segunda-feira, 25 de março de 2013

IN MEMORIAM - Roberto Segre (1934-10/03/2013) Arquiteto, professor e critico de arquitetura.



Conheci Roberto Segre em Havana convidando-o para integrar a equipe que em 1980 propunha o ensino da arquitetura na Universidade Agostinho Neto em Luanda – Angola. Fui seu leitor assíduo encontrando-o frequentemente em Cuba, Paris e no Brasil.

Italiano emigrou com os pais para a Argentina fugindo do fascismo. Com a vitória da revolução em Cuba transferiu-se para Havana, tornando-se conhecido por mostrar ao mundo o que essa trouxe de arquitetura e urbanismo. Posteriormente aceitou convite da UFRJ de integrar-se ao quadro de professores e pesquisadores da PROURB-FAU- dessa Universidade vindo a falecer em lamentável acidente de transito dia 10 de março próximo passado.

Roberto, presente!


Lembrando-me dele publico um de seus artigos:

FOLHAS ESPARSAS: A HERANÇA DE LE CORBUSIER EM BRASÍLIA (1996)


A memória autoritária

Alejo Carpentier afirmou que o século XIX foi o mais longo da história: começou com a Revolução Francesa em 1789 e terminou com a Primeira Guerra Mundial em 1914. Imaginava que o presente século, iniciado em 1917 com a Revolução de Outubro c marcado pelo surgimento do socialismo e pelo hipotético fim do capitalismo, superaria de longe o ano 2000 (Carpentier: 1987). No entanto, não viveu o suficiente para conhecer a dura verdade.

Eric Hobsbawn demonstra que o século resultou dos mais curtos, ao terminar em 1989 com a queda do muro de Berlim e com a desintegração da URSS (Hobsbawn: 1995). Para os que nascemos e nos formamos na primeira metade do século, cheios de ilusão e de fé na civilização contemporânea, no progresso e na capacidade de redenção do homem., é difícil não sentir desânimo e pessimismo ante o vaticínio do historiador inglês, que o século XXI se vislumbra corno a idade da falta de esperança. O inicio mostra-se pleno de desalento: a matança em Ruanda, a guerra fratricida na Iugoslávia e Chechênia, o Unabomber e os cinco milhões de Freemen nos Estados Unidos, o terrorismo islâmico, a radicalização do bloqueio a Cuba, o crescente desemprego, o aumento dos desníveis de vida entre metrópoles e periferias.

Batemo-nos durante décadas pelos conteúdos morais do Movimento Moderno; por uma renovação de formas e espaços que, representativos da era maquinista, responderiam definitiva-mente às reais necessidades sociais de uma Humanidade em vias de integração democrática, frente ao esteticismo conservador da Academia. No entanto, hoje; na perspectiva histórica, descobrimos que se apagam e se diluem as diferenças e os antagonismos que considerávamos impossíveis de se dissipar entre os dois séculos. Herdeiros do Iluminismo; apostamos no valor da razão acima de tudo. Subjugados pela irrefutabilidade dos enunciados cartesianos, na infância descobrimos as perspectivas abertas pelo saber, o otimismo sem limites sobre a capacidade de transformação na vida humana dos avanços científicos comidos nas maravilhosas páginas da Enciclopédia de Diderot. Logo, a Revolução Francesa deu asas aos anseios de liberdade dos povos subjugados, que pouco a pouco começaram a integrar-se à cultura e ao bem-estar material, ainda persistindo a dura exploração de operários e camponeses e apesar da voracidade e do autoritarismo de reis, imperadores e banqueiros. Quando as contradições do capitalismo anunciadas por Marx e Lenin desencadearam a Guerra de 1914 ao terminar, imaginamos que o mundo encontraria um caminho sem entraves, face a aceleração das descobertas tecnológicas.

