sábado, 23 de março de 2013

A CIDADE DO CAPITAL – Parte II.




Edmilson Carvalho - Arquiteto de formação, trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política. Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal. De sua autoria neste blog: GRAMSCI E A PRODUÇÃO DAS CATEGORIAS DO CONHECIMENTO.


Se a cidade é a cidade do capital e se ela, por ser isso, é também o espaço mais densamente povoado por pessoas — distribuídas em classes sociais —, equipamentos, relações pessoais e, acima de tudo, relações sociais, instituições de poder e, para abreviar, luta de classes, então, ela deve assumir todas as contradições que afloram do modo como a socialidade é ontologicamente constituída, desde as que moldam o caos urbano, às que eclodem nos estágios mais agudos do confronto de classes, numa palavra, nas insurreições. Assim são constituídas as cidades, tanto as que já nasceram no tempo de existência da ordem do capital, como as que nasceram em formações pré-capitalistas e que foram resgatadas pelo capital
.
Esse ato de resgate, na verdade um ato de apropriação da cidade pelo capital, que dela se apodera obrigando-a a subsumir-se à sua legalidade, existe mesmo quando a cidade é cabalmente planejada.

É exatamente o caso de Brasília. O analista desatento avalia que Brasília foi concebida mediante um ato de generosidade de um Presidente impetuoso 4  e de um par de homens de gênio, munidos de uma ideia justa, que foi desvirtuada por políticos incompetentes empreiteiros gananciosos. Nada a obstar em que Lúcio Costa e Oscar Niemayer terem sido homens generosos e de gênio ou que os políticos sejam corruptos e os empreiteiros, gananciosos. Porém, tentar entender as coisas dessa maneira em nada ajuda na compreensão das mesmas, porque, dicho sea de paso, o motivo da construção da chamada Novacap no Planalto Central é o mesmo que tomou a ingênua concepção urbanística da nossa mais famosa dupla de arquitetos como justificativa ideológica para encobrir um movimento irrefreável que o capitalismo estava apto a realizar nos anos 1950-60.

É obvio que nem Lúcio Costa, nem Niemayer e nem, a rigor, o próprio Juscelino Kubitschek tinham uma visão nítida do que os motivava a construir uma cidade-utopia, porque as ideologias, nas formas como as que foram formuladas no caso em tela, emanam das necessidades cegas, postas pelo mecanismo de reprodução do próprio capital à escala social. Tais ideologias se desenvolvem, no cérebro de políticos, burocratas, artistas e intelectuais, em formas que, em boa parte, as assumem mais como impulsos do que como clarividências. E, no entanto, em cada traço urbanístico e/ou arquitetônico humanizado, saído da prancheta de Lúcio Costa e/ou Oscar Niemayer, espreitava um assédio das relações e forças sociais do capital aptas para explodi-lo e mandá-lo para o mundo dos sonhos.

No caso de Brasília, a questão decisiva relacionava-se ao fato de o capitalismo brasileiro, que nascera e que estava centrado basicamente no Centro-Sul, tornara-se apto — mais do que apto, exigente — para espacializar-se Brasil adentro, assim como um avião que, tendo percorrido a pista de voo inteira e alcançado a cabeceira da pista, precisa decolar, cumprir o take-off rostowiano. E como, àquela altura, as regiões mais imediatamente acessíveis eram o Nordeste e o Oeste brasileiros, as coisas deveriam ser arranjadas de modo apropriado para que o take-off acontecesse de tal maneira que as duas regiões pudessem ser incluídas como escalas — primeiras e prioritárias — no plano de voo do capital.

Quanto ao Nordeste, a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), com seus planos diretores, a ação conjugada SUDENE-BNB (Banco do Nordeste do Brasil), com o fundo e os artigos 34 e 18, e, depois Finor (Fundo de Investimento do Nordeste) constituíam as peças-chave para a descentralização horizontal do capital.

Já no que diz respeito à descentralização do capital no sentido do Oeste, Brasília apresentava-se como um instrumento de grande valia para que o Estado e o capital voltassem suas atenções para aquela região. Assim, Brasília não era a realidade sonhada por Lúcio Costa e Oscar Niemayer, mas, muito mais do que isso, uma exigência da reprodução ampliada do capital em curso no país. Aliás, dadas as circunstâncias do momento em questão, só existia uma maneira pela qual as relações de produção capitalistas podiam entrar na cidade — e essa maneira era internalizar-se dentro das formas desenhadas por Lúcio e Oscar. Assim é que por detrás e/ou por dentro de ruas, eixos, superquadras, edifícios desenhados pelos dois famosos arquitetos se espreitavam as disposições de dominação do capital.

