terça-feira, 30 de julho de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte III.



Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.
Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson



INTERPRETAÇÃO II –

Para a crítica da razão e seu sujeito.

Gostaria de distinguir, entre as formas de critica da razão e seu objeto, as três que têm um papel na crítica pós-modernista do racionalismo. É necessário fazer essa distinção para deixar claro aquilo que se poderia chamar de formas modernas e pós-modernas de conhecimento:

1) a crítica psicológica (desmascaramento) do sujeito e sua razão;

2) a crítica filosófica, psicológica e sociológica da razão instrumental ou da identidade lógica e seu sujeito;

3) a critica linguístico-filosófica da razão autotransparente e seu sujeito formador de sentido. Essas formas de critica da razão e seu sujeito não são independentes umas das outras, mas o direcionamento da critica difere, e essas diferenças devem ser explicitadas. O fato de os conceitos de razão e de sujeito autônomo haverem sido absorvidos pelo redemoinho da crítica logocêntrica depende, em minha opinião, exclusivamente da mistura e da sobreposição de motivos, enfoques e descobertas totalmente diferentes de tal critica.


1. A critica psicanalítica da razão e seu sujeito

Menciono esta forma de critica somente porque constitui um ponto de partida e um indispensável pré-requisito para a discussão da crítica filosófica da razão. A crítica psicanalítica -- cuja figura central naturalmente foi Freud -- consiste em demonstrar a impotência ou a inexistência de fato do sujeito autônomo e a irracionalidade de fato de sua aparente razão. Trata-se da descoberta de uma álter-razão no âmago do sujeito e da razão. Como seres físicos, como máquinas de desejo ou como sede de poder (Nietzsche), os indivíduos não sabem o que querem e o que fazem. O ego -- esse atrofiado resto do sujeito filosófico -- é, na melhor das hipóteses, um elo de ligação entre as exigências daquilo e as ameaças do eu.

O sujeito filosófico com sua capacidade de autodeterminação e logon didonai mostra-se um virtuose da racionalização a serviço de poderes estranhos ao eu. A unidade e a autotransparência do eu são desmascaradas -- são vistas como uma ficção. O sujeito descentrado da psicanálise é, em outras palavras, mais um ponto de ruptura entre forças psíquicas e sociais do que senhor sobre elas. É mais o cenário de uma cadeia de conflitos do que o diretor de um drama ou o escritor de um conto. Ao lado da psicanálise, a literatura de nosso século contribuiu com rico material para a fenomenologia do sujeito descentrado. No experimento da vanguarda literária, a qual, segundo Axel Honneth,

visa demonstrar esteticamente como o sujeito é envolvido num acontecimento que ultrapassa o horizonte individual do sentido,46

cruzam-se motivos de uma critica filosófica e psicológica do sujeito. Detenhamo-nos por um momento na psicanálise. Freud foi um, mesmo se cético, defensor do racionalismo e do iluminismo europeu. Solapou a fé na racionalidade do sujeito e no poder da razão, mas no intuito de reforçar as forças da razão e do ego. O horizonte normativo da critica de Freud constituía-se -- e nisso foi um iluminista -- de um decepcionado, desilusionado humanismo, um humanismo que teria chegado à razão e, dentro de certos limites, se tornado senhor sobre si mesmo. Independente de como isso tenha sido, as descobertas da psicanálise (as quais na realidade não eram tão novas assim) deixaram em aberto o que ocorreria com os conceitos de sujeito, razão e autonomia como categorias normativos. É difícil dizer em que sentido Freud os apoiava, mas de qualquer forma não podiam ser conceitos do tipo sujeito-filosófico cartesiano ou idealista; não podia ser a aceitação idealista de um desejo da verdade, de um diálogo incondicional ou de urna autodeterminação moral como uma alternativa racional aceita do princípio do prazer,da vontade de poder, de violência simbólica ou da economia da libido, pois a descoberta de Freud (e de Nietzsche) era a de que o desejo (ou sede de poder) sempre se introduziu como força incompreensível no interior do argumento racional e da consciência moral. Esta é uma descoberta somente se partimos das idealizações do racionalismo. Por enquanto, é incerto o que acontece com os conceitos de sujeito, de razão e de autonomia quando liberados da constelação racionalista e sacudidos pela psicanálise.


2. Crítica da razão "instrumental" ou "da identidade lógica" e seu sujeito.

Temos a ver com a radicalização da crítica psicológica do racionalismo. Esta forma de crítica apresenta-se já -- mas não pela primeira vez -- em Nietzsche, é radicalizada por Adorno e Horkheimer e levada adiante no pós-estruturalismo francês. Limitar-me-ei à versão apresentada em A dialética do Iluminismo, desenvolvida por Adorno. É bem verdade que de forma unilateral, mas espero que seja urna frutífera delimitação do terna.

Em A dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer interpretam -- depois de Klage e de Nietzsche -- a tríade teórico-cognitiva -- sujeito, objeto e conceito -- corno uma relação de opressão e submissão, na qual a instância opressora -- o sujeito -- é ao mesmo tempo a vítima oprimida. A opressão da natureza interior da pessoa humana e seus anárquicos impulsos de felicidade são o preço para que o eu coeso seja formado, o que é necessário tanto para a autopreservação como para o domínio da natureza exterior e social. Correlata ao eu unitário é a razão que objetiva e sistematiza, totali-zante, considerada corno um meio de dominação: domínio sobre a natureza exterior, interior e social. A unificação e a sistematização exercidas pela razão, dado o seu caráter objetivador e instrumental-controlador, é, segundo Adorno e Horkheirner -- assim como Nietzsche e Klage --, baseado no caráter discursivo da razão, na lógica conceituai, ou melhor, na relação interna entre conceito, significado lingüístico e lógica formal. A lei da contradição é o sistema contido numa casca de noz, afirma-se em A dialética do Iluminismo. No cerne do pensamento discursivo manifesta-se um elemento de violência: urna submissão da realidade, um mecanismo de defesa, uma atitude de exclusão e domínio, uma ordenação dos fenômenos de forma a se deixarem controlar e manipular, uma tendência à paranoia sistêmica. A razão objetivadora. sistematizadora e instrumentalizadora encontrou sua expressão clássica nas ciências naturais mas, como Foucault mostra, as ciências humanas também se deixam enquadrar nessa ordem. Finalmente, todas as formas de racionalização dos tempos modernos (isto é: burocracia, direito formal, todas as instituições da economia formalizada da sociedade moderna), todas as manifestações dessa razão unificadora, objetivadora, controladora e disciplinadora.

Essa razão cria sua própria imagem da história: a imagem de um progresso que tem sua referência no ininterrupto desenvolvimento técnico e econômico da sociedade.   A razão, ou melhor, seus defensores confundem esse indiscutível avanço com avanço para algo melhor; consideram como o avanço da humanidade rumo à Razão. Esse jogo de palavras quer mostrar que o Iluminismo esperava algo melhor da razão do que só progresso técnico, econômico e administrativo: a eliminação da dominação e da loucura, a eliminação da ignorância e da miséria. Indo um pouco além do significado das palavras, mas não do espirito, em A dialética do Iluminismo, podemos acrescentar o seguinte: mesmo onde os propósitos do Iluminismo foram descobertos como uma bem-intencionada ilusão -- no idealismo pós-kantiano alemão e em Marx -- o totalitarismo da razão confirma-se num plano mais elevado, ou seja, numa dialética histórica, cuja razão se evidenciou no terror stalinista.

Para Adorno e Horkheimer evidencia-se, como já observei, não somente como um elo entre o ego-princípio sistematizador48 e o conceito ordenador e excludente.49  A consciência que conceitualmente objetiva e sistematiza, que atua segundo a lei da não contradição, é já de inicio uma razão instrumental da dissociação da vida, entre a consciência e seu objeto.50  A crítica da razão lógico-identificadora é portanto ao mesmo tempo urna critica da razão legitimadora. A quase enlouquecedora busca de segurança e domínio do pensamento identificador ganha expressão no hermetismo dos sistemas filosóficos, na pretensão fundamentalista de encontrar as mais extremadas bases filosóficas. No sistema de legitimação dos novos tempos -- de teoria do conhecimento até filosofia política e filosofia moral -- esconde-se um resto de mítica loucura, transposta à forma de discursiva racionalidade.

Faz parte, naturalmente, da dialética do Iluminismo que o mesmo sucessivamente destrua não só o mito, mas também todas as legitimações, ou seja, perfure todas as falsas imagens que a razão esclarecida pôs no lugar dos mitos: a razão torna-se finalmente positivista e cínica, um puro aparelho de poder. Esse aparelho de poder da razão tem se condensado na sociedade industrial a ponto de se tornar uni contexto ofuscador, no qual o sujeito -- uma vez o sustentáculo se mostra supérfluo. O indivíduo é reduzido às reações convencionais e às formas funcionais que objetivamente são esperadas dele. 51

Vemos que para Adorno e Horkheirner o sujeito unitário, disciplinado, dirigido de dentro só num sentido temporário, é o correlato da razão instrumental. A tese deles não é muito diferente da de Foucault, quando o mesmo explica o sujeito como um produto do discurso moderno.52 Para Adorno e Horkheimer, entretanto, a desinte-gração do sujeito na sociedade industrial tardia constitui um processo regressivo.53 Implica que explicação e razão não participam da dialética destrutiva que procuram reconstruir. Adorno e Horkheimer prendem-se a um conceito enfático de Iluminismo que, para eles, implica o auto esclarecimento da explicação, ou seja, o esclarecimento lógico da identidade do caráter de seu próprio domínio e do caráter da natureza do sujeito. Isso não significa, no entanto, que a explicação ao mesmo tempo possa corrigir e superar-se a si em seu próprio meio, o meio da razão lógica quanto à sua identidade. Dessa forma, Adorno, em Negative Dialektik, procurou pensar a crítica do pensamento identificador até o fim. Postula aí uma filosofia que por meio do conceito se volta contra as tendências reificadoras do pensamento, o esforço conceitual torna-se o esforço de por meio do conceito superar o conceito.54  Adorno tentou precisar essa ideia com a ajuda do conceito de pensamento figurativo, ou seja, a ideia de um pensamento transdiscursivo do qual Mínima moralia é o melhor exemplo em toda sua obra.

