a ordenação histórica torna-se impraticável e cede à lógica:

Eu penso mesmo que não se conhece plenamente uma ciência sem conhecer sua história. Mas esse estudo deve ser feito totalmente separado do estudo próprio e lógico dessa ciência, sem o qual sua história não seria inteligível.33

Na parte teórica de suas 6 ciências fundamentais, Comte faz um resumo histórico, mostrando como se desenvolveu o conhecimento a respeito. Com esta base formula a lei de 3 estágios do conhecimento humano. Cada ramo passa por 3 estágios teóricos: teológico (fictivo), metafísico (abstrato) e científico (positivo). A concepção teológica admite uma via direta na natureza de um ser sobrenatural -- Deus -- que age por onisciência e onipotência. A concepção metafísica inventa essências particulares para explicar os fenômenos estudados. E a concepção positiva de mundo não reconhece motivos particulares, mas vê os fenômenos como os percebem os sentidos. Comte propôs uma ciência a que denominou engenharia social (sociologia) e localizou-a entre ciências da natureza, como ciência dos corpos orgânicos, ao lado da fisiologia. Entendia por sociologia, em sentido amplo, a ciência das comunidades dos seres vivos, entre as quais situava igualmente a comunidade dos homens:

Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintas, aquelas relativas ao indivíduo e aquelas concernentes à espécie, principalmente quando é sociável. É principalmente com relação ao Homem que esta distinção é fundamental. A Ultima ordem de fenômenos é evidentemente mais complexa e mais particular do que a primeira: dela depende, sem que influa sobre ele. A partir daí duas grandes divisões na física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, que se baseia na primeira.34

Com relação a fenômenos sociais, Comte defendia:

... por um lado a influência das leis fisiológicas do indivíduo; por outro, alguma coisa de particular que modifica os efeitos e que mantém em ação os indivíduos uns para com os outros...35

E entendia fenômenos sociais pelos pontos de vista:

1°- da ordem social estudada pela estática social, que se ocupa das leis da coexistência, do regime da sociedade;
2° do progresso estudado pela dinâmica social, que se ocupa das leis da sucessão, do movimento da sociedade.
Fez os fatores sociais derivarem diretamente dos fatores biológicos correspondentes: o da organização e o da vida.36

A ordem é, para Comte, a organização, a reunião sistemática das partes num todo único. Organismo vivo e ordem social equivalem-se. Vida é crescimento, progresso na organização. O fato biológico do crescimento é essencial ao progresso social. Comparativamente, no organismo sem organização não há vida; na sociedade sem ordem não pode haver progresso.

Ao comparar biologia a sociologia, concluiu: ambas têm leis estáticas e dinâmicas; as estáticas predominam na biologia; as dinâmicas, na sociologia; a biologia deve ocupar-se dos organismos existentes e a sociologia pela evolução da sociedade.

Comte supunha que a evolução da humanidade se completaria na era industrial, o estado positivo. Nisto lembrava Hegel, para quem a história culminava com o Estado Burguês. Comte defendia uma compreensão abrangente como Hegel, mas não demonstrou a mesma profundidade de conhecimento. No caso da sociedade considerava:

... todo estudo isolado de seus vários elementos seria, pela natureza mesma da ciência, profundamente irracional e essencialmente esteri1.37

O principal defensor do enfoque positivista da história foi Franz Leopold von Ranke (1795-1886). Almejava a veracidade, libertando sua descrição de qualquer fantasia. Exigia-se criticar metodicamente as fontes históricas e historiadores, antes que sobre essa base se erigisse nova construção histórica. Para Ranke, não era papel da história julgar passados ou ensinar futuros, mas revelar como foram os fatos e como ocorreram. Escolhia os temas de seus trabalhos a partir de: leitmotif (idéias diretoras) e de tendências dominantes, detectadas ao longo do tempo, corporificadas nas políticas de Estados e governantes. A história era para ele fundamentalmente política. Interessava-se pelas dimensões econômica e social, a partir da ética luterana e do enfoque conservador quanto ao poder da burguesia.38

Comte afirmou-se como o mais significativo entre os que representaram intelectual-mente a estrutura da sociedade. Por se ater ao campo das idéias, está aquém de Marx, que esclareceu a perspectiva do socialismo por meio do princípio fundamental do materialismo histórico dialético:

... a noção de que a existência social é o fator condicionante da consciência social, e não vice-versa.

