sábado, 16 de março de 2013

QUESTÕES HERMENEUTICAS PRELIMINARES - Parte II


Hans Jörg Sandkühler

Tradução Frank Svensson

Artigo extraído de Praxis und Geschichtsbewusstsein;  Studie zur materialistischen Dialektik, Erkenntnistheorie und Hermeneutik (Prática e consciência histórica; Estudos sobre dialética materialista, Teoria do conhecimento e Ermenêutica. pp 51 a 83, (Edition Suhrkamp, Frankfurt/M. 1973, ISBN 3-518-00529-4).

A discussão sobre a hermenêutica - do ponto de vista das ciências sociais e/ou da psicanálise - é evidentemente uma nova variante da recusa do marxismo, mesmo lá onde utiliza sem preconceitos e de maneira aberta alguns fragmentos de teoria marxista revistos e corrigidos. (fenômeno que aparece mais claramente em J. Habermas). A essas tentativas para salvar do positivismo e do formalismo as ciências sociais na sociedade capitalista e de fazer da sociologia (como ciência experimental) uma ciência humana de procedimento hermenêutico que não pode renunciar à perspectiva histórica.21     Habermas apresenta uma explicação pertinente:

As funções que têm grandemente contribuído para o progresso científico e técnico no intuito de manter o sistema das sociedades industriais desenvolvidas explicam a necessidade objetiva de ligação racional entre o saber tecnicamente utilizável e a consciência prática do mundo e da vida. Eu creio que a hermenêutica, com sua exigência de universalidade, procura satisfazer essa necessidade.

Mas será a hermenêutica capaz de abrandar a exigência que faz com que o homem hoje seja obrigado - independentemente da expansão das ciências do crescimento da dependência mutua - a reter dos outros o seu saber?22 Ou a hermenêutica não será forçada -- cru função da dialética da acumulação do saber e da perda de liberdade no processo capitalista de produção cientifica -- a jogar precisamente o papel de uma teoria regressiva, restauradora, agindo no sentido da volta a um estágio anterior à divisão do trabalho e do saber? Três posições extremamente críticas com respeito à exigência de universalidade da hermenêutica negam esse perigo:

1º) a justificativa da compreensão — do ponto de vista da antropologia do conhecimento — de K. Apel;

2º) a hipótese de Habermas de uma comunicação não-deformada, e

3°) as teorias psicanalíticas da reflexão sobre si e também em concorrência crescente àquelas da socialização de J. Habermas e A. Lorenzer; essas três posições atêm-se firmemente ao princípio da compreensão hermenêutica;

1°) Em seu ensaio Cientistica, hermenêutica, critica ideológica, um ensaio da teoria da ciência do ponto de vista da antropologia do conhecimento, K. O. Apel tem a pretensão metodológica de uma mediação dialética das Luzes das ciências sociais e da compreensão das tradições dos sentidos sob o principio — com valor de regra — de uma supressão dos momentos insensatos de nossa existência social. Seu programa: Porque urna pura consciência-objeto do momento não pode extrair um sentido e porque cada constituição de sentidos (...) corresponde a um engajamento físico da consciência conhecedora, a língua deve ser redescoberta; ela indica um a priori singular, subjetivo, que não tem sido levado em conta na teoria do conhecimento tradicional dependente de Descartes. Eu gostaria de denomina-lo 'a priori físico' do conhecimento (...) genericamente numa relação complementar ao a priori da consciência.

A compreensão e o entendimento têm relações complementares, tais como as ciências humanas que compreendem e as ciências da natureza que esclarecem ou, em breve, a hermenêutica e a cientística. A separação neokantiana e positivista dessas ciências não viram isso que a antropologia do conhecimento leva em conta: O homem tem (...), desde seu nascimento, duas direções de conhecimento de mesma importância, não-idênticas, mas complementares: 1°) uma que é determinada pela necessidade de unia prática técnica ligada ao entendimento das leis da natureza; 2°) outra que é determinada pela necessidade de uma prática social moralmente pertinente. Esta última tende aquilo que já é pressuposto igualmente para a prática técnica: a possibilidade e as normas de um ser-no-mundo humano e pleno de sentido. Esse interesse levado à interpretação dos sentidos concerne não só à comunicação entre contemporâneos, mas também, e ao mesmo tempo, à comunicação dos vivos com as gerações passadas, sob o aspecto da transmissão da tradição.