Tanto num caso como no outro, Nordeste e Brasília, respectivamente, a justificação ideológica funcionou com um elevado grau de eficácia, até porque a economia brasileira, embalada pelo Plano de Metas, estava a pleno vapor e dava amplo aconchego ao confort ideológico — no caso do Nordeste, a velha falácia da correção estrutural das famosas desigualdades regionais e sociais da produção e da renda e, no de Brasília, no embalo do coroamento do Presidente Bossa Nova, o Presidente desenvolvimentista, o confort da concepção de romantismo ingênuo do Plano Piloto de Lúcio e da arrojada arquitetura escultural de Niemayer.5  

Que Brasília, envolta na ideologia, não tinha corno escapar da apropriação pelo capital — e ela era isso mais do que qualquer cidade no Brasil, e talvez no mundo todo —, essa era a única destinação que o capital poderia lhe dar. E, realmente, o processo de constituição ontologicamente caótica de cidade do capital não tardou a ter início, pois, tão logo o projeto começou a sair da prancheta (como uma monumental ideação que se pretendia teleológica para o futuro) para, agora em forma de concreto e asfalto, ser entregue ao uso público, teve início o desmonte da cidade-farsa do sonho e sonho da farsa, adequando--a estruturalmente ao padrão normal, mesmo respeitando todos os ritmos e todas as mediações que o referido processo de resgate teve de percorrer, dadas as condições e circunstâncias presentes na NOVACAP — até mesmo as derivadas dos sonhos dos urbanistas e arquitetos inicialmente objetivadas em concreto, asfalto e legis-lação específica.

À propósito, convém convocar o testemunho de uma abalizada autoridade no assunto, alguém que continua a crer no sonho de Lúcio e Oscar. Referimo-nos ao professor Frederico F. P. Barreto, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, que, num artigo — O Setor Noroeste e sua falácia de projeto ecológico — publicado em março de 2009, na Tribuna do Brasil, chama a atenção para uma intervenção típica dos interesses imobiliários, mancomunados com o governo, revelando um ato de apropriação da cidade pelo capital exatamente como está colocado aqui. Como se trata de uma intervenção típica de apropriação da cidade pelo capital e que, ademais, não é um ato isolado, vale a pena transcrever passagens do artigo do professor da UnB:

(...] O Setor Noroeste é, justificadamente, objeto de polêmica acerca de sua correção como projeto de expansão urbana do Plano Piloto de Brasília, entre outros aspectos de sua concepção - como a alegada característica de ser um inovador bairro verde, ecologicamente correto. A questão urbana envolvida é elementar: o Plano Piloto de Brasília não previa, de forma alguma, essa expansão formada pelos setores Noroeste e Sudoeste, reflexos dos espaços das Asas Norte e Sul, respectivamente 1..1 30 anos depois, em 1987, é o próprio Lúcio Costa que propõe esses dois novos bairros, dentro do Plano Piloto de Brasília, num singelo parágrafo, órfão de um só croqui de projeto urbano. [...] Pior, não havia, para a criação desses impactantes setores urbanos, a menor justificativa, seja urbanística, seja de serviços, seja habitacional, seja estética. [...] Os enormes volumes de trânsito de veículos (cerca de 40.000 veículos concentrados em um bolsão com poucas saídas), o impacto na infraestrutura de fornecimento de água potável e tratamento de esgotos, entre tantos outros aspectos, não eram considerados, de forma alguma.[...] Era um parágrafo estranho a toda a biografia e doutrina do grande urbanista, um inusitado parágrafo que tão-somente abria a exceção para a ocupação imobiliária de áreas preservadas. [...]