A engenharia social de Comte permaneceu limitada ao campo acadêmico; enquanto Marx trouxe as ciências sociais para o campo dos fatores básicos da mudança social, para a práxis da vida. Não se limitou à teoria e buscou engajar-se na luta por uma sociedade mais justa, o estofo de suas constatações conceituais. Diferindo de Comte e Ranke, o corpo teórico de Marx analisa e testemunha as lutas da segunda metade do século XIX, nos países onde viveu e participou ativamente da história.

De advogado defensor de pobres trabalhadores do campo chegou a presidente da Internacional Operária, o que lhe custou o exílio forçado e a miséria pecuniária decorrentes da perseguição dos detentores do poder. Vivenciou o destino dos que se opõem objetivamente à desigualdade social.

A sociologia positivista e suas formas neopositivistas passaram a disputar com o materialismo histórico dialético o caráter de verdadeira ciência social, e o enfoque positivista da história limitou-se a descrevê-la com suposta imparcialidade, sem participar de sua transformação, não tendo a postura marxista de conhecer a história fazendo-a.39


MICROSSOCIOLÓGICO ENFOQUE DA HISTÓRIA

O terceiro agrupamento de teorias divergentes do materialismo histórico é a microssociologia (sociologia empírica). Não nega abertamente o conhecimento abrangente da vida em sociedade, mas no entremeado de fenômenos sociais limita-se a estudar detalhes, aspectos parciais da realidade capitalista, sem esclarecer as relações que lhe são inerentes. A teoria não quer considerar as leis de seu desenvolvimento histórico, ocultadas pelo imediatamente aparente, para manter-se distante da consequente análise científica da realidade e da necessidade de resolver problemas sociais pela via clara da formação socioeconômica posterior ao capitalismo, posto que é conivente com ele.

Não se diga que o estudo microssociológico não é importante, mas criticável quando nega a preponderância dos fatores da esfera social sobre as pessoas. Limita-se a analisar laços subjetivos entre indivíduos em pequenos grupos (destacando-lhes o mundo interior), subestimar fatores sociais objetivos e centrar enfoque na personalidade. É tendência vê-lo construtor de seu meio imediato e idealizar os elementos que orientam suas atividades. Ergue um meio idealizado que não reflete o mundo real, o objetivo maior, e desvia a atenção para aspectos subjetivos psicológicos, razão por que encontros e convívio fortuitos constituem objeto de estudo tão sério quanto classe socia1.40

Ao se discutir o típico, em arquitetura, associa-se o meio ambiente do pequeno grupo a questões de índole, a como os indivíduos se relacionam com amigos, famílias e natureza, sob o regime capitalista. O microambiente é exposto como oásis da paz, de idílicos hábitos típicos (ou genéricos) de uma suposta cultura regional (ou nacional). Ora! Relações psicológicas -- simpatias e antipatias -- não dependem unicamente de características pessoais; em grande parte são secundárias, refletem relações econô-micas, políticas, ideológicas e espirituais da sociedade.

Para o enfoque materialista histórico-dialético, a sociedade define a estrutura e as funções dos pequenos grupos sociais, não o contrário. As relações interindividuais não são negadas, mas se avalia a influência que o trabalho, fator principal de socialização, tem sobre elas. Os indivíduos agem como parte da sociedade; as determinantes da sociedade indicam as atividades materiais dos homens, que não podem ser reduzidas a estruturas psicológicas. Ao se desviar o enfoque da constituição social para particularidades psicológicas, escamoteia-se o conhecimento quanto a classe social, o coletivo de trabalho e formações da vida associativa que decorrem das relações de produção; quanto à luta de classes e à possibilidade de paz entre as classes.


N o t a s :

22 - V. I. Dobenkrov: Neo-freudism on Surch of Truth. Moscou, 1976.

23 - Idem.

24 -  S. Freud: Civilization and its Discontents. Londres, 1939.

25 - Idem.

26 - N. Brown - Life Against Death. Londres, 1959.

27 - S. Freud - Una Dificultad de la Psicanálise Obras Completas, vol. 12. Madri, 1948.

28 – Idem.

29 - E. Fromm - Mas alla de las cadenas de Ia ilusion y Ia revolución de la esperanzza, Madri, 1975.

30 - E. Fromm: Conceito marxista do Homem. Rio, 1975.

31 - op. cit. (nota 30).

32 – Idem.

33 - K. Marx, O Capital.

34 - Idem.

35 - B. Kédrov – La Classification des Sciences, vol. I. Moscou, 1977.

