quinta-feira, 28 de março de 2013

ROMANTISMO E REALISMO.



Gunnar Gunnnrsson. (1889 – 1975) Pensador marxista sueco. Entre suas principais obras encontram-se Os grandes utopistas; A Comuna de Paris; Gyõrgy Lukács; De Machiavelli a Mao; O ideário da social-democracia; Estética marxista. e História do fascismo.

Tradução: Frank Svensson


Se não te sentes suficienterninte forte para fundir, na chama da tua genialidade, as duas formas de criar, tens de te posicionar abertamente em favor de uma delas para alcançar aquela unidade que a vida impõe como condição.
Honoré de Balzac

A época da poesia burguesa é ... a época do "fetichismo da mercadoria" ou "da arte pela arte", dada a falsa situação do poeta burguês como produtor para um mercado, uma situação imposta pelo desenvolvimento da sociedade burguesa.
Cristopher Caldwell


O que é o romantismo?

O realismo, em sua fase moderna, burguesa, surgiu e desenvolveu-se em contradição com o grande movimento romântico do inicio do século passado. Qual o papel do romantismo nesse processo? Foi negativa a sua função? Ou conteve elementos positivos? A resposta a essas perguntas pressupõe uma análise do romantismo em sua totalidade, uma análise tanto mais difícil pelo fato de o romantismo -- esse movimento cultural extremamente diversificado, amplamente ramificado e cheio de duplo sentido -- estar no centro tanto do debate teórico-literário como do debate estético, desempenhando, ainda, um importante papel na práxis dos escritores modernos. O romantismo ainda é capaz de despertar apaixonados engajamentos e apaixonados distanciamentos. No campo do marxismo, tanto clássicos -- como Marx e Engels -- corno seguidores seus, Mehring, Plekbanov, Lukács, Rue e outros, puseram o romantismo em debate. 1

A posição dos mesmos é predominantemente critica. Encontram-se em concordância com a critica burguesa do romantismo surgida na França, na Itália e nos países anglo-saxônicos e apresentada por pensadores tão dispares como o neo-tomista Jacques Maritain e o liberal Benedetto Croce, e que do outro lado do Atlântico tiveram defensores em Babbit e P. E. Moore.2

Uma critica de caráter principalmente ideológica, em parte urna crítica de direita e, da parte de marxistas, uma critica de esquerda. Às vezes por demais unilateral, mas com o método materialista do marxismo, é possível obter uma avaliação mais variada. Tentaremos, a seguir, indicar as principais linhas segundo as quais, no nosso entender, a crítica do romantismo deve ser desenvolvida. O meio do qual emerge o romantismo é caracterizado pelas grandes mudanças econômicas e sociais que se seguiram à revolução francesa e às guerras napoleônicas, tanto na própria França corno na Europa Central e na Inglaterra, como resultado da guerra civil e da gloriosa revolução. O desenvolvimento capitalista entrava em sua fase de alta industrialização. Confirmava-se, como havia dito Hegel, o domínio da prosa.3

O romantismo é um protesto contra o enfeamento provocado pelo capitalismo industrial, contra a mecanização e banalização da vida. Os irmãos Échnond e Jules Goncourt registram em seu diário urna curioso desabafo que Théophile Gautier, por ocasião da inauguração de uma ferrovia na Argélia, indignado com a civilização e seus engenheiros que estragam a paisagem com a sua técnica, fez a Claudin:
 
Você é quem gosta disso ... você é quem é civilizado. Mas nós, nós três, com mais uns quatro, cinco outros, nós somos uns doentios, decadentes ... não, antes uns primitivos, não outra vez não, nós somos simplesmente umas pessoas comuns, esquisitas, indefinidas, algo excitadas. Claudin, há momentos em que desejaria trucidar tudo o que há: os guardas-civis, os equivocados intelectuais, os guardiães de toda ordem, enfim toda a pocilga ... Tu entendes, eu falo sem ironia, eu te invejo, tu é quem estás no caminho certo. Isso depende exclusivamente do fato de tu não teres o gosto pelo exótico, ao contrário de nós outros. Tens alguma sensibilidade para com o exótico? Não, não vês ... Nós não somos franceses, nós pertencemos a outras raças. Nós desejamos ardentemente outras direções. E quando ao desejo de terra estranha se acrescenta o desejo de outro tempo, como por exemplo o século XVI ... como o meu desejo pela Veneza de Casanova, com uma esticada ate Chipre, atinjo o auge, a medida se ... Venha visitar-me uma noite. Falaremos mais a fundo longamente. Sentar-nos-emos os três, um após outro, qual .16 no monte de estrume entre seus amigos ... 4