A afirmativa de Apel, de uma complementaridade das ciências científicas e hermenêuticas, vem, no fim das contas, do fato de que a existência de uma comunidade de comunicação é a condição de todo conhecimento na dimensão sujeito-objeto e que a função mesma dessa comunidade de comunicação -- como comunicação intersubjetiva para a descrição e a explicação objetiva dos dados do mundo -- pode e deve ser o tema do conhecimento científico.

A justificativa -- do ponto de vista da antropologia do co-nhecimento -- da compreensão da totalidade encontra dificuldades cuja solução não é aceitável: a comunhão de comunicação -- pelo menos em relação ao passado --destruída. Apel contorna o velho dilema da não-contemporaneidade do sujeito e do objeto do conhecimento: a) por urna antropologização do sujeito do conhecimento e pela des-historização consequente da história da consciência, e b) por um dualismo novo da natureza e da história, da história natural e da história das ideias do homem, da prática técnica natural e da prática moral e social. Essa tentativa de justificar esvazia-se rapidamente desde que as intenções dos sentidos -- que a hermenêutica deve compreender -- de sujeitos passados são ao mesmo tempo as resultantes de formas de vida artificiais que não puderam captar em sua compreensão. Os esforços de identificação hermenêutica (...) esvaziam-se em razão dessa intervenção obscura da história natural do homem, que se prolonga para dentro da história das ideias dos homens.

Não é uma dialética da teoria do trabalho e da natureza, nem urna teoria da totalidade dialética das condições anteriores materiais da consciência e das formas de reprodução ideais -- digamos linguísticas -- que surgiram da luz projetada sobre a obscuridade da história natural, mas um estranho modelo de conhecimento: a psicoterapia analítica. Nesse estranho modelo de conhecimento, há efetivamente dois momentos: 1°) de explicação do comportamento objetivado-distanciado e supondo uma ruptura da comunicação; 2°) da 'supressão' ulterior da 'explicação' veiculada dialéticamente numa compreensão própria aprofundada: a medicina reconhece com a ajuda da formação teórica psicanalítica: 1°) os efeitos quase naturais, explicáveis e mesmo previsíveis de temas de sentidos repisados, de certa forma fazendo do paciente um objeto: 2') mas ao mesmo tempo busca eliminar a condicionante causal, que não é explicável, na medida em que compreende o sentido dos temas repisados e incita o paciente pela comunicação a usar a interpretação do sentido para rever sua própria compreensão autobiográfica.23

Em que medida esse modelo da psicoterapia transposta por Apel no relacionamento que mantém a filosofia da história com a própria compreensão da sociedade humana pressupõe a ilusão de uma ilha de comunicação sem dominação, à la Robiuson? É isso que ressalta claramente a teoria de Habermas. Mas, aqui já não se pode ver que essas formas de vida artificial não entram no campo de visão dessa hermenêutica ou não entram como loucura da compreensão de resultados intelectuais da consciência humana. Mas não se pode achar que isso ainda pode significar a crítica ideológica no contexto dessa teoria.

Sem querer tornar o professor responsável por seus adeptos, pode-se extrair, a partir da generalização da antropologia do conhecimento de Apel, efetuada por D. Bõhler, deduções quanto ao problema da ideologia crítica. Apoiando-se em Apel, Bohler pre-tende: Que o conteúdo do sentido que deve examinar a crítica ideológica — independentemente de se tratar de uma teoria, de uma eventual orientação da ação, de uma lei ou de uma norma, de um papel, etc. — deve ser também compreendida de maneira imanente — e a bem da verdade na significação particular que tem para os homens que dela participam. Uma tal compreensão hermenêutica é a condição que torna possível uma critica pela análise social de um conteúdo de sentidos, se essa critica deve bem atender a esse conteúdo sensorial (em sua função social). Esse seria o primeiro aspecto e o primeiro passo a caminho de uma critica ideológica.