36 – Idem.

37 - op. cit. (nota 35).

38 - A. Schaff: Duas Concepções da Ciência da História: o Positivismo e o Presentismo. História e Verdade. São Paulo - Lisboa, 1987.

39 - R Villar:- História Marxista, História em Construção. Lisboa, 1976.


40 - D. Anzieu e J. Y. Martin :  La Dynamyque des Groupes Restreints. Paris, 1973.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

CONTRIBUIÇÃO DE MARX AO CONHECIMENTO HISTÓRICO


Frank Svensson – Brasília 2001.


Com base no desenvolvimento da filosofia clássica alemã, na economia política inglesa e em críticas e análises formuladas por socialistas utópicos e historiadores materialistas, Marx, discípulo de Hegel, dedicou-se a esclarecer a correspondência entre a base ma-terial da sociedade e a ciência social. Diferentemente de contemporâneos seus, Marx preocupou-se em encontrar resposta quanto à formação da materialidade social e também quanto ao futuro da sociedade humana. O materialismo histórico surge como teoria, um método de estudo das leis gerais do desenvolvimento socia1.21

Marx admite existirem leis que regem o desenvolvimento da sociedade, entende a história como processo natural, com leis objetivas e independentes das vontades individuais. Não exclui do homem o papel de ator da história, mas interpreta a ação dos indivíduos sobre o desenvolvimento histórico como relativa. Assegura-lhes a consciência de deverem considerar categorias, leis e princípios teóricos da história em favor do progresso material e espiritual da sociedade. A relatividade está ligada à lei da necessidade histórica, pela qual o conhecimento da necessidade objetiva e sua apli-cação no interesse dos homens constitui a liberdade. Do homem se reconhece a aptidão de influir na história e no destino da humanidade, mas ele só alcançará o máximo de liberdade com o mínimo de conflitos quando suas iniciativas satisfizerem necessidades históricas. Este enfoque conceitual é contra as teorias do liberalismo, do neoliberalismo e as diferentes formas de anarquismo.

No materialismo histórico destaca-se a lei da prioridade ontológica da matéria sobre o sujeito. Dela decorre a teoria do reflexo e do aprofundamento, que considera como forma de reflexo da realidade externa ao pensamento a consciência atingida pelo ser humano. Em busca da verdade, segue um aprofundamento que inclui a prática e o desenvolvimento de instrumentos próprios à capacidade de pensar dos homens.

Ao enunciar que a história das sociedades que existiram até os nossos dias é a história da luta de classes, Marx estabeleceu princípios fundamentais para estudar a sociedade: classe social e luta de classes. Do conceito de classe social e da teoria da luta de classes pode-se lograr uma análise objetiva da atividade dos homens na sociedade classista, torna-se impossível obter conhecimento fidedigno quanto a homens sem esclarecê-lo à luz do lugar que ocupam num sistema de relações e sem estabelecer suas diferenças, a partir de sua posição quanto a meios de produção. Indispensável definir o papel que desempenham na organização social do trabalho, o modo como e a proporção em que desfrutam da riqueza social. Por isto, o conceito de classe e a teoria da luta de classes constituem elementos do marxismo que o pensamento burguês do atual momento de decadência do capitalismo quer desvirtuar.

A existência de classes sociais revela-se na vida econômica e transcende-a para expressar-se no plano das políticas nacional, internacional e em toda a vida espiritual da sociedade, na esfera da ideologia. Como ação e conhecimento humano implicam ação recíproca entre sujeito e objeto, entre necessidade e realidade, o reconhecimento da existência de classes sociais e das contradições entre seus interesses é ponto de partida da abordagem de problemas da ação e do conhecimento humanos.

A Formação socioeconômica é a categoria de mais amplo conteúdo no sistema de categorias do materialismo histórico. Constitui o eixo sobre o qual se apoia esse sistema, unindo fenômenos e processo sociais. Congrega os elementos necessários à integração funcional das questões referentes a atividades humanas, da base produtiva ao modo de expressão na política e na arte. Considera condicionantes naturais para a vida em sociedade um meio ambiente geográfico e determinada quantidade de habitantes. Sem intercâmbio com a natureza, impossível pensar atividades produtivas. Mas o ambiente geográfico não é determinante para a vida social porque favorece ou dificulta o desenvolvimento social.