Parece que nos afastamos muito da critica psicológica do sujeito, apesar de se haver afirmado que a crítica da razão lógica da identidade é uma radicalização da crítica psicológica. Fundamentarei agora a minha tese. Que Adorno e Horkheimer mantêm-se fiéis à unidade do eu e que entendem a desintegração desse eu unitário na sociedade industrial tardia como um processo regressivo pode parecer contrário à minha tese. A contradição desaparece, no entanto, se não compreendermos o eu unitário como o sujeito autônomo destruído por Freud, mas -- no sentido de Foucault -- como o correlato ou corno o produto do discurso do moderno: unia forma disciplinada-disciplinante para organizar os homens como seres sociais. Na origem desse eu unitário encontramos coação e não um ato de autônoma auto constituição.

A humanidade teve de sofrer uma terrível amputação para que o eu, o caráter objetivamente humano, pudesse formar-se e urna parte desse processo se repetir em cada infância.55

Isso até Freud poderia subscrever. A radicalização da crítica de Freud consiste no seguinte: Adorno e Horkheimer questionam justamente o conjunto de normas de racionalidade às quais Freud ainda se atinha: o caráter objetivo masculino. Para Adorno e Horkheimer, tais normas caracterizam um determinado estágio -- assim como a sociedade burguesa para Marx --, que, no entanto, estava determinada a desaparecer por meio da superação da razão. À luz de A dialética do Iluminismo apresenta-se no interior da psicanálise um elemento justamente do racionalismo que as idealistas formas de reflexão de Freud basicamente haviam destruído.

Um racionalismo, mas também poderíamos chamá-lo de realismo. Em relação ao realismo de Freud. Adorno e Horkheimer não estavam em condições de explicar como a auto superação da razão -- como a auto explicação da explicação -- poderia ser pensada corno um projeto histórico depois que por meio de sua critica da razão instrumental haviam destruído a ideia de Marx da auto superação da razão (burguesa). Foucault parece-me estar diante de um problema semelhante. Adorno esclarece a auto superação da razão relacionando mimese com racionalidade na filosofia e na obra de arte. Só é possível estabelecer urna relação com mudanças sociais interpretando a síntese sem opressão da obra de arte e a linguagem configurativa da filosofia – aporética --  como o acender de uma luz messiânica aqui e agora, como a previsão de uma real reconciliação.

A crítica da razão experimental exige uma filosofia da história da reconciliação, necessita de uma perspectiva utópica, caso contrário não pode ser entendida como critica. Mas se a história precisa tornar-se a outra história para livrar-se do ilusionismo da razão instrumental, a crítica da contemporaneidade histórica torna-se urna crítica do ser histórico — uma última forma da crítica teológica do vale das lamentações terrestre. A crítica da razão da identidade lógica parece desembocar ou em cinismo ou em teologia, a não ser que sem considerar as consequências se queira advogar em favor da regressão e da desintegração do eu -- urna alternativa que Klage considerou e, corno Adorno e Horkheimer, a qualquer preço queria evitar.

A crítica da razão da identidade lógica termina numa aporia na medida em que repete o esquecimento da língua no racionalismo europeu ao qual de certa forma criticara. A crítica da razão discursiva como razão instrumental é implicitamente ainda psico-lógica em Adorno e Horkheimer, isto é, é pensada intencionalmente e vive em silêncio no modelo de um sujeito formador de significado, o qual numa singularidade transcendental se volta para um mundo de objetos. A crítica da lógica de identidade ganha, entretanto, corno irei demonstrar, um outro significado desde que o mesmo não seja somente desmascarado psicologicamente, mas também submetido a urna problematização linguística. Evidencia-se então que também a razão instrumental se baseia numa práxis comunicativa. Esta não pode ser reduzida nem a urna subjetividade auto preservadora nem a uma subjetividade formadora de opinião, por ser constitutiva para a existência de um sentido linguístico. Eu gostaria de acrescentar que nem a redução complementar terá êxito, ou seja, a redução do sujeito à via própria do discurso ou do sentido linguístico. A terceira forma de critica da razão e do sujeito que eu quero abordar é a crítica linguístico-filosófica, a qual eu gostaria de chamar de reflexão wittgensteiniana por ser somente no Wittgenstein tardio que a encontramos formulada com plena agudeza.


3. A critica linguístico-filosófica do sujeito formador de opinião;

Aqui se trata da destruição filosófica da concepção racionalista de sujeito e de língua, principalmente da destruição da ideia de que o sujeito com suas experiências e intenções é a fonte dos significados linguísticos. Nós poderíamos -- no sentido de Wittgenstein -- falar de uma crítica da teoria dos nomes. Segundo esta teoria, os sinais linguísticos ganham sentido quando alguém -- um usuário dos sinais - atribui a algo dado (coisas, classes de coisas, experiências, classes de experiências, etc.) um sinal, ou seja, atribui de uma forma ou outra a um dado significado um nome. Urna tal teoria dos nomes parece estar profundamente arraigada na consciência filosófica ocidental - ou em seu pré-consciente; sobrevive também no empirismo radical até Russel, Eu classifico essa teoria linguística como racionalista porque -- implícita ou explicitamente -- se baseia no pressuposto do primado de um sujeito atribuidor de nomes e de significado e como este, noolens volens, compreende as idealizações da tradição racionalista -- principalmente a objetivação de significados corno dados, o que abarca a tradicional distinção entre racionalismo e empirismo. A crítica linguístico-filosófica da teoria linguística racionalista naturalmente não começa com Wittgenstein nem termina com ele. Creio, no entanto, que ele foi o seu mais importante defensor em nosso século. A filosofia de Wittgenstein compreende urna nova forma de cepticismo, o qual questiona até mesmo as certezas de Humes e de Descartes. Como posso saber do que falo? Como posso saber o que penso? 56  Por meio da crítica linguístico-filosófica é destruído o sujeito como inventor e juiz final de suas intenções de significado.

Nesse ponto poder-se-ia observar que a crítica da qual falo é um velho tema tanto na hermenêutica corno no estruturalismo. Urna observação que de certa forma se justifica. No entanto, como as consequências da crítica de ambas as escolas quanto a urna teoria intencionalista do sentido são fundamentalmente diferentes, prefiro começar pela forma mais rígida de reflexão crítico-linguística que encontramos em Wittgenstein. Além disso, farei referências ao pensamento de Castoriadis,57 que         é bem verdade tem sua origem numa outra tradição, mas mesmo assim em alguns pontos centrais pode ser visto como urna reformulação e um desenvolvimento das colocações de Wittgenstein.

Para desde logo eliminar reduções positivistas do tema: observando somente que sistemas de signos linguísticos são primários em relação à fala e às intenções do sujeito, uma condição necessária, na realidade não dissemos o principal. Essa descoberta tomada em si torna-se a semente de uma nova mistificação da relação-significado. O decisivo é, ao invés, esclarecer a própria relação-significado na forma em que e corporificada em códigos linguísticos, em jogos linguísticos -- uma relação que a filosofia antes de Wittgenstein não havia considerado. Os principais conceitos de Wittgenstein nesse contexto são os de regra e de jogo lingüístico, podendo-se destacar que o mais importante é o uso que Wittgenstein faz desses conceitos. As regras aqui tratadas não podem ser confundidas com o que normalmente entendemos como regras constitutivas ou reguladoras.

Os jogos linguísticos não são jogos, mas formas de vida: sucessões de atividades linguísticas e neolinguísticas, instituições, práticas e significados nelas corporificados. Que os conceitos de regra e de significado se referem um ao outro fica evidente pelo fato de que regras implicam uma práxis intersubjetiva, onde cada um tem de aprender que significados são essencialmente abertos. Ao falar do significado de uma expressão linguística, a identidade desse significado necessita ser dotada de um índex de não identidade tanto no que diz respeito à relação entre língua e realidade como entre orador e orador. Com isso, dissolve-se o significado como urna certa forma de objeto, algo idealizado, psicológico ou na realidade dado. Mesmo considerando o significado como uma relação -- x significa y ou x representa y --, é questão de unia relação específica, que não tem lugar na tradicional ontologia/lógica, o que Castoriadis já observou.58 As mais simples relações-significado -- por exemplo, a que une a palavra árvore com as árvores reais -- pressupõem um sistema interno de relações da língua, na qual possa funcionar como uma relação de representação.

Esse dever não pode apoiar-se em nada que não em si mesmo, pois relações significativas em primeiro lugar não podem ser individuais (na melhor das hipóteses, podem ser parcialmente explicadas, ou motivadas, num segundo nível, em segundo lugar a relação significativa como tal pode, junto com a regra que implica circularmente, somente ser motivada pelas necessidades em união, a qual tem de apoiar-se numa inequívoca regra significativa que por sua vez só pode existir independente da união.59

A critica linguístico-filosófica leva, assim como a psicológica, ao descobrimento de uma outra razão no interior da razão, mas em ambos os casos trata-se de diferentes outras razões. Enquanto a destruição psicológica do sujeito implica a descoberta de forças libidinosas (e poder social), a destruição linguístico-filosófica do subjetivismo, a descoberta de um quase-fato que precede qualquer intencionalidade e subjetividade, implica sistemas significativos linguísticos, formas de vida, um mundo manifesto linguisticamente de uma determinada forma. Não se trata de um inundo sem sujeito, sem seres humanos; pelo contrário, é uni mundo no qual os homens de diferentes maneiras podem ser eles mesmos. Essa reciprocidade dada num mundo linguisticamente revelado também pode ser interpretada como um entendimento na língua, mas então não podemos ter convenções em mente ou um consenso racional ou irracional. Trata-se antes de um entendimento que é constitutivo para poder diferenciar verdade de falso, racional de irracional. Em sua obra Pesquisas filosóficas, parágrafos 241 e 242, Wittgenstein ressalta:

Dizes, portanto, que o entendimento entre os homens decide o que seja certo ou o que seja falso? -- É o que as pessoas dizem que é certo ou falso; e no caso da língua os homens concordam... Não numa concordância de pontos de vista, mas de forma de vida. Se queremos ser compreendidos por meio da língua, é necessário não só uma concordância de definições, mas também (por mais raro que possa parecer) uma concordância de conceitos. Isso parece sustar a lógica, mas não o faz.