Trata-se de um testemunho quanto ao romântico sentido de vida, tardio, mas com seus ingredientes essenciais. Aí está o exotismo que levou Chateaubriand a transferir o cenário das novelas de Atala para a Florida e para as montanhas de Alleghenies. Prosper Mérimée a levar os seus leitores a tempos pretéritos e lugares longínquos -- à França das guerras religiosas em A noite de São Bartolomeu, à Córsega em Matteo Falcone e em Colomba, à Espanha em Carmen -- e Novalis, em Heinrich von Ofterdingen, a buscar o auge do romântico em terras do Oriente. Aí está essa nebulosa nostalgia, esse desejo ardente pelo irreal que, na literatura romântica, aparece mais nitidamente talvez no primeiro romance de Achim von Armin, Holins Liebeleben, que fez Novalis condenar o Willhelm Meister de Goethe pelo fato de ele só tratar de coisas humanas comuns, não considerando a natureza e o misticismo, e que o motivou a declarar:

Romancear implica em atribuir um elevado sentido às coisas corriqueiras, em dar uma aparência misteriosa ao comum, em tomar conhecida a dignidade do indigno, a finita aparência do infinito,5

Existe também uma atração pelo passado, pelo histórico, que fez principalmente os românticos alemães sonharem com a Idade Média e garantirem ao romance histórico e ao drama histórico uma posição central na literatura romântica.

O escritor romântico protesta contra a prosa fugindo à realidade. Foge no espaço: da sociedade burguesa para países e povos exóticos, primitivos, subdesenvolvidos; e no tempo: do presente para o passado. O interesse por grupos étnicos estranhos e por épocas pretéritas não precisa ser, em si, algo reacionário. A fuga do real, por parte do romântico, não produz só frutos amargos. Sem dúvida o posicionamento romântico face à vida abriu caminho ao desejo de conhecer povos estranhos. O estimulo maior nesse sentido foram os empreendimentos de colonização dos estados capitalistas no além-mar. Mas a função ideológica essencial da alienação resultante do exotismo romântico situava-se noutro plano. Em seu artigo O cristianismo ou a Europa, Friedrich Novalis procura integrar o Oriente na construção da História Universal. Curiosamente, ele descobre então que os povos longínquos conseguiram uma feliz síntese de todas as contradições que estraçalhavam a Europa. Na índia, as contradições de nossa despedaçada civilização teriam, assim, formado uma unidade harmônica.6

Não é difícil perceber que Novalis transfere uma problemática típica do capitalismo europeu-ocidental -- que emerge da contradição para ele atual entre o classicismo e o romantismo -- para um ambiente estranho aos motivos econômicos, sociais e culturais dessa problemática. O exotismo oriental serve para não se dar conta das crescentes contradições internas da sociedade burguesa, às quais fogem na prática os românticos.

O sentido histórico do romantismo é muito superestimado. O mais típico escritor romântico, Raumer, que através da sua obra sobre os Hohenstafers, exerceu uma influência pouco feliz sobre a literatura, é um expoente típico da previsão apologética da história, que atravessa corno uma linha vermelha a moderna maneira burguesa de escrever história.7

Karl Friedrich, amigo de Marx, observou que Raumer representa uma forma de apologética do estabelecido que poderia ser chamada de objetividade aparente. Consiste em colocar fora de jogo a dialética característica do desenvolvimento histórico, ou seja, a dinâmica de contradições que impulsiona o desenvolvimento:

Raumer é avesso a contradições, nada deve ser ou frio ou quente, ou peixe ou carne, ou branco ou preto. Se fosse ele o criador do mundo o teria pintado de cinza para ser plenamente neutro e para não fazer injustiça a ninguém, o teria povoado com anfíbios ou ermafroditas.8