O montante populacional representa outra importante condição: a produção se dá com homens, cujo trabalho constitui a poderosa força capaz de submeter a Natureza às necessidades humanas. Da ação recíproca entre meio ambiente geográfico e população configura-se um modo de produção que caracteriza forças produtivas, meios de produção e relações de produção. Os homens ativos são a principal força de produção, contudo só exercem atividade dentro de formas socialmente organizadas, de relações de produção baseadas na propriedade dos meios de produção. Distribuição e usufruto dos bens produzidos também têm base na forma de propriedade desses meios. O conceito de formação socioeconômica permite diferenciar historicamente a escravagista, a feudal e a capitalista em que vivemos, além de delinear a sucessória, comumente caracterizada socialismo.

Como o movimento histórico obedece a tendências, perpassa uma multitude de concretos fatores históricos do desenvolvimento social humano. O mundo das ideias e das instituições, para o materialismo histórico, é a ação recíproca entre a infraestrutura ativa da formação socioeconômica e sua superestrutura. À superestrutura atribui-se independência relativa da infraestrutura que se expressa, inclusive na continuidade da primeira. Mudanças na superestrutura não são o desaparecimento instantâneo dos traços da antiga superestrutura. A estrutura modifica-se como globalidade, mas conserva resquícios da velha estrutura, principalmente os elementos úteis às novas classes.

A sociedade capitalista burguesa aproveita-se de elementos de dominação do feudalismo que lhe possam ser úteis para exercer o poder sobre o proletariado, a nova classe social. Para outras áreas de conhecimento, materialismo histórico significa unidade integradora entre teoria e método à qual relacionar o estudo da sociedade em suas formas particulares. Com seu auxílio garante-se eficiência à interdisciplinaridade. Arquiteto, economista, pedagogo, historiador podem orientar-se em seus campos integrando-se ao conhecimento do todo da realidade, em suas manifestações concretas. Por meio do materialismo histórico-dialético, a formação socioeconômica ulterior ao capitalismo se evidencia ligada ao reconhecimento de que as áreas do conhecimento humano formam entre si uma totalidade, reflexo da totalidade do mundo material.


N o t a s :

21 - Sobre materialismo histórico: V. Afanasiev -- Fundamentos da Filosofia Marxista. Gotemburgo, 1985;    V. Kelle e M. Kovalzon -- Le materialisme Historique; Essai sur la Théorie Marxiste de Ia .Societé. Moscou, 1972; Balibar -- Étades du Matérialisme Historique. Paris, 1974.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

INTERESSE PELO ANTIG0 – Parte III.


Frank Svensson – Brasília 2001

O esforço de Voltaire para caracterizar elementos teóricos -- feitos, épocas, câmbios, evolução, tendências, progresso -- que permitam produzir-se conhecimento histórico está muito limitado, em princípio, à observação do imediatamente manifesto. Não por acaso, a arquitetura vista como configuração de prédios comparece com destaque nesse processo.

O Iluminismo também iniciou a busca de clareza do conhecimento social. A constituição da materialidade social mudara e despertava indagações quanto às formas que teria. Na França, em breve a burguesia assumiria o poder, constituindo-se na classe social dominante e abandonando o caráter progressista inicial.

Charles L. Montesquieu (1689-1755) é exemplo representativo do pensamento burguês no Iluminismo. Para ele, por trás da diversidade de feitos históricos esconde-se uma ordem evidenciada por leis históricas que exercem a ação de forma constante. Salientava ainda a importância do meio natural e sua influência sobre costumes, leis e vida política dos povos.10

Na Inglaterra, David Hume (1711-76) afirmava que o comportamento histórico dos homens é condicionado por um conjunto de princípios que se desdobram numa ordem material e social. Outras contribuições à formulação do conhecimento histórico do período iluminista se encontram em Jean-Jacques Rousseau e E. Lessing.11

Com Emanuel Kant (1724-1808) inaugura-se na História da humanidade a Filosofia clássica alemã. Kant significa mais uma regressão do desenvolvimento do co-nhecimento histórico, ao negar a possibilidade de se descobrir uma ordem lógica e progressista na história da humanidade. À personalidade maior da escola filosófica alemã, Georg L. Friedrich Hegel (1770-1831), de acordo com Engels, se deve ter compreendido ...

... um campo incomparavelmente maior que qualquer dos que o haviam precedido e evidenciar dentro desse campo uma riqueza de pensamento que ainda causa assombro ... 12

Hegel concebeu desenvolvimento social como um movimento a caminho da realização de um espírito universal. Ligado a essa concepção evidenciou 2 aspectos básicos para o conhecimento histórico moderno:

1º - O Homem é o ator fundamental da história mundial.

