sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O MUNDO DE KARL ou JAMAIS HOUVE UMA ÉPOCA MAIS FABULOSA

Tradução do livro: Robert Misik: MARX PARA APRESSADOS
Tradutor: Frank Svensson Brasília, 26.12.2005. 5.° capítulo


O planeta sobre as montanhas russas: o pré-março da revolução e o boom dos anos 1850


Quando as ideias se amparam nas massas, tornando-se força material, a isso se chama revolução. A coincidência quis que o manifesto do partido comunista estivesse quase ultrapassado, quando os exemplares em bela capa amarela fossem lançados por uma tipografia londrina. Todas as potências da velha Europa uniram-se numa Sagrada Aliança para encurralar o espectro do comunismo: o papa e o tzar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha (p.72) rezavam suas primeiras linhas. Da França chegavam as primeiras notícias de revolução: nas ruas, gente se batia em barricadas. François Guizot foi demitido da função de primeiro ministro; o rei abdicou. Um incêndio fazia arder toda a Europa. Três semanas mais tarde, Metternich foge de Viena e a insurreição atinge Berlim. Da Hungria à Itália, às margens do Reno, anuncia-se uma primavera dos povos. A polícia belga é tomada de pânico. No início de 1848, o rei ordena ao autor do "Manifesto" que deixe o exílio em Bruxelas em 24 horas. Para Marx é a desagregação - porque há de aprontar bagagem sem tardar, levando mulher e três crianças consigo – mas não é uma tragédia.

O revolucionário havia recebido mensagem do governo revolucionário francês: Corajoso e honesto Marx, o solo da República Francesa é um asilo para todos os amigos da liberdade. O poder da tirania vos baniu, mas a França livre vos abre novamente suas portas. A vós e a todos os que lutam por uma causa sagrada, pela causa fraternal de todos os povos. Marx, sua mulher Jenny, seus filhos Jenny, Laura e Edgard voltam a Paris, capital mundial da revolução que haviam sido forçados a deixar três anos antes. Lança-se na luta bem engajado. Uma verdadeira batalha se anuncia e Marx, o batalhador, pode deixar os atalhos da guerra (às vezes ridículos) com tanto ímpeto usados por ele contra profetas vaidosos, artesãos radicais que se superestimam ou espíritos subversivos decididos a não aceitá-lo no papel dirigente que naturalmente reivindica. Trata-se de indescritível energia revolucionária, difícil de caracterizar, que desaba sobre a Europa após quarenta anos acumulada nos domínios intelectual, político, social. Época em que o "Novo", quão inatingível seja, murmura surdamente. Favorável a quem quer fazer mover o mundo. Nos meados do século XIX, o sentimentalismo estava em voga, descreve Isaiah Berlin, na monografia sobre Marx. Aquilo que, no início, não era nada mais que a experiência de artistas excepcionais como Byron e Shelley, Rousseau e Chateaubriand, Schiller e Jean Paul, imperceptivelmente se difundiu na sociedade europeia. A quebradeira do mundo tornando-se um sentimento geral foi o verdadeiro nascimento dos tempos modernos. Tudo o que pertencia à tradição passou a nada mais valer. Cada um a seu modo, os contemporâneos sentiram-se no alvorecer de uma nova época; um sentimento trágico se apossou deles face às rupturas. Pela primeira vez, escreve Berlin, toda uma geração deixou-se cativar pelas experiências pessoais de homens e mulheres... Tendência que se encontra na vida e nas teorias de grandes revolucionários democratas, como na veneração de que foram objetos por seus discípulos. Mazinni, Kossuth, Garibaldi, Bakounine e Lassalle não foram somente admirados como heroicos defensores da liberdade, mas por sua personalidade romântica e poética
.
Marx considera-se reformador do mundo, mas os modos afetados de alguns contemporâneos, cujas atitudes de heróis configuram uma segunda natureza, ferem-lhe os nervos. Com toda sua verve e um prazer juvenil de polemizar, criou uma multidão de inimigos entre os pequenos grandes homens de que amava fazer troça. Marx é uma figura singular e isolada entre os revolucionários de seu tempo.