A formula do pensamento de Raumer é a de tanto -- quanto:

Nada é tão grande ou tão pequeno, tão antigo ou tão novo que não possa ser dividido ou acrescentado com essa faca de dois gumes: se bem que -- no entanto, em todo caso -- assim como, por um lado -- por outro lado. É evidente que desse jeito qualquer opinião histórica torna-se inviável.9

O historicismo romântico implicou num retrocesso em relação a Hegel. Seu país de origem é a Alemanha, e sua função ideológica foi a de constituir um freio às ideias da revolução francesa. Na realidade foi uma pedra de tropeço à grande revolução burguesa, com cuja ajuda se pode distinguir entre os seus aspectos positivos e negativos. Para alguns, o romantismo significou a restauração dos ideais da Idade Média -- ligando-se socialmente à hierarquia de classes, com igreja, nobres e cavalaria, e artisticamente ao gótico.

Homens como Friedrich Schlegel e Johan Joseph von Gõrres defendiam um embelezamento da reacionária Santa-Aliança, que após a queda de Napoleão dominou a Europa (na velhice, Schlegel se tornou tão exageradamente papal que até o seu escritor preferido, Dante, lhe parecia por demais gobelino). O irmão Wilhelm via a Idade Média de forma mais sensata, enquanto que Tieck a considerava antes de tudo a idade poética. Com relação ao renascimento gótico, o livro de Wackenroder As confidências de uni irmão de claustro teve um papel importante.10

Wackenroder quis reabilitar a arte gótica em relação à renascentista. Uma reabilitação é sob muitos aspectos, justificada e ocorreu em tempos modernos sobre bases mais sólidas, mas os pontos de partida ideológicos de Wackenroder não servem para uma reabilitação objetiva. A função que procura atribuir a Albrecht Dürer é no mínimo duvidosa. Wackenroder homenageia Dürer como o criador de uma arte nacional própria da Alemanha, mas, curiosamente, iguala-o também a Rafael.11

Em seu empenho pelo gótico, Wackenroder procura excluir os traços renascentistas da arte de Dürer que motivaram posteriores pesquisadores de enfoque nacionalista a falarem do italianismo de Dürer e opô-lo polemicamente a Mathias Grünewald como o verdadeiro artista alemão. O romantismo foi capaz, ainda, de incluir algo inverso da reação de roupagem gótica. O protesto polêmico do romantismo ao capitalismo industrial não se expressou somente em O rei de Tule e sua policia mas também no democratismo revolucionário inspirado na revolução francesa. O desenvolvimento capitalista especializou os tesouros espirituais dos homens e dissolveu as relações orgânicas entre eles. Rompeu-se a harmonia entre razão e sentimento Psique, que advinhar deseja o mistério de tudo não e mais a Psique que tudo fruia, canta Atterbo.12

E é certo. A Psique que queria advinhar o mistério de tudo, que principalmente queria saber e não sentir, não e mais a Psique da fruição despreocupada. O sonho da pessoa harmônica do renascimento e do neoclassicismo é brutalmente despedaçado pelo capitalismo. Entrementes, começa a crescer, porém, a autoconsciência do proletariado e, com o surgimento dos primeiros sistemas socialistas utópicos -- Saint-Simon, Owens e Fourier --, a possibilidade de na realidade prática superar o capitalismo e suas niveladoras consequências. É por isso que o tédio social do romantismo não só é visto como um anseio reacionário de voltar ao passado, ao patriarcalismo, a formas moralmente mais válidas de vida, mas também como algo mais ou menos revolucionariamente utópico. É contra tal pano de fundo do contexto social que tem de ser visto o romantismo. Em que medida ele viria a ganhar um caráter mais reacionário ou mais revolucionário, dependeria das condições do desenvolvimento de cada pais.