A objeção possível que uma compreensão constante tome a aparência da realidade objetiva reificada e falsamente elaborada no processo do reflexo e portanto a critica ideológica conduziria essa aparência à essência da objetividade, essa objeção Bõhler a passa adiante como uma crítica ao marxismo tão veemente quanto caricatural: marxismo -- redução das formas sociais da consciência a um mecanismo causal objetivo -- decisão anterior de considerar os conteúdos de sentidos como simples produtos das relações materiais. Tirando as consequências idealistas do idealismo de Apel, Bõhler deduz da tese da complementaridade do ponto de vista da antropologia do conhecimento que o domínio da produção também é antecipadamente tirado de um contexto histórico de interações e depende da constituição de sentidos do mesmo.

O objetivo de Bõhler e de outros é a crítica ideológica da hermenêutica como alternativa ao materialismo histórico e dialético. Bõhler, com uma segurança que não consegue abalar as fontes marxistas, sabe que a perspectiva historicamente naturalista de Marx não' considera a expressão linguística e a consciência de si como condições da possibilidade de interação e tem por consequência um conceito de interação simples-mente materialista, que como tal não pode deixar de explicar a interação de puros seres naturais. É suficientemente claro que não é possível se ater à mesma: a produção material depende da constituição de sentidos em contextos intersubjetivos de interação; eis o resultado de uma hermenêutica que podemos denominar, sem nenhuma maldade, de idealista. Irritante é somente essa pretensão de haver fundamentado a compreensão de maneira não-idealista.

2º) Vejamos mais um pouco — ou, mais precisamente menos — a teoria da comunicação de J. Habermas como conceito simplesmente materialista da interação: Compreender é uma experiência de comunicação. É, pensado de maneira problemática e com insistência por Habermas, o fato de que a objetividade da compreensão não é possível a não ser no interior do papel de parceiro refletido num contexto de comunicação. O intérprete não se pode destacar de sua situação hermenêutica inicial — independentemente de se tratar de objetivações contemporâneas ou de tradições históricas. Ele não pode simplesmente romper o horizonte aberto da sua própria prática da vida e suspender de boa fé o contexto de tradições pelo qual foi formada a sua própria subjetividade. [...] Contudo — também Haberrnas apresenta sua solução — é possível atingir a objetividade do processo hermenêutico à medida que o sujeito compreensivo aprenda a se conhecer em seu próprio processo de formação, além da apropriação, pela comunicação, de objetivações que lhe sejam estranhas.

Na critica que Habermas apresenta da exigência de universalidade da hermenêutica filosófica de Gadamer, ele restabelece, com uma clareza merecedora de aplausos, uma diferenciação quase abandonada entre hermenêutica como técnica da exegese e a teoria filosófica hermenêutica. Ele designa também por hermenêutica um potencial que adquirimos à medida que aprendemos a dominar uma língua natural. A compreensão do sentido visa ao conteúdo semântico do discurso, mas também aos significados fixados por escrito ou contidos nos sistemas de símbolos não linguísticos, na medida em que possam por principio ser incluídos no discurso. Devemos aplaudir também a dimensão da consciência falsa, que reencontra aqui seu valor contra a apologia do julgamento preconcebido e que, se não é levada em conta, faz com que a questão da verdade não seja colocada. Porque a meta-instituição da língua como tradição depende ela mesma de processos sociais materiais que não se perdem dentro das relações normativas e porque a língua [...] é também um meio de dominação e de poder social e serve à legitimação de relações de violência organizada.

Habermas recusa-se a identificar a hermenêutica com a crítica ideológica e deixa a experiência hermenêutica que tropeça na dependência do contexto simbólico em relação às relações factuais se transformar em critica ideológica. Assim, uma teoria da comunicação em língua corrente [...] deve abrir um acesso ao contexto de sentidos ocultos patologicamente (Habermas). Mas o que quer dizer patologicamente? Será que esse termo é introduzido para designar a gênese da consciência falsa permitindo descrever mais adiante a anatomia da sociedade capitalista burguesa?