A Revolução de Outubro demonstrava que os desprovidos também podiam decidir seus destinos, sem a tutela de tzares, aristocratas ou burgueses. Novamente surgiu a tempestade: descobrimos a antítese entre a razão sadia e a razão enferma. Por urna parte, a construção do socialismo na União Soviética; por outra o nazismo e o fascismo como uma faceta espúria do sistema capitalista. Finda a Segunda Guerra Mundial, sacudidos pelos horrores do Holocausto e das bombas atômicas, voltou a esperança com a libertação dos povos do chamado Terceiro Mundo. A existência de um frágil equilíbrio político se quebrou com os conflitos da Guerra Fria. O desejo de progresso social, baseado na participação popular democrática, foi ofuscado pelo persistente autoritarismo: o expansionismo militar dos Estados Unidos, a continuidade do estalinismo no mundo socialista e a proliferação de ditaduras militares nos países novos — parafraseando Darcy Ribeiro — implicaram crises do início da etapa atual de homogeneização criada pelo capitalismo universal globalizante. Os homens fortes foram substituídos pelo sistema forte: os rostos carismáticos desapareceram encobertos pelas fachadas-espelho dos arranha-céus das grandes corporações ou submersos no labirinto dos shopping centers.

Rebatida ao tema da cidade, esta síntese encontra sua clara expressão formal e espacial. Os imperativos da razão autoritária apelaram para as formas puras, para os espaços infinitos, para as perspectivas monumentais. Eixos e diagonais, surgidos com modéstia e equilíbrio na Roma de Sixto V, desabrocharam em Versalhes magnificando-se em utopias e realidades durante os -séculos XIX e XX: cidades concretas e projetos ideais de regimes de esquerda e de direita. Os boulevards haussmanianos em Paris, ratificados por meio do recente eixo da La Défense; o Mall de Washington; a Unter deu Linden em Berlim — logo teoricamente expandida pelo projeto nazista de Albert Speer e concretamente materializada na Stalin-allee —; os prospekt criados por Stalin em Moscou, modernizados pela Avenida Kalinin; a Via delia Concialiazione, obsequiada por Mussolini ao Vaticano; o Paseo de la Castellana em Madri, com o arco do triunfo das torres inclinadas na Plaza de Espanha.

A América Latina não ficou isenta dessa ansiedade retilínea. Cada cidade, desde o início do século, construiu um eixo diretor das estruturas centrais; o México é pioneiro com o Paseo de la Reforma: Buenos Aires leva mais de meio século para terminar o sistema Avenida 9 de Julho-Diagonais. Todos os projetos dos urbanistas da Escola de Paris reproduzem as perspectivas parisienses: Agache no Rio de Janeiro; Forestier em Havana; Rotival em Caracas. Ao celebrar-se o centenário do nascimento de Le Corbusier (1987), foram ratificados os componentes clássicos dos esquemas urbanos do Mestre (Banham: 1965, Bordogna: 1983; Curtis: 1987), tanto na Cidade de 3 milhões de habitantes como na Ville Radieuse. Mudam a escala, as relações volumétricas c a tipologia arquitetônca, mas não se renuncia aos espaços abertos ritmados por horizontais gregas ou arranha-céus cartesianos. A ordem do Plano responde à ancestral identificação da regularidade formal com a organização coerente da sociedade.

Desde Santo Agostinho, Campanella, Thomas Morus ou Charles Fourier, a harmonia da vida comunitária exige a precisão geométrica. Princípio também levado às terras americanas pelos sonhadores utopistas (Gomez Tovar, Gutierrez, Vázquez: 1991) e pelos engenheiros que projetaram as primeiras cidades novas: La Plata na Argentina, Belo Horizonte e Goiânia no Brasil. O fortalecimento dos rituais urbanos exigidos pelo poder constituído respaldou o desenho do âmbito cenográfico: procissões religiosas, paradas militares, cerimonias político-patrióticas. Os símbolos arquitetônicos reforçaram a necessidade de marcos visuais distantes: monumentais edifícios governamentais, suntuosos capitólios e ministérios, severos palácios de justiça. Le Corbusier alterou os termos da hierarquização funcional - predominaram os escritó-rios, os estádios ou os centros culturais --, mas não pôs em questão a presença da autoridade -- nesse caso mais econômica do que política - como diretora da configuração do centro urbano.

Por sua vez, a ação demiúrgica do arquiteto, identificada com o poder, controlava a totalidade da forma urbana, sem graus de liberdade alternativos. No entanto, no inundo dominado pelos imperativos da propriedade privada, a desejada unidade formal foi substituída pelo caos que impera na metrópole contemporânea. Só permaneceu o isolado modelo da Cité des Affaires, cujo paradigma mais acabado se concretizou em Houston. Apesar do Mestre nunca haver construído um arranha-céu, esse foi o legado repetido ad infinitum pelo capitalismo triunfante ou pelo socialismo arrependido: as mesmas torres aparecem em Nova York, Paris, Kuala Lumpur o Shenzhen.