Nem o objetivismo estruturalista nem o cepticismo estruturalista fazem justiça ao enfoque fundamental de Wittgenstein. O primeiro não pode fazê-lo por desprezar a dimensão pragmática da não objetivável e essencialmente aberta relação significativa, o segundo não o pode porque relaciona a impossibilidade de objetivação dos significados linguísticos com a incontrolável não-identidade de cada uso particular dos signos. A vida do sentido linguístico não pode, no entanto, ser reduzida à vida anônima dos códigos linguísticos ou ser reportada a um jogo incontrolável entre diferenças. Tenho de abdicar da fundamentação de metade desta tese, no que concerne à fundamentação da outra metade, contentar-me-ei com algumas observações. A posição que critico poderia, valendo-me da formulação de Manfred Frank, ser sintetizada na tese que dada a possibilidade estrutural da repetição ... todo uso da língua é provido de um índex para mudanças incontroláveis.60

Com isso me refiro naturalmente a Derrida.61  É bem verdade que considero a critica que Derrida faz da compreensão objetivista dos significados linguísticos convincente -- a identidade do significado é formada em primeiro lugar na sequência de empregos dos signos, e a existência do significado linguístico detém a possibilidade de uma irredutível pluralidade na maneira de se usar as palavras, bem como uma possibilidade ilimitada de ampliação ou de rejeição do sentido linguístico. Só numa perspectiva internacionalista podemos afirmar que cada uso particular de um signo é provido de um índex para um incontrolável outro-ser.

Se por outro lado realmente queremos questionar a perspectiva intencionalista, uma tal afirmação implica um jogo com as palavras identidade e não-identidade, que carece de base firme, de um razoável uso da palavra significado. O quinau com a consideração de Wittgenstein é que a palavra significado aponta para a práxis de um uso comum da língua -- aquilo que chamamos de significado no singular só pode ser esclarecido considerando o fatual ou o possível, a pluralidade de situações de uso de um signo linguístico.

Essa práxis comum naturalmente só é acessível por meio da fala performativa dos participantes. A compreensão de significados, intenções ou textos não pode ser reconstruída como um conhecimento de fatos objetivos (significados) ou ser entendida como um fato psicológico objetivável. Uma maneira objetivista de ver só pode, aqui, conduzir a um ceticismo hermenêutico radical que ao fim dissolve o pró-prio conceito de significado. Não existe resposta para a cética pergunta como podes estar certo quanto à tua opinião? enquanto procurarmos uma resposta no mesmo espírito objetivista com que a pergunta foi feita.

O cético argumento permanece portanto sem resposta. Não é possível opinar nada sobre palavra alguma. Cada novo emprego é um salto no escuro; cada intenção pode ser interpretada de acordo com o que quer que queiramos. Não existe portanto nem concordância nem conflito.62

Dessa forma, S. Kripke procurou certa vez delimitar o problema que Wittgenstein deparara. A solução de Wittgenstein para o problema consiste, no entanto, como observara Kripke, não numa resposta para a cética pergunta, mas em recusar o esforço objetivista que se encontra no fundo da questão. A questão só pode ser respondida depois de pesarmos qual o papel que joga em nossa língua a distribuição de significados, intenções e compreensão. A solução desse cético paradoxo exige uma mudança de perspectiva. Lembrando-nos a gramática das palavras significado, opinião e compreensão, Wittgenstein esclarece-nos que o ceticismo hermenêutico radical perde sua base do ponto de vista do jogo linguístico dos participantes.

Opino que a palavra significado aponta para o conceito regra e respectivamente forma de emprego. Por isso não faz sentido dizer que urna rejeição incontrolável do significado ocorre em cada repetição de um signo linguístico, pois é impossível que alguém alguma vez tenha seguido.64   Pela mesma razão, a opinião anarquia" não pode ser dominada pela reintrodução de um sujeito interpretador, como M. Frank tentou fazer contra Derrida. Afirmar que os homens chegam ao significado dos signos que utilizam por meio da interpretação especifica para cada situação (ou seja, uma vez por todas) não é sair da posição do cético hermenêutico, pelo con-trário, seria o reemprego das premissas por ele destruídas. Se aceitamos que os signos linguísticos só ganham sentido específico por meio de um ato de interpretação, reintroduzimos em silêncio a opinião como fonte do significado. Torna-se incompreensível como outrem poderia entender o que eu opino, fica até incompreensível como eu mesmo o entenderia. Só entendemos de fato o papel do sujeito intérprete e a abertura dos significados linguísticos depois de pensarmos que a mudança e a ampliação perceptíveis da opinião linguística por meio do uso de regras gramaticais vêm acompanhadas de um índex a generalidades. Um novo emprego de uma palavra indica uma nova forma de emprego.

A descentração linguístico-filosófica do sujeito não legitima nem um objetivismo hermenêutico nem um anarquismo hermenêutico. Não justifica ainda menos as conclusões irracionalistas às vezes tiradas nos meios pós-modernistas. A crítica lingüístico-filosófica do sujeito não pode sem mais nem menos ser acoplada à crítica psicológica. A descentração linguístico-filosófica do sujeito não fere, à diferença da psicológica, o nosso narcisismo. Implica pelo contrário, a descoberta de um mundo comum revelado nas formas da razão e do sujeito (todas as formas possíveis do sujeito). Esse mundo comum, linguisticamente revelado, não é, no entanto, tal que possa derivar de uma economia libidinal ou de um desejo de poder. O corpo, o desejo de poder, a ambição estão presentes nesse mundo, mas linguisticamente revelados e dentro de uma contínua revelação linguística. Mesmo a coerção está presente nesse mundo, mas linguisticamente revelada e por isso sempre separada de seu alter-ego: da livre comunicação, do diálogo, da franqueza para com os outros, da cooperação voluntária.

Em certo sentido, temos, corno insiste Wittgenstein, de reconduzir as palavras a seu emprego normal. Fica claro que a filosofia do desmascaramento total se nutre da mesma metafísica racionalista que anuncia destruir. Se ao invés trouxermos as distin-ções entre realidade e imagem, entre veracidade e mentira, entre coerção e diálogo, entre autonomia e heteronímia para o terreno a que pertencem, não é mais possível afirmar (a não ser sob forma de má metafísica) que o desejo de verdade é um desejo de poder; o diálogo, coerção simbólica; a fala, verossímil terror; a consciência moral, um reflexo de interiorizada coerção; ou que a pessoa autônoma é uma ficção, um mecanismo de auto opressão ou um bastardo patriarcal etc. Com outras palavras: a crítica linguístico-filosófica do racionalismo e do subjetivismo dá-nos motivo para de uma nova forma refletir sobre opinião, justiça e autodeterminação, mas ao mesmo tempo faz-nos desconfiar daqueles que nietzschianamente buscam fazer da crítica psicológica do sujeito uma afirmação, ou seja, desconfiar de todos os propagandistas de uma nova era que procuram livrar-se da herança platônica e substituir argumento por retórica, o desejo de verdade por desejo de poder, teoria, pela arte da palavra, e ética, pela economia do desejo. Quanto a isso podemos afirmar: já vimos disso o bastante.

N o t a s :

45. Ibidem.

46. Ver Axel Honneth. Kritik der Macht. Foucault und die Kritische Theorie. (Teoria do poder. Foucault e a teoria critica.), tese de doutorado. Berlim, 1982, p. 138.

47. Ver Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Upplysningens dialektik (dialética do Iluminismo), Gotemburgo, 1981.

48. Ver de Theodor Adorno Negative Dialektik. Gesammelte Schriften (Dialética Negativa, Obras reunidas), vol. 6. Frankfurt sobre o Meno, 1973, p. 36.
49. Ibidem, p. 21.
50. Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 27 e a seguir.

51. Ibidem, p. 43 e a seguir.

52. Ver de Michel Foucault Überwacheni und Strafen (Controle e castigo). Frankfurt sobre o Meno, 1976, p. 238 e a seguir.

53. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 27 e a seguir.

54. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 27.

55. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 49 e a seguir.

56. Saul A. Kripke refere-se a esse ponto no chamado argumento privado em Wittgenstein on Rules and Private Language (Wittgenstein em róis e linguagem privada), Oxford, 1982.

57. Cornelius Castoriadis. Gesellschaft als intaginãre Institution (Sociedade como instituição imaginária), Frankfurt sobre o Meno, 1984.

58. Ibidem, p. 416.

59. Ibidem, p. 520.

60. Manfred Frank, Was ist Neostrukturalismus? (O que é neo-estruturalismo?). Frankfurt sobre o Meno 1984, p. 511.

61. Derrida é um escritor por demais conciso para que eu aqui possa fazer-lhe justiça. Refiro-me a uma única imagem do pensamento, à qual penso que Frank reproduz de forma correta. Ver J. Derrida, Signature event context (Contexto Glyph. The John Hopkins Studies I (1977); e limited Inc, em Glyph. The John Hopkins Síndica II (1977); fora isso, não quero defender a posição de Searle contra Derrida; ver J. R. Searle Reitering the differences. A reply, to Derrida", GIvph. The John Hopkins Studies I (1977).

62. Kripke op. cit., p. 55.

63. Eu digo o ceticismo hermenêutico radical. Não quero naturalmente contestar que possa fazer sentido dizer que o sentido nos textos de um escritor para ele não esteja "presente". Isso implica portanto que eu não defendo uma teoria intencionalista de interpretação. Mas terá o mesmo sentido se eu disser que o significado de uma determinada palavra não esteja presente? Acho ser cabível afirmá-lo em certos casos e em outros não. Se afirmamos não ser possível nenhum caso em que seja plausível, introduzimos um novo critério do plausível. Creio, no entanto, que os motivos para tanto advêm menos da autocrítica da língua do que da autocrítica das teorias intencionalistas do significado.

64. Ludwig Wittgenstein, Filosofiska undersökningar (Pesquisas Filosóficas), Estocolmo 1978, parágrafo 199.
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A seguir: Parte IV e V.

domingo, 28 de julho de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte II.


Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.
Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson



INTERPRETAÇÃO I

Lyotard em seu trabalho Das Erhabene und die Avantgarde (O sublime e a vanguarda), Mercur 424, março de 1984, pp 15 e seguintes mais uma vez abordou o tema da estética do sublime.35

Junto a Kant apresenta Burke como a testemunha capital da vanguarda estética e elabora principalmente o significado estético ativo de sua estética do sublime. Dessa forma fecha surpreendentemente o circulo de suas teses anteriores sobre a necessidade de substituir a semiótica pela energética. Invocando Burke, Lyotard liga a ideia de que a arte busca tornar visível algo que não pode ser visto com a ideia de que a arte ao mesmo tempo atualiza e condena o terror do nada, a ameaça de que nada mais acontece. O efeito da arte, e ao mesmo tempo seu intuito, consistiria em intensificar a sensação de vida. Mantendo tal ameaça a distância, a arte gera uma sensação de alivio, de alegria e de prazer. Graças à arte, a alma e impelida à agitação, ao movimento entre vida e morte, e tal agitação constitui sua saúde e vida.36

A arte como código (no sentido de decifrar) para o absoluto invoca e condena ao mesmo tempo o absoluto terror do nada. Dessa forma aumenta a sensação de vida.   O sublime não é uma questão de elevação ... mas sim de intensificação.37 
  
Como em Adorno, a arte em Lyotard é antes de tudo uma coisa, mas disso Adorno e Lyotard parecem tirar conclusões diametralmente opostas. Para Adorno, a experiência estética tem de ser filosoficamente esclarecida para que o seu significado, seu conteúdo de verdade, não se perca. O sentido da arte não é o seu efeito emocional, mas o conhecimento por meio e além de seus efeitos. Para Lyotard, o sentido da arte não é captar o que significa, mas por força do que alude provocar sentimentos sublimes. No conceito avangardista de arte de Lyotard, semiótica realmente foi substituída por urna energética, mesmo se baseando numa estética do sublime.

Tanto em Adorno como em Lyotard dá-se uma interessante redução da dimensão semiótica da arte ao preço de se fazer distinção entre semiótica e energética -- em Adorno num espírito de pura estética da verdade, e em Lyotard num espírito de rigorosa estética de efeito. A tarefa devia ser outra, a de reunir semiótica e ener-gética, o significado e o efeito da arte de forma a que uma absolutização de um lado não levasse à eliminação do outro. O objeto estético seria compreendido como um campo de força e tensão ao nível do sentido e como um contexto de sentido tal que a vivência se assemelhe a urna irradiação de energia -- arte como uma segunda natureza, mas uma natureza que começa a falar. Essa mistura de toda sorte de metáforas talvez pareça estranha, mas pode provavelmente servir de orientação para as próximas considerações.

Iniciemos pela dimensão semiótica. Falar de uma dimensão semiótica da arte implica afirmar que há algo por entender na arte. Em se tratando de um entendimento estético específico, não pode ser um entendimento (pragmático) das palavras e das frases de um texto literário ou das coisas num quadro. O entendimento estético concerne à configuração dos elementos na pintura, a lógica de seu contexto interior. Na arte tradicional o entendimento estético tinha uma base relativamente tranquila na compreensão de uma língua -- vocabulário, sintaxe e convenções a respeito de forma e expressão. Mas depois que a arte moderna em sua cruzada de crescente negação do sentido arrasou ou dissolveu os elementos de significação da produção estética ou os fez ir pelos ares, o entendimento estético tornou-se um problema prático de grandes proporções, enquanto a conversa sobre o entendimento estético se tornou cada vez mais duvidosa.

Poder-se-ia, para usar uma expressão no espírito de Lyotard, dizer: desde que a questão do entendimento estético por meio da negação da representação veio à luz em forma pura percebe-se não se tratar de uma questão de entendimento, pelo menos no que tange à arte. As criações estéticas consequentemente não teriam nenhum sentido como tal a ser compreensivamente desnudado. Contra isso quero apresentar a tese de que tal recusa do conceito de entendimento estético é tão sem atitude como a tese complementar do antigo positivismo lógico é destituída de consistência cognitiva, corno má e fantasiosa poesia. Mas o que é que entendimento estético seria se não pode ser reduzido à compreensão de elementos significativos, à compreensão de mensagens ou à compreensão da intenção do artista? Adorno deu uma resposta a essa questão, uma resposta na qual a ligação entre semiótica e energética já se anuncia. A respeito do conceito de entendimento estético ele diz o seguinte:

se isso deve indicar algo adequado e correspondente à coisa, dever-se-ia hoje imaginá-lo como algo a seguir, a engajadamente recriar os processos objetivamente enrijecidos na obra de arte. Não compreendemos uma obra de arte ao traduzi-la em conceitos, somente quando nos encontramos dentro de seu movimento imanente-- eu diria quase que tão logo o ouvido compusesse novamente segundo sua lógica própria, o olho a pintasse e os órgãos da fala a falasse.38

Adorno descreve o entendimento como parte da frutífera experiência estética. Na experiência estética confrontamo-nos com obras que nos tornam abertos ou fechados, que nos incluem em seu movimento ou nos excluem do mesmo, que nos fazem participes da tensão criadora ou viram os nossos olhares para trás. Trata-se realmente da lógica ou do sentido da imagem e não só de uma aprovação ou reprovação,  evidenciasse pela forma como o entendimento estético articula-se e manifesta-se: em explicação, em crítica e em comentário, em reprodução, em encenação, ou recitação, e finalmente numa produtiva -- transação de experiências estéticas -- o que abrange desde pequenos aumentos da nossa capacidade de ver, compreender e comunicar em favor da produção de novas obras.

A caracterização por Adorno do entendimento estético é fenomenologicamente correta, mas incompleta. Aqui, como sempre, o próprio entendimento não pode ser confundido com a sensação de entendimento; só é possível ser captado em suas expressões. Essas se manifestam no espaço das comunicações, após o que se torna possível uma luta com argumentos em torno da compreensão ou da incompreensão ou, o que dá na mesma, em torno do sucesso ou do insucesso da encenação da obra de arte. Disso dá testemunho a existência de uma crítica de arte e de uma crítica literária.

Mencionei um aumento da nossa capacidade de prever, de tornar compreensível e de comunicar como uma manifestação do entendimento estético. Não por acaso, isso lembra Kant, que já tentava captar essa mencionada combinação de uni momento semiótico e outro energético, do entendimento estético, no conceito de prazer estético reflexivo. A compreensão de Kant consiste, traduzida para nossa maneira de contemplar, em que um alargamento da capacidade cognitiva, emocional e perceptiva não é somente um efeito do entendimento estético mas ao mesmo tempo urna condição para o mesmo. A obra de arte ultrapassa nossas costumeiras previsões e formas de pensar, abrindo para nós um novo sentido. Somente chocando, ou comovendo ou pondo-nos em movimento torna-se compreensível para nós. Efeito estético e entendimento estético só existem em ação recíproca; um não existe sem o outro.

Nessa perspectiva, a crescente negação do sentido -- respectivamente da representação -- na arte moderna não pode ser entendida como o movimento irreversível da arte rumo a seu puro entendimento, o que a afastaria da língua significante e da manifestação representativa. Além da língua e da representação, a arte só poderia ser pensada em termos de um elevado sentido (Adorno) ou não-sentido, isto é, de pura energia (Lyotard). Acontece que a arte não é nem uma coisa nem outra. Melhor é dizer que alarga os limites do sentido, para aquilo que é possível dizer e representar e assim também os limites do mundo e do sujeito. Mesmo, ou justamente no radical solapamento do sentido na arte moderna, a obra de arte constitui um potencial para um tal alargamento dos limites do sentido e do sujeito. Pelo fato de a síntese estética elevar o nível dos componentes cognitivos, da sintaxe e da gramática do literário, do pictórico e do musical, liberam-se as energias explosivas que estiveram trancadas dentro da rígida gaiola do sentido quotidiano, os quais, de outra forma, somente se manifestam no sonho, na anedota e na psicose.

Por meio dessa liberação, põem-se à disposição do sujeito -- entram por assim dizer no mundo do sentido. Correspondem também à lógica do sonho, e com isso a uma arcaica e sepultada dimensão do sentido quotidiano, quando por exemplo a diferença entre som, palavra, imagem e texto é questionada, ou seja, a diferença entre articulação expressiva, timbre, coloração e significado convencional, ou entre discurso fixado em texto e exposição figurada. É bem verdade que a língua falada é audível, mas só as crianças entendem melhor o sentido de um texto se o lerem em voz alta. Somente poesia é necessário ouvir em voz alta para ser plenamente apreendida; ler poemas em silêncio é como ler partitura; somente uma desenvolta imaginação auditiva torna a audição literalmente desnecessária. Romances, por outro lado, podem ser lidos em silêncio; no caso, a diferença aproxima-se àquela entre o intercâmbio quando da recepção auditiva e aquilo que para o leitor normal em leitura silenciosa é percebido como o limite zero da mesma. Obras literárias avançadas como Finnegans Wake devem, pelo contrário, tanto ser lidas, vistas, como ouvidas; seu sentido auditivo só é captável por meio da leitura em voz alta. Para o leitor em silêncio, o texto fecha-se se excluído da dimensão sonora da língua. Mas à diferença da poesia não é suficiente somente ouvir o texto: a evidência de distintas associações está embutida, qual charada, na imagem da língua e tem de ser descoberta com o olho. Dessa forma o texto é ao mesmo tempo imagem e partitura. e através de um meio artístico - o do romance - e a divisão dos ramos artísticos, arte visual, música e poesia, com raízes na diferença entre som, imagem e tonalidade, perde sua força.

