Conheci Roberto Segre
em Havana convidando-o para integrar a equipe que em 1980 propunha o ensino da
arquitetura na Universidade Agostinho Neto em Luanda – Angola. Fui seu leitor
assíduo encontrando-o frequentemente em Cuba, Paris e no Brasil.
Italiano emigrou com os
pais para a Argentina fugindo do fascismo. Com a vitória da revolução
em Cuba transferiu-se para Havana, tornando-se conhecido por mostrar ao mundo o
que essa trouxe de arquitetura e urbanismo. Posteriormente aceitou convite da
UFRJ de integrar-se ao quadro de professores e pesquisadores da PROURB-FAU-
dessa Universidade vindo a falecer em lamentável acidente de transito dia 10 de
março próximo passado.
Roberto,
presente!
Lembrando-me dele
publico um de seus artigos:
FOLHAS
ESPARSAS: A HERANÇA DE LE CORBUSIER EM BRASÍLIA (1996)
A
memória autoritária
Alejo Carpentier
afirmou que o século XIX foi o mais longo da história: começou com a Revolução
Francesa em 1789 e terminou com a Primeira Guerra Mundial em 1914. Imaginava
que o presente século, iniciado em 1917 com a Revolução de Outubro c marcado
pelo surgimento do socialismo e pelo hipotético fim do capitalismo, superaria
de longe o ano 2000 (Carpentier: 1987). No entanto, não viveu o suficiente para
conhecer a dura verdade.
Eric Hobsbawn demonstra
que o século resultou dos mais curtos, ao terminar em 1989 com a queda do muro
de Berlim e com a desintegração da URSS (Hobsbawn: 1995). Para os que nascemos
e nos formamos na primeira metade do século, cheios de ilusão e de fé na
civilização contemporânea, no progresso e na capacidade de redenção do homem.,
é difícil não sentir desânimo e pessimismo ante o vaticínio do historiador
inglês, que o século XXI se vislumbra corno a idade da falta de esperança. O
inicio mostra-se pleno de desalento: a matança em Ruanda, a guerra fratricida
na Iugoslávia e Chechênia, o Unabomber e os cinco milhões de Freemen nos
Estados Unidos, o terrorismo islâmico, a radicalização do bloqueio a Cuba, o
crescente desemprego, o aumento dos desníveis de vida entre metrópoles e
periferias.
Batemo-nos durante
décadas pelos conteúdos morais do Movimento Moderno; por uma renovação de
formas e espaços que, representativos da era
maquinista, responderiam definitiva-mente às reais necessidades sociais de
uma Humanidade em vias de integração democrática, frente ao esteticismo
conservador da Academia. No entanto, hoje; na perspectiva histórica,
descobrimos que se apagam e se diluem as diferenças e os antagonismos que
considerávamos impossíveis de se dissipar entre os dois séculos. Herdeiros do
Iluminismo; apostamos no valor da razão acima de tudo. Subjugados pela
irrefutabilidade dos enunciados cartesianos, na infância descobrimos as
perspectivas abertas pelo saber, o otimismo sem limites sobre a capacidade de
transformação na vida humana dos avanços científicos comidos nas maravilhosas
páginas da Enciclopédia de Diderot. Logo, a Revolução Francesa deu asas aos
anseios de liberdade dos povos subjugados, que pouco a pouco começaram a
integrar-se à cultura e ao bem-estar material, ainda persistindo a dura
exploração de operários e camponeses e apesar da voracidade e do autoritarismo
de reis, imperadores e banqueiros. Quando as contradições do capitalismo
anunciadas por Marx e Lenin desencadearam a Guerra de 1914 ao terminar,
imaginamos que o mundo encontraria um caminho sem entraves, face a aceleração
das descobertas tecnológicas.
A Revolução de Outubro
demonstrava que os desprovidos também podiam decidir seus destinos, sem a
tutela de tzares, aristocratas ou burgueses. Novamente surgiu a tempestade:
descobrimos a antítese entre a razão sadia
e a razão enferma. Por urna parte, a
construção do socialismo na União Soviética; por outra o nazismo e o fascismo
como uma faceta espúria do sistema capitalista. Finda a Segunda Guerra Mundial,
sacudidos pelos horrores do Holocausto e das bombas atômicas, voltou a
esperança com a libertação dos povos do chamado Terceiro Mundo. A existência de um frágil equilíbrio político se
quebrou com os conflitos da Guerra Fria. O desejo de progresso social, baseado
na participação popular democrática, foi ofuscado pelo persistente
autoritarismo: o expansionismo militar dos Estados Unidos, a continuidade do
estalinismo no mundo socialista e a proliferação de ditaduras militares nos
países novos — parafraseando Darcy
Ribeiro — implicaram crises do início da etapa atual de homogeneização criada
pelo capitalismo universal globalizante.