Na Alemanha, onde o capitalismo, ainda no inicio dos anos 1800, era pouco desenvolvido e onde a Prússia, entre os muitos principados territoriais absolutistas e tirânicos, após a queda de Napoleão começou a tocar o primeiro-violino, o romantismo ganhou o caráter de urna reação cristã-feudal, militarmente sustentada contra as idéias da revolução francesa. Os alemães fizeram a sua revolução no mundo das idéias -- Kant, Hegel, Lessing, Goethe, Schiller, Hôlderlin --, mas recuaram ante a real revolução. A guerra de libertação teve, na expressão de Marx, o caráter de urna regeneração equiparável com reação.13

Sob a pressão das guerras napoleônicas os românticos alemães se desenvolveram num sentido mais reacionário. Uma parte dos românticos aprovaram desde o início a revolução francesa, mas fizeram-se depois interpretes da vontade do povo alemão de se libertar de Napoleão. Como não havia uma classe burguesa alemã fortemente autoconsciente, o sentimento nacional alemão desde o inicio esteve poluído de elementos reacionários. Achim von Arnim, que veementemente polemizou contra a revolução francesa e seus ideais, reunia consciência de classe apoiada em militarismo com anti-semitismo.

O principal representante da visão de mundo romântica, Adam Müller, combateu decisivamente todas as reformas sociais liberais e comportava-se como o defensor par preférence da economia feudal prussiana. O jornal Die Abendblâtter -- porta-voz de Müller, Arnim e Kleist -- era o órgão dos militares prussianos contra o chanceler Hardenberg fortemente influenciado pelas ideias da revolução e de Adam Smith. A falta de perspectiva baseada na miséria alemã era o motivo último por que a apatia para com o reinante não levou a outra coisa senão a encobrir os trapos da miséria com os cortinados góticos, católico-místicos e irracionalistas. Nem mesmo a poesia e a música romântica tiveram outra função.

Liebe denkt in süssen Tõnen, Denn Gedanken stelien zu fern, Num in Tõnen mag sie gern Alies was sie will verschõnen, 14

anuncia uma das mais conhecidas estrofes de Tieck.


Na França, com as suas atividades e tradições revolucionárias, o romantismo em parte teve outro caráter. Em Victor Hugo -- que com relação á França e com certa razão podia afirmar: o que o liberalismo é para a política, o romantismo é para a literatura --, unem-se romantismo político e estético num poderoso fermento revolucionário. No famoso prefácio de Cromwell, é verdade que o cristianismo -- mesmo se sublimado sob forma de romântica melancolia -- desempenha um papel proeminente.15 Mas o que surge de novo e o realismo. Victor Hugo descobre para a literatura que o feio existe junto com o belo, o disforme junto com o agradável, o mau junto com o bom, a sombra junto com a luz.16

Em Victor Hugo, o romantismo conduz dialeticamente ao realismo. É verdade que tal processo completa-se por meio de Balzac, mas já aparece de forma embrionária em Victor Hugo. A dissolução da forma e a experimentação com a língua tornam-se para ele um meio de introdução a uma nova realidade, que não e mais a do neoclássico, de introdução à vida forçando-a a entregar a sua verdade. Vejamos em Reponse à un acte d'accusation:

Quand je soitis du college, du theme ... l’idiome,                                                                peuple ou noblesse,était l'image du royome,                                                                               la poesie était la monarchie um mot                                                                                       etait un duc ou pair, on n'etait qu'un grimaud;                                                                          la langue etait l'état avant quatre-vingt-neuf;                                                                          les mots, bien ou mal uses, vivait parqués en castes;                                                               les uns, nobles...montant à Versailles aux carosses du Roi;                                                     les autres, pas de gueux, drõles paiticulaires,                                                                  habitant les patois; quelques-uns aux galeres                                                                       dans l'argot; devoues à tous les genres bas;                                                                              ... populace du Style au fond de l'ombre éparse;                                                                vilains, rustiques, croquants, que Vaugelas, leur chef,                                                          dans le bagne Léxique avait marques d'une F                                                                           Je mis un bonnet rouge aux vieux dictionnaires.                                                                     Plus de mot, senateur! plus de mot, routier!                                                                                ... J'ai mis tout en branle, et, morose,                                                                                       j'ai jete le vers noble aux chiens noirs de la prose.17

II -- Romantismo e realismo

Edward Engel acha que as correntes românticas emergem de conflitos entre gerações 
  