2º - A História é um complexo intricado de feitos limitados e em mutação, mas integrados num sistema único, harmônico e racional.

Para relacionar os 2 aspectos formula seu método dialético, sua principal contribuição à busca do conhecimento da verdade, que estabelece a concepção de mundo como processo de constantes mudanças sujeitas à ação de leis ou relações internas estáveis.  O sistema de tríades constitui-se no fulcro da dialética hegeliana, pela qual se torna possível a mútua condicionalidade dos fenômenos da natureza e da sociedade dentro do complexo processo de evolução a que se submete a realidade objetiva. Supõe a preexistência de uma ideia absoluta, à margem do mundo e dos homens, que consistiria no fundamento do mundo. Na essência é princípio ativo, porém sua atividade não se manifesta a não ser no conhecimento de si. Ideia absoluta implica em contradições internas, movimenta-se, muda-se, transforma-se em seu contrário.

No desenvolvimento dialético, a ideia tem 3 fases:

1ª - A lógica, anterior ao mundo, de onde a ideia absoluta opera, todavia no elemento do pensamento puro; a ideia absoluta manifesta-se como sistema de conceitos e categorias lógicas, como sistema de lógica.

2ª - A ideia sofre uma metamorfose, converte-se na natureza, corporificação da ideia absoluta.

3ª - A superior, a fase do espírito absoluto; nega a natureza, volta a ser ideia absoluta e novamente o vir-a-ser domina o pensamento humano. Hegel relaciona as etapas da consciência individual, da consciência social e a etapa suprema, em que sob forma de religião, arte e filosofia, a ideia chega ao termo do conhecimento de si.13

A debilidade do método hegeliano reside no caráter idealista. Atribuiu a racionalidade da história ao predomínio de uma vontade sobrenatural cuja ação se corporifica na natureza desde as manifestações mais individuais, até assumir a forma universal. Evidenciou uma evolução gradual da sociedade ao definir história como a história da realização do espírito universal, cuja evolução se constatou através do espírito predominante nas nações -- formação socioeconômica e geográfica do período capitalista -- e do grau de democracia de seus indivíduos. Em escala mundial, impediu um desenvolvimento para o futuro ao limitar a evolução histórica a um presente local imutável; ao também limitar tal evolução, de forma absoluta, ao seu contemporâneo mundo germânico, resultando o Estado Nacional Burguês.14

Apesar dos fatores limitantes, reconheça-se na História a transcendência da contribuição de Hegel ao conhecimento histórico por meio da formulação de seu método dialético     e pela consequente relação conhecimento da natureza x conhecimento da sociedade. A História começa a ser compreendida como história social, história do Homem como ator da transformação da Natureza e principal configurador da materialidade social.

Johann Christopf Friedrich von Schiller (1759- 1805) e Emanuel Kant (1724-1804), precursores da escola filosófica alemã, viram a criação do belo relatada exclusivamente à forma de representação do objeto. As teorias a isso ligadas relacionaram o objeto real aos interesses do sujeito que o considera, dando preferência cognitiva à experiência subjetiva do objeto considerado. Da alçada do artista depreenderam como se posicionar sobre se o objeto da obra artística tem existência objetiva, se é conhecido objetivamente ou não. O objeto portador do belo é contemplado, embora seja também entendido de modo não estético. Abandona-se o terreno das relações reais do mundo para concebê-lo esteticamente, como se não estivesse condicionado por nada, como se fosse absolutamente livre. A arte converte-se numa ilusão, sem contato com a objetividade do sujeito existente e interessado, sem posição dentro do mundo real. Sobre essa base conceituai surgem teorias estéticas que veem a obra de arte, inclusive a de arquitetura, como objeto de prazer e fruição.

Contraposta, a estética hegeliana não é formal, mas de conteúdo, atenta para o conteúdo, para se poder analisar melhor as obras de arte. Embora se atenha à conceituação burguesa de arte iniciada por Kant -- arte como motivo de prazer -- para Hegel a arte tem um objeto. Sua estética oferece relação sistemática entre ideais artísticos e realidade exterior, sob forma de coisas, homens e atos. Divide-se em 3 grandes partes:

1º - ideia da beleza artística em si, de seu ideal;

2º - desenvolvimento do ideal até converter-se em formas de beleza artística;

3º - sistema das artes uma a uma, concretamente consideradas.