Os homens fortes foram substituídos
pelo sistema forte: os rostos
carismáticos desapareceram encobertos pelas fachadas-espelho dos arranha-céus
das grandes corporações ou submersos no labirinto dos shopping centers.
Rebatida ao tema da
cidade, esta síntese encontra sua clara expressão formal e espacial. Os imperativos
da razão autoritária apelaram para as formas puras, para os espaços infinitos,
para as perspectivas monumentais. Eixos e diagonais, surgidos com modéstia e
equilíbrio na Roma de Sixto V, desabrocharam em Versalhes magnificando-se em
utopias e realidades durante os -séculos XIX e XX: cidades concretas e projetos
ideais de regimes de esquerda e de direita. Os boulevards haussmanianos em Paris, ratificados por meio do recente
eixo da La Défense; o Mall de Washington; a Unter deu Linden em Berlim — logo teoricamente
expandida pelo projeto nazista de Albert Speer e concretamente materializada na
Stalin-allee —; os prospekt criados
por Stalin em Moscou, modernizados pela Avenida Kalinin; a Via delia
Concialiazione, obsequiada por Mussolini ao Vaticano; o Paseo de la Castellana
em Madri, com o arco do triunfo das torres inclinadas na Plaza de Espanha.
A América Latina não
ficou isenta dessa ansiedade retilínea. Cada cidade, desde o início do século,
construiu um eixo diretor das estruturas centrais; o México é pioneiro com o
Paseo de la Reforma: Buenos Aires leva mais de meio século para terminar o
sistema Avenida 9 de Julho-Diagonais. Todos os projetos dos urbanistas da
Escola de Paris reproduzem as perspectivas parisienses: Agache no Rio de
Janeiro; Forestier em Havana; Rotival em Caracas. Ao celebrar-se o centenário
do nascimento de Le Corbusier (1987), foram ratificados os componentes clássicos dos esquemas urbanos do Mestre
(Banham: 1965, Bordogna: 1983; Curtis: 1987), tanto na Cidade de 3 milhões de
habitantes como na Ville Radieuse. Mudam a escala, as relações volumétricas c a
tipologia arquitetônca, mas não se renuncia aos espaços abertos ritmados por
horizontais gregas ou arranha-céus cartesianos. A ordem do Plano responde à ancestral identificação da regularidade formal com
a organização coerente da sociedade.
Desde Santo Agostinho,
Campanella, Thomas Morus ou Charles Fourier, a harmonia da vida comunitária
exige a precisão geométrica. Princípio também levado às terras americanas pelos
sonhadores utopistas (Gomez Tovar, Gutierrez, Vázquez: 1991) e pelos
engenheiros que projetaram as primeiras cidades novas: La Plata na Argentina, Belo Horizonte e Goiânia no Brasil. O
fortalecimento dos rituais urbanos exigidos pelo poder constituído respaldou o
desenho do âmbito cenográfico: procissões religiosas, paradas militares,
cerimonias político-patrióticas. Os símbolos arquitetônicos reforçaram a
necessidade de marcos visuais distantes: monumentais edifícios governamentais,
suntuosos capitólios e ministérios, severos palácios de justiça. Le Corbusier
alterou os termos da hierarquização funcional - predominaram os escritó-rios,
os estádios ou os centros culturais --, mas não pôs em questão a presença da
autoridade -- nesse caso mais econômica do que política - como diretora da
configuração do centro urbano.
Por sua vez, a ação
demiúrgica do arquiteto, identificada com o poder, controlava a totalidade da
forma urbana, sem graus de liberdade alternativos. No entanto, no inundo
dominado pelos imperativos da propriedade privada, a desejada unidade formal
foi substituída pelo caos que impera na metrópole contemporânea. Só permaneceu
o isolado modelo da Cité des Affaires, cujo paradigma mais acabado se
concretizou em Houston. Apesar do Mestre nunca haver construído um arranha-céu,
esse foi o legado repetido ad infinitum
pelo capitalismo triunfante ou pelo socialismo arrependido: as mesmas torres
aparecem em Nova York, Paris, Kuala Lumpur o Shenzhen.