O romantismo e antes de tudo a poesia de uma nova mocidade, que primeiro atua junto com os clássicos, mas logo passa a combatê-los. Busca, com o seu bom direito juvenil, novo conteúdo e novas formas, assim como os clássicos um dia fizeram, quando ainda pertenceram ao Sturm und Drang (Titanismo). Juventude é a palavra gravada na bandeira dos românticos, e só como jovem expressão de vida a literatura romântica poderá ser humanamente compreendida. 18

Engel não percebe, dada a limitação de seu método idealista, que a contradição entre classicismo e romantismo não foi um conflito de gerações, mas uma contradição entre duas fases do desenvolvimento da sociedade burguesa, divididas entre si pela grande revolução francesa. A busca da literatura romântica por novas formas artísticas só pode ser entendida através de uni enfoque como esse. Do ponto de vista formal metodológico, a literatura após a revolução francesa, caracteriza-se por uma ação dialética reciproca de ambos os gêneros literários. Essa ação reciproca baseia-se no caráter cada vez mais contraditório e complexo da vida moderna, impossível de ser domado literariamente com o método e os instrumentos do sistema formal do classicismo. Desse ponto de vista, o romantismo surge como expressão necessária das novas formas de vida. O romantismo levou, no entanto, tal dialética das formas até à dissolução das mesmas, à mistura, sim, até mesmo à anulação dos gêneros. Essa mistura dos gêneros teve grande importância na teoria literária do romantismo. Encontramo-la como um momento fundamental na conceituação, por Fredrich Schlegel, da poesia romântica:

A poesia romântica é uma poesia universal progressista. Sua determinação não se limita a reunir as diferentes formas de poesia e a relacioná-la com a filosofia e a retórica. Pretende e deve misturar, fundir, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural, tomar a poesia viva tomando a vida e a sociedade poéticas, poetizando a vivacidade e preenchendo todas as formas da arte com conteúdo cultural de toda sorte, e marcando a sua alma com todas as oscilações do humor.19

Na França, a dissolução dos gêneros e da síntese formal ganha um papel proeminente na estética de Victor Hugo. Segundo o prefácio de Cromwell, a poesia tem três idades: a poesia lírica, a poesia épica, e a poesia dramática, em correspondência às três idades dos homens: a juventude, a idade adulta e a velhice. O drama seria a poesia plena pelo fato de -- conforme Victor Hugo -- compreender e resumir o lírico e o épico. Como exemplo, Victor Hugo cita os dramas de Shakespeare, Atala de Chateaubriand,  O paraíso perdido de Milton e A divina comédia de Dante. A teoria de Victor Hugo é manifestamente uma tentativa de justificar historicamente a dissolução dos gêneros.2O

Os grandes escritores pós-revolucionários incorporaram essa tendência de mistura, dissolução e síntese de géneros em seus métodos, como modelo para a nova forma literária. Victor Hugo via claramente que a estética romântica, ao esmagar o sistema de regras do classicismo, acercava-se do realismo: Eu abandonei o nobre verso em favor dos cães da prosa. Mas ele não entendeu que, para atingir um verdadeiro realismo, era necessária a superação do romantismo. Balzac assumiu as consequências de seu rompimento com o romantismo, tornando-se o criador do moderno romance burguês-realista . No prefácio de A comédia humana, lembra a grande importância que o romantismo de Walter Scott teve para o seu trabalho, mas salienta que para alcançar um profundo realismo crítico-social é necessário abandonar o romantismo, extinguindo as suas tendências dialeticamente.21

Em: Études sur M. Beyle, ele afirma categoricamente que, juntamente com o romantismo e o classicismo, existe uma terceira tendência literária que busca a síntese entre as duas primeiras:

Não creio que uma representação da moderna sociedade seja possível com o rígido método dos séculos dezessete e dezoito. Parece-me incondicionalmente necessário introduzir os elementos dramáticos, a analogia, a imagem, a descrição e o diálogo, na literatura moderna. 22
Pontos de vista semelhantes ele deixa Étienne Lousteau apresentar em Ilusões perdidas. A forma adequada para a literatura moderna é o romance., que impiedosamente configura a problemática sem recuar ante a sua feiura não artística e que em si é expressão dessa problemática. O romance é, afirma Balzac, em 1839:

