sábado, 23 de março de 2013

A CIDADE DO CAPITAL – Parte III.



Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação, trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal. De sua autoria neste blog: GRAMSCI E A PRODUÇÃO DAS CATEGORIAS DO CONHECIMENTO.


Como os capitalistas sabem de cor que o provérbio popular o rio só corre para o mar não é um ditado à-toa, eles jamais remarão contra o curso que leva à cidade grande. 

Mas esse efeito de como opera a lei do valor no seu rebatimento espacial também resulta de um outro fato simples, reiteradamente explicado por Mészáros em praticamente todos os seus escritos (que verdades simples custam de ser compreendidas e aceitas, a História está repleta delas, desde pelo menos a descoberta científica da lei da gravidade por Newton): a incontrolabilidade do capital. 11 

É um fato tão simples, mas que até hoje não foi assimilado pelos urbanistas e planejadores regionais; os que, sinceramente, ainda creem, ah imo pectore, em Caipora e Mula de Sete Cabeças, e por isso pretendem ainda reverter essas duras constatações pela via do planejamento.

Com efeito, o que está na origem dessas imensas, irrefreáveis, irreversíveis e encontroláveis desigualdades sociais e espaciais da produção capitalista, vale dizer, o mecanismo da produção e da reprodução do capital — hoje emperrado e a potencializar esses e outros resultados —, tem seu lócus preferencial e decisivo nas grandes cidades e respectivas regiões metropolitanas. Como os próprios capitalistas também não querem e nem podem inverter a tendência estrutural, as suas intervenções como pessoas do capital acabam potencializando os mesmos processos ao agir como capitalistas — numa palavra, potencializando as desigualdades sócio-espaciais existentes.

Quando, nos termos de uma crise estrutural do capital, a taxa de lucro despenca e, por isso mesmo, já não pode ser recuperada mediante o expediente da concorrência, os capitais se valem, por meio do Estado e dos governos, de soluções políticas, como subsídios e incentivos fiscais, isenção de impostos, com os quais — aqui já atolados em terreno movediço altamente contraditório, incerto e precário — pretendem dar continuidade à reprodução ampliada do capital. Nos casos em que algum motivo relevante obriga a implantação de certos processos de extensão horizontal de uma ou de muitas unidades de produção distantes das grandes cidades, os subsídios e incentivos de crédito fácil e barato, renúncia fiscal, doação pura e simples de terrenos e outros componentes de capital fixo social são de uso cada vez mais frequentes, como medida de compensação às perdas resultantes das distâncias das regiões metropolitanas com suas economias de escala. O grande imbróglio está em que a crise crônica do capital torna inócuas todas essas modalidades de artifícios.

Mas, o que têm as cidades — nomeadamente as grandes, que, no comando de suas regiões metropolitanas, tais como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza, Recife no Brasil — a oferecer aos capitais que se deslocam para elas atraídas num movimento inexorável, irreversível e explosivamente contraditório?

Voltando à forma funcional do capital-dinheiro D — M (mp + ft) ...P ...M' D'. O capitalista A, por meio de fax, e-mail ou telefone, liga para os fornecedores fazendo as necessárias encomendas de máquinas, matérias-primas, etc. e recomenda seus prepostos a contratarem trabalhadores, em número e qualificação necessários, para dar inicio a um — ou mais de um, se não se trata de um iniciante no ramo — ciclo do capital D aplicado. Os fornecedores de M (mp), por sua vez, despacham, se possível no dia apalavrado, os componentes físicos encomendados, que seguem para a fábrica de A, em cujo recinto já devem estar presentes os trabalhadores contratados — estes lá chegaram, no prazo rigorosamente estipulado pelo patrão (abençoado de Deus!) e com a necessária disposição para cumprir ordens e produzir, em determinada jornada, intensidade de ritmo de trabalho e com um salário dado e concertado de antemão, deslocando-se de casa para a fábrica a pé, de bicicleta, de metrô ou de ônibus. Como já foi visto também mais acima, o tempo de circulação, que se estende do empenho da massa de dinheiro D ao momento em que a mercadoria encomendada, M (mp + ft), já está à disposição e apta para entrar em operação, tempo que deve diminuir a cada ciclo, a cada ano, vai depender do aperfeiçoamento dos meios de transporte e comunicação em geral, vale dizer, da melhoria das estradas de ferro, rodovias, telefonia etc. Uma vez dispostos diante das máquinas, tem inicio o processo de produção propriamente dito, P, tempo precioso que deve também ser reduzido ao máximo, devido ao aumento da produtividade do trabalho, eliminando todos os poros de ócio, de desconcentração por parte do trabalhador, vindo à luz do dia o milagre da mais-valia.