Mesmo que Lúcio Costa
não tenha feito referência ao valor referencial das 'propostas urbanas de Le
Corbusier, ao enunciar os antecedentes de Brasília — a ordem francesa, o lawn
inglês, as perspectivas abertas do urbanismo chinês, a pureza de Diamantina, os
park-ways norte-americanos (Costa:
1995) —, constata-se frequentemente o paralelismo existente entre o eixo
monumental e os desenhos proféticos da Ville Radieuse (Evenson: 1973). A escala
barroca do sistema simbólico do poder
político resgataria a imagem tradicionalmente identificada com reis e tiranos,
para salientar as concentrações das massas urbanas. Não é tirada do nada a
afirmação de Lúcio Costa que a Praça dos
Três Poderes é a Versalhes do povo (Carvalho: 1995). Tese refutada durante
vinte anos: as paradas militares da ditadura encontraram seu espaço para nele
preencher o vazio apolítico. Foram poucas as vezes que o povo se concentrou na
gigantesca praça: foi uma exceção a festa de inauguração da cidade com
Juscelino Kubitscheck e quando com maior indignação popular se exigiu o
impeachment do presidente Color. O silêncio da infinitude voltou a reinar em
janeiro de 1995, quando se deveria festejar um novo triunfo da democracia, com
a posse de Fernando Henrique Cardoso.
Se as duras criticas
formuladas interna e externamente sobre Brasília (Comas: 1991; Mendes de
Vasconcellos: 1994) possuem um fundamento válido, não cabe dúvida que a
presença de Oscar Niemeyer logrou suavizar e humanizar a rigidez dos abstratos
esquemas lecorbusianos. Daí que a leveza e a autonomia formal dos edifícios
localizados ao longo do eixo — o Teatro, a Catedral, o Itamarati, o Congresso
com seu conteúdo visual, identificam a personalidade icônica da capital no
mundo.
Também o Mestre, ao
visitar o Planalto Central em 1962, expressou seu reconhecimento à
originalidade da linguagem, ao dizer: ...as
colunas de Oscar são muito delicadas, o piso é muito delicado. Eu teria feita
uma Praça dos Três Poderes com grandes placas de concreto armado, com juntas de
asfalto como nos aeroportos..." (Segawa: 1995). Apesar da rígida
axialidade estabelecida pela série rítmica dos blocos dos ministérios, as
demais obras assumem o caráter de objets
trouvés, livremente apoiados sobre o gramado contínuo. O predomínio das
curvas expressa o hedonismo surgido da referência à figura feminina e à
vegetação tropical (Buchanan: 1988; Underwood: 1994). Na virtualidade
volumétrica da Catedral, a transparência linear de ambos palácios - Planalto e
Suprema Corte -, Silva Telles: 1994), a assimetria do Congresso, estão
presentes ante letteram, alguns dos
postulados que Koolhaas utiliza para questionar as categorias do Movimento
Moderno: virtualidade, inexistência, fricção, fragmentação (Kool-haas: 1993).
No entanto, não conseguem quebrar a origem Beaux-Arts
da composição urbana e seu conteúdo segregativo.
A capacidade de
congregar a vida social desejada na metrópole contemporânea não existe em
Brasília, ainda presa à imagem excludente da cidadela ritualística. O entorno monumental continua representando
com força mais os valores eternos e metafísicos da cultura ocidental branca que
o sincretismo e a mestiçagem representativos da identidade latino-americana. É
lícito afirmar a dualidade existente entre espaço sagrado -- totalmente acontrolado pelos artistas messiânicos - e profano (Bicca: 1995) -- definido pelos
usuários que separa a configuração do Plano Piloto da continuada aglomeração informal das Cidades Satélites.