Na arquitetura, Hegel busca autonomia como ramo artístico a partir da necessidade natural do homem de se abrigar ou abrigar a imagem que faz de seu deus. É o primeiro a falar objetivamente do espaço em relação à arquitetura,15 espaço que mais lembra o da escultura, contudo dotado de presença humana ou da imagem do deus cultuado. Para Hegel, é impossível indicar um espaço que seja espaço para si; sempre é espaço ocupado e nunca distinto daquilo que o ocupa.16 

Difere de Kant e Schiller, que viram arquitetura como arte do espaço subjetivamente percebido, arte de fruição espacial, espécie de música congelada. Hegel vê como o ramo artístico em que matéria, gravidade e pedra predominam sobre a forma. O primado ao conteúdo não significa figuração supérflua. Figura e conteúdo não são vistos como substâncias estranhas uma à outra, sim como resultado da capacidade do conteúdo de realizar-se, dando a si a figura que lhe convém. A figura assegura ao conteúdo presença real, existência concreta. 

O conteúdo é determinante, não porque se considere em si mesmo, mas por determinar a figura particular. Isto posto, apreender o conteúdo é captar a razão que o faz assumir tal figura; captar na figura a razão da figuração.

Vendo a arquitetura como ramo artístico, para Hegel existe um objeto na arte, uma realidade específica que implica na razão de ser do belo. Não se pode confundir arte com direito, família, sociedade civil e Estado, todavia não se deve entendê-la à parte deles. Com Hegel, a arte tendeu a ser vista como constituinte, dimensão da própria realidade, não limitada à obra específica. Acercando-se dessa dimensão de conteúdo, Hegel chega à ideologia em que se move a época da arte em questão.

Segundo o pensamento hegeliano, a opinião do perceptor da obra de arquitetura não produz mais que estética formal, vazia quanto ao objeto da obra e à correlação dos significados estéticos, implicando negação de conteúdo e estética anti-expressionista e anti-cognitiva. Também vê arte como em desenvolvimento, até atingir a expressão da época da burguesia progressista no poder. Logicamente (não cronologicamente), a arte passa por etapas simbólica, clássica e romântica.17

A arte simbólica busca realizar a união entre a significação interna e a forma exterior; a arte clássica encontrou essa realidade na representação da individualidade substancial dirigindo-se à nossa sensibilidade; e a arte romântica, essencialmente espiritual, a ultrapassou.18

Nessa ordem evolutiva, a arte tende a aproximar-se de sua essência, de sua determinação histórica: constituir a expressão sensível de um povo na história. Em sua evolução histórica tende a ser de domínio coletivo, abandona a individualidade substancial e assume a condição de expressão sensível coletiva de um povo. Em sua avançada avaliação da arquitetura, Hegel não objetiva plenamente os conteúdos humano e social. Formular um método dialético limitado ao plano filosófico não o liberta de uma visão sistêmica no estilo Baumgarten ou Visher, classificando a arte por ramos artísticos e épocas, atendo-se à conceituação da especifi-cidade de cada um. Sem alcançar a clareza de Marx quan-to ao materialismo histórico, não mostra a interação das formas de conhecimento, como entre o conhecimento científico e o artístico. Interpretado por Hegel como o que dá à arquite-tura autonc.)mia como ramo artístico, espaço é muito mais questão locacional do que expressão objetiva da realidade maior, categoria de totalidade, como entenderam Marx e Engels. Embora se reconheça um espaço ocupado, forçosamente se dá maior atenção à expres-são artística veiculada pelos componentes construtivos; ou, na melhor das hipóteses, pela imagem do deus a ser cultuado no templo. A solução seria possível com a evo-lução do materialismo para a condição histórico-dialetica, unindo formas de conhecimento no todo cognitivo maior, em reflexo à totalidade do real.