Não tenho a menor dúvida de que Lúcio Costa foi pressionado a escrever e assinar essa enormidade, que agrava seriamente o mais importante plano urbanístico brasileiro. [...] O Setor Sudoeste, que o antecede em uma década e meia, foi pro-jetado de forma ambientalmente agressiva, ocupando todos os espaços vazios disponíveis acima da Asa Sul e do Parque da Cidade, entre o Eixo Monumental e o Setor Octogonal. [...] O Setor Noroeste será ocupado em etapas, da mesma forma imobiliariamente exaustiva. [...] A alegação dos vendedores, de que será um "bairro verde", é falaciosa, pois: [...] o Setor Noroeste não é fruto de nenhuma análise ambiental que o coloque como forma de defesa do ambiente, ou de manejo claramente orientado para a preservação daquela enorme gleba; [...] trata-se de um empreendimento com um padrão comercial que é o ideal para os espertos empre-endedores imobiliários de Brasília, pois usa algumas das características do urbanismo de Lúcio Costa para promover um produto, uma mercadoria, de magna lucratividade. 6

Na denúncia acima transcrita vê-se claramente que, na intervenção perpetrada, há de tudo: não se trata de ato isolado, mas de uma tendência regular e sistemática (veja-se o que aconteceu com os demais setores da cidade), que ocorre para servir aos interesses comerciais do capital imobiliário; também o Governo do Distrito Federal deveria estar presente, na sua comunhão com o capital, para completar o kit padrão de todas intervenções no gênero. Não deixa de ser trágico que o destino escolhesse o próprio artífice de uma cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura das mais lúcidas do país, para mostrar de que substância são feitas as utopias imaginadas e/ou efetivamente construídas em território demarcado pelo capital.

Existe, finalmente, um aspecto que explica porque o processo de apropriação capitalista da cidade — vale dizer, do que se chama de Plano Piloto — não logrou fluir a uma velocidade maior e mais agressiva. O conjunto formado por Brasília e as 18 cidades-satélites possuía, em 2000, segundo o IBGE, 2.043.169 habitantes, dos quais cerca de 193.000, fixados no Plano Piloto. As 18 cidades-satélites, malgrado não fazer parte do Plano Piloto, constituem, junto com Brasília, urna só macrorregião, de cuja divisão social do trabalho foi-lhes conferido o perverso papel de servir de blindagem, na qualidade de sparring, absorvendo toda uma enxurrada de problemas sociais tão comuns em metrópoles como São Paulo, Rio de janeiro, Recife ou Salvador. Assim, cidades-satélites como Taguatinga, Gama, Sobradinho, Núcleo Bandeirante e Ceilândia, para citar apenas algumas de importância maior, entraram na totalidade Brasília, com uma população de mais de dois milhões de habitantes (em 2000), como espécies de dublês, que, no anonimato, levam todo tipo de pancada para que a estrela possa brilhar diante de um público que só tem acesso ao mundo das aparências. Não fosse o anteparo das cidades-satélites, ardilosamente colocadas como parachoques do lodo social — o submundo não revelado da Utopia Lúcio-Niemayer —, efeitos mais deletérios da apropriação de Brasília pelo capital recairiam direta e visivelmente sobre a paisagem social do Plano Piloto. Assim, enquanto a estrela ainda pode pousar com o seu característico glamour de cidade-vestal, as cidades--satélites são obrigadas, como se diz no jargão popular, a comer da banda podre, numa dureza na qual algumas se encontram entre as que ostentam situações muito pouco invejáveis de cidades entre as mais violentas do país.

Mas a constituição, a ordem, o devir e a sociabilidade da cidade do capital podem ainda ser vistos por um outro ângulo de análise, o das determinações do processo de circulação do capital. No Livro III de O Capital, Marx analisa o efeito da rotação do capital sobre a taxa de lucro nos seguintes termos:

[...] devido ao lapso de tempo requerido para a rotação, todo o capital não pode ser empregado ao mesmo tempo na produção; [...] portanto, parte do capital está continuamente em alqueive, seja na forma de capital monetário, de estoque de matéria-prima, de capital mercadoria pronto mas ainda não vendido ou de créditos não vencidos; [...] o capital que intervém na produção ativa, portanto na geração e apropriação da mais-valia, está continuamente diminuído dessa parte, e [...] a mais-valia produzida e apropriada está continuamente reduzida na mesma proporção.

 e que, portanto,

[...] quanto mais breve o tempo de rotação, tanto menor se torna essa parte em alqueive do capital, comparada com o todo; tanto maior se torna também, com as demais circunstâncias constantes, a mais-valia apropriada.7 