Poesia
e vida cotidiana
Resultaria esquemático
generalizar sobre a crise do modelo racional
de Le Corbusier. Se o mundo moderno absorveu aceleradamente as imagens de
autopistas e arranha-céus, não fez da mesma forma com as formulações mais
contundentes do Mestre: a obtenção de uma moradia mínima digna para todos os
habitantes da Terra, projetada com a suficiente flexibilidade para permitir a
intervenção dos usuários e produzida em série por métodos industrializados. Se
a ênfase de sua valorização pelos críticos atribuiu a imagem de profeta"- parafraseando a Diaz
Comas (1991) -, ainda mais respeitável-- para nós os sobreviventes do Terceiro Mundo -- é a figura do poeta imerso na realidade presente. São
reveladoras essas palavras: Me interessa
somente a atualidade; nos últimos vinte anos, meus esforços foram dirigidos
inflexivelmente para o dia de hoje e nunca para o amanhã, do qual nada conheço.
Considero de mau gosto qualquer coisa da "Vida do Futuro" e
"Metrópole": ou bem semelhantes profecias são idiotas em sua
avaliação do presente, ou se entregam a exageradas conjecturas hipotéticas, ou
exibem métodos e conclusões arbitrárias. Arrastam-nos pelo perigoso caminho do
Futurismo no qual o amanhã e o nunca se confundem. Basta o hoje; com as mãos
cheias das realidades hoje, construamos (Hodgen: 1966).
Essa subvalorização da
faceta subjetiva na personalidade de Le Corbusier; a valorização de obra menor
da sua produção pictórica e escultórica — durante um tempo assimilada em termos
de amadorismo domingueiro —; o não dar importância à influência exercida por
civilizações outras — as extra-européias — sobre seu pensamento e sua ação,
mostram o temor em respaldar um modelo cultural contaminado, alheio aos
postulados canônicos daquela denominada ocidental
e cristã. Chama a atenção que somente em 1965 — o ano de sua morte —, foi
editado o essencial testemunho de sua juventude Voyage a l'Orient, que na
exaustiva obra publicada no Centro Pompidou em razão da exposição do centenário
de seu nascimento — Le Corbusier, Une
Encyclopédie —, não contém nada escrito por um crítico ou historiador
latino-americano; não apareça o termo América Latina e não ganhem espaço
próprio Lúcio Costa c Oscar Niemeyer, que tanta significação tiveram nas
transformações conceituais do Mestre,. ocorridas a partir de sua viagem à
América do Sul, em 1929.
Para nós, a visão sincrética de Le Corbusier (Tzonis,
Lefaivre: 1985) nasce do encontro com Josephine Baker em São Paulo — se
emociona profundamente ao ouvi-la cantar Baby num teatro da cidade (Carpentier:
1976) — , mais que da experiência da Casbah de Argel em 1931 (Igersoll: 1990).
Tanto como no descobrimento da arte popular turca; da vida quotidiana dos camponeses
na Bulgária; o Mestre percebe a existência de outros mundos, alheios à razão
clássica na mulatez e na negritude dos habitantes das favelas
brasileiras ou nas ancestrais tradições dos emigrantes pobres italianos nos
conventillos de Buenos Aires.
Experiências intensas —
acompanhadas pelo descobrimento da dimensão tantálica
— parafraseando a Carpentier — da paisagem americana em seus primeiros voos sobre
o Continente, que assimila e decanta, aflorando logo na produção artística (Le
Corbusier: 1929). Percepção do valor telúrico das tradições populares que o
aproximam de Joseph Savina e Constantino Nivola. Apesar de sua fria couraça
protetora, a sensibilidade pelas mulheres exuberantes refletida em suas
pinturas, que logo afloram nas curvas arquitetônicas, sua receptividade
subconsciente à influência do Surrealismo e o Dadaismo nas esculturas Ubu; a
constante busca na natureza dos objets à
reaction poetique.