Qual é a terapia que Habermas prescreve com base num tal diagnóstico? Habermas fixa dois caminhos nos quais nós podemos buscar uma resposta com toda chance de sucesso. De urna parte encontramos limites incomuns do domínio da aplicação do processo hermenêutico em casos que a psicanálise e — quando se trata de contexto coletivo — a crítica ideológica pretendem esclarecer. Ambos os caminhos têm a ver com objetivações da linguagem corrente nas quais o sujeito que produz suas manifestações de vida não reconhece suas próprias intenções. Essas manifestações deixam-se compreender como partes de uma comunicação sistematicamente deformada. Elas não podem ser compreendidas a não ser na medida em que as condições gerais da patologia da comunicação em língua corrente sejam reconhecidas (Habermas). Duas vias: uma (a critica ideológica) é delineada por Habermas e é a outra (a psicanálise) que ele usa.

A ligação de urna hermenêutica esclarecida de maneira critica com base em si mesma ao princípio de um discurso razoável, segundo o qual a verdade não seria garantida a não ser pelo consenso que só seria obtido em condições idealizadas da comunicação ilimitada e sem domínio e que poderia pretender à duração"(Habermas), essa ligação supõe uma capacidade de reflexão sobre siisso libera o sujeito da dependência de poderes hipostasiados. Essa tese enuncia-se assim:
Na reflexão sobre si chegam a coincidir um conhecimento por amor ao conhecimento e o interesse de ser o maior. [...] Na força da reflexão sobre si o conhecimento e o interesse fundem-se num único aspecto.

É somente quando a filosofia, na marcha dialética da história, descobre os traços da violência que deforma o diálogo sempre procurado e busca sem cessar os caminhos da comunicação sem condicionamentos que faz avançar o processo pelo qual ela legitima senão de outro modo a interrupção: o encaminhamento da espécie humana rumo a sua maioridade [...] A unidade do conhecimento e do interesse é provada dentro de uma dialética que re-constrói o oprimido a partir dos traços históricos do diálogo oprimido (Habermas).

Uma hermenêutica marxista não contradirá certamente os postulados da hermenêutica ernancipadora e critica", mas porá com acuidade a questão do lugar favorável a uma comunicação sem dominação e à reflexão sobre si. Ela não pode reconhecer a utopia, o lugar que ninguém conhece. Enquanto não se pode descrever esse lugar no indicativo, convém manter-se desconfiado. O princípio do discurso razoável, segundo o qual a verdade não estaria assegurada a não ser pelo consenso, só atingível em condições idealizadas [...] da comunicação sem dominação e que poderia pretender a duração, esse princípio Habermas não consegue formular no indicativo.

A antecipação de uma situação ideal de comunicação linguística — ou seja, de uma forma de vida na qual um acordo universal sem condicionamentos é possível (Habermas) nada mais é, como simples ideia com valor geral, que a repetição verbal de um fracasso: o Iluminismo (Aufklärung) restaurado é um anacronismo, mesmo em se tratando de um anacronismo ao qual a ideologia burguesa não possa renunciar. Assim também o julgamento sobre a utopia da comunicação sem dominação deve se pôr a par das alternativas sociais concretas, já reais, que existem de forma prática, se Habermas não propõe pelo menos um modelo dessa utopia. Esse modelo é a psicanálise.

3°) A psicanálise compreendida por Habermas como uma teoria geral dos processos de formação que se estendem ao longo de toda a vida é para ele o paradigma de uma teoria que desde o inicio se transforma em elemento de reflexão sobre si e ao mesmo tempo usa de modo plausível a legitimação de proceder cientificamente no sentido estrito do termo (Habermas). A referência à psicanálise desperta uma dupla atenção: a) que a compreensão de si objetivista das ciências humanas tradicionais seja destruída, b) que sejam lembrados às ciências sociais os problemas que provêm da preestruturação simbólica do domínio de seu objeto, c) que seja trazido à luz o papel da língua natural na qualidade de uma última metalinguagem para todas as teorias linguísticas formais para controlar a legitimação das decisões que definissem a escolha da estratégia da pesquisa, da construção e dos métodos de verificação de teorias e portanto o progresso da ciência, e dessa forma d) que seja assegurada a tradução na língua do mundo social de informações científicas das múltiplas consequências sociais (Habermas). Habermas liga essas considerações à hermenêutica, mas é preciso subentender: a uma hermenêutica cujo modelo é a psicanálise.