Como se sabe, no processo de circulação do capital, que é unidade de circulação e produção, o tempo de rotação do capital é composto de duas partes: o tempo de produção e o tempo de circulação. Como a taxa de lucro [...] só expressa a relação entre a massa produzida de mais-valia e o capital global engajado na sua produção, então é evidente que qualquer redução dessa espécie aumenta a taxa de lucro.8

Para esclarecer, seja o capital 80c + 20v + 20m, representado na forma de sua circulação como tal: D(100) — M(80mp+20ft) P M'(120) — D'(120), em que: a) o capital-dinheiro (D), 100, é aplicado na compra de mercadorias, (M), para consumo produtivo, 80 em meios de produção (mp), 20 em força de trabalho (ft); b) a massa de mais-valia (m), 20, produzida pelo trabalho vivo (ft) no momento da produção, P, vai ficar embutida no valor das mercadorias, M', produzidas durante esse ciclo; c) a soma de valor dos meios de produção (nip), 80, representa capital constante, c, e é valor [a ser] transferido para o valor das mercadorias, enquanto que a soma do valor da ft (20) com a mais-valia, m (20), constitui valor novo (40), adicionado pelo trabalho vivo, representado pelas despesas com o portador da força de trabalho, capital variável, v, e a mais-valia, m, que também vai compor o valor das mercadorias, M'(120); d) se M' (120) expressa o produto-valor, gerado no ciclo em questão, na forma de capital- mercadoria, o D' (120) expressa o mesmo valor de M', só que na forma de capital-dinheiro, D', que voltou valorizado do mercado para o capitalista, sendo que é finalmente nessa forma, a forma-dinheiro (valorizado), que ele está apto para reiniciar um novo ciclo que, nos termos de uma reprodução ampliada do capital, vai funcionar como capital ampliado de 120, e não mais de 100.

Na forma D(100) — M (100) ... P M'(120) — D'(120) tem-se dois momentos de circulação simples em que o valor não se altera: a circulação-compra, D(100), e a circulação-venda, (120), pois na circulação, a mais-valia não pode ser criada. No primeiro momento, a mais-valia ainda não comparece; no segundo, ela apenas aparece. Somente no momento da produção, P, é que a mais-valia é produzida. O ciclo que vai de D a D', no caso em questão, dura um tempo, o tempo de rotação, que é composto de dois tempos internos de circulação — o tempo de circulação-compra, D(100) —M(100) e o tempo de circulação-venda, M'(120) — D'(120) — e o tempo de produção (P). Se, para dar início a um ato de circulação do capital em questão, o capitalista gasta 15 dias para reunir, por meio de compras, os componentes físicos (mp) e os subjetivos (ft) e, logo a seguir, gasta mais 20 dias para a produção propriamente dita (P) e mais 25 dias para vender as mercadorias, então o tempo de rotação total desse ato de circulação do capital é de 15 + 20 + 25 dias = 60 dias. Logo a seguir, Marx chama a atenção para o fato de que o principal meio de redução do tempo de produção é a elevação da produtividade do trabalho [...] e, numa outra passagem mais adiante afirma que o principal meio para reduzir o tempo de circulação é o aperfeiçoamento das comunicações.9

Num outro ensaio presente no livro: A cidade do capital e outros estudos,  "A circulação econômica e a circulação física das mercadorias", por meio do conceito de chassi, explicita-se a espacialidade embutida na forma funcional do capital-dinheiro. Aqui limitamo-nos a mencionar que entre o capitalista que faz as encomendas dos meios de produção e os respectivos fornecedores de referidos meios de produção existem tempos e espaços a ser percorridos (por meio de telefone, internet, correio, transporte etc.) e que, entre o momento que as mercadorias, prontas para venda, e os locais de venda (mercado) das mesmas, existe também, de um lado, os mesmos meios de comunicação e, além desses, os equipamentos comerciais encarregados da venda das referidas mercadorias, com destaque para formas que não existiam no momento em que Engels dava redação final aos Livros II e III de O Capital — a referência é feita aos shopping centers e supermercados, formas que hoje jogam papel decisivo na economia de tempo e de custos de circulação.