Mesmo que Lúcio Costa não tenha feito referência ao valor referencial das 'propostas urbanas de Le Corbusier, ao enunciar os antecedentes de Brasília — a ordem francesa, o lawn inglês, as perspectivas abertas do urbanismo chinês, a pureza de Diamantina, os park-ways norte-americanos (Costa: 1995) —, constata-se frequentemente o paralelismo existente entre o eixo monumental e os desenhos proféticos da Ville Radieuse (Evenson: 1973). A escala barroca do sistema simbólico do poder político resgataria a imagem tradicionalmente identificada com reis e tiranos, para salientar as concentrações das massas urbanas. Não é tirada do nada a afirmação de Lúcio Costa que a Praça dos Três Poderes é a Versalhes do povo (Carvalho: 1995). Tese refutada durante vinte anos: as paradas militares da ditadura encontraram seu espaço para nele preencher o vazio apolítico. Foram poucas as vezes que o povo se concentrou na gigantesca praça: foi uma exceção a festa de inauguração da cidade com Juscelino Kubitscheck e quando com maior indignação popular se exigiu o impeachment do presidente Color. O silêncio da infinitude voltou a reinar em janeiro de 1995, quando se deveria festejar um novo triunfo da democracia, com a posse de Fernando Henrique Cardoso.

Se as duras criticas formuladas interna e externamente sobre Brasília (Comas: 1991; Mendes de Vasconcellos: 1994) possuem um fundamento válido, não cabe dúvida que a presença de Oscar Niemeyer logrou suavizar e humanizar a rigidez dos abstratos esquemas lecorbusianos. Daí que a leveza e a autonomia formal dos edifícios localizados ao longo do eixo — o Teatro, a Catedral, o Itamarati, o Congresso com seu conteúdo visual, identificam a personalidade icônica da capital no mundo.

Também o Mestre, ao visitar o Planalto Central em 1962, expressou seu reconhecimento à originalidade da linguagem, ao dizer: ...as colunas de Oscar são muito delicadas, o piso é muito delicado. Eu teria feita uma Praça dos Três Poderes com grandes placas de concreto armado, com juntas de asfalto como nos aeroportos..." (Segawa: 1995). Apesar da rígida axialidade estabelecida pela série rítmica dos blocos dos ministérios, as demais obras assumem o caráter de objets trouvés, livremente apoiados sobre o gramado contínuo. O predomínio das curvas expressa o hedonismo surgido da referência à figura feminina e à vegetação tropical (Buchanan: 1988; Underwood: 1994). Na virtualidade volumétrica da Catedral, a transparência linear de ambos palácios - Planalto e Suprema Corte -, Silva Telles: 1994), a assimetria do Congresso, estão presentes ante letteram, alguns dos postulados que Koolhaas utiliza para questionar as categorias do Movimento Moderno: virtualidade, inexistência, fricção, fragmentação (Kool-haas: 1993). No entanto, não conseguem quebrar a origem Beaux-Arts da composição urbana e seu conteúdo segregativo.

A capacidade de congregar a vida social desejada na metrópole contemporânea não existe em Brasília, ainda presa à imagem excludente da cidadela ritualística. O entorno monumental continua representando com força mais os valores eternos e metafísicos da cultura ocidental branca que o sincretismo e a mestiçagem representativos da identidade latino-americana. É lícito afirmar a dualidade existente entre espaço sagrado -- totalmente acontrolado pelos artistas messiânicos - e profano (Bicca: 1995) -- definido pelos usuários que separa a configuração do Plano Piloto da continuada aglomeração informal das Cidades Satélites.