No caso Finnegans Wake o distanciamento dos limites tradicionais da arte e da receptividade artística é ainda maior. Nem mesmo a caracterização por Adorno do entendimento estético é adequada por ainda partir do modelo de um recipiente que em si naufraga no objeto e que com o envolvimento é recriado. Muito indica que no caso Finnegans Wake não cabe uma recepção linear e totalizante -- é como se a diferença entre recitação, contemplação estética e comunicação não mais pudesse ser mantida perante um público. Só numa leitura polifônica e comunicativa são liberadas as energias estéticas do texto. Isso foi apropriadamente narrado por Robert M. Adams em recente artigo:39

Finnegans Wake é uma excepcional obra literária que se lê melhor em grupo do que individualmente. Pede a leitura polifônica e comunicativa que o apóstolo Paulo menciona em I Coríntios 14:26: Que fareis, pois irmãos? Quando vos congregares, cada um tem um psalmo, tem ensino, tem revelação, tem língua, tem interpretação: que tudo se faça para edificação. Estudada por um grupo afim, desenvolve seu próprio rumo e tempo, primeiro cuidadosamente, experimentando, depois de forma explosiva. O pensamento move-se através e em torno do texto em círculos, correntezas, redemoinhos, águas calmas, e surpreendentes e abruptos saltos. O livro choca os nossos hábitos: pilhas de contenções linguísticas profundamente arraigadas e aparentemente sedimentadas são sacudidas c desmontadas. Em obras com Finnegans Wake o conceito de sentido estético global tende a ser impossível. A totalidade da obra reduz-se a um horizonte idealizado que só é entendido em fragmentos e assim, como observou Klaus Reichert,40 numa múltipla totalidade. Poderíamos classificar a obra de pós-moderna no sentido inicialmente apresentado. Contempla, ainda, o dizer de Ezra Pound: Grande literatura é, em última instância, língua carregada de sentido 41 -- uma definição que já aceitava o fato de os momentos semióticos e energéticos atuarem reciprocamente. Essa ação recíproca dos momentos semióticos e energéticos implica não menos que a obra de arte pode perder energia, e pelo menos temporariamente apagar e esfriar. Essa é a forma de morte própria da arte. A mortalidade da arte é tanto mais perceptível quanto mais ligada estiver a um acontecimento, mas mesmo a obra de arte como tal tem um quê de acontecimento: comportamentos c experiências estéticas são únicos e não se repetem. Até no processo de sua assimilação unia obra de arte poderia apagar e mostrar-se como restos de algo que se queimou. Sobreviveria no modo de reação e percepção de novas obras. A partir dessas um olhar pleno de vitalidade pode ser lançado sobre obras há muito desfalecidas, as quais assim se encheriam de vida.41  Um pensamento que naturalmente só contém metade da verdade por ser inteiramente energético. Em sua declaração de que crítica é a mortificação das obras, Walter Benjamin detém a outra metade da verdade:

A mortificação das obras -- não o ressuscitar romântico das vivas, mas o injetar conhecimento nas mortas. Beleza permanente decorre de conhecimento, e mesmo que seja duvidosa a afirmação, persiste que sem algo que se mereça saber não há nada belo... E função da crítica filosófica mostrar ser justamente esta a função da arte: transformar o teor historicamente objetivo em teor de verdade filosófica.43

Benjamim percebe, assim como Adorno depois dele, a efemeridade da verdade estética do belo. Isso também é só a metade da verdade. A concentração de verdade na obra de arte constitui somente um momento do consumo, a assimilação das obras, e implica mais do que uma apreensão filosófica de um teor de verdade filosófica.

Poder-se-ia entender esse processo de consumação como uma incorporação, uma absorção quase que de sentido somático, ou seja, uma absorção que tanto afeta olhos, ouvidos, nervos e órgãos dos sentidos. como a compreensão intelectual. Que cidadãos interessados literalmente consumiram, ou seja, pilharam a escultura de pedras de basalto que Josef Beuys erigiu na Friedrichsplatz, em Cassel, quando da exposição Dokumenta7, transportando-as e amontoando-as no chão perto de um recém-plantado carvalho,44  poderia ser visto como urna alegoria sobre a arte como tal.

Quem quiser guardar a obra de arte de Beuvs como um monte de pedras com uma das pontas apontando para um carvalho recém-plantado impede seu efeito. Mas garantir seu efeito é fazê-la desaparecer.45

Nesse sentido, algumas tentativas avangardistas de derrubar as barreiras entre arte e vida podem ser entendidas como demonstrações alegórico-provocativas da forma de existência da arte: lembranças de que a obra de arte como neutralizado produto cultural deixou de existir.

Tenho trazido à lembrança o complexo intrincado dos aspectos semióticos e energéticos contrapondo-se a que a estética modernista (ou pós-modernista) apressadamente e unilateralmente se prenda a uma crescente negação da representação como critério de arte avançada. A arte não é o alter-ego da razão ou do sentido, nem é tampouco um sentido puro ou uma razão pura em sua forma de verdade. A arte é. antes, sentido condensado que foi posto em movimento e carregado de novas e ocultas energias. Não é contra o terror dos signos, dos sentidos, do pensamento representado ou da verdade que a arte polemicamente se opõe, mas contra o terror do sentido estabelecido e petrificado -- só nessa perspectiva se apre-senta como sem sentido als Un-Sinn.

Acorrentar a arte numa crescente negação do sentido comporta novamente e implicitamente urna construção linear do desenvolvimento da arte. Um tal desen-volvimento linear termina necessariamente no nada, algo que para Adorno estava claro. Uma arte depurada dos últimos traços de significação, representação e sentido torna-se impossível de distinguir de um ornamento qualquer, uma zoada sem sentido ou uma construção meramente técnica. Arte implica na realidade um adensamento de sentidos para como que incomodar ou negar sentidos desvanecidos. Algo válido tanto para arte moderna como arte no sentido tradicional do termo. Portanto, se queremos ligar a arte moderna a um impulso pós-modernista, teremos de fazê-lo de forma diferente da de Lyotard. Finnegans Wake foi um primeiro exemplo e voltarei a referir-me a ele. Mas antes disso quero abordar a questão a partir de um outro ponto: procurarei a seguir abordar o tema capital do pós-modernismo, a critica da razão totalizante.


N o t a s :

35. Jean-François Lyotard, Das Erhabene und die Avantgarde, Merkur 424, março 1984, p. 1151 e a seguir.

36. Ibidem. p. 159.

37. Ibidem.

38. Theodor W. Adorno, Voraussetzunegn (Hipótese), Noten zur Literatur: Gesammehe Schriften (Notas sobre literatura. Obras completas), vol. 11. Frankfurt sobre o Meno, 1974, p. 433.

39. R. M. Adams, Scrabbling in the ‘Wake’ (Remexendo o caminho), New York Review of Books, maio 1984, p. 4 3.

40. Ver K. Reichert, Von den Rãndern her oder Sortes Wakeianae (Das margens daqui ou do tipo waikeano), em L. Dallenbach e Ch. L. Hart Nibbrig (red.), Fragment und Totalität (Fragmentos e totalidade), Frankfurt sobre o Meno, maio 1984, p. 306.

41. Citação, ibidem, p. 302.

42. O envelhecimento da obra de arte é só superficialmente, ou seja, para restauradores, um ato de destruição. Envelhecimento implica, no melhor dos casos, uma compensação às exigências que cada obra de arte constitui para o observador por meio da neutralização de hábitos. A força criadora do cair em esquecimento, do cair no inevitável monte de vassouras, cria condições para que velhas formas possam comunicar novos significados. Ver Bazon Brock, „Die Ruine als Form der Vermittlung von Fragment und Totalitãt, em L. Dãllenbach e Ch. L. Nibbrig (red.), Fragmente und Totaliteit, op. cit., p, 138.

43. Walter Benjamim, Ursprung des deutschen Trauerspiels. Gesammelte Schriften (Origem da tragédia alemã. Obras completas), vol. H, Frankfurt sobre o Meno, 1974, p. 357 e a seguir.

44. B. Brock, op. cit., p. 138.

45. Ibidem.

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A seguir: Partes III, IV e V.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte I.


Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.

Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson


INTRODUÇÃO

O conceito de pós-moderno ou de pós-modernismo é um dos mais variados da literatura sobre arte, bem corno do debate sócio teórico do último decênio. A palavra pós-moderno liga-se a urna série de pós-conceitos e pós-teorias: sociedade pós-industrial, pós-estruturalismo, pós-empirismo, pós-racionalismo Nessa malha de pós-conceitos e pós-teorias parece articular-se urna passagem de época, cujos contornos ainda são imprecisos, confusos e ambíguos, mas cuja experiência central — a morte da razão — parece enunciar o fim definitivo de um projeto histórico: o projeto do moderno, o projeto do Iluminismo europeu ou mesmo o projeto da civilização greco-ocidental. Essa malha tem um quê de idéia fixa: de um ângulo visual conveniente pode-se descortinar ainda os contornos de uma radicalização do moderno, um iluminismo esclarecido quanto a si mesmo, um conceito pós-racionalista de razão. Desse ponto de vista, o pós-modernismo desponta como um marxismo desmitologizado, como uma continuação do avangardismo estético ou como uma radicalização da crítica lingüística.

Assim corno na crítica lingüística, podemos, nas pós-teorias, reconhecer a sobreposição de duas imagens: tanto um pathos do fim do Iluminismo corno um pathos de sua radicalização. Confundem por assemelhar um complexo contexto de fenômenos intelectuais, estéticos, culturais e sociais a imagens materiais, nas quais o observador, dependendo de índole e perspectiva, pode descobrir isso ou aquilo; o observador brinca com uma ambiguidade que de uma vez por todas foi transferida para o fenômeno ótico. Contrariam a compreensão de uma constelação histórica, mesmo se a ambiguidade está localizada no próprio fenômeno, radicalmente distinta da observação descobridora -- ou do descobrimento observado -- de uma imagem material, pela simples razão de que o observador pertence à própria história, e por isso mesmo não pode observá-la.

Quero salientar que não dá para apresentar nada de esclarecedor sobre o pós-modernismo fora de uma perspectiva teórica, filosófica, intelectual ou ética que em sua visão da atualidade ao mesmo tempo constitua um auto compreensão no tempo, a auto compreensão de um contemporâneo intelectual, emocional c voluntariosamente engajado.