Dando prosseguimento às investigações, sejam tomados, por comodidade, os mesmos capitais empregados corno exemplo por Marx, no mesmo capítulo em exame. Marx toma dois capitais, um de 80c + 20v + 20m, e outro de 160c + 40v + 40m, sendo que enquanto o primeiro capital rota duas vezes num ano, o segundo rota apenas uma vez no mesmo período. Nos dois casos, a mesma taxa de mais-valia (m/v = 100%) para massas de mais-valia distintas: no primeiro, 20m, no segundo, 40m. Vê-se claramente que, enquanto o segundo capital, com o dobro de valor em relação ao primeiro, realiza apenas urna rotação por ano, e que, por conseguinte, realiza uma massa de mais-valia de 40m no mesmo ano, o primeiro, a metade do valor do outro, faz duas rotações. Se, a cada vez que rota, o capital menor realiza 20m, com as duas rotações ele realizará 40m. Por outro lado, como se sabe também, a taxa de lucro não é calculada pela soma do capital rotado em um ano, mas pelo capital adiantado. Assim, a taxa de lucro (m/C) alcançada pelo capital menor é de 40%, ou seja, de 40 de mais-valia realizada com apenas 100 adiantados em capital constante (80) + capital variável (20), enquanto que a taxa de lucro alcançada pelo capital maior (200 = 160mp + 40ft) é de 40/200 = 20%. Daí resulta que [...] com capitais de igual composição percentual, com igual taxa de mais-valia e mesma jornada de trabalho, as taxas de lucro de dois capitais estão na razão inversa de seus tempos de rotação.10  Destarte, fica demonstrada a assertiva de Marx, vista no início do presente ensaio, de que qualquer redução dessa espécie, vale dizer, no tempo de rotação do capital, aumenta a taxa de lucro.

Feitas essas imprescindíveis observações preliminares, pode-se e deve-se voltar a vista para a cidade, que tem muito a ver com os sucessos examinados. Porém, torna-se necessário cumprir mais uma importante mediação para aportar, finalmente, às cidades. Sejam tomados, portanto, dois capitais gêmeos em tudo por tudo: mesmo porte, mesma composição orgânica, mesma massa e taxa de mais-valia, mesmo produto. A = B: 80c + 20v + 20m. Suponha-se que o capital A seja localizado na região metropolitana de São Paulo e que o capital B, por conta de algum motivo qualquer, seja instalado no município de Eirunepé, no Amazonas. Suponha-se também, como foi avisado, que os dois capitais se destinam a produzir um mesmo produto e que tanto a fonte de suprimentos de matérias-primas etc., como o mercado consumidor do referido produto seja a praça de São Paulo (espera-se que o paciente leitor compreenda que por detrás de exemplos tão extremados existe um princípio comum). Para concluir os pressupostos, suponha-se, afinal, que, enquanto o capital B, deslocado para os confins do Amazonas, necessita de 10 dias para buscar seus componentes em São Paulo, 20 dias para produzir, com eles, seus produtos e mais 10 dias para transporta-los para São Paulo, mercado preferencial dos referidos produtos, processo todo cumprido em exatos 40 dias, o capital A, gêmeo de B, porém instalado nas cercanias da região metropolitana de São Paulo, cumpra esses mesmos passos em apenas 20 dias. Sem delongas, fica claro que enquanto a empresa do patriota da floresta retira 20 de mais--valia o outro retira 40, ou seja, a taxa de lucro do capitalista amazonense é a metade da taxa de lucro do capitalista centro-sulista.

Vê-se, portanto, que, mantidas as demais circunstâncias constantes, a massa e a taxa de lucro variam na proporção inversa aos tempos de rotação do capital, ou, o que dá na mesma, a massa e a taxa de lucro aumentam com a redução do tempo de rotação do capital; viu-se também que o tempo de rotação do capital varia proporcionalmente aos tempos de produção, que depende da produtividade do trabalho e do tempo de circulação, que, por sua vez, depende também da produtividade do trabalho (técnicas empregadas nos meios de comunicação) e, em especial, do desempenho dos meios de transporte e comunicação em geral. Agora sim, mantidas as demais circunstâncias dos meios de transporte constantes, resulta óbvio que os tempos de circulação variam em função das distâncias entre as empresas capitalistas e suas fontes de suprimento e dos mercados nos quais elas vão realizar as suas mercadorias. Além do mais, as taxas de lucro das empresas capitalistas vão depender também dos custos de circulação que os deslocamentos atrás aludidos vão sofrer nos seus trajetos — custos de combustível, desgaste de caminhões, alimentação e descanso dos trabalhadores que operam com esses meios de transportes, entre outros. E assim chega-se à decisiva questão das distâncias, que é variável importante para o prosseguimento da presente análise.