Em seguida, a massa de mercadorias produzidas, M', em estoque ou no pátio de expedição, deverá ganhar os rumos da circulação-venda, do comércio, portanto, onde vai ser metamorfoseada em D', valor finalmente valorizado. A massa de mercadorias prontas para entregas deverá ser transportada pelas mesmas vias em que chegaram as matérias-primas, de modo que a diminuição do tempo de circulação-venda vai depender, à partida, dos mesmos fatores que atuaram na circulação-compra. Mas é exatamente a partir desse momento que entra em cena um dos papéis mais decisivos da (grande) cidade no processo de circulação do capital — especificamente no do encurtamento do tempo de rotação do capital, por intermédio do encurtamento do processo e tempo de circulação simples que o capital cumpre como momento final de cada ciclo de seu processo de circulação. De todos os componentes do capital fixo, que devem ser renovados, enxugados, criados ou adaptados, à base de tecnologias que imprimem velocidade na circulação-venda das mercadorias expelidas do processo de circu-lação do capital, o destaque maior, do ponto de vista das funções que a cidade recebe das determinações do capital, deve caber aos modernos equipamentos de comercialização, representados pelas grandes lojas de departamentos, supermercados e shopping centers.

O capital realiza suas mercadorias por meio de uma vasta cadeia de comércio, parte dela para as vendas no atacado, parte para as vendas no varejo. Entre todas, um particular destaque deve ser dado às estruturas e aos equipamentos que distribuem as mercadorias combinando novos meios de circulação com os grandes equipamentos comerciais aptos para as operações de venda em questão. As grandes lojas de departamento — do tipo Pão-de-Açúcar, Casas Bahia, entre outras — acabaram assumindo as características de supermercados e/ou de shopping centers, de modo que, na prática, as grandes estruturas de comércio pelas quais o capital lança suas mercadorias no mercado consumidor em geral, podem ser sintetizadas em duas formas básicas: a forma-supermercado e a forma--shopping center. Essas imensas formas que o capital adotou para atuar no extremo do seu processo de circulação, ou seja, nas operações que recebem as mercadorias M' diretamente das fábricas para as transformarem em D', valor valorizado em D — M... P ...M' — D; acabaram por se impor como formas hegemônicas; na verdade, formas oligopolistas que abrem espaço por entre as numerosas e dispersas lojas e casas comerciais tradicionais, as quais, por não poder suportar a concorrência com os gigantescos supermercados e shopping centers, entraram num longo, sistemático e regular pro-cesso de decadência sem retorno. Dir-se-ia que, da mesma maneira — por conta da concorrência —, as lojas e casas de comércio suplantaram, no passado, os tropeiros e mascates, e, hoje as formas novas de comércio tendem a eliminar as lojas e casas de comércio, até porque as formas supermercado e shopping center estão inva-dindo as cidades interioranas, última trincheira de resistência das lojas, casas de comércio e feiras-livres, todas elas sofrendo duros golpes desferidos pelas novas formas do capital comercial.

As vantagens das novas formas de comércio sobre as antigas são evidentes e se colocam, simultaneamente, para capitalistas e consumidores. Do ponto de vista dos produtores industriais de mercadorias, ou, o que dá na mesma, dos que veem nelas meros valores de troca a serem realizados no mercado, as vantagens são mais do que evidentes. Uma delas consiste na entrega concentrada de massas de mercadorias aos supermercados e shopping centers, resultando em economia de custos e de tempo de circulação, ao invés de as entregarem a milhares de pequenas lojas, mercearias, padarias, farmácias, entre outras formas tradicionais, dispersas por todas as, áreas de comércio das cidades e mesmo por toda a cidade. É obvio que a entrega de massas concentradas de produtos a uns poucos equipamentos de comercialização, ao invés da entrega necessariamente dispersa dessas massas de produtos a milhares de pequenas casas comerciais, se traduz em economia de tempo e de custos com a circulação no extremo M' — D'. Além disso, as modernas formas oligopolistas ou monopolistas de comercialização desenvolveram métodos e estratégias de vendas muito mais eficazes do que as for-mas tradicionais acima mencionadas. Os grandes equipamentos são formas especializadas de comércio, capazes de efetuar vendas com mais eficácia e rapidez, tornando-se, por isso mesmo, formas que economizam tempos e custos de circulação-venda; portanto, também, dos tempos de rotação dos mais variados processos de circu-lação do capital que as mais diversas espécies de mercadoria que devem escoar das suas prateleiras para o consumo pressupõem.