No entanto, está em dia com sua época, em que se pôs em marcha e onde a imaginação parece não ter limites. Percebe-se numa carta que Marx escreverá a seu amigo Weydemeyer: Não é possível nascer numa época mais fabulosa do que hoje. Quando se pode ir de Londres a Calcutá em sete dias, já faz muito tempo que nós dois teríamos sido decapitados ou sacudiríamos a cabeça. Depois a Austrália, a Califórnia e o Oceano Pacífico! Os novos cidadãos do mundo não entenderão quanto o nosso mundo é pequeno. Os anos que precederam 1848 são verdadeiramente mais que uma época – anos conscientes do que apontam. O espírito do século é democrático, liberal e se colore de socialismo. O termo burguês tornou-se, bem além do círculo comunista de Marx, uma injúria abrangendo do pequeno mundo dos verdureiros a certas camadas da burguesia liberal, desusada casta que se agarra a sua prosperidade e a sua ordem como bem pode, embora cada um veja que o mundo está em pleno rebuliço. O grande símbolo é a ferrovia aureolada de prestígio do futuro, a um ponto impossível de se imaginar hoje. As cidades se estendem, as passagens cobertas tornam-se templos cintilantes do novo; no emaranhado de ruas e ruelas tortuosas perfuram-se largas avenidas. Paris é a capital dessa modernidade, como Londres é o pulso do novo capitalismo. Essa época é marcada não só por Heine e o poeta Baudelaire – considerado precursor da literatura moderna – mas também por Flaubert e Courbet, Balzac, Darwin, George Sand e Proudhon. O culto do gênio se encarna em la Bohême, composta de jovens com mais de vinte, mas menos de trinta anos, todos geniais em seus gêneros, escreveu Balzac em Um príncipe de la Bohême. Lá encontramos escritores, administradores, militares, jornalistas, artistas! Todos os tipos de capacidade e espírito são representados. Tradições e experiências se depreciam a uma velocidade incrível. A revolução industrial e o progresso técnico, bem como os fenômenos concomitantes (riqueza súbita e pobreza esmagadora), exercem formidável fascínio, suscitam desordem e perturbação cultural. Essa aceleração do mundo é vivenciada por bom número de contemporâneos como um choque a que alguns reagem com brutal rejeição e outros com o culto da técnica e do novo. Este remeximento é frequentemente tomado por tema de artistas os mais avançados.

É uma época charneira da qual se percebem nitidamente as tendências (desde os anos 40, mesmo se não se impuseram antes de 1850 com o grande boom econômico) que terminará no ano louco de 1848. Como a maior parte de outros emigrados revolucionários alemães, Marx, o renano apátrida, há muito tempo não tem Paris como localização. Em março ele retorna a Colônia, seguido em abril por sua família. Com Frederico Engels, que ao fim dos últimos três anos tornou-se seu fiel amigo íntimo – e o foi por toda a vida – Marx decide retomar o projeto do jornal do início dos anos 40, desta vez sob o título de "Neue Reinische Zeitung". Passa por perpétuos problemas de dinheiro, sacrificando até os parcos restos da herança paterna. Escreve veementes artigos contra a pusilânime lengalenga da Assembleia Nacional de Frankfurt e da Assembleia Nacional prussiana, onde os deputados, segundo ele, deixam passar o momento revolucionário fazendo o jogo da reação. Marx se envolve em numerosas atividades; argumenta com as massas e tenta sublevar as forças armadas revolucionárias, mas nada se concretiza. A maré revolucionária recua e as antigas potências reforçam suas posições. As autoridades abafam a agressividade dos redatores de Marx sob uma montanha de processos jurídicos; é finalmente expulso. De Berlim a Paris e a Viena, a revolta é violentamente reprimida e as esperanças se consomem sob o fogo da ordem estabelecida. Marx parte para Paris. Grávida pela quarta vez, Jenny, sua esposa, lhe segue. Face às arbitrariedades do poder restaurado, Marx escolhe ainda um outro país de exílio. Dia 27 de agosto, o revolucionário alemão desembarca do City of Boulogne, em Dover. Londres, naquele momento capital do capitalismo mundial, será 34 anos a última pátria de Marx.

Lá Marx volta a atacar. Era tudo como nos velhos tem-pos em Paris ou Bruxelas: um manejo de intrigas, de acertos de contas e de luta pelos poderes escreveu Francis Wheen em sua magnífica biografia de Marx (p.154), da qual extraímos a curta descrição que segue. Para Marx e sua família, são duros anos de miséria. A única consolação vem do fiel Engels, que naturalmente segue o amigo. Quando a falta de dinheiro se faz ressentir de forma cruel, Engels parte a contragosto para Manchester, onde trabalha como escriturário (amanuense) e mais tarde como associado da usina têxtil de seu pai. Durante sua vida se queixará do detestável tráfico e do vil comércio que lhe permite financiar a existência de autor e de científico, independentemente do seu genial amigo. Marx, após estar aborrecido com a maioria de seus companheiros de exílio, retorna a seus estudos econômicos; previstos de longa data, tinham sido adiados ou interrompidos por causa dos grandes acontecimentos mundiais. Damo-nos mais e mais conta de que a emigração é uma instituição na qual cada um é necessariamente um bobo, um idiota ou um ignóbil crápula, escreve Engels em 1851 a seu amigo, que lhe responde: estou muito satisfeito do isolamento público, autêntico, no qual tu e eu nos encontramos, atualmente (Wheen, p. 196). Com efeito, permite-lhe concentrar-se em seu trabalho. Marx isola-se na sala de leitura do British Museum para estudar economia, não se deixando interromper por novas bobagens ou asneiras. Adora abandonar seus manuscritos de economia, quando desponta no horizonte um desses reformadores do mundo enfatuado, a que pode dirigir uma sátira exagerada. Entrementes, sua família cai num estado acentuado de penúria. Com freqüência, falta um penny para comprar o pão, a carne ou o aluguel. De tempos em tempo os padeiros comparecem à casa de Marx e juram não lhe fornecer mais pão, enquanto as faturas não forem pagas: Marx encontra-se numa espécie de estado de sítio permanente, descreve Wheen. Espiões da polícia prussiana rondam continuamente a vizinhança, anotando todos os que entram e saem de sua casa: açougueiros em cólera, padeiros e oficiais de justiça batem continuamente à sua porta. O estado de saúde de sua mulher Jenny e de seus filhos piora a olhos vistos; três deles morrem antes de completar dez anos.

