sábado, 24 de novembro de 2012

LIBERALISMO E TEORIA DA ARQUITETURA parte II


Frank Svensson

A origem do termo e do pensamento fenomenológico

Outra expressão significativa das filosofias irracionalistas de frequente presença nas teorias da arquitetura da sociedade capitalista é o pensamento fenomenológico.

Devemos a introdução do termo fenomenologia no mundo da filosofia a Johann Hein-rich Lambert, matemático, físico, astrônomo e filósofo alemão (1728-1777) nascido em Mülhausen (na época território suíço).   Como fenomenologia designava a doutrina do aparente --- das Schein --- à diferença do real --- das Sein.  Com a importante obra de Hegel, Fenomenologia do Espírito / Phenomenologie des Geistes, de 1807, é que a fenomenologia como enfoque filosófico ganhou uma dimensão histórica.  Hegel acrescentou à visão estática de Lambert o emprego do termo para o estudo das formas de apresentação do Espirito, ou da Ideia absoluta, em seu desenvolvimento, passando do estágio de ingênua consciência sensorial, pelo de autoconsciência, até atingir o de consciência absoluta.   Ao invés de só tratar do aparente, o objetivo da fenomenologia passou a ser o de seguir o desenvolvimento do espírito, a partir do manifesto, até atingir o verdadeiro; a partir do aparentemente real até o absolutamente real.

É depois de Hegel que a fenomenologia passou a ser vista como a doutrina sobre o mundo relativo e contingente do sensorial, à diferença do mundo do espírito absoluto, cujo esclarecimento por meio da razão era a função do racionalismo idealista.  A contribuição trazida com a cosmologia de Hegel e a decorrente reanimação do pensamento dialético alcançando o seu ápice com Marx, atingira frontalmente o "ensimesmamento" solipsista.  A solução prevista para sair do atoleiro ao qual o pensamento dialético havia forçado as doutrinas filosóficas centradas no ego, era a de introduzir em suas proposições um certo elemento de objetivismo. Podemos reduzir a três os principais direcionamentos desse esforço:

1. Isolar a filosofia do mundo circundante e das ciências que o estudam.  Aceitar como objeto de interesse da fenomenologia exclusivamente os fenômenos da consciência entendida como o único e imediatamente dado.
2. Esses fenômenos da consciência não são entendidos como fenômenos psíquicos, e sim como essências absolutas de significado geral e independentes da consciência individual, mas que se encontram só nela e não têm existência fora dela.
3. As mencionadas essências não se conhecem mediante a abstração intelectual (razão), mas são vivenciadas diretamente e depois descritas tal qual são contempladas num ato de intuição.


A fenomenologia no Século XX

Ao longo do tempo o emprego do termo fenomenologia tem variado consideravelmente.  Na passagem do século XIX para o XX ganhou um novo significado.  Isso por meio do matemático e filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938)  Em sua obra Verificação lógica / Logische Untersuchungen (1900-1901) introduziu o termo como denominação de sua contribuição.  Com essa sua nova fenomenologia quis ultrapassar os limites de uma simples disciplina filosófica.  Ao contrário de seus antecessores, não a entendia como uma correspondência negativa ao ser absolutamente real.  Procurava, segundo ele, reabilitar a "realidade" sensorial sob condições próprias, e não superá-la.  Para Husserl o imediatamente manifesto ou vivenciado, por ele denominado de contemplação (Anschauung), constitui o primeiro estágio do conhecimento.   O objetivo da nova fenomenologia por ele apresentada era o de esclarecer tudo o que nos pudesse ser dado dessa forma. Defendia que verdade, realidade, e ilusão, devem ser examinadas da forma como se manifestam à consciência.

A tendência irracionalista que chega ao século vinte o faz em choque como um movi-mento oposto procedente da esfera das ciências naturais o qual também aceita o reflexo do real na consciência como ponto de partida do processo de conhecimento.  À diferença da fenomenologia busca encontrar a verdade sobre o real por meio de um processo de aprofundamento o qual com a ajuda de práticas objetivas leva a novos reflexos, distintos do primeiro, e a novas práticas e assim sucessivamente.  Trata-se de um processo eminentemente crítico e contínuo, evitando satisfazer-se com a contemplação da contemplação.  Dessa forma evidenciou-se invulnerável às investidas do irracionalismo.