Do ponto de vista dos próprios capitalistas proprietários dos supermercados e shopping centers, a concentração das vendas de inúmeros produtos traz economias de escala que vão repercutir nas massas e taxas de lucro, portanto, também, indiretamente, das massas e taxas de lucro das variadas empresas produtoras de cuja mais-valia resultam os lucros do comércio.

Também do ponto de vista dos consumidores, as formas supermercado e shopping cen ter trazem vantagens, na medida em que as pessoas, que se deslocam aos referidos equipamentos para fazer compras, encontram ali acesso fácil e rápido a praticamente todos os tipos de valores de uso de que necessitam. Num raio de apenas algumas centenas de metros de deambulações por ambientes, onde desfrutam do conforto do ar condicionado, esses consumidores podem dispor de agências bancárias para poder fazer depósitos e saques, farmácias, lojas de departamento, livrarias, butiques, restaurantes, lanchonetes, joalherias e cinemas; sem contar que, nas formas em tela, vão poder encontrar carros, pneus, motos e bicicletas, passando pelos mais variados produtos alimentares até chegar a produtos que há pouco tempo eram de exclusividade dos peque-nos vendedores de rua e de portões de parques e estádios de futebol — como os famosos roletes de cana, pastéis e churrasquinhos de gato —, roubando-lhes essas fatias residuais de mercado, numa demonstração cabal de que não estão para brincadeira.

Quando não estão em compras, o espaço fetichizado ao extremo é mais do que uni motivo para o footing de crianças, jovens, adultos e, mesmo, de idosos, simplesmente para gozar do fascínio das vitrines ou do convívio nas praças de alimentação, tão a gosto dos glutões sempre dispostos a consumir todo tipo de futilidades. Dá para notar que se está diante de uma outra modalidade de golpe que a pós-moderna cidade do capital desferiu nos que ainda insistem em crer em chavões alienantes como cidadania, na medida em que o espaço público das cidades, representado antes pelos seus centros urbanos, nos quais as pessoas podiam ainda circular sem pagar pedágio, estacionamento privado etc., foi deslocado para os shopping centers, cuja dita "liberdade cidadã" se resume a circular por entre vitrines e densa propaganda comercial, deambulação forçada, programada por habilidosos profissionais da publicidade, que inclui um controle e uma vigilância sutis que recaem sobre os idiotas-cidadãos.

Mas, como o capital, no seu movimento sem freios, não se detém para examinar suas vitimas, ou, melhor ainda, para avaliar a dimensão do estrago que ele causa a si próprio, pouco se lhe dá se o fogo amigo que dispara contra tudo o que tenta lhe barrar os passos, encontra, entre as novas vítimas, alguns desses grandes equipamentos comerciais, os quais terminam por medir forças com formas de comercialização ainda mais enxutas — e aqui está-se falando do uso da internet, que, como é fácil de percebei; pode, efetivamente, realizar as operações de circulação em tempo mais rápido e a custos mais reduzidos do que as grandes superfícies comerciais.