 ... a imensurável criação moderna. É o sucessor da comédia, a qual, com as suas velhas leis, não é mais viável sob as modernas condições culturais. Incorpora fato e ideia em suas invenções, exigindo o sentido e a moral de La Bruyere, o tratamento de caráter de Shakespeare e a descrição das nuances mais sutis da paixão.23

O romance supera a literatura fria e matemática do século XVIII. Não é somente análise, é também síntese. O século XVIII pôs tudo em questão. A tarefa do século XIX é a de chegar a uma conclusão: busca-a através de realidades, mas de realidades que vivem e se movem.24

A esse novo sentido do romance, Balzac o chama de scene, o que insinua uma síntese no sentido do romance de dois gêneros, romance e drama. O elemento dramático é surpreendente também nos romances de Balzac: reproduzem toda a dinâmica da vida social. São realidades com vida e movimento


III -- L'art pour l'art e a ironia romântica.

A estética do romance, assim como o movimento romântico, é ambíguo. Na Alemanha, tal ambiguidade, decorrente da miséria alemã, é expressa na contraditória teoria kantiana de l'art pour l'art. Em Kritik der Urteilskraft, o problema é a superação da velha contradição filosófica entre natureza e liberdade. Introduzindo na natureza a ideia de um motivo, Kant acha que submetemos a natureza à liberdade. O princípio da motivação, ele o fundamenta na sensação de prazer ou de desgosto que experimentamos ao contemplar as coisas. Todas as suposições, oriundas de tais sentimentos, classifica-as de estéticas. E o sentido do belo é simplesmente aquele prazer, destituído de qualquer interesse, ligado à forma perfeita. Essa teoria estética de Kant é preciso lembrar -- não é outra coisa senão uma aguda síntese, altamente frutífera para a práxis artística, aplicada por vários escritores pioneiros, os quais juntos provocaram um período áureo da história da literatura burguesa: Lessing, Herder, Goethe, Schiller, Holderlin, toda a Sturm und Drang ... Em outras palavras: A estética de Kant foi a estética da emergente burguesia alemã, mas nas condições especificamente atrasadas daquela Alemanha, onde o capitalismo estava atrasado em seu desenvolvimento cerca de cem anos em relação à França e duzentos em relação à Inglaterra.25

Enquanto os franceses tomaram a Bastilha e consolidaram a o domínio da classe média, os alemães fizeram a sua revolução no mundo das ideias e da literatura. O elemento capitalista ainda era pouco desenvolvido, a indústria jazia em seu berço, e a burguesia alemã, dada a sua debilidade, era forçada a trilhar o caminho da conciliação. A estética de Kant é, no campo da teoria artística, a expressão de tal conciliação: por um lado implica em opor a urna arte que apregoa a moral feudal, a visão de vida feudal -- e a arte como um folguedo desinteressado não pode ter tais motivos! Mas, por outro lado, quebra a oposição burguesa, negando a função da arte como instrumento dessa classe social. Ao mesmo tempo em que a estética kantiana libera a burguesia dos ideais feudais para a arte e a literatura, prende ideologicamente os seus anseios de emancipação, isolando-os da luta social da classe burguesa. Essa ambiguidade torna a arte pela arte uma teoria de dois gumes. Nos países onde as tradições advindas da revolução francesa eram vivas, a teoria d a arte como jogo desinteressado, ainda em sua específica forma romântica, podia desempenhar um papel progressista como teoria de oposição aos novos detentores do poder capitalista que haviam traído a democracia: a arte não queria deixar-se prostituir pela burguesia. Alguns românticos lutaram pela causa da classe trabalhadora e da burguesia liberal nas barricadas em 1830 e 1848. Na França, l’art pour l’art passou para um extremo reacionário após a decisiva derrota da revolução democrática. Na Alemanha, onde o romantismo desde o início havia passado para a direita, a estética kantiana degenerou num instrumento de alienação reacionária e subjetivismo. A ironia do romantismo alemão é a primeira teoria da arte do período decadente. A literatura deve, segundo Schlegel

... entre o apresentado e o apresentador, livre de qualquer interesse real e ideal, voar nas asas da reflexão poética, animando-a continuamente e multiplicando-a como numa infinita série de espelhos.26