De Voltaire a meados do século passado não houve dúvidas quanto à questão da objetividade do conhecimento histórico. Ao fim do século XIX, o século histórico, começaram a surgir dúvidas com relação às ciências históricas. Até então os fenômenos sociais e os naturais eram explicados historicamente. Não se reconhecia nenhum método de esclarecimento como melhor que o genético. As pesquisas eram dirigidas para se encontrar a origem das situações consideradas. Para reestruturar-se um serviço público ou se modificar uma lei, incumbia-se uma comissão da tarefa de investigar sua história. As universidades encheram-se de cátedras de história, ampliou-se o mundo dos arquivos e implantaram-se museus por toda parte. Os orçamentos contemplavam historiógrafos, catedráticos em história, intendentes de arquivos e de museus encarregados de dedicarem-se à história. Nos currículos de ensino primário e secundário, a matéria passou a ser obrigatória.19

No fim do século passado surgiram dúvidas no campo das ciências históricas. Os funcionários da história haviam passado a ver suas funções como algo em si mesmas e não se sentiam impelidos a duvidar de seu sentido. Na teoria do conhecimento, as dúvidas começaram a surgir. A função apologética do conhecimento histórico burguês foi posta em questão. A burguesia européia atingira o ponto alto da formação social; nas grandes exposições internacionais, embevecia-se com as conquistas técnicas; seus filhos faziam comércio em todo o mundo, dirigiam indústrias, comandavam exércitos, ad-ministravam instituições públicas, eram juízes e jurados em tribunais, davam conferências nas universidades e escreviam nos jornais. Mas as teorias críticas ao socialismo se manifestaram. Fugindo ao controle burguês, concretizou-se o movimento trabalhista. Na Alemanha e na França, onde Os historiadores haviam dominado o mundo da cultura, a crítica socialista aparecia baseada em conhecimento histórico. As teorias do socialismo despontavam como de caráter científico. Se essas novas teorias eram tão válidas quanto as da apologética burguesa, algo estava errado. Se as teorias do socialismo apresentadas por Sombart, Mehring, Engels e Marx eram corretas, constituíam armas temíveis e terríveis contra o poder da burguesia.20

Quais os princípios do século passado considerados grandes pelos historiadores? Que visão de sociedade impregnou as apresentações históricas em questão? Os arrazoados de teoria do conhecimento do historicismo burguês eram extremamente vagos. A categoria comum foi a do Estado, surgida na Idade Média, em cidades italianas, e socialmente ligada a burgueses bem estabelecidos, em oposição ao feudalismo como il stato, essencialmente distinto das formas conhecidas de pais, império, regnum e terra. Sua força maior se evidenciaria na condição de Estado Nacional.

No pensamento burguês, a criação do Estado é o principal dos processos históricos. Faz-se a espinha dorsal da História. Os fenômenos históricos ordenam-se dentro da configuração do Estado; se não cronologicamente, pelo menos teleologicarnente, isto é, relacionando os fatos a suas causas. Na visão burguesa, o Estado torna-se absoluto. E o moderno Estado Nacional é visto como resultado último do processo maior da história.

Sob a proteção deste Estado e dentro de seus limites -- na visão que a burguesia tem da sociedade -- a vida social desabrocha em seu fulgor, enquanto a cultura floresce como as plantas do mais belo jardim. Que riqueza de cores e de espécies! Germinam indústrias, nascem cidades fabris, brotam bairros operários e lírios da arte e rosas da poesia abrem em flor. Sob a guarida do Estado, tudo cresce com leis próprias. Cabe-lhe dar proteção em forma de incentivos fiscais, barreiras alfandegárias e afugentar as ameaças do movimento sindical e dos partidos obreiros. Nesse amplo jardim, os historiadores botanizam. Os literários cuidam de suas plantas, os da arte das suas e os da arquitetura também, assim como os das técnicas e os de história econômica, uns despre-ocupados dos outros. Esporadicamente um historiador geral contempla todo o jardim estatal de forma abrangente. O Estado só intervirá para recuperar a tranquilidade social estabelecida.

Como surgiu esse Estado? O pensamento burguês supõe que seja fruto de desenvolvimento continuo e em uma direção dada. Edmund Burke (1729-97) defendeu primeiro a teoria de um desenvolvimento calmo e continuo, buscando legitimar o reformismo burguês, para encobrir a imagem real de uma Inglaterra intranquila, revolucionária. Procurou incutir na burguesia inglesa a imagem apoiada em analogias tomadas de empréstimo às ciências naturais, diferente das suscitadas pela Revolução Francesa. Munido dessa teoria, o Estado Nacional deveria construir sua própria história, em acordo com sua conveniência, evitando acontecimentos e aborrecimentos a-históricos.