Das parcelas do D' realizadas nos inumeráveis ciclos D — M P M' — D' ocorridos nas regiões e cidades interioranas, parte delas volta — depois de depositada, por algum tempo, nas agências bancárias da cidade que a realizaram — para a reposição do ciclo, dessa vez como D, valor acrescido disposto e apto a funcionar novamente como capital-dinheiro na mesma função produtiva. Mas, uma outra parcela, sobretudo se o capital que a realizou tem sede fora do local no qual foi gerada, flui para o local no qual a demanda por crédito e a remuneração do capital são maiores. Nessa bifurcação do destino dos fluxos do capital monetário reside uma evasão de valor e de mais-valia das cidades e regiões interioranas para a cidade maior — a metrópole. Portanto, a cidade do capital drena para si e, por conseguinte, para o capital, uma massa de dinheiro e capital-dinheiro em parte originária dos ciclos de reprodução que se realizam no seu próprio espaço, noutra parte originária de ciclos de reprodução realizados nas regiões e cidades que se encontram na sua área de influência. Tal massa de dinheiro, representada pelos depósitos bancários acumulados nas agências bancárias da grande cidade, vai estar disponível, pela via do crédito, tanto para consumidores como para aplicadores; e aqui, neste segundo caso, duas vezes como capital-dinheiro: uma vez nas mãos dos bancos, para os quais vai render lucros originados dos juros derivados dos empréstimos feitos a consumidores e aplicadores, em operações do tipo D — D', outra vez nas mãos dos capitalistas que vão aplicá-la nas operações tipo D — M P M' — D'. No ato pelo qual o dinheiro — proveniente, via depósitos bancários, das regiões e cidades que se encontram sob a influência mais ou menos direta da grande cidade — flui, sob a forma monetária, para a grande cidade, encontra-se um dos mecanismos pelos quais as cidades que recebem tais massas monetárias funcionam como uma verdadeira puissance a servi-ço da centralização de capitais e de reforço da própria cidade. Assim, para ilustrar com um exemplo contundente, a rede bancária de Salvador, uma apenas das cerca de 400 cidades do Estado da Bahia, concentra cerca de 86% da totalidade de depósitos bancários em todo o Estado.

Poder-se-ia prosseguir apresentando e analisando outros mecanismos pelos quais a cidade se faz, se reproduz e se consolida como cidade do capital, tais como a existência de unidades prestadoras de serviços de manutenção e reparo, agenciamento de força de trabalho, segurança, transportes e fornecimento de alimentos, bombeiros e pronto socorro, um sempre disponível exército de reserva de trabalhadores, entre muitos outros. Como o autor está convencido de que os exemplos analisados acima são suficientes para embasar a sua concepção de cidade do capital, deixará de lado as análises desses outros aspectos para avançar com a inspeção dos papéis das cidades por outros ângulos de abordagem.

Aos poucos, essas diversas formas comerciais, os equipamentos de capital fixo social, os resorts e apartamentos de luxo ostensivo (residências de novos-ricos, que albergam desde empresários a artistas e estrelas do futebol e da TV), edifícios e instalações de uso conexo (escritórios de empresas, restaurantes, hotéis de todas as estrelas), uma insuportável exposição de outdoors, tudo isso combinado com um urbanismo e uma arquitetura de gosto abominável, vão configurando o aspecto (pós)-moderno da cidade, aquele por meio do qual o capital cuida de imprimir a sua fisionomia na totalidade do tecido urbano. A cidade é, ela própria, o fetiche, maior e mais pleno, porque continente de todas as formas sociais de fetiche; ela, e todas as partes acima citadas, tornam-se opacas aos que nela vivem um cotidiano alienado e alienante.

Mas esse é apenas um lado da coisa. Convém voltar ao ponto de apoio inicial — a forma funcional do capital que melhor expressa o processo de circulação do capital: D — M P M' — D'. Viu-se mais acima — com as palavras do próprio Marx — como esse processo de circulação do capital avança do ponto de vista do capital. Assim, foi visto que o ”principal meio de redução do tempo de produção é a elevação da produtividade do trabalho [...V' e que o principal meio para reduzir o tempo de circulação é o aperfeiçoamento das comunicações. Também foi visto que a elevação da produtividade do trabalho resulta da adoção de capital fixo cada vez mais aperfeiçoado, e que é basicamente, também, pela melhoria da técnica que os meios de comunicação são igualmente aperfeiçoados. No caso da produção, na qual o capital fixo joga o mais importante papel, qual seja, a elevação do padrão técnico, traz consigo um resultado adverso, a queda tendencial da taxa de lucro, por conta da elevação da composição orgânica do capital — processo que, no limite, e, evidentemente, depois de passar por todo um conjunto complexo de mediações, vai desaguar nas crises de superprodução da ordem do capital. À medida que a composição orgânica do capital avança, ela provoca a substituição do trabalho vivo por trabalho morto, o que quer dizer que há uma recorrente tendência ao desemprego. Até a década de 1970, o desemprego só não se tornava crônico e socialmente explicito quando a mais-valia expropriada encontrava ca-minhos que permitiam a abertura de novas frentes de acumulação ensejando uma compensação.Marx demonstrou que, ao contrário do que afirmavam alguns economistas burgueses, o capital liberado pela substituição de trabalhadores por máquinas não podia reverter; quando reaplicado, por efeito de uma suposta compensação, o quadro de desemprego criado com referido deslocamento de trabalhadores por máquinas.12