Essas expectativas são ilusórias: decifrar a tradição cultural com base em conteúdos que são a projeção de desejos imaginários, eles mesmos expressões de uma intenção inatingida e de outra parte de sublimações [...] que representam urna satisfação virtual e asseguram uma compensação publicamente autorizada à renúncia da cultura (Habermas), isso a psicanálise não pode realizar nem como terapia nem como teoria hermenêutica. Ela estacionou nesta barreira que impede já a anamnésia do sofrimento individual por causa da analogia — que para a psicanálise fundamenta o sistema — entre a ontogênese e a filogênese (desenvolvimento do indivíduo e desenvolvimento da espécie).

O esquema não-histórico, antropológico de Freud a respeito da estrutura do impulso isso/ego/superego  permanece na tradição do teorema social burguês do estado natural  e exclui a variação histórica das necessidades dos indivíduos trabalhando em sociedade, e por isso mesmo a historicidade da estrutura de impulsos. Além disso, Habermas desconhece o caráter da situação terapêutica. A socialização do analista não é sem consequências para o processo de transferência e de contratransferência entre o paciente e o médico: no processo de reconhecimento mútuo — em realidade, a identificação mútua do outro — refletem-se experiências sociais contraditórias na forma de antagonismos sociais que não se tornam conscientes; eles se reproduzem em favor de uma adaptação de quem está em análise, razão pela qual se deve levar em conta a identidade do eu, do modelo de padrão social e ideológico do analista.

A doença psicossomática não é a única a comportar especificidades sociais, a anamnésia e a terapia dessa doença as têm também. A tese da psicanálise como caso ideal da concordância entre conhecimento e interesse, corno paradigma de uma comunicação não perturbada, deve ser invertida: a hermenêutica psicanalítica é o exemplo de uma ideologia na qual uma crítica das motivações sociais do conhecimento e de suas consequências para a ação e uma critica reflexão sobre si representam justamente um erro de caráter inadmissível. Ao invés de uma reconstrução da identidade do sujeito por meio de sua história, a identificação passa a ser usada à vontade: na "compreensão" chega-se, no melhor dos casos, ao reconhecimento e à interiorização das normas do su-perego, a sanções que favorecem a dominação, o que permite um acordo entre o ego e a continuidade destruída da história individual e mesmo da história de classe. Não pode mais ser questão de uma progressão da competência libertadora da comunicação. Dessa forma limitamo-nos igualmente à crítica — apesar, e justamente, por causa da caracterização da psicanálise como lugar onde o ideal de uma comunicação livre torna-se realidade. Exigir também a transformação da consciência implica interpretar diferentemente o que existe, ou seja, a aceitá-la por meio de uma interpretação diferente.24

Depois de concordar, sobre o essencial, com a tese de Habermas, А. Lorenzer reviu a representação do modelo da psicanalise соmо ciência simbólico-pratica de interação: А interpreta9ao da formação de símbolos сото produção, ou seja, соmо forma de pra- tica social e como reflexo do trabalho social, não deve ser соmpreendida соmо а única tentativa para introduzir a interação na categoria trabalho, mas deve insistir sobre o fato de que nenhuma а9ао humana, nem investimento libidinal (...) pode ser considerada de outra forma que uma transformação produtiva no contexto de relações sociais. Eis o que sераrа Lorenzer da ortodoxia freudiana de Habermas: 1°) a revisão critica do grau real de resistência de certas categorias psicanalíticas (...) e 2º) a prova de que as limita- ções dc enfoque resultam de insuficiências conceituais e fazem соm que mesmo 1á, onde a psicanalise faz deliberadamente eclodir o domínio da psicologia individual e se compreende соmо psicologia social, ela não pode ir além de conceitos que restam abstratos, como o de dominação (corno repressão ancestral) е não pode estabelecer а 1igação соm а analise da situação político-econômica. Para а psicanalise, o рrоЫеmа que se coloca é a deformação dos sujeitos sob a condição das relações de produção.

 А1ёгп da ргеtensão de 1ançar um rápido olhar sobre a analise das condições objetivas na organização da dominação e na organização do trabalho, dai nascem dois pontos programáticos: А dominação deve ser considerada também сото иmа questão biológica (mas não соmо uma questão a ser resolvida biologicamente) e a repressão dos impulsos пãо pode ser pensada fora da questão do sistema de dominação. Dai resulta que a psicanalise соmо teoria da compreensão das interações deve limitar-se а perspectiva interação-comunicação, sob pena de sua auto liquidação; е1а interpreta a matéria sim- bolica а sua disposição соm a ajuda da categoria da práxis. É somente ligando, de uma parte, cada símbolo isolado as exigências corporais (que se exprimem como necessidades na compreensão já veiculada) e dando, de outra parte, o contexto da produção material que a psicanalise escapara do desvio interacionista da compreensão.

O objetivo que prevalece na analise como processo terapêutico parece poder ser аlсацçado, desde que seja а construção da historia de uma vida (que é а obra de um circulo hermenêutico) da interpretação isolada de símbolos e da compreensão da totalidade da historia individual. Por meio da categoria práxis que agora пãо é idêntica а interação/ato linguístico a psicanalise torna o caminho de uma critica materialista da socialização. А questão não é a de saber em que medida a psicanalise empresta seu nome corretamente; mas de saber porque a psicanálise não se reduz (sich aufhebt) de maneira marxista, mesmo que não seja objeto da discussão.

A crítica é reforçada desde que renuncie no entusiasmo da autocrítica a uma diferenciação necessária de manter: a distinção materialista entre ser e consciência, entre produção e reprodução, entre trabalho e seu reflexo nas ideias. A tese de Lorenzer, segundo a qual os símbolos, como meios de produção interior (no sentido da virada epistemológica de Marx), poderiam ter surgido da produção, leva a um caminho sem saída. Essa tese falsifica a identidade da produção material e intelectual, que deveria tornar supérflua toda compreensão de formas-reflexo não-idênticas.

A contribuição da psicanálise — enquanto teoria crítica do sujeito e que considera as causas psíquicas de destruição da palavra — para uma hermenêutica materialista deveria ser uma contribuição para resolver o como? da transformação de processos materiais em ideologia; mas é justamente essa contribuição que é recusada por Lorenzer: A dessimbolização é urna mutilação que determina dois campos de comportamentos (interação e trabalho), que nós designamos como destruição da palavra, e nesse caso destruição da palavra é sinônimo de mutilação da prática. A formação de símbolos constitutivos da língua efetua-se como auto constituição do homem, não só segundo o modelo do trabalho (a confrontação com a natureza exterior), mas também a partir da confrontação com a natureza interior da realidade biológica.

O eixo central da formação dos símbolos — na compreensão da psicanálise — é sobremaneira a tensão dialética entre exigências biológicas e sociais. O símbolo é uma síntese, análoga a urna produção material porque sempre arraigada tanto na natureza interior, da qual o símbolo como produto deve ser extraído, como na confrontação com a natureza exterior de onde emerge o produto compreensível pelos sentidos — da mesma maneira que a formação dos símbolos se realiza produtivamente, ela também se dá num terceiro domínio da realidade: as relações dos objetos, ou seja, como uma interação que cria os fatos que podem ser provados sensivelmente. Assim, a teoria da compreensão do ponto de vista da hermenêutica psicanalítica parece, por suas tentativas mais avançadas, dominar a aporia do círculo, projetar urna estrutura circular de forma a mais radical: o círculo da identidade da causa e do efeito, do trabalho e da linguagem, do antagonismo material e da destruição intelectual. Que essa posição impulsiona o idealismo hermenêutico das quatro teorias citadas até sua superação materialista parece ainda não oferecer nenhuma garantia de escapar do desconhecimento subjetivista da base material objetiva das formas-reflexo.

Em quinto lugar — Trata-se neste trabalho de descrever a aplicação da crítica materialista ao modo de existência ideológica da consciência e a suas materializações acessíveis à hermenêutica em documentos e fontes compreensíveis. Quatro variantes típicas não materialistas foram apresentadas e tiveram largo direito à palavra, para indicar a contrario quais são as questões e quais são as respostas que urna hermenêutica materialista não colocará. Nenhuma das teorias hermenêuticas — filosófica, sociológica ou psicanalítica — pode querer substituir o materialismo histórico e dialético. Mas os hermeneutas não materialistas concorrentes deveriam constituir urna incitação a não abandonar de graça o campo da consciência dos homens contemporâneos socializada pela ideologia burguesa e sua dominação hermenêutica sobre as fontes.

As teses sobre a filosofia da história de Walter Benjamim são uma das fontes mais importantes da hermenêutica materialista. Ele coloca a questão daquele na pele do qual o que escreve a história do historicismo se enfia. A resposta de Benjamim é uma prova da força explosiva da perspectiva práxis e consciência histórica: A resposta é absoluta: o vencedor. Os dominadores são sempre herdeiros de todos aqueles que em todo tempo sempre venceram. E se identificar ao vencedor favorece seguramente sempre ao dominador. [..] O detentor do materialismo histórico considera como seu dever encarar a história no sentido contrário.

Para um hermeneuta materialista que deve fornecer os instrumentos particulares de decifração dos suportes ideológicos da tradição para a reconstrução dialética da gênese da consciência contemporânea — dominando ou não a história — é preciso estar plenamente consciente que:
Articular historicamente o que se passou não quer dizer conhecer exatamente como foi. Quer dizer amparar-se em lembranças que brotaram na hora do perigo. Trata-se para o materialismo histórico de se ligar a uma imagem do passado tal como ela se apresenta de improviso ao sujeito histórico no momento do perigo. O perigo ameaça também a existência da tradição e de seus receptores. Para todos dois é uma só e a mesma coisa: tornar-se instrumento da classe dominante. A cada época é preciso tentar novamente arrancar a tradição do conformismo que está a ponto de anexá-la [...] Pertence somente a quem escreve a história de atiçar a chama da esperança — se ele se encontra compenetrado disso: mesmo os fatos não serão mais seguros perante o inimigo, se ele é vencedor. E esse inimigo nunca cessou de vencer (Benjamim).

As teses de W. Benjamim em si mesmas correm o risco de serem anexadas corno bem cultural que nunca é um documento da cultura sem ser ao mesmo tempo um documento da barbárie. E ao mesmo tempo que não, se mesmo isento da barbárie, da mesma forma não é tampouco o processo da tradição na qual tenha passado de um a outro.24   A mesma coisa vale para o marxismo-leninismo, do qual devemos reconstruir a dialética materialista no momento de perigo, a saber: alterar no mecanismo ou acomodar-se ao molho subjetivista até tornar-se consumível pela ideologia burguesa.

N o t a s :

21 Assim também H. P. Dreitzel, Wege in die socziologische Literatur (Introdução à literatura sociológica), em H. P. Bardt: Iniciação à sociologia, Munique, 1966, p. 221.

22. A. Keller, Heutige Aufgaben Erkenntnistehorie (Papéis atuais da teoria do conhecimento), em Novos problemas do conhecimento em filosofia e teologia, editado por J. B. Lotz, Freiburg, 1968,      p. 30.

23. Marx-Engels: A ideologia alemã, Paris, Editions Sociales, 1968, p. 44.

24. Em defesa de Benjamim contra as falsificações pelos simplificadores da Escola de Frankfurt, ver K. Inderthal: Bereinigugn der Theorie. Zur Adorno-Benjamin Debate (Esclarecimento da teoria. Contribuição ao debate Adorno-Benjamim) manuscrito, Giessen, 1972.

Nenhum comentário:

Postar um comentário