sábado, 2 de fevereiro de 2013

ARQUITETURA E CINEMA BRASILEIRO

Reinaldo Guedes Machado

Teses universitárias e artigos jornalistas reconhecem e conceituam “arquitetura brasileira” e “cinema brasileiro” como entidades definidas e objeto de estudo delimitado.

A arquitetura bem ou mal a conhecemos nas escolas de arquitetura do país, é o nosso currículo. Mas porque haveria de interessar aos arquitetos conhecer o cinema? Porque falar de cinema brasileiro numa faculdade ou numa revista de arquitetura?

Em princípio porque ao arquiteto cabe buscar o conhecimento mais amplo possível da cultura na qual se insere. Conhecer os hábitos e compreender o pensamento dos que habitarão os seus projetos. O convívio e a