Assim, o desemprego de trabalhadores de uma determinada linha de produção, por conta da elevação da composição orgânica do capital, só poderia ser compensado pelo emprego resultante de novos investimentos feitos a partir da massa total de mais-valia, somada, naturalmente, com recursos adicionais de crédito, massa de valor-dinheiro convertida em capital no conjunto da economia. Mas nada disso acontece sempre, ou seja, não se dá como um processo continuado. Com efeito, a partir de certo estágio desse processo, circunstâncias adversas, inerentes ao funcionamento do mesmo mecanismo de reprodução do capital, colocam-se como um bloqueio à própria acumulação — de um lado a taxa de lucro, ao se colocar como insuficiente para levar adiante o montante de trabalho morto acumulado; de outro, a acumulação atingindo um nível que vai ultrapassar o nível da demanda social, a qual também foi corroída por efeito do rebaixamento dos salários etc.

É evidente que tal descrição da crise do capital está resumidíssima, mas não de modo a que não se possa pôr em evidência em que medida a crise atual do capital, olhada pelo ângulo da taxa de lucro e do mercado, difere das crises precedentes. Assim é que, a partir dos anos 1970, as circunstâncias estruturais da produção capitalista passaram a bloquear as possibilidades de retomada de um ciclo de reprodução ampliada do capital à escala planetária. A compensação, que nas novas frentes de acumulação estavam presentes nas fases de ascensão dos ciclos anteriores, deixou de existir, disso re-sultando uma onda de desemprego tão grande que o anterior exército industrial de reserva transformou-se em desemprego crônico e estrutural. Do lado da circulação, a melhoria das comunicações e dos transportes também ocorreu, e segue ocorrendo à base de intensas inovações tecnológicas, acompanhadas pelo que os sociólogos costumam chamar de precarização do trabalho, de tal maneira que uma horda de desempregados e de empregados sem carteira também emergiu do solo capitalista ampliando o enorme contingente estrutural de mal e de não remunerados. Entra-se na era do também chamado mercado informal. É a partir desse fato que surgem e ganham corpo as assim chamadas estratégias de sobrevivência praticadas, cada uma a seu modo. por trabalhadores autônomos, camelôs, traficantes de drogas e toda uma esfera novíssima, que inclui os sem (sem-terras, sem-teto), os promotores dos arrastões e os demais desempregados do campo e da cidade.

Parece que existe mais um ângulo de abordagem que pode proporcionar melhor entendimento a respeito da questão da tensão emprego/desemprego que tem palco privilegiado nas cidades. Por conseguinte, parece também que se tem de voltar à forma D — M P M' — D' com vistas a esclarecer essa questão. Para ilustrar; parta-se do capital individual, agora com números expressando valores. Seja 80D — 80M... P 100M' — 100D', numa situação de inexistência de capacidade ociosa. O leitor haverá de concordar que, numa tal situação, a capacidade de produção, em P, é que se configura como variável independente, de tal maneira que, se, com todas as demais variáveis constantes (composição orgânica do capital, produtividade, salários, preços etc,.), a capacidade instalada em P é de produzir 100M (em cuja composição de valor acaba de entrar 20 de mais-valia), as proporções de D e M não podem, em tese, ser dadas de modo arbitrário, nem para mais, nem para menos. Se, para produzir 100M', é suficiente o consumo de 60mp + 20ft, e se, para a compra de mp e ft, são suficientes 80D, então de nada adianta ao aplicador empatar 90 em M, (60mp + 30ft), porque, se o fizer, estará desperdiçando capital-monetário e meios de produção — e super-dimensionando o capital produtivo, com 90M, quando seria necessário apenas 80M para a produção de 100M'; uma parcela de 10M deverá estar sobrando, isto é, permanecerá em regime de capacidade ociosa. Tampouco faz sentido aplicar apenas 70M (55mp + 15ft), porque, se fizer tal aplicação, o seu capital produtivo instalado vai operar abaixo do necessário e o capitalista estará impossibilitado de suprir uma demanda de 100M'.