De fato, contrariando todos os persistentes mitos, Marx não vive como um miserável, não obstante a dificuldade de pessoas solitárias que tombam na precariedade e desesperadamente buscam salvar as aparências e seus hábitos burgueses. Nos anos 50, conseguindo apenas alimentar seus filhos, Marx insiste em empregar um secretário. Mesmo nesses anos difíceis, Marx habita casa concebida num dos melhores quarteirões de Londres, é servido por Hélène Debuth, doméstica que sua sogra proporcionara ao casal. É bom que se diga, Jenny, nascida Von Westphalen, é oriunda da alta sociedade de Trèves; Marx, ridiculamente orgulhoso de haver desposado uma verdadeira dama, faz questão de proporcionar à esposa um modo de vida à sua altura: férias à beira-mar, aulas de piano para as crianças, a bela casa, vestidos de baile e aulas de dança para as filhas (para que suas crianças... estabeleçam relações que possam assegurar seu futuro). Tudo isso é um must comparado a coisas secundárias como pagar contas ao médico ou ao verdureiro. Wheen calculou que com a ajuda dos donativos de Engels e seus próprios ganhos, até nos piores anos o autor do "Manifesto" dispunha de pelo menos 200 libras/ano, suficientes para manter uma família de classe intermediária. Ao tempo em que procurava atingir os profundos mistérios do capitalismo, Marx no plano privado era um contador pelo menos singular, e Engels não cessava de ouvir lamentos. Eu não creio, escrevia Marx, enquanto se digladiava com as malícias da economia comercial e da monetária, que jamais se tenha escrito sobre dinheiro com tamanho desprendimento. A maioria dos autores desse assunto estava em paz com o objeto de sua pesquisa. Quanto mais penetra nos segredos do capitalismo desenvolvido, mais seu corpo se rebela, lembrando que em meados dos anos 1850 Marx ainda não completara 40 anos de idade. Torturado por seus sofrimentos hepáticos crônicos, o corpo coberto de abscessos e furúnculos, é por vezes obrigado a trabalhar de bruços, por não poder ficar sentado. É frequente isso pesar sobre o estilo literário desse homem de estilo outrora geralmente claro: O caderno 2 traz a marca pouco opressora de um antrax, reconhece Engels, por exemplo, debruçando-se sobre a leitura de O Capital. Marx, ao paroxismo de seu sofrimento, exprime esperança de que toda sua vida a burguesia pensará em seus antrax.

A tentativa de entender a surpreendente personalidade de Marx já desconcertou mais de um – à exceção de hagiógrafos esquerdistas que produziram o estilista (eremita que vivia no topo de uma coluna ou torre) heroico e nobre do movimento comunista mundial e dos reacionários imbecis que não paravam de diabolizá-lo. Marx foi simultaneamente tirano autoritário e brigão e companheiro atencioso e cortês que com carisma soube se unir aos companheiros de rota. Foi decidido revolucionário e autor de estilo brilhante, dotado de autoconfiança muitas vezes próxima da megalomania. Foi um pai doce e suave que preferia levar suas marmotas aos campos de Hamp-stead Heath, no domingo, a pôr fogo na ordem estabelecida na Europa. Esse pensador audacioso, que passava a vida a estudar economia, no fim do dia contava histórias fantásticas aos mais jovens de seus filhos e se entretinha, após freqüentar prolongadamente as tabernas com seus amigos comunistas, a atirar pedras nos bicos da iluminação de gás. Marx foi homem original, cheio de humor, capaz de discutir e beber durante noites inteiras; a imensa turma que o cercava lhe atribuía apelidos os mais esdrúxulos – seus filhos o chamavam de Mouro; Engels, que se interessava por questões militares, chamava-o General. Marx podia nadar nos tratados econômicos mais abstratos e no instante seguinte apaixonar-se pelo último escândalo público em torno de um affaire moral ou das atribulações de uma princesa francesa.

Marx foi trivial obstinado, sensível, frio e romântico. Um gênio cheio de contradições, como o mostram, aliás, as interpretações divergentes de sua obra. Wheen pergunta-se com razão: como pôde tanto se equivocar e ao mesmo tempo ter razão? (..124). Nos anos 60, quando suas três filhas lhe pediram para preencher um questionário sobre suas convicções - como se fazia à época - Marx respondeu sobre sua máxima favorita, citando o poeta latino Terence: Nihil humani a mi alieni puto (considero que nada que concerne ao homem me é estranho). Mesmo na análise rebarbativa do princípio da concorrência entre capitalistas, conclui grosseiramente nos Grundrisse, após longas deduções: Capital I, o tenho no ânus (G.I., p.321).

Nenhum comentário:

Postar um comentário