Se excluímos a crítica
esquemática ideológica formulada sobre suas proposta pelos teóricos marxistas
(Ramón: 167: Lefebvre, 1968), denunciando o respaldo à separação classista da
sociedade; ou as ingênuas declarações do Mestre — A grande empresa é hoje um organismo sadio e ético (Hilpert: 1983)
—; vemos aparecer, por trás do sistema monumental da city, os outros: os
trabalhadores braçais — industriais e
agrícolas —, ou os empregados das estruturas de serviços urbanos (Sassen:
1993). São os suburbanos e os mistos da Ville Contemporaine de 1922
(Le Corbusier 1924) e os habitantes da unidade
rural e da unidade industrial dos
Três Estabelecimentos Humanos (Le Corbusier: 1961). Ou seja, que seria injusto
condenar Le Corbusier pela paternidade das abstratas estruturas arquitetõnicas
das atuais empresas transnacionais, quando também teve consciência de que
existiam os marginais — realidade
inegável que podia ser questionada ou não —, seres humanos com direito a uma
moradia, a um lugar de trabalho, à qualidade estética do ambiente vital. E
podemos acompanhar ao longo de sua Oeuvre Complète como projetou
persistentemente para trabalhadores e camponeses, como lutou pelo desejado
emprego das potencialidades industriais para a construção de moradias em serie,
sem negar a alternativa da autoconstrução
nas casas Monol com teto de amianto e Murondis de madeira e adobe (Jardot:
1960). Nos projetos dos Centros Cooperativos Rurais ou na Fábrica Verde,
imaginava que as tarefas mais humildes realizadas no espaço suburbano, também
mereciam a atenção do projetista. Ou seja, por um lado, era consciente dos
cruéis mecanismos que manipulavam as reluzentes torres de escritórios: o centro das cidades é o capital
intensamente ativo sobre o qual joga a bolsa desenfreada da especulação privada
(Le Corbusier: 1962). Por outro lado, assumia a necessidade de atender a
indigência e a penúria das zonas subdesenvolvidas, que também incluía o homem nômade — ainda não se havia definido a no-mantologia da cultura urbana
contemporânea (Vidler: 1993) —. Figura que começava a aparecer nas cidades tentaculares (Le Corbusier:
1955).
Brasília:
o refluxo das margens
Esse complexo e denso
aspecto do ensinamento de Le Corbusier não foi integrado ao projeto de
Brasília, Primou a racionalidade sobre a subjetividade; o império da ordem longínqua sobre a flexibilidade da ordem
próxima. Apesar das posições
políticas progressistas — tanto de Oscar Niemeyer como de Lúcio Costa —, nos
testemunhos sobre a capital, depois da ditadura, se ignora a presença de mais
de dois milhões de habitantes nas Cidades Satélites, nas hipotéticas
intervenções futuras (Niemeyer: 1993; Costa: 1995). A um terço de século de sua
fundação — quase um instante na vida de urna urbe —, a imagem predominante
segue identificada com o Plano Piloto, paradigma urbano da Primeira
Modernidade, hoje um duvidoso modelo da metrópole do século XXI. Daí que a
imagem futurista se converteu em pura
arqueologia: em 1987 a UNESCO declara Brasília Patrimônio Cultural da Humanidade, somando-se aos monumentos
milenares do planeta. De nascimento quase prematuro, o centro simbólico de
repente passa a ser história. congelada,
antagônica ao latejar da Living City
de Frank Wright, ou à diversidade criada por Le Corbusier nos Três Estabelecimentos
Humanos. Do nada, do vazio de um território deserto pretende-se configurar a
complexidade da vida urbana na monumen-talidade da Acrópole. Contradição
impossível de ser contida dentro dos limites da Gute Form -- recordando a Max
Bill -- cujo estalido a transformou, de símbolo do Movimento Moderno em
materialização concreta da pós-modernidade urbana, forjada no incontrolado
crescimento cotidiano da infinita suburbanidade (Rabinow: 1992). Consumou-se a
vingança de Montezuma: da terra ancestral brota uma realidade alheia a ideais e
modelos vinculados com longínquas metrópoles.
Que fatores produziram
as profundas mudanças responsáveis pela crise dos valores originais? Os limites
do Plano Piloto só incluem a vida de 400.000 habitantes, enquanto 1.3 milhões
se assentam nas áreas periféricas. Os símbolos arquitetônicos da centralidade
ficaram reduzidos a distante mensagem política — decaída e desprestigiada na
recente história do Brasil —, isolados e opostos a toda significação polissênica.
O centro em termos econômicos e
sociais se deslocou para os núcleos satélites de maior vitalidade: Taguatinga,
Ceilândia e Gama. Ou seja, expandida uma estrutura urbana descontínua, o tema
atual é resgate e definição das bordas e das fronteiras, mais que preservação
dos espaços monumentais. Frente à ditadura
do projeto do Plano Piloto, as cidades satélites se caracterizam pela
precariedade dos controles formais. Em oposição à coerência dos hipotéticos
interesses coletivos predomina a arbitrária ação individual. Tanto no Plano
Piloto como nas bordas, a gráfica publicitária e as transformações dos usuários
nas moradias isoladas, recuperam a historia do kitsch vernacular, que encheu a
cidade de balaustradas clássicas, tetos alpinos, pedras milenares e grades
islâmicas. A desordem da vida se sobrepôs à ordem abstrata das geografias mentais (Paviani: 1995).