Segue que os capitalistas precisam pensar — e como pensam! — na localização espacial de suas plantas industriais, e logo percebem que o locus preferencial para a implantação de suas unidades de produção é a cidade, mas não qualquer cidade; preferencialmente uma cidade grande, melhor que seja uma metrópole assentada numa região metropolitana que, além de lhes dar garantias no que se refere ao consumo de seus produtos, também lhes ofereça todo tipo de insumo, barato e no menor prazo possível, beneficiado com os ganhos advindos da proximidade, da escala e da aglomeração, características próprias das grandes regiões metropolitanas. Daí que, quanto mais estejam distantes desses aglomerados metropolitanos, maiores os tempos de rotação dos seus capitais, menores, portanto, suas massa e taxas de lucro. A partir do imperativo dessa inclinação estrutural, a tendência dos capitais de uma dada região é a de se implantarem no âmago mesmo das regiões metropolitanas. O adensamento do maior número de empresas capitalistas se dá pelo fato de que essas regiões, além de se constituir em fontes de suprimento de componentes físicos do capital constante e mer-cados consumidores dos produtos elaborados nelas próprias e nas regiões interioranas, mantêm, também, uma ponderável massa de economias de escala, que, ao receber mais e mais capitais, aumenta e dá mais consistência e coesão à massa de economias de aglomeração. Esta, no retorno, atrai mais capitais num regime de reprodução ampliada de capitais que aqui aparece, à vista desarmada do analista, na forma de um processo de anarquia urbana, formada de indústrias, habitações proletárias, favelas, conurbação etc. É esse, e nenhum outro, o fato que está na base dessa outra aberração da realidade capitalista, ou seja, o brutal crescimento, partindo das grandes cidades, das tremendas disparidades sociais e espaciais da produção e dos frutos (amargos, certamente!) da mesma.


N o t a s :

4 - Tudo aguardava a época certa e o homem certo. O homem que romperia o manto da fantasia, o homem que quebraria as amarras da utopia. Surgiria, tempestiva e compulsoriamente, a figura ímpar que o País consagraria como um dos seus vultos maiores: Juscelino Kubitschek. Ferraz, José Carlos de Figueiredo. Urbs Nostra. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1991. p. 392.

5 - Para se ter uma ideia da ingenuidade política de Lúcio Costa, basta tomar conhecimento de umas poucas passagens do famoso memorial com o qual justificava a sua proposta de plano urbanístico para Brasília. Numa dessas passagens, que se tornou célebre, o urbanista afirma, em linguagem poética, que não deixa de ter um sabor de um romantismo religioso, que a solução que ele propõe nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da Cruz. Em outra, ele vaticina para Brasília futuro radioso, de cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura das mais lúcidas do país. Que os ocupantes da Praça dos Três Poderes não tenham tomado consciência da candura do mestre Lúcio, para que, na expectativa de alguns intelectuais e/ou políticos, o exemplo partisse de casa, não chega a ser nenhuma novidade. Noutra passagem, o autor lembra que não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se. As estatísticas acerca dos acidentes de trânsito na própria Brasília que o digam! Veja-se mais esta: um adequado arranjo urbanístico e arquitetônico propicia, em certo grau, a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação. Mas, como do fundo do inconsciente de Lúcio ainda podia aflorar a sinalização de que a indesejável estratificação não era tão assim diferente da existência de classes sociais, e, certamente, de acordo com a máxima popular de que é melhor prevenir do que remediar, não custava nada prevenir, impedindo a enquistação de favelas tanto na periferia urbana quanto na rural. Toda a gente sabe muito bem com que métodos os poderes públicos impedem as indesejáveis enquistações de favelas.

6 - Barreto, Frederico F. R, O Setor Noroeste e sua falácia de 'projeto ecológico’ Brasília: Tribuna do Brasil, 2009.

7 - Marx, Karl: O CAPITAL Volume III Tomo I cap. IV São Paulo Abril-Cultural, 1984. P. 55.

8 -  Op. Cit. P. 55.

9 - Op. Cit. p. 55.

10 – OP. Cit. P. 56

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