Poesia e vida cotidiana

Resultaria esquemático generalizar sobre a crise do modelo racional de Le Corbusier. Se o mundo moderno absorveu aceleradamente as imagens de autopistas e arranha-céus, não fez da mesma forma com as formulações mais contundentes do Mestre: a obtenção de uma moradia mínima digna para todos os habitantes da Terra, projetada com a suficiente flexibilidade para permitir a intervenção dos usuários e produzida em série por métodos industrializados. Se a ênfase de sua valorização pelos críticos atribuiu a imagem de profeta"- parafraseando a Diaz Comas (1991) -, ainda mais respeitável-- para nós os sobreviventes do Terceiro Mundo -- é a figura do poeta imerso na realidade presente. São reveladoras essas palavras: Me interessa somente a atualidade; nos últimos vinte anos, meus esforços foram dirigidos inflexivelmente para o dia de hoje e nunca para o amanhã, do qual nada conheço. Considero de mau gosto qualquer coisa da "Vida do Futuro" e "Metrópole": ou bem semelhantes profecias são idiotas em sua avaliação do presente, ou se entregam a exageradas conjecturas hipotéticas, ou exibem métodos e conclusões arbitrárias. Arrastam-nos pelo perigoso caminho do Futurismo no qual o amanhã e o nunca se confundem. Basta o hoje; com as mãos cheias das realidades hoje, construamos (Hodgen: 1966).

Essa subvalorização da faceta subjetiva na personalidade de Le Corbusier; a valorização de obra menor da sua produção pictórica e escultórica — durante um tempo assimilada em termos de amadorismo domingueiro —; o não dar importância à influência exercida por civilizações outras — as extra-européias — sobre seu pensamento e sua ação, mostram o temor em respaldar um modelo cultural contaminado, alheio aos postulados canônicos daquela denominada ocidental e cristã. Chama a atenção que somente em 1965 — o ano de sua morte —, foi editado o essencial testemunho de sua juventude Voyage a l'Orient, que na exaustiva obra publicada no Centro Pompidou em razão da exposição do centenário de seu nascimento — Le Corbusier, Une Encyclopédie —, não contém nada escrito por um crítico ou historiador latino-americano; não apareça o termo América Latina e não ganhem espaço próprio Lúcio Costa c Oscar Niemeyer, que tanta significação tiveram nas transformações conceituais do Mestre,. ocorridas a partir de sua viagem à América do Sul, em 1929.

Para nós, a visão sincrética de Le Corbusier (Tzonis, Lefaivre: 1985) nasce do encontro com Josephine Baker em São Paulo — se emociona profundamente ao ouvi-la cantar Baby num teatro da cidade (Carpentier: 1976) — , mais que da experiência da Casbah de Argel em 1931 (Igersoll: 1990). Tanto como no descobrimento da arte popular turca; da vida quotidiana dos camponeses na Bulgária; o Mestre percebe a existência de outros mundos, alheios à razão clássica na mulatez e na negritude dos habitantes das favelas brasileiras ou nas ancestrais tradições dos emigrantes pobres italianos nos conventillos de Buenos Aires.

Experiências intensas — acompanhadas pelo descobrimento da dimensão tantálica — parafraseando a Carpentier — da paisagem americana em seus primeiros voos sobre o Continente, que assimila e decanta, aflorando logo na produção artística (Le Corbusier: 1929). Percepção do valor telúrico das tradições populares que o aproximam de Joseph Savina e Constantino Nivola. Apesar de sua fria couraça protetora, a sensibilidade pelas mulheres exuberantes refletida em suas pinturas, que logo afloram nas curvas arquitetônicas, sua receptividade subconsciente à influência do Surrealismo e o Dadaismo nas esculturas Ubu; a constante busca na natureza dos objets à reaction poetique.