O conceito de desenvolvimento era o método historicista burguês. O enfoque genético, seu fulcro. Desta base nasceu uma hermenêutica imposta às Universidades, no mais brilhante exemplo de ditadura do método sobre o conhecimento. Quando se quer algo esclarecido historicamente, pensa-se para trás, busca-se a gênese. Depois, sugerem-se etapas de desenvolvimento e se insinua que o conhecimento ocorre por mudanças contínuas, numa direção definida por uma situação atual, forçada a ser compreendida como resultado da história. O trabalho nas universidades para definir as sequências de desenvolvimento é enorme. Além do perigo dessas definições sequenciais incorpora-rem uma dimensão metafísica, implicam no risco de a problematização projetar-se sobre o passado, impondo formas de pensar estranhas a situações distintas das atuais.

A historiografia do século XIX foi apologética e cumpriu o papel ideológico antes exercido pela religião. A falta de análise sociológica mais rigorosa permitiu afirmações sem validade científica, enquanto o método genético resultava em configurações inverídicas, porém favoráveis à visão de mundo burguesa.

Atualmente, quando são pesquisas específicas, a historiografia busca métodos mais precisos e avalia as fontes com empirismo e segurança. A visão abrangente continua sobremodo metafísica. Em vez de solucionar o problema, prefere distinguir pesquisa histórica de historiografia: a primeira seria científica; a segunda admitiria especulação.

Para descrever uma sociedade ou um fenômeno social faz-se indispensável relacioná-lo a um modelo básico sociológico, que não pode ser especulativo nem extraído do aparente, mas formulado com base científica, em categorias de validade universal. Por princípio, um modelo sociológico precisa ser abrangente, contemplar a ação recíproca das manifestações de vida na sociedade em questão, apoiado em categorias de validade comuns às sociedades: técnica, organização econômica, agrupamentos sociais, órgãos de poder e de exercício do poder e técnicas sociais de sugestionamento. O historiador dará às categorias roupagem particular e concreta de cada formação social, estudará a expressão da luta de classes, o caráter dos órgãos de poder e pressão, as ideologias com que se disfarça o poder. Num caso, como se apresenta o sugestionamento pela religião; noutro, pelas formas de pensamento, incluídas as que se querem cientificas. Deste quadro surgirão as galerias de personalidades históricas.
O realismo dos que passaram a defender os interesses de assalariados -- não proprietários de outros meios de produção que não a própria força de trabalho e desprovidos em geral -- reconheceram que a categoria fundamental do conhecimento histórico não podia ser o Estado Nacional, mas o fator trabalho. Da análise acurada do processo do trabalho veio a clareza sociológica quanto a classes sociais, contradição de classes, modo de produção, modo de vida, órgãos de poder e aparelhos econômicos, bem como quanto às formações sacio-econômicas deles resultantes.

A escolha do que narrar depende do interesse do historiador, ligado a seu público e a sua época, mas a forma de garantir a vitalidade da historiografia é relacioná-la ao fator trabalho e deixar arderem as contradições sociais, tornando-se, como historiador, um agente da história, fazendo história. Só isso conduz a pesquisa histórica a promissores caminhos. Para sair do dilema, o historicismo burguês deve livrar-se de preconceitos sociais. Não cabe ignorar a existência do Estado Burguês, mas constatar que de dentro da luta conceitual desponta como inevitável a configuração de uma formação socioeconômica de abrangência internacional, independentemente das recentes mudanças em países que se quiseram socialistas.


N o t a s :

10 – Montesquieu – de l’Esprit des lois. (1748). Paris, 1949. B. Boser – Analyse de l’Esprit des lois de M. Montesquieu. Paris, 1848.

11 – Metodología de la Investigación Histórica. A. Placencia Moro et allli.  Habana, 1985.

12 – F. Engels – Ludwig Feuerbach et la fin de la Philosofie Classique Allemande. Paris, 1966.

13 – E. Bloch – Sujeto-objeto el pensamiento de Hegel. México, 1985. Fase lógica exposta por Hegel em sua Ciência da Lógica. Hegel sequenciou estudos como Filosofia da Natureza e Filosofia do Espirito.

14 – M. T. Yovchuk et aliHistória da Filosofia, vol. II. Moscou, 1962.

15 – op. cit. (Nota 10).

16 – F. Hegel – Estética, III parte, 1ª secção. Lisboa, 1993.

17 – G. Bras – Hegel e a arte. Uma apresentação à Estética. Rio, 1990.

18 – Idem.

19 – I. Bourdieu – L’Histoire et les Históriens. Paris, 1888. Frank Svensson conheceu o historiador sueco Per Nyström em Gotemburgo, que em O dilema de quem escreve História, analisa o problema de quem escreve História.

20 – Idem.