Essa irônica atitude do escritor implica em que ele deve estar livre em relação a sua obra, em que deve estar acima dela e estar pronto a romper com a ilusão a qualquer momento. A literatura romântica está repleta desse tipo de ironia. No romance Godwill, de Brentano surgem as mais curiosas surpresas quando o escritor de pseudônimo Maria finalmente encontra os personagens de seu conto: quando finalmente encontra o herói titular, surpreende-se com o fato de ele, sobre quem tanto escrevera, ser tão diferente do que havia imaginado. A certa altura deixa Godwi se explicar que isto aqui é uma represa na qual cai na página 266 do primeiro volume E como se não bastasse, finalmente Brentano tira a vida do escritor Maria bem no meio de sua criação: Ele morreu de tédio durante a composição da segunda parte, o que quase não surpreende nenhum dos leitores atuais.27

A ironia romântica dá início à tendência ao subjetivismo, que caracteriza o desenvolvimento da literatura moderna durante o período da decadência ideológica.     A subjetividade artística é aceita como algo absoluto em si, e degenera num arbitrário jogo com figuras autoconcebidas (Lukács). O subjetivista escolhe arbitrariamente o seu assunto. O subjetivismo pode, ao transgredir os limites naturais de sua função estética -- incorporar e criar de forma artística original o sentido da realidade --, penetrar num tema qualquer, mesmo que a matéria não tenha nada a ver com as experiências subjetivas do escritor. O escritor realista recebe o seu tema do próprio desenvolvimento histórico dado, da dialética própria do movimento cultural, para usar urna expressão de Gottfried Keller. Essa subjetividade é de um tipo diferente da ironia romântica. Consiste na capacidade de descobrir e executar um ato verdadeiro. Esse tipo de subjetividade aproxima o escritor da vida, desperta o seu amor pelo homem e sua existência. Esse humanismo é naturalmente tanto mais paradoxal quanto mais a sociedade capitalista desenvolve os seus lados negativos. Mas sem isso nenhum realismo é possível.


N o t a s :
1 - Ver, entre outros Marx/Engels: Ueber Kunst lind Literatur; Franz Mehring: Zur Literaturgeschichte I, Berlim, 1929, e Zur- Geschichte der Philosophie; Harald Rue: Literatur og Sarnfund; Gyõrgy Lulcács: Goethe und seine Zeit, Bem, 1947; Der junge Hegel, Zürich/Wien, 1948; Heine und die Vorbereitung der 48er Revolution'; Kommunistische Internationale 3:1941; Paul Reinman: Legendbildung und Geschichitsfálschung in der deutschen Literaturgeschichte, Unter dem Banner des Marxismus 2-3:1930; Herder und die dialektische Methode, Unter dem Banner des Marxismus 1:1929". Comparar com a interessante enquete Ueber Romantik und Heroik Intemationale Literatur 2:1935.

2 - Ver resumo de Folke Leander: Nya synpurikter pa romantiken (Novos enfoques quanto ao romantismo). Estocolmo, 1944; de R. Bonz, Die deutsche Romantik, Leipzig, 1940; de Erik Blomberg Tidens romantik (O romantismo do tempo). Estocolmo, 1931; de Ricarda Huch, Die Romantik, Stuttgart, 1951; de Walzel, O. F., O romantismo alemão, Estocolmo, 1917; de Mario Praz The romantic agony, New York, 1956; de Johannes Mittenzwei e outros, Erlâuterungen zur deutschen Literatur - Romantik, Berlim, 1967. Muito representativo da critica católica é o texto de Jacques Maritain sobre Rousseau, em Trois reformateurs, Paris, 1937. Ver também de Irving Babbitt, Rousseau and romanticism, New York, 1955.

3 - A industrialização arruina a fruição da Natureza pelos românticos. Quando Tieck foi à Inglaterra, não pôde alegrar-se com a natureza inglesa, pois com a indústria, tinha perdido o seu aroma natural.
4 - O diário dos irmãos Goncourt, Estocolmo, 1927, p. 123.

5 - Citação segundo Eduard Engel: Geschichte der deutschen Literatur von den Antãngen bis in die Gegenwart, Wien/Leipzig, 1918, vol 11, p. 25.