O que segue não é, portanto, urna pesquisa de dois objetos bem definidos, o moderno e o pós-moderno, mas antes uma tentativa, às apalpadelas, de esclarecer uma perspectiva, na qual ambos os conceitos entram em relacionamento, e na qual as ambiguidades que caracterizam o moderno e o pós-moderno vêm à luz. Ao escolher a palavra dialética para caracterizar tais relações e ambiguidades e relações entre ambiguidades, fi-lo sem maiores pretensões filosóficas ou histórico-filosóficas. A palavra dialética deve aqui ser entendida sem conotações de verdade absoluta ou de história verdadeira. Uma tal compreensão da palavra dialética pode, se quisermos, ser tomada corno pós-moderna. O emprego da palavra dialética exclui, no entanto, um aspecto: a dissolução da dialética em pura energética como postulado por Lyotard.1  E com isso já comecei a desenvolver o meu entendimento do pós-modernismo.


APRESENTAÇÃO

Gostaria de iniciar com uma seleção a esmo de caracterizações do pós-moderno. Meu intuito é criar uma espécie de colagge, no qual as partes -- principalmente as citações -- são reunidas de tal forma que o pós-modernismo apareça como um campo simbólico ou conceptual com algumas linhas de força.
 
lhab Hassan, um representante do pós-modernismo norte-americano, caracterizou o momento pós-moderno como unn-making -- o que pode ser traduzido aproximadamente por desconstrução (aqui, por motivos de diferenciação, traduzido por desmontagem).

O momento pós-moderno é um momento de contradição que pressupõe uma radical desmontagem da consciência ocidental -- daquilo que Michel Foucault poderia chamar de “épisteme” pós-moderna. Eu chamo de desmontagem, apesar de atualmente existir toda uma enxurrada de outros termos, desconstrução, descentralização, desaparecimento, irradiação, desmistificação, desconti-nuidade, “defferance”, dispersão, etc. Tais termos expressam uma rejeição ontológica do sujeito tradicionalmente coeso, do cogito da filosofia ocidental. Expressam, também, uma composição epistemológica de fragmentos e rupturas, e o correspondente engajamento ideológico em favor de minorias políticas, sexuais e linguísticas. Pensar, sentir, agir e ler bem significa, segundo o “épistème” da desmontagem, rejeitar a tirania das totalidades: em cada atividade humana a totalização é potencialmente totalitária.2

Pode-se afirmar que o momento pós-moderno implica uma explosão do epistema moderno, onde a razão e seu sujeito -- como o lugar de coesão e totalidade -- desmorona. Observando melhor, trata-se naturalmente do desejo de destruir -- ou desconstruir -- o cogito, a razão totalizante, detentora de uma longa história na arte moderna.

Como sabemos, o desejo de desmontagem começou a manifestar-se mais cedo na arte, já na virada do século. Para Hassan, os esforços mais radicais na arte moderna estão reunidos e guardados na consciência pós-moderna: desde os “readymades” de Marcel Duchamps e as “collage” de Hans Arp até as máquinas autodestruidoras de Jean Tinguely e as obras conceptuais de Bruce Nauman um certo impulso fez-se presente, voltando a arte para si mesma no sentido de recrear-se a si mesma ...

O principal é que: num processo de desdefinição, no dizer de Harold Rosenberg, a arte torna-se, assim corno o artista, um fato sem contornos mais nítidos, na pior das hipóteses numa espécie de pesadelo social, na melhor das hipóteses numa abertura ou num início. Essa é a razão pela qual Jean-François Lyotard exorta o leitor a

abandonar o porto seguro que a categoria 'obra de arte' ou os signos em geral oferecem à consciência e numa atitude genuinamente artística não reconhecer nada além de iniciativas ou eventos, independente da área onde se apresentem.3

A oposição à razão totalizante e seu sujeito é sobremaneira um movimento em favor da obra de arte exclusiva e sua pretensão de unidade e sentido. Por isso o impulso a vanguardista, no qual a consciência pós-moderna é formada, tem de questionar não só a unidade do sujeito e da obra de arte como ainda o próprio conceito de arte. É forçado, expresso em termos sociológicos, a questionar a distinção de uma das esferas da arte no mundo moderno, separada do sistema tecnológico, da política e da ciência.

A partir das declarações programáticas de Hassan pode-se caminhar no sentido de uma estética neomarxista (segundo Adorno), bem corno no sentido de uma estética afirmativa, como quer Lyotard. Rejeitando a imposição da razão totalizante por parte do pós-modernismo, Frederic Jameson vê a possibilidade de um novo, por assim dizer dialógico conceito pós-moderno de razão. O que Jameson tem em mente podemos, junto com Adorno, caracterizar como a unidade da multiplicidade aleatória. O próprio Jameson fala de relações de diferenças.4

Lembrando-nos a estética de Adorno e a de Walter Benjamim, a caracterização da estética do pós-modernismo é vista por Jameson como uma estética alegórica, que explicitamente nega a estética do símbolo -- da totalidade orgânica --, indicando uma forma capaz de unir rupturas e desigualdades radicais sem eliminar as diferenças.5

A caracterização do pós-moderno leva-nos mais uma vez bem longe no passado da história da estética moderna. O que pode ser tomado como especificamente pós-moder-no é muito mais o fato de procurar uma ligação entre estética e política: para Jameson, a estética do pós-moderno é na realidade uma micropolítica descentralizada da neo-esquerda.6

A rejeição da unidade orgânica da obra de arte simbólica é correspondida, portanto, pela recusa das formas práticas e teóricas de totalização impostas de cima para baixo dentro do movimento trabalhista tradicional marxista. Urna ligação semelhante entre estética pós-modernista e uma micropolítica democrática descentrada aparece na caracterização da arquitetura pós-moderna feita por Charles Jencks. Poder-se-ia dizer que o pós-modernismo, na perspectiva de Jameson, defende uma nova e pós-racionalista forma de estética, de totalizacão psíquica e social (unidade, síntese). Não se trata de uma simples negação da razão totalizante e seu sujeito, mas da auto superação da razão e do sujeito (Castoriadis).

Uma outra linha vai do pós-modernismo de Ihab Hassan para a estética afirmativa de Jean-François Lyotard.  Em Lyotard -- o Lyotard do início da década de 1970 --, a crítica da razão totalizante aguçou-se no sentido de escapar do terror da teoria, da representação, do signo e da ideia de verdade. Lyotard critica Adorno por permanecer atado à categoria de sujeito e Artaud por não se afastar o suficiente do generalizado caminho da de-semiotica.8 Em ambos os casos trata-se -- conforme entendo Lyotard -- só de tentativas pouco entusiasmadas de romper com o pensamento representativo, com o terror do signo e do significado. Adorno mantém-se fiel à expressão, e Artaud, a uma gramática dos gestos. Lyotard postula a dissolução da semiologia em energética. Para Lyotard, o sujeito, a representação, o significado, os signos e a verdade são uma seqüência que deve ser rompida. O sujeito é um produto da máquina da representação e desaparece com ela.9  Nem a arte nem a filosofia tratam de significado ou de verdade, mas tão só de câmbios de energia, que não podem emanar de uma memória, de um sujeito, de uma identidade.10 A economia política transforma-se muna economia libidinal, liberada do terror da representação.

Essa bizarra interpretação pós-modernista, feita por Felix Guattaris e Gilles Deleuze, inspirada em L'Anti Oedipe, da passagem do capitalismo para o socialismo, é ao mesmo tempo um retorno de Adorno a Nietzsche e uma volta de Adorno rumo ao positivismo. Como Lyotard substitui o comportamento regulado pela construção e pela artistificação da representação pela vontade -- no sentido de querer o possível -- é impossível distinguir o pós-modernismo, assim como a dissolução da semiótica em energética, do behaviorismo. Nesse caso, não como em Skinner, um behaviorismo para engenheiros sociais, mas um behaviorismo que constitui o emolduramento cultural de um sistema social que se tornou behaviorista. Nesse ponto, o pós-modernismo torna-se uma ideologia sobre o pós-histórico; não é por acaso que o pathos do esquecimento passa a substituir o pathos da crítica no Lyotard dos anos 1970.

O termo momento pós-moderno pode aqui também ser entendido como um abrir e fechar de olhos. Essa é a fundamental categoria de uma consciência temporal pós-histórica que não só se descarregou do peso da herança platônica mas também do passado e do futuro. Nessa perspectiva, a resolução pós-moderna, valendo-nos das palavras de Lyotard, pode ser vista como um gigantesco processo de perda de sentido que levou à destruição de todas as histórias, referências e finalidades.11  Baudrillard parece-me mais consequente do que Lyotard quando na falta de história da sociedade pós-moderna observa uma paródia do já concretizado momento messiânico:

o futuro já veio, tudo já está aqui... Eu creio que não temos de esperar nem a concretização de uma utopia revolucionária nem uma hecatombe nuclear. A força explosiva já entranhou as coisas. Não há mais nada o que esperar... O pior, o pesadelo dos acontecimentos finais nos quais se baseavam as utopias, a metafísica esperança na história, etc. — o ponto final já está atrás de nós ...12

O pós-moderno é, portanto, uma consumada realidade histórico – não histórica, a morte do moderno já ocorreu. A sociedade pós-moderna seria então um imprevisto híbrido das visões teórico-sistêmicas e dos sonhos de Ludwig Klage, o renascimento do arcaico mundo imaginário a partir do espirito da moderna eletrônica.

Jean-François Lyotard passou aos poucos a representar uma variante modificada do pós-modernismo. Uma variante inspirada tanto por Wittgenstein quanto pela Kritik der Urteilskraft (Critica da razão) de Kant. De forma sugestiva combina elementos de urna epistemologia pós-empírica (Feyerbend), uma estética modernista (Adorno) e um liberalismo político pós-utópico. A ruptura com a razão totalizante é apresentada agora por um lado como um adeus aos grandes contos -- à libertação da humanidade ou à criação da ideia 13 -- e, para as aspirações fundamentalistas de legitimações, finais, como uma crítica do -- sucedâneo ideológico da totalização. É apresentada por outro lado como uma rejeição às formas complementares do futuro no pensamento totalizante: utopias quanto à unidade, reconciliação e harmonia universal. Lyotard defende o pluralismo irredutível do jogo das línguas e salienta o inevitável caráter local de todos os discursos, acordos e legitimações.14  Poderíamos aqui falar, por exemplo, de um conceito de razão, pós-euclidiana, pluralista e descontínua, em oposição ao conceito de razão teórico-consensual de Habermas, o qual Lyotard apresenta como a última tentativa de se manter ligado à ideia de reconciliação totalizante, ou seja, à unidade de verdade, liberdade e justiça do idealismo alemão (ou da tradição marxista). Numa passagem característica, que não por acaso lembra a teoria anarquista do conhecimento de Feyerabend, Lyotard explica o significado de justiça ulterior ao consenso:

Reconhecer o múltiplo não traduzível, o intrincado jogo de línguas e não procurar reduzi-las entre si -- com uma regra que, apesar de tudo deve ser genérica: 'deixai-nos jogar... e deixai-nos jogar em paz.15

Em Lyotard, o pós-modernismo apresenta-se corno o resultado de um grande movimento de deslegitimação do moderno europeu. para o qual a filosofia de Nietzsche constituiu um documento inicial e central.16  Na minha opinião, o pensamento pós-moderno apresentou sua forma mais expressiva na filosofia de Lyotard. Quero ater-me mais um pouco ao problema da estética. Em Lyotard, o pós-modernismo estético apresenta-se caracterizadamente como um modernismo radicalmente estético -- corno se fosse a autoconsciência do modernismo.

Uma obra só se torna moderna se primeiro houver sido pós-moderna. O pós-modernismo nesse sentido não é o fim do modernismo mas a sua gênese, um estado que se repete.17

Já Adorno viu as características das modas estéticas dentro de uma contínua obrigação de renovação e solapamento do sentido e da forma. Ambas as tendências intimamente ligadas com a liberação das forças produtivas técnicas na sociedade capitalista e a correspondente destruição do contexto de intenções tradicionais:

Sinais de dissolução é o signo do moderno ..., explosão é uma de suas constantes. Energia anti-tradicionalista é como que um redemoinho que tudo absorve.18

De forma semelhante, Lyotard fala da vertiginosa aceleração que caracteriza o desenvolvimento das modas estéticas, que continuamente questionam todas as regras estabelecidas para a produção literária, artística e musical.  Para Lyotard – e aqui deparamos com um interessante paralelismo com Adorno ao qual voltarei mais adiante  --, a invariável nesse redemoinho anti-tradicionalista" é uma estética do sublime. O modernismo desenvolve-se no distanciamento do real como a sublime relação entre o pensável e o real.19   A diferença decisiva para com Adorno consiste, no entanto, em que o pós-modernismo completa essa estética do sublime sem tristeza e sem nostalgia.20         O pós-modernismo deveria, portanto, ser um modernismo sem tristeza, sem ilusão quanto a uma possível reconciliação dos jogos linguísticos, sem desejo do inteiro e do coeso, da reconciliação entre o conceito e o sentimento, da experiência transparente e comunicável.21  Em poucas palavras: um modernismo que com alegria c coragem aceita a perda de sentido, de valores, de realidade -- pós-modernismo como ciência divertida.

No artigo por mim citado, Lyotard fala de uma fase de exaustão. Sua defesa do modernismo estético não é menos dirigida contra uma variante do pós-modernismo -- ou compreensão do pós-modernismo  -- ainda não abordada por mim. Trata-se daquele pós-modernismo que na arquitetura expressa um novo ecletismo e historicismo, na pintura e na literatura um novo realismo ou subjetivismo e na música um novo tradicionalismo.

Somos colocados ante mais uma descoberta na imagem focal do pós-modernismo. Existe uma certa lógica interna quando, por exemplo, Charles Jencks descreve a re-descoberta da linguagem arquitetônica, seu novo contextualismo, ecletismo ou historicismo, corno especificamente pós-moderno. Mesmo a estética arquitetônica modernista de Jencks, que se afasta da tradição Bauhaus, baseia-se numa negativa do racionalismo do moderno em favor de um jogo com fragmentos e sinais, de uma síntese do diferente, de códigos duplos e de formas democráticas de planejamento.22

Há sem dúvida concordâncias entre por um lado o pós-modernismo de Jencks e de Venturi (multiplicidade e contradição contra simplificação, dualidade e tensão em vez de abertura, tanto/ como em vez de ou bem/ou mal. elementos de dupla função em vez de elementos de simples ação, cruzamentos em vez de elementos puros, vitalidade impura — ou totalidade problemática -- em vez de clara coesão, e por outro lado as ideias de Hassan e de Jameson.23  A ideia de Van Eyck quanto a uma clareza labiríntica se volta contra o ideal de uma clareza matemático-geométrica na moderna arquitetura e urbanismo, mas tem sua origem bem longe na história da estética do moderno. Uma imagem teórica semelhante reencontramos em Kandinsky e Schönberg, na fase de transição da pintura realista e da música tonal para a pintura abstrata e a música atonal. Aqui também a vanguarda pós-moderna se mostra uma continuação do modernismo estético e não uma ruptura para com o mesmo, pelo menos enquanto -- com Lyotard. Adorno e mesmo Barthes -- compreende a ruptura com regras dadas como constitutivas do moderno estético.

Em Jencks -- para ficar com o exemplo da arquitetura pós-moderna --, apresenta-se entretanto uma ambiguidade no pós-modernismo que, pelo menos nessa forma, esteve ausente das manifestações até aqui mencionadas. Dito de outra forma: Jencks descreve um fenômeno extremamente ambíguo; essa ambiguidade é dupla em sua estética pós-modernista em razão de quase não reconhecê-la. Aqui poderíamos, junto com Lyotard, protestar contra o uso em vão da palavra pós-modernismo. Em minha opinião, seria mais correto falar de uma ambiguidade dentro do próprio campo do pós-moderno que também concerne ao pós-modernismo.

No caso de Jencks, a ambiguidade reside em conceitos corno historicismo e ecletismo. É bem verdade que Jencks é consciente do fato desses conceitos possuírem conotações como exaustão, fuga e conservadorismo, mas acredita que a arquitetura pós-moderna contém a possibilidade de um ecletismo e de um historicismo autêntico, distinto daquele da virada do século. Examinando as criações da arquitetura do pós-modernismo real-- exatamente como o pós-modernismo examina as criações do funcionalismo real -- encontramos junto a impulsos avangardistas muito do que é mimoso, maneiristisco, pseudo-rústico e neoconfortável. É evidente que o teórico nunca consegue controlar plenamente o contexto social de seus conceitos, e as tendências ecléticas, historicistas c regressivas da atualidade não podem. por definição, ser transformadas em expressão de um ecletismo ou historicismo autêntico, tampouco como as criações do funcionalismo vulgar podem ser transformadas em manifestações de um funcionalismo autêntico. Cavando mais fundo, aparecem também as ideias sobre contextualismo e preservação dos modelos urbanos do centro das cidades, um lado neoconservador e até mesmo defensivo -- como se só fosse questão de preservar e restaurar um estado que o moderno praticamente destruiu. O neoconservadorismo dominante une-se aqui às tendências regressivas e privatistas da anticultura. O projeto cultural do moderno deságua em movimentos defensivos, enquanto a modernização técnica da sociedade progride ininterruptamente.

Com isso opino que o pós-modernismo -- o que é bem claro em Jencks -- tem parte numa ambiguidade profundamente arraigada no próprio fenômeno social. Trata-se da ambigüidade numa crítica do moderno -- e com crítica não penso somente numa critica teoricamente articulada, mas também num processo social no qual atitudes e orientações mudam -- uma critica que poderia pretender tanto a superação do moderno em direção de urna sociedade realmente aberta como urna ruptura com o projeto moderno (Habermas). Isso não deve naturalmente ser confundido com fugir da moderna caixa metálica da eletrônica, ou seja, mudança do Iluminismo em cinismo, irracionalismo e privatismo, na medida em que o pós-modernismo só é o mais recente programa avangardista ou somente uma modismo teórico, a consciência ainda obscura quanto a um fim ou a uma transição. Mas o fim de quê? E uma transição para o quê?

Lyotard tem dado algumas respostas sugestivas para essas perguntas que merecem ser consideradas. Meu debate será no entanto parcialmente de caráter indireto. Após algumas considerações sobre a estética do sublime, em Lyotard. abordarei o tema da critica da razão e da língua, que figura em todas as variantes de pós-modernismo, a partir de alguma perspectiva diversa da de Lyotard. Ao mesmo tempo estou de acordo com Lyotard que uma grande parte dos problemas, das enrascadas, e das convulsões de nosso tempo se refletem nesse tema. Somente isso, se não outra coisa, motiva ver no pós-modernismo algo mais que urna efêmera moda em transição.


INTERMEZZO - STRETA

Retorno mais uma vez à observação de Lyotard quanto às atuais tendências de exaustão. É possível compartilhar sua opinião mesmo não estando de acordo com sua interpretação das mesmas. Minha divergência para com a interpretação de Lyotard é comparável àquela que Peter Bürger recentemente dirigiu à Adorno.   Bürger 24   critica a tese de Adorno que afirma sempre haver um nível do material estético o mais avançado a partir do qual podemos decidir o que num dado momento (ainda) é esteticamente possível ou não. A tese de Adorno é vaga demais para poder ser defendida. Bürger a aguça, no entanto, a tal ponto -- e nisso estamos de acordo -- que se torna simplesmente inaceitável. Bürger invoca não somente a polêmica de Adorno contra o neoclassicismo musical de Stravinskij em Philosophie der neuen Musik, mas também a seguinte interessante citação:

o fato de que pinturas abstratas radicais possam ser expostas em recintos de representação sem causar escândalo não justifica o retorno a uma arte figurativa que agrade a priori, mesmo que se escolha Che Guevara para ficar atualizada-mente bem com o objeto.25

Contra essa aparente total desvalorização de toda a arte realista atual, Bürger defende atitudes neorrealistas. Sua tese quanto ao envelhecimento do moderno não é menos uma tese sobre o envelhecimento do conceito de Adorno sobre o moderno. Contra Adorno, Bürger apresenta a seguinte tese:

Nas modas modernas plenamente desenvolvidas nenhum procedimento e nenhum material é objeto de tabu; o que é esteticamente possível é decidido pela obra exclusiva no contexto de uma determinada situação concreta.26

À tese de Adorno sobre o material mais avançado, Bürger contrapõe o pluralismo dos materiais e das técnicas. Considero que a tese de Bürger é correta enquanto -- como o próprio Bürger -- a entendemos como expressão tanto de dificuldade como de liberdade na arte moderna. Naturalmente temos de concordar com Adorno e Lyotard que não existe nenhum retorno estético: cada novo realismo dentro, por exemplo, da pintura, só pode ser um realismo ulterior ao academicismo superado pela fotografia e pelo filme. Mas na nova pintura podemos encontrar urna produtiva ação recíproca entre realismo fotográfico e realismo cinematográfico que não tem nenhuma relação com a volta ao academicismo. Contra isso Lyotard parece apresentar a tese de que experiências e técnicas realistas são excludentes. Nesse ponto há uma interessante e esclarecedora identidade entre Lyotard e Adorno: poder-se-ia dizer que ambos entendem a crescente falta de sentido como o princípio da arte moderna.27 Um princípio que tem sentido múltiplo já em Adorno: implica a negação da tradicional forma de conjugação de sentidos (a obra de arte orgânica) e a negação do sentido estético em correspondência à falta de sentido inerente à realidade capitalista. É bem verdade que em Lyotard o negativismo ganha outro direcionamento, mas é de sentido tão múltiplo como em Adorno. Negação de sentido significa para Lyotard a negação da representação e da própria realidade representada:

O moderno, independente da época em questão, nunca aparecerá sem abalar a fé e sem descobrir a falta de realidade da realidade, ao mesmo tempo em que descobre novas realidades.28

Métodos realistas tais como a fotografia e o filme contrapõem-se a essa tendência estética de irrealizar a realidade na medida em que têm a ver com a estabilização da referência, ou seja, com a reprodução da realidade de tal forma que se apresente reconhecível -- o realismo como confirmação do sentido como tal.29

A estabilização da referência, a confirmação do sentido, significa para Lyotard, em última análise, que a conceituação estética equipara-se à cognitiva. que a aptidão determinante da conceituação substitua a refletora.30 Se uma vez igualamos representação à conceituação, podemos chamar Kant por testemunha-capital do pós-modernismo. O que Kant disse sobre o gênio como definidor de regras se iguala ao princípio da crescente negação da representação:

Um artista ou um escritor pós-moderno encontra-se na mesma situação que um filósofo; o texto que escreve, a obra que cria, em princípio, não são dirigidos por regras estabelecidas e não podem ser julgadas segundo uma conceituação determinante, por meio da aplicação de categorias comuns a esse texto, a essa obra. Tais regras e tais categorias é o que a própria obra ou texto pesquisam. O artista e o escritor trabalham portanto sem regras para estabelecer regras para aquilo que virá a ser.31

A crescente negação da representação torna-se idêntica àquela nova negação apresentada por cada obra de arte para com a arte anterior.

Lyotard compreende o caráter não conceitual e transdiscursivo da arte -- que Kant analisara -- como uma negação e representação (estética). Se é que o entendo bem, a ideia subjacente é a seguinte: em cada representação estética de algo, aquilo que por meio da apresentação fica manifesto caracteriza um momento conceituai no objeto estético: uma pintura não é como pintura de um objeto, de um interior, de uma paisagem, uma pintura pura no sentido de ser um objeto estético. Enquanto a arte representa, faz parte de um discurso para o que foi chamada a superar. O conceito de apresentação estética aproxima-se assim do conceito de interpretação conceituai e a determinação da arte passa a ser a de negar a representação. Com isso, a ideia de Kant do belo artístico apresenta-se como um inaceitável híbrido que o desenvolvimento da própria arte foi obrigada a questionar. Assim só nos resta escolher entre urna estética do ornamento e urna estética do sublime. Sob o pressu-posto de que essa seja a única escolha, todo aquele que considera a arte importante irá junto com Lyotard escolher a estética do sublime.

O paralelismo entre Adorno e Lyotard fica evidente: ambos definem a crescente negação de significado -- respectivamente da representação -- como principio da arte moderna, mas justamente nesse movimento negativo a arte se apresenta para ambos como um número absoluto. Para Adorno, a obra de arte é a presença aparente -- sensorial daquilo que não pode ser pensado nem produzido --, a realidade numa condição de reconciliação. Para Lyotard, a arte torna-se uma alusão àquilo que se pode pensar mas não produzir. Mostrar que algo existe, que pode ser imaginado sem que possa ser visto ou mostrado, essa é a contribuição da arte moderna.

A pintura moderna procura representar algo que não é possível representar.32  A diferença em relação a Adorno é evidente, bem como o comum entre os dois: em Lyotard, a aparência estética é desprovida de conteúdo utópico, mas também para si está absolutamente ancorado naquilo que se manifesta.33

Que a obra de arte justamente no movimento que nega o significado -- respectivamente a representação -- alude o absoluto pode ser um pensamento de certa profundidade. Minha crítica concerne à instrumentação filosófica desse pensamento em Lyotard, mas também em Adorno. Naturalmente -- quero acentuar -- isso implica uma certa deturpação, quando eu igualo a negação de significado (Adorno) à negação de representação (Lyotard). O que me interessa é, no entanto, a semelhança estrutural entre Adorno e Lyotard, a qual consiste no seguinte: tanto para Adorno como para Lyotard o conceito de arte apresenta-se de forma negativa para um conceito sobre o conceito (o pensamento identificador, a representação), que tem suas raízes numa tradição nietzschiana de critica linguística e critica racional e que, do ponto de vista de filosofia linguística, me parece problemática.

As semelhanças gramaticais de fundo entre a crítica linguística e racional de Adorno e a de Lyotard manifestam-se sob forma de homologias estruturais entre a crítica do pensamento identificador e a crítica do signo representado. É em razão dessas premissas comuns que tanto Adorno como Lyotard são incapazes de indicar o que na obra de arte a faz algo mais que só um número do absoluto, ou seja, a complexa forma pela qual a arte se relaciona com a realidade.34  Em ambos os casos parece tratar-se de um profundo dogmatismo quanto à teoria: assim como a arte em Adorno é amarrada à negação do significado por causa de sua conceituação, em Lyotard é fixada da mesma forma à negação da representação. Assim como a crítica do pensamento identificador é a chave da estética de Adorno, a crítica da representação é a chave da estética pós-moderna de Lyotard. O problemático são as premissas filosófico-linguísticas e racionais comuns a ambos por constituírem uma crítica inacabada da lógica da identificação. No que tange a Lyotard, só posso apresentar aqui esta pressuposição; em relação a Adorno, voltarei mais adiante.


N o t a s :

1. Jean-François Lyotard, Intensitãten (As intensidades). Berlim, 1978, p. 104.

2. Ihab Hassan, The critic as innovator: the Tutzing statement in X frames (A crítica inovadora: a afirmativa de Tutzing em X frames), America Studies (Estudos Americanos). Caderno i-10• 1, 1977, p. 55.

3. Ibidem, p. 57.

4. Uma entrevista com Frederic Jameson, Diacritics, vol. 12, outono de 1982, p. 82.
 5. Ibidem, p. 83.

6. Ibidem.

7. Ver Jean-François Lyotard., Apathie in der theorie (Apatia na teoria), Berlim, 1979, p.36.

8. Ver Jean-François Lyotard, Essays zu einer affirmativen Esthetik (Ensaios sobre uma estética afirmativa), Berlim, 1978, p. 17.

9. Ibidem, p. 21

10. Ibidem, p. 121.

11. Tod der Moderne. Eine Diskussion (Konkursbuch); A morte do moderno. Uma discussão (A falência do livro)), Tübingen 1983, p. 25.

12. Ibidem, p. 103.

13. Jean-François Lyotard, Das postmoderne Wissen (O saber pós-moderno), Bremen, 1982, p. 121.
14. Comparar ibidem, p. 123.

15. Conversa entre Jean-François Lyotard e J. P. Dubost, ibidem , p. 131.

16. Comparar ibidem, p. 71 e a seguir.

17. Jean-François Lyotard, Resposta à questão: o que é o pós-moderno?, Post-moderna tider? (Tempos pós-modernos), Nordstedts, Estocolmo, 1986.

18. Theodor W. Adorno, Ásthetische Teorie (Teoria estética). Frankfurt sobre o Meno, 1970, p. 41.

19. Jean-Francois Lyotard Resposta à questão... , op. Cit.

20. lbidem.

21. Ibidem.

22. Ver Charles Jencks, Die Sprache der postrnodernen Architektur (A arquitetura pós-moderna). Stuttgart, 1978; e Albrecht Wellmer, "Arte, indústria e arquitetura", Arquitetura e Conhecimento, n°. 1, Brasília, Ed. Alva, 1994

23. Ver Jencks, op. cit., p. 87.

24. Peter Burger. "Das Altern der Moderne!" ("A velhice do moderno!"), Adorno-Konferenz 1983 (editado por L. von Friedeburg e J. Habermas), Frankfurt sobre o Meno, 1983, p. 177 e a seguir.

25. Ästhetische Theorie (Teoria estética), op. cit., p. 315 e a seguir. Comparar Bürger, op. cit., p 186.

26. Ver Bürger, op. cit., pp 191 e 194.

27. Ver Allbreeht Wellrner, "Sanning, sken, fõrsoning" ("Verdade, imagem, reconciliação"). Dialektiken mellan dei moderna och dee postmoderna dialética entre o moderno e o pós-modemo), Symposion, Estocolmo/ Lund, 1986.

28. Jean-François Lyotard, "Resposta à questão... ", op.cit.

29. Ibidem.

30. Ibidem.

31. Ibidem.

32. Ibidem.

33. Ibidem.

34. Ver Allbrecht Wellmer, Sanning, sken, fõrsoning (Verdade, imagem, remição). Dialektiken mellan dei moderna och det postmoderna (A dialética entre o moderno e o pós-moderno), Symposion, Estocolmo / Lund, 1986.

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A seguir: Partes II, III. e IV.