Se excluímos a crítica esquemática ideológica formulada sobre suas proposta pelos teóricos marxistas (Ramón: 167: Lefebvre, 1968), denunciando o respaldo à separação classista da sociedade; ou as ingênuas declarações do Mestre — A grande empresa é hoje um organismo sadio e ético (Hilpert: 1983) —; vemos aparecer, por trás do sistema monumental da city, os outros: os trabalhadores  braçais — industriais e agrícolas —, ou os empregados das estruturas de serviços urbanos (Sassen: 1993). São os suburbanos e os mistos da Ville Contemporaine de 1922 (Le Corbusier 1924) e os habitantes da unidade rural e da unidade industrial dos Três Estabelecimentos Humanos (Le Corbusier: 1961). Ou seja, que seria injusto condenar Le Corbusier pela paternidade das abstratas estruturas arquitetõnicas das atuais empresas transnacionais, quando também teve consciência de que existiam os marginais — realidade inegável que podia ser questionada ou não —, seres humanos com direito a uma moradia, a um lugar de trabalho, à qualidade estética do ambiente vital. E podemos acompanhar ao longo de sua Oeuvre Complète como projetou persistentemente para trabalhadores e camponeses, como lutou pelo desejado emprego das potencialidades industriais para a construção de moradias em serie, sem negar a alternativa da autoconstrução nas casas Monol com teto de amianto e Murondis de madeira e adobe (Jardot: 1960). Nos projetos dos Centros Cooperativos Rurais ou na Fábrica Verde, imaginava que as tarefas mais humildes realizadas no espaço suburbano, também mereciam a atenção do projetista. Ou seja, por um lado, era consciente dos cruéis mecanismos que manipulavam as reluzentes torres de escritórios: o centro das cidades é o capital intensamente ativo sobre o qual joga a bolsa desenfreada da especulação privada (Le Corbusier: 1962). Por outro lado, assumia a necessidade de atender a indigência e a penúria das zonas subdesenvolvidas, que também incluía o homem nômade — ainda não se havia definido a no-mantologia da cultura urbana contemporânea (Vidler: 1993) —. Figura que começava a aparecer nas cidades tentaculares (Le Corbusier: 1955).


Brasília: o refluxo das margens

Esse complexo e denso aspecto do ensinamento de Le Corbusier não foi integrado ao projeto de Brasília, Primou a racionalidade sobre a subjetividade; o império da ordem longínqua sobre a flexibilidade da ordem próxima. Apesar das posições políticas progressistas — tanto de Oscar Niemeyer como de Lúcio Costa —, nos testemunhos sobre a capital, depois da ditadura, se ignora a presença de mais de dois milhões de habitantes nas Cidades Satélites, nas hipotéticas intervenções futuras (Niemeyer: 1993; Costa: 1995). A um terço de século de sua fundação — quase um instante na vida de urna urbe —, a imagem predominante segue identificada com o Plano Piloto, paradigma urbano da Primeira Modernidade, hoje um duvidoso modelo da metrópole do século XXI. Daí que a imagem futurista se converteu em pura arqueologia: em 1987 a UNESCO declara Brasília Patrimônio Cultural da Humanidade, somando-se aos monumentos milenares do planeta. De nascimento quase prematuro, o centro simbólico de repente passa a ser história. congelada, antagônica ao latejar da Living City de Frank Wright, ou à diversidade criada por Le Corbusier nos Três Estabelecimentos Humanos. Do nada, do vazio de um território deserto pretende-se configurar a complexidade da vida urbana na monumen-talidade da Acrópole. Contradição impossível de ser contida dentro dos limites da Gute Form -- recordando a Max Bill -- cujo estalido a transformou, de símbolo do Movimento Moderno em materialização concreta da pós-modernidade urbana, forjada no incontrolado crescimento cotidiano da infinita suburbanidade (Rabinow: 1992). Consumou-se a vingança de Montezuma: da terra ancestral brota uma realidade alheia a ideais e modelos vinculados com longínquas metrópoles.

Que fatores produziram as profundas mudanças responsáveis pela crise dos valores originais? Os limites do Plano Piloto só incluem a vida de 400.000 habitantes, enquanto 1.3 milhões se assentam nas áreas periféricas. Os símbolos arquitetônicos da centralidade ficaram reduzidos a distante mensagem política — decaída e desprestigiada na recente história do Brasil —, isolados e opostos a toda significação polissênica. O centro em termos econômicos e sociais se deslocou para os núcleos satélites de maior vitalidade: Taguatinga, Ceilândia e Gama. Ou seja, expandida uma estrutura urbana descontínua, o tema atual é resgate e definição das bordas e das fronteiras, mais que preservação dos espaços monumentais. Frente à ditadura do projeto do Plano Piloto, as cidades satélites se caracterizam pela precariedade dos controles formais. Em oposição à coerência dos hipotéticos interesses coletivos predomina a arbitrária ação individual. Tanto no Plano Piloto como nas bordas, a gráfica publicitária e as transformações dos usuários nas moradias isoladas, recuperam a historia do kitsch vernacular, que encheu a cidade de balaustradas clássicas, tetos alpinos, pedras milenares e grades islâmicas. A desordem da vida se sobrepôs à ordem abstrata das geografias mentais (Paviani: 1995).