Os antagonismos do
entorno refletem a realidade social e econômica reinante: no Plano Piloto, a
renda per capita é a mais alta do país — 4.000 US$ — nos núcleos periféricos
vivem 320 mil pessoas carentes de abastecimento de água e 610 mil sem esgoto. O
sistema de transporte representa um quadro semelhante: a metade da população do
Plano Piloto utiliza o automóvel em curtos percursos — 600 mil unidades que
saturam a circulação fluida das autopistas — até o centro administrativo,
enquanto 75% dos habitantes suburbanos consome largas horas de sua vida em
velhos, precários e custosos ônibus para chegar às atividades terciárias e
manuais. Face a dureza do sustento diário — que reproduz as condições reinantes
nas cidades tradicionais do Brasil as massas desprovidas buscaram o alívio
desejado na religião. A racionalidade do traçado contém centenas de messiânicas
igrejas das mais distintas seitas e credos, que abrigam um misticismo
universalista à espera da salvação nessas terras, uma vez findo o iminente
Dilúvio Universal.
Menos pessimista foi o
ex-governador do Distrito Federal, Cristóvam Buarque, ex-Reitor da
Universidade, que, ao formular o plano de ação do governo até o ano 2.000,
afirmou: Nosso compromisso é de
reinaugurar Brasília. Reinaugurá-Ia no sentido de criar uma resposta ao desafio
de nosso tempo, como o fizera então Juscelino Kubitschek. Naquela época, o
grande desafio era a integração nacional, e Juscelino criou Brasília. Hoje,
nosso grande desafio é combater a segregação social e criar o processo de
integração social para alcançar um desenvolvimento sustentável e solidário
(Buarque: 1995). Face a primazia dos problemas comunitários, a complexidade das
relações humanas tomaram a dianteira sobre a simplicidade da forma. As
iniciativas imediatas que propõem as autoridades municipais são as seguintes:
a) melhorar as precárias condições de vida e de trabalho dos 1.4 milhões de
habitantes que residem nas cidades satélites; b) reformular os princípios clo
projeto incontaminado de Lúcio Costa
e Oscar Niemeyer para o Plano Piloto e superar os erros detectados na
quotidianidade de trinta e cinco anos de prática comunitária; c) reorganizar o
sistema circulatório e criar os inexistentes elementos direcionais de
orientação do espaço urbano; cl) fortalecer os precários sítios públicos de
vida social; e) adensar as áreas habitacionais; ocupar as terras de ninguém e os terrenos vazios, polos diferenciados de
nucleamento populacional, tal como os imaginava Le Corbusier na proposta do
Ascoral (Le Corbusier: 1959). Naquele então afirmava: "A arquitetura moderna integrar-se-á ao solo e à cultura de cada
país. Esse é o destino e a condição das obras. Haverá grande diversidade posto
que os materiais são diversos, a luz é distinta. em cada lugar, os terrenos são
planos, com montes ou montanhas, e as mentes dos homens também são distintas. E
será urna variedade na unidade" (Le Corbusier: 1972).
Esses são os desafios
do século XXI para uma cidade nascida como o símbolo do reencontro social e
econômico brasileiro, convertida segundo Nicmeyer na cidade mais discriminadora deste país; tão discriminadora que os que
a construíram não puderam habitar nela (Niemeyer: 1985). Finalmente, o
mundo apolíneo das formas e a monumentalidade dos espaços têm levado definitivamente
a crises. Mais que Brasília, na América do Sul resulta hoje Curitiba, um modelo
de integração entre projeto, sociedade e quotidianidade. Não são as cinzas da
Modernidade e da ética da solidariedade comunitária. Voltando a Le Corbusier,
seu ensinamento não perdura na lírica precisão das formas, mas em seu apego à
existência humana e à busca de um equilíbrio social, conseguido através da
integração de grupos distintos, sem repressão nem coação: "O sonho só se apoia
sobre realidades essenciais. A poesia só procede ante feitos exatos. O lirismo
só tem asas sobre a verdade. Só o genuíno nos comove..! A vida! A vida!, apreciamos seu brilho
mediante um profundo aprofundamento até a essência das coisas" (Le
Corbusier: 1924; 1962).
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