Neste ponto, pode-se arriscar uma conclusão geral, a saber: partindo dos mesmos pressupostos fixados logo acima, tem-se que, para um determinada grandeza do produto-valor, deve corresponder uma determinada compra/soma de meios de produção e de força de trabalho. Se os aportes de capital-monetário (D) e de meios de produção (M) se colocarem acima dos níveis necessários, estará havendo desperdício de capital-monetário e de meios de produção. Inversamente, se os aportes de capital-monetário e de meios de produção se colocarem abaixo dos níveis necessários, estará havendo capa-cidade instalada abaixo do nível de produção realizável. Por outro lado, se a demanda social solvável de meios de consumo (produtivo e improdutivo) é de 100D e a estrutura de comércio instalada para a distribuição de referidos meios de consumo está apta para realizar; por exemplo, 120M', é óbvio que, com a capacidade de comércio instalada, estando superdimensionada, então duas ordens de fatos poderão acontecer: a) uma parcela dos pequenos comerciantes ficaria, em tese, fora de combate, ou seja, seria eliminada do mercado pelas estruturas de comércio dominantes; b) persistindo estruturas de comércio de diferentes portes funcionando, todas elas, as maiores menos, as menores mais, estariam operando aquém de suas respectivas capacidades de operação. Significa que, na medida em que ocorre, por conta da pressão do desemprego, o inchamento das atividades de comércio para além do nível adequado ao escoamento da produção vendável, as estruturas comerciais sobrantes teriam ganhos crescentemente marginais, tendendo a zero. Nesse caso, que é, com certeza, o que ocorre em muitos países que albergam parcelas relativamente grandes do desemprego estrutural — ocorrência é típica de cidades como as brasileiras —, as parcelas do comércio superdi-mensionado estarão representadas basicamente por quantidades crescentes de pequenas lojas, mercearias, vendas, a caminho do sucateamento iminente, e por hordas crescentes de indivíduos que formam o chamado mercado informal, aquele constituído por ca-melôs, ambulantes etc., que operam com margens de lucro comercial tendendo a zero. Essas formas de comércio, que se caracterizam por unidades acionadas por indivíduos — camelôs e pequenos vendedores (ambulantes) de produtos, em parte oriundos da economia formal legítima ou legal, em parte de produtos piratas, que atuam nas esquinas, nas imediações de restaurantes, nas portas dos estádios de futebol etc. —, chegam a ocupar grandes parcelas do espaço urbano das cidades, constituindo-se nas já famosas feiras-guais. É frequente que tais formas de comércio ocupem, em alguns casos, cidades inteiras, vendendo desde confecções, CDs e DVDs, rádios de pilhas, relógios etc., em parte oriundas da indústria formal-legal, em parte de fabricos informais-ilegais, em todo caso tratando-se de formas nas quais vão desaguar os desempregados e aquilo a que os sociólogos caracterizam como trabalhadores precarizados.

São, basicamente, essas camadas do proletariado e de amplos segmentos de uma população literalmente sucateada que vão, por sua vez, por meio de suas específicas formas urbanas (bairros proletários, pardieiros, palafitas, tugúrios, ocupações em encostas, moradias debaixo de pontes e viadutos, favelas), imprimir a sua fisionomia — algumas vezes no interior, outras tantas na configuração moderna impressa pelo capital —, numa evidente relação de antagonismo de explosível potencialidade, que se antecipa como um aviso ou recado, a quem interessar possa, a desfechos iminentes.

Esta é, concretamente, a cidade do capital: versão urbana da anarquia da ordem capitalista do capital; versão urbana da incontrolabilidade do capital; sítio inevitável da alocação do capital; espaço das economias de escala e de toda ordem de equipamentos que estão na base das desigualdades regionais inerentes à ordem do capital; cidade fetiche; manifestação fisionômica da profunda e crescente clivagem de interesses, posições e luta de classes; parte de um ser social que, ao contrário do que normalmente pensa a maioria dos sociólogos, economistas, engenheiros, urbanistas e arquitetos, não é mera justaposição ou articulação de espaços, desenhos e traçados arquitetônicos em cima de uma sociabilidade abstrata e idealizada, mas peça viva dotada de eficazes meios, papéis e contradições, no complexo mecanismo e movimento da reprodução do capital e da específica e inconfundível sociabilidade que a ela corresponde. É isso a cidade do capital.
  

N o t a s :

11 - Mészáros, Istvan, Para Além do Capital. São Paulo: Editora da Unicamp/Boitempo Editorial, 2002.

12 - 38 Marx, Karl - "Maquinaria e grande indústria', O Capital, Volume I, Tomo 2, Cap XIII, São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 54.


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