Os antagonismos do entorno refletem a realidade social e econômica reinante: no Plano Piloto, a renda per capita é a mais alta do país — 4.000 US$ — nos núcleos periféricos vivem 320 mil pessoas carentes de abastecimento de água e 610 mil sem esgoto. O sistema de transporte representa um quadro semelhante: a metade da população do Plano Piloto utiliza o automóvel em curtos percursos — 600 mil unidades que saturam a circulação fluida das autopistas — até o centro administrativo, enquanto 75% dos habitantes suburbanos consome largas horas de sua vida em velhos, precários e custosos ônibus para chegar às atividades terciárias e manuais. Face a dureza do sustento diário — que reproduz as condições reinantes nas cidades tradicionais do Brasil as massas desprovidas buscaram o alívio desejado na religião. A racionalidade do traçado contém centenas de messiânicas igrejas das mais distintas seitas e credos, que abrigam um misticismo universalista à espera da salvação nessas terras, uma vez findo o iminente Dilúvio Universal.

Menos pessimista foi o ex-governador do Distrito Federal, Cristóvam Buarque, ex-Reitor da Universidade, que, ao formular o plano de ação do governo até o ano 2.000, afirmou: Nosso compromisso é de reinaugurar Brasília. Reinaugurá-Ia no sentido de criar uma resposta ao desafio de nosso tempo, como o fizera então Juscelino Kubitschek. Naquela época, o grande desafio era a integração nacional, e Juscelino criou Brasília. Hoje, nosso grande desafio é combater a segregação social e criar o processo de integração social para alcançar um desenvolvimento sustentável e solidário (Buarque: 1995). Face a primazia dos problemas comunitários, a complexidade das relações humanas tomaram a dianteira sobre a simplicidade da forma. As iniciativas imediatas que propõem as autoridades municipais são as seguintes: a) melhorar as precárias condições de vida e de trabalho dos 1.4 milhões de habitantes que residem nas cidades satélites; b) reformular os princípios clo projeto incontaminado de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer para o Plano Piloto e superar os erros detectados na quotidianidade de trinta e cinco anos de prática comunitária; c) reorganizar o sistema circulatório e criar os inexistentes elementos direcionais de orientação do espaço urbano; cl) fortalecer os precários sítios públicos de vida social; e) adensar as áreas habitacionais; ocupar as terras de ninguém e os terrenos vazios, polos diferenciados de nucleamento populacional, tal como os imaginava Le Corbusier na proposta do Ascoral (Le Corbusier: 1959). Naquele então afirmava: "A arquitetura moderna integrar-se-á ao solo e à cultura de cada país. Esse é o destino e a condição das obras. Haverá grande diversidade posto que os materiais são diversos, a luz é distinta. em cada lugar, os terrenos são planos, com montes ou montanhas, e as mentes dos homens também são distintas. E será urna variedade na unidade" (Le Corbusier: 1972).

Esses são os desafios do século XXI para uma cidade nascida como o símbolo do reencontro social e econômico brasileiro, convertida segundo Nicmeyer na cidade mais discriminadora deste país; tão discriminadora que os que a construíram não puderam habitar nela (Niemeyer: 1985). Finalmente, o mundo apolíneo das formas e a monumentalidade dos espaços têm levado definitivamente a crises. Mais que Brasília, na América do Sul resulta hoje Curitiba, um modelo de integração entre projeto, sociedade e quotidianidade. Não são as cinzas da Modernidade e da ética da solidariedade comunitária. Voltando a Le Corbusier, seu ensinamento não perdura na lírica precisão das formas, mas em seu apego à existência humana e à busca de um equilíbrio social, conseguido através da integração de grupos distintos, sem repressão nem coação: "O sonho só se apoia sobre realidades essenciais. A poesia só procede ante feitos exatos. O lirismo só tem asas sobre a verdade. Só o genuíno nos comove..!  A vida! A vida!, apreciamos seu brilho mediante um profundo aprofundamento até a essência das coisas" (Le Corbusier: 1924; 1962).


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