6 - Novalis, Hyinnen an die Nacht e Die Christenheit oder Europa, em Werke und Briefe Ansbach, 1968. pp. 403-404.

7 - Ver, de Henri See, Les origines du Capitalisme moderne; de Jacques Pirenne, Les grands courants de l'histoire universelle, vol Neuchâtel, 1945.

8 - Friedrich Kõppen Die Berliner Historiker. Internattonale Literatur, vol 6/7, p. 109.

9 - Loc. cit.

10 - W. H. Wackenroder Herzensergiessungen eines kunstliebenden Klosterbruders. Leipzig, 1904, p. 81.

11- Ver pp. 79-80.

12 - De J. Tegnner, Cartas escolhidas, Estocolmo, 1947, p. 39.

13 - Ver, de Franz Mehring, Deutsche Geschichte vom Ausgange des Mittelalters, Berlim, 1947, p. 86. De Ph. Dengel, ver a análise de como a revolução francesa influenciou a vida cultural alemã: Die grosse bürgerliche Revolution in Frankreich und das deutsche Geistleben. Kommunistische Intemationale, vol 7, 1939. Ver também Hedwig Voegt: Die deutsche jakobinische Literatur und Publizistik 1789 - 1800 Berlim, 1955.

14 - Citação segundo O. F. Walzel, O romantismo alemão". Estocolmo, 1917, p. 115.

15 - De Victor Hugo: Le christianisme améne la poésie à la vérité.

16 - De Victor Hugo: Les Contemplations, Londres, Edimburgo e Nova York, 1930.

17- Ver p. 30.

18 - Eduard Erigel, Geschichte der deutschen Literatur, vol II, p.23.

19 - Citação segundo Eduard Engel, obra acima, p. 25 -- Diferentes definições do que seja romantismo em contradição com o classicismo: de Sismonde Sismondi, em Litterature du Midi de l'Europe: “Independente de cada povo ter seu gosto quanto a literatura dramática, e suas regras próprias, essas se agrupam sob duas bandeiras, e são somente dois sistemas que estão em contradição em toda a Europa. Esses sistemas foram caracterizados como o clássico e o romântico, os quais, no entanto, não estão bem determinados quanto ao significado. Franceses e italianos chamam os escritores antigos de clássicos, invocando a autoridade deles, valendo-se de seus padrões e gosto para si mesmos. Alemães, ingleses e espanhóis, que levam em conta a memória da Idade Média, acham haver mais poesia na memória do passsado de seus próprios povos."     (IIp. 295)   Sismondi acha que os alemães denominam essa poesia de romântica em ligação ao românico. Ampere define o classicismo como cópia, e o romantismo como originalidade. Um escritor do jornal  Le Globe -- que primeiro assumiu uma postura conciliatória, mas depois de Sainte-Beuve assumir a redação do jornal se tornou romântico -- acha que o romantismo é o gênero de literatura que expressa uma fiel imagem da civilização moderna -- o que equivaleria a afirmar que o romantismo é         o espiritualismo da literatura.

20 - Victor Hugo: Cromwell. Paris, p. 9.

21 - Sobre o papel do romance histórico no surgimento do realismo sócio-crítico, ver Gyõrgy Lukács: Der historische Roman, Berlim, 1955. (Werke 6, Neuwied und Berlin, 1965)

22 - Balzac: "Etudes sur M. Beyle, Analyse de la Chartreuse de Panne. Geneve, 1943. p. 16.

23 - Citação segundo Emst Robert Curtius: Balzac, p. 426-427.

24 - Ibidem, p. 427.

25 - Ver Franz Mehring: Zur Literaturgeschichte. Berlim, 1929, vol II, p. 229.

26 - Schlegel : Schriften. Augsburg.

27 - Walzel observa muito bem que a ironia romântica implica uma tentativa de, através da maior liberdade de movimento, aproximar-se daquela harmonia, que o classicismo buscava, mas que no entender romântico não consegue alcançar. Essa situação confirma ainda mais a interpretação do romantismo alemão como uma fuga da miséria. Ver O. F. Walzel: Romantismo alemão, pp. 42-43.

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