Ante tal fato a fenomenologia surge como uma tentativa de objetivar o irracionalismo de forma lógica, de envolver o conteúdo irracional com formas lógicas.  A fenomenologia de Husserl aparece como uma terceira via para o mundo da filosofia.  A filosofia deve, segundo ele, ser uma ciência rigorosa.  As suas proposições devem ser verdades tão absolutas como as leis da lógica e as proposições da matemática.  Ao mesmo tempo que insistiu resolutamente na existência da verdade absoluta, Husserl destacou a necessidade de distinguir o ato cognitivo, como processo psíquico que ocorre na consciência, do conteúdo ou sentido desse ato: 

O que é verdadeiro ... é verdadeiro em si, a verdade é identicamente una, sejam homens ou monstros, anjos ou deuses quem as profere.

Céptico ao impulso do conhecimento da psique, principalmente com as formulações de seu contemporâneo Sigmund Freud, entendia que as leis e formas do pensamento lógico não são dependentes das particularidades da psique do indivíduo.  Seguindo os neokantistas afirmava que as leis lógicas eram ideais e apriorísticas, que a "lógica pura", como a matemática, é fidedigna apenas porque é apriorística e nada tem a ver nem com o mundo real nem com o processo real do pensamento.   É nessa linha de raciocínio que teóricos da arquitetura como Kevin Lynch e Norberg Schultz se recostam na concepção dos arquétipos de Jung.  Segundo Jung nós trazemos nalgum subsolo da nossa consciência referências imagéticas diretoras de nossas proposições formais.

Depois de divorciar as leis lógicas da realidade objetiva e do processo real --- raciocínio objetivo --- do pensamento, Husserl faz constar que, além disso, nenhum saber verdadeiro pode relacionar-se com os fatos do mundo real, que a filosofia, se quiser ser uma ciência rigorosa, deve renunciar à tarefa de fazer deduções partindo de dados das ciências experimentais. Renuncia, assim a quanto nos liga ao  mundo exterior, re-orientando nossa consciência para o mundo interior, até ela própria, passando a dedicar-nos à contemplação da contemplação.  Isso fica muito claro na clássica obra de Kevin Lynch A Imagem da Cidade.


A arquitetura quando limitada à percepção da percepção

Em sua obra A Imagem da cidade, Kevin Lynch interessa-se sobremodo pela imagem sensorial da arquitetura e, especialmente, da cidade como objeto maior da mesma.  Essa tendência se caracteriza pela vontade de aclarar a relação entre o indivíduo e o assentamento humano, tendo o indivíduo como ponto de partida.  A antiga postura kantiana, com o correr do tempo se misturou com manifestações existencialistas e fenomenológicas.   Tal desenvolvimento se contenta em estudar a contemplação da cidade à partir das relações entre o cidadão e a cidade.  Não consegue objetivar o sujeito dessa contemplação dentro do desenvolvimento das relações socioeconômicas como uma força externa à vontade do indivíduo.

A postura que essa tendência tem quanto ao objeto contemplado desenvolve-se numa analise indutiva e unidirecional que, predominantemente, vai do indivíduo à sociedade, do cidadão à cidade.  As exigências de uma análise dedutiva, a partir da compreensão da globalidade da formação socioeconômica, para nesta localizar a parte, o indivíduo e o cidadão como veículos da parte subjetiva da contemplação são muito menores.  Essa forma de análise é crítica, mas tem uma postura, em face do social e do histórico, sem maiores pretensões de participação ativa na transformação do capitalismo em uma fase historicamente ulterior e socialmente mais avançada.
As teorias de Kevin Lynch são exemplo disso:

Há um prazer particular em contemplar uma cidade, por mais banal que possa ser vista.  Como um pedaço de arquitetura a cidade é uma construção no espaço, mas numa escala maior, e exige longos períodos de tempo para a perceber.

Comete o engano de entender a cidade como algo no espaço, sendo que a cidade não existe no espaço e sim se manifesta em forma de tempo e espaço.  Lynch entrama esse idealismo objetivo com um subjetivo, em seu esforço por atingir uma coletiva imagem da cidade. Sua maneira de entender aquilo a que chama imagem da cidade, Lynch a sintetiza da seguinte forma:

Cada representação individual é singular, uma parte de seu conteúdo raramente, ou nunca, é comunicado, e mesmo assim se une à imagem coletiva, que, conforme o meio ambiente,  é mais ou menos obrigatória, mais ou menos envolvente.  Essa análise se limita ao efeito dos objetos físicos perceptíveis.  A imaginação pode ser influenciada de outras maneiras, notadamente pela significação social de uma zona, sua função, sua história ou mesmo seu nome.  Isso não abordaremos, desde que nosso objetivo aqui é o de descobrir o papel da forma em si mesma.  Tomamos por aceito que, no urbanismo atual, é necessário utilizar a forma para reforçar a significação e não para negá-la.  Nas imagens das cidades estudadas até aqui, o conteúdo que se pode relacionar às formas físicas pode ser classificado sem inconveniente, segundo cinco tipos de elementos: as vias, os limites, as quadras, os nós e os pontos de referência.  Com efeito,  esses ele-mentos se aplicam de maneira mais geral desde que os encontramos, parece, em muitos exemplos de imagens do meio ambiente.

Lynch reconhece que a "imagem da cidade" é formada pela ação recíproca entre quem contempla e o objeto contemplado, e que pode melhorar através da formação contínua do observador, bem como pela modificação do meio ambiente para melhor.   Poderíamos, portanto, desenvolver nossa imagem da cidade influindo sobre sua forma, o fazendo por um processo pessoal de formação a respeito da compreensão da cidade.  O fato de se contentar com uma geometrização da cidade, que busca sua forma como tal, soma-se a uma dimensão neo-kanteana e resulta do fato de que o interesse que se teve pela cidade transforma-se num interesse maior pela imagem sensorial suscitada pela cidade. Uma espécie de percepção da percepção. Assim, a arquitetura é subjetivada pelo desejo de objetivar a imagem que a mesma permite no pensamento.

A localização de pessoas, coisas e fenômenos implica uma diferenciação sensorial, um processo de análise e síntese, que se dá entre as coisas e as reações do organismo humano para com as mesmas.   Nessa análise, interagem receptores-meios e os centros cerebrais, como um sistema integrado.  Dessa diferenciada ação recíproca, entre objeto e sujeito, surgem imagens constantes que guardam as expressões espaciais das pessoas e das coisas, apesar de nossos receptores externos terem angariado novas informações.  Nossa memória nos permite rever o espacial na forma que havíamos percebido antes e apesar de novos dados terem surgido a respeito.  Mas isso não nos limita a um comportamento passivo e unilateral de somente receber, com nossos sentidos, a expressão espacial das coisas, excluindo nossa atividade de análise, síntese e generalização, em seu desenvolvimento.  Não podemos ter como alvo, somente as propriedades externas das coisas sem relacioná-las com os condicionamentos e as necessidades a que estão ligadas.  Assim, não chegaríamos nunca a um conhecimento mais profundo sobre a constituição da cidade como objeto maior da arquitetura.

Em sua condição concreta, a forma e o conteúdo estão inseparavelmente ligados um ao outro, e é o conteúdo que é decisivo.  Se não relatarmos a forma da cidade às necessidades objetivas que se apresentarem em suas relações produtivas e sociais, não conseguiremos compreender plenamente a forma de seus lugares.  De dentro dessa ação recíproca, entre a forma da cidade e seu conteúdo, a forma não constitui um fator sem importância.  A forma que apreendemos da cidade, e guia nossa intervenção que a vai modificar, pode estimular, ou não, o seu desenvolvimento.  Mas a forma  não pode ser tomada como algo em si mesma, sem ser vista como expressão de seu conteúdo objetivo.  Senão cometemos o equívoco neo-kanteano, confiando mais na imagem sensorial das coisas concretas, em vez de dirigir nossa confiança às próprias coisas e aos próprios fenômenos.

Kevin Lynch baseia suas observações, também, em entrevistas pessoais. Dá oportuni-dade a pessoas isoladas de se manifestarem sobre a "imagem da cidade".  Dessa forma, a palavra se apresenta como um meio essencial para esclarecer o conteúdo das coisas.  O significado da palavra é incorporado às coisas como propriedades objetivas e não como conteúdo da palavra em si.  O conteúdo sensorial da percepção toma para si o significado da palavra e deixa de lado a forma e a função da palavra como componente da língua.  É importante notar que a palavra não se relaciona com nossa imagem do objeto, mas com o próprio objeto.  Dessa forma, as coisas se apresentam como veículo de outras propriedades que não somente aquelas apreendidas imediatamente pelos sentidos.  O homem se apropria, com a ajuda da palavra, do testemunho daquilo que já houve e incorpora, com isso, uma dimensão histórica do observado.

O que distingue as interpretações dessa ação recíproca entre o sensorial e o racional é o fato de a compreensão materialista dialética dar às coisas o caráter primeiro, e de ver o conhecimento como um processo que permite a aproximação gradativa da verdade objetiva. O idealista, de sua parte, tem mais confiança na imagem das coisas no pensa-mento, nos conceitos e no significado.  Dessa forma, só alcança o sensorial, o signifi-cado imaginado e não chega ao objeto como tal.  O sensorial é transformado em seu contrário, em algo em si mesmo e não é visto como reflexo do real que na verdade o é.

Quando nos achamos ante aquilo que é veiculado por entrevistas pessoais, não devemos esquecer que a experiência do entrevistado é dirigida por necessidades vitais, independente de quais os métodos e instrumentos cognitivos empregados.  O sensorial age sempre como alguma forma de comunicação, a que provoca a resposta do corpo à relação entre estímulo e ação.  A fruição é atividade em si.  Não conseguimos entender inteiramente as particularidades pessoais da percepção, sem considerar suas causas vitais.  O testemunho pessoal sobre a cidade, estimulado por entrevistas, tem que ser posto em relação com seu desenvolvimento objetivo, o qual é guiado por leis.

A observação, no nosso caso da cidade, não pode ser limitada a um esclarecimento passivo.  Sua propriedade essencial é a de orientar a atividade humana, em seu intercâmbio com a natureza e a sociedade.  Assim, não podemos limitar a atividade da percepção à sua manifestação histórica específica, nem tampouco às propriedades físicas exteriores.  É a dinâmica ação recíproca da Natureza, da Sociedade e da História, dos homens em atividade que se manifesta em espaço e tempo.

O trabalho de Kevin Lynch revela esforço em obter uma base mais científica para o conhecimento da arquitetura.  Ele reconhece a observação e como a primeira fase do conhecimento, e que o mundo externo ao pensamento vem a nós através de nossos sentidos.  Mas, na medida em que o conteúdo subjetivo do sensorial predomina a vontade de descobrir a forma como tal, ele afasta a possibilidade de atingir o essencial, bem como o típico.  Os elementos classificadores da cidade, por ele escolhidos, não são nem essenciais nem típicos, a não ser em medida limitada e, portanto, de pouca aplicação.  Métodos desse tipo substituem frequentemente o estudo mais amplo da arquitetura, que implica considerar o sensorial e o subjetivo como uma dimensão em ação recíproca com o consciente e o objetivo, independente do nível de abstração que isso venha a exigir.  O resultado é limitado e, às vezes até alienante quanto ao conhecimento real sobre as pessoas e as coisas reais.

As três cidades, Boston, Jersey City e Los Angeles, que Kevin Lynch usa para as observações mencionadas em seu livro A Imagem da Cidade, certamente, por diferentes condicionamentos históricos e naturais, desenvolveram diferentes relações entre forma e conteúdo, entre o ocasional e o necessário.   Mas um fato têm em comum, a imposição do modo de propriedade capitalista que definiu a maneira das necessidades atuarem e, com isso, também de se expressarem na forma da cidade.  Aos cidadãos foi usurpada a possibilidade de um processo realista de conformação de sua cidade, de forma a espelhar as reais necessidades da vida material e espiritual.

Em nossa carreira como professor de arquitetura temos tido a oportunidade de aplicar um tipo de exercício pedagógico habitualmente denominado de percursos urbanos.  Trata-se de um tipo de exercício que Kevin Lynch defende, e que, hoje é comum em todo o mundo.  À diferença de exercícios que, de preferência, se atêm a considerações individuais sobre o que existe na cidade, colocamos nossos percursos sempre em relação com a formação socioeconômica do país.  Relacionamos nossas observações com aquilo que Marx chama de anatomia da sociedade.

O problema principal da anatomia da sociedade, Marx o esclareceu em sua teoria sobre a base e a supra estrutura.  A partir do resumo de tal teoria, encontrado no prefácio de seu livro Contribuição à crítica da economia política, foi-nos possível estruturar nossas impressões recolhidas nos percursos, considerando questões como: Quais e como são os locais de trabalho?  Como é que, justamente, esses lugares estruturam a espacialidade da cidade?  Quais os lugares que visam a reprodução da produção?  Por que e como surgem os lugares de circulação de pessoas e mercadorias?  Que expressões espaciais e temporais têm os aparelhos jurídicos, políticos, religiosos e culturais da supra estrutura na cidade?  Nossos percursos, naturalmente, eram muito genéricos, mas permitiam uma primeira visão global a partir das necessidades objetivas da sociedade, do espaço, e do tempo da cidade.


A expressão espacial da cidade é ao mesmo tempo temporal

Kevin Lynch tem se empenhado em, também, compreender melhor a temporalidade da cidade.  Em seu livro, What time is this place?, ele defende a seguinte tese:

A imagem pessoal do tempo é fundamental para o bem-estar individual, assim como para que tenhamos êxito  na hora de dirigir a mudança ambiental e para que o meio ambiente desempenhe um papel na construção e manutenção dessa imagem do tempo.

Lynch preconiza a ação recíproca entre o que denomina de tempo interno e de tempo externo e, quanto à imagem do tempo, observa o seguinte:

       Os ritmos, os objetos e os acontecimentos existem; mas o tempo e o espaço são vitoriosas invenções do homem.  Cada indivíduo cria de novo o passado, o presente e o futuro.  Aos dezoito meses, a criança dirá "agora"; aos dois anos, "pronto"; e aos três, "amanhã" e "ontem" (...) O tempo é um artifício mental para ordenar os acontecimentos, para identificá-los como coexistentes ou sucessivos.

Lynch leva em conta os ritmos e ciclos biológicos e não nega que esses dependam de nosso intercâmbio com o meio circundante.  Mas não leva em conta que resultem de um longo processo de desenvolvimento.

Pavlov, e vários depois dele, demonstraram que a temporalidade da psique não é uma invenção do próprio homem mas constitui um reflexo do movimento do mundo material, ou seja, de suas propriedades espaciais e temporais.  Do ponto de vista filosófico, Lenin, por sua vez, fez ver que:

Se as sensações de tempo e de espaço podem dar ao homem uma orientação biológica útil, o fazem exclusivamente à condição de refletir a realidade objetiva exterior ao homem.

O tempo existe objetivamente independente do que pensamos a seu respeito.  O que o homem alcançou foi a capacidade de percebê-lo, mas isso não significa que, a partir de uma abstração desligada da realidade objetiva, tenha inventado o tempo. 

Kevin Lynch considera a matéria social da seguinte maneira:

Buscamos uma imagem social do tempo que reforce, celebre e vivifique o presente, ao mesmo tempo que incremente suas ligações significativas com o passado e, principalmente, com o futuro.  Pretendemos com Boécio "assegurar toda a plenitude da vida em um momento, aqui e agora, passado, presente e futuro".  A imagem que buscamos deve estar em consonância com o que podemos descobrir objetivamente acerca do mundo, e deve ser autêntica, mas também há de estar em consonância com nossos modos especificamente humanos de pensar e sentir, e com nossa função orgânica.  Seria uma orientação para a ação corrente, permitiria a coordenação e a diversidade, e seria além disso uma base para dotar de significado a existência humana individual. 
 
Para atingir um conhecimento mais profundo sobre a temporalidade urbana, temos, também neste caso, que buscar a essência dos fenômenos e considerar as transformações de base socioeconômica da sociedade.  No resumo que Marx faz da anatomia da sociedade burguesa, ele se refere a algo que chama de época de mudança.  Trata-se de momentos da história da humanidade, quando uma formação sócio-econômica, através de uma revolução social, transforma-se numa nova e mais desenvolvida formação.

Se realmente queremos compreender a temporalidade da arquitetura e da formação urbana, não podemos nos contentar com as dimensões sensoriais que os indivíduos possam ter do tempo.  Nossa visão de mundo será falha se não considerar a temporalidade social como um fator objetivo.  Quando analisamos a transição para uma formação ulterior a do capitalismo, temos que considerar as formações socioeconômicas que lhe antecipam e esclarecer os processos que as conduziram ao estado atual.

Cada formação socioeconômica tem suas leis históricas próprias que dirigem seu surgimento e desenvolvimento.  Essas formações se submetem, por sua vez, às leis que as reúnem no processo maior da História.  Expressões espaciais e temporais das diferentes formações socioeconômicas sobrevivem umas nas outras.   Da mesma forma, encontramos manifestações de distintas formações convivendo em diferentes países, regiões e cidades.  Como é que eu poderia melhor entender as expressões espaciais e temporais da arquitetura e dos assentamentos em meu país de origem, ou em outros por onde a vida me levou, sem esclarecer as formações socioeconômicas pré-capitalistas, em sua interação e passagem a novas formas?

Relacionando a observação do especificamente local na expressão arquitetônica à anatomia socioeconômica e aos períodos de mudança é que podemos chegar mais perto do real.  Considerando as relações entre o singular e o universal, podemos esclarecer o que é típico para a arquitetura local.  Para perceber, em seu caráter típico e em suas circunstâncias típicas, aquilo que, ao mesmo tempo, é específico, singular e universal, faz-se necessária uma atividade que considere a arquitetura em seu desenvolvimento como relação entre objeto e sujeito, entre cidade e sociedade, em ação recíproca do que é especificamente local e do que é genericamente universal.  Isso não se consegue se depositarmos nossa confiança na fruição e na percepção da arquitetura, em vez de confiar na própria arquitetura.

Substituindo as coisas e as pessoas, em suas propriedades e relações concretas, pela fruição e percepção das mesmas, privamos a fruição e a percepção de sua qualidade principal: a de constituírem meios cognitivos para aprofundar e desenvolver o conhecimento sobre as pessoas reais e as coisas reais que compõem a materialidade concreta dos lugares.


A arquitetura como a forma da forma

Uma outra tendência do conhecimento atual da arquitetura -- com apoio no pensamento irracionalista -- a requerer especial atenção analisa, de preferência, o imediatamente manifesto e constrói a partir de tais observações modelos abstratos que procuram descrever as relações das coisas e das pessoas entre si.  Limitando-se às coisas e às pessoas imediatas, põe-se de lado o conhecimento sobre as relações das mesmas com aquilo que não é aparente e presente, e não se atinge o conteúdo essencial das mesmas: o social.

Fazer da forma algo em si mesmo, no caso da arquitetura a forma dos lugares da vida em sociedade, implica uma decadência cognitiva. O filósofo Georgy Lukács caracterizou tal limitação como sendo uma forma inversa do conhecimento.  Em vez de compreender a forma e o conteúdo numa frutífera relação de toda a atividade humana, isola-se a forma de seu conteúdo, fazendo do abstrato algo real.  Aquilo que, intelectualmente, foi formalizado é transformado em estrutura portante das ações subjetivas e objetivas das pessoas, passando a substituir o processo real.  Resulta disso um empobrecimento cognitivo em favor da conservação da ordem social estabelecida, em favor da burguesia.  O conteúdo é sacrificado em favor da forma, o real em favor do ideal e o específico em favor do genérico e abstrato.

A necessidade que o idealismo burguês apresenta de um funcionalismo e de um estruturalismo neopositivista não decorre somente da necessidade de melhor saber manusear concomitantemente uma maior quantidade de funções complexas.* (pé de página explicando) Constitui, também, a resposta dada a uma postura filosófica que, em face de situações complexas, não quer reconhecer a realidade concreta em sua mudança histórica.  Trata-se de uma decadência cognitiva que, ideologicamente, serve às manipulações das classes dominantes.

A ação recíproca do funcionalismo e do estruturalismo, como ciência social, explica aquilo que poderia ser denominado de teorias da análise de sistemas aplicadas à arquitetura.  Análise de sistemas, estruturalismo e funcionalismo visam, segundo o enfoque idealista, esclarecer como os sistemas, suas estruturas e funções funcionam.  Como são motivadas, ganha menos atenção.  Acontece que o processo da socialização, bem como suas causas, não pode ser esclarecido somente através do conhecimento das formas e das relações funcionais.  Para resolver o problema de como a sociedade funciona, de como é motivada e de como se desenvolve, não podemos limitar a compreensão do processo da socialização a funções, estruturas e sistemas.  Temos que analisar a socialização tanto estrutural como geneticamente, o que resulta na explicação de sua estrutura histórica e, ao mesmo tempo, na explicação da estrutura através da sua historia.

Funções, estruturas e sistemas são instrumentos cognitivos indispensáveis.  Seria errô-neo não reconhecer a importância dos mesmos ante a necessidade de captar o movimento, os processos e a transformação da realidade em formas do pensamento.  Seria errôneo, também, não reconhecer a capacidade de desenvolvimento da lógica não-dialética.  Não podemos negar que seus métodos de estruturação e sistematização têm validade científica quando da análise de situações determinadas.  O que não podemos ignorar, no entanto, é que esses métodos apresentam problemas que só o método dialético pode resolver.  Quanto a lógica formal, em seu esforço para refletir uma determinada situação se afasta do conhecimento que esclarece a transformação e o desenvolvimento, como a filosofia, a estética, a moral, a política e as várias ciências históricas, deparamos com problemas deste tipo.

As teorias de Cristopher Alexander constituem um interessante exemplo de como, segundo a lógica formal neopositivista, podem ser formulados modelos teóricos visando à aplicação concreta em problemas de arquitetura.   Seus textos, The timeless way of a building;  A pattern language; The Oregon experiment; e A city is not a tree, consideram, preferencialmente as coisas imediatas e a opinião dos usuários, quanto a seus lugares e ao uso dos mesmos.  Tal como Kevin Lynch, Christopher Alexander se limita a buscar a forma como algo em si.  Aquilo que os distingue é o fato de Lynch buscar a forma numa imagem sensorial que reflete o existente, enquanto que Alexander busca, na proposta abstrata, uma forma que ainda não existe.  O processo de passagem da imagem sensorial daquilo que existe para a imagem abstrata daquilo que se propõe não é analisado nem por Lynch nem por Alexander.  Se interessam por duas situações cognitivas sucessivas mas distintas, sem vê-las num processo de desenvolvimento do sentido, do conhecido e do praticado.

O problema central das teorias de Alexander reside no conflito entre reconhecer a necessidade de melhor captar a complexidade da arquitetura e, ao mesmo tempo, ignorar a transformação histórica da sociedade, da condição de objeto para a condição de sujeito da arquitetura.  Alexander reconhece o quanto o objeto da arquitetura é complexo e propugna por novos instrumentos cognitivos, tais como: modelos matemáticos para análise e síntese.  Ele vê tal desenvolvimento como tão inevitável quanto o desenvolvimento de novas ferramentas para trabalhos que, por um lado, levam em conta uma considerável quantidade de funções e, por outro, têm uma certa flexibilidade ante o imprevisível.  Dessa forma, ele não consegue resolver o conflito entre aquilo que foi pragmaticamente formulado, a partir do imediatamente manifesto, e a falta de conhecimento quanto à dinâmica da realidade.  A transformação dos habitantes das condição de objeto para a condição de sujeito da arquitetura e do planejamento implica uma luta que só pode ser resolvida com métodos dialéticos.

Em Notes on the synthesis of form, Alexander lançou a base da teoria que desenvolve em seus livros posteriores.  Seu enfoque da arquitetura está marcado pela vontade de caracterizar os contextos urbanos, as relações dos edifícios, entre si, e de transferir as relações humanas, suas motivações e o desenvolvimento das mesmas para um plano abstrato.  Quando analisa o processo consciente da projetação, ele afirma que antes de transformarmos problemas em formas, pelo fato de sermos autoconscientes, temos que inventar, antes de mais nada, parâmetros conceituais para o nosso projeto.  Não submetendo tais parâmetros a um processo cognitivo social mais amplo, permite-se, no entanto, a um , ou a alguns poucos, inventar, pragmática ou emotivamente, os mesmos, dando livre acesso aos subjetivismo.
 
Para incorporar plenamente o social na conceituação da arquitetura, não basta os métodos e os perfis profissionais da sociedade capitalista.  Faz-se indispensável considerar a transformação histórica das relações entre a arquitetura como forças produtiva e as relações de sua produção.  As organizações próprias dos trabalhadores e dos moradores têm que ser incorporadas ao planejamento e à configuração arquitetônica. 

OBS. Continua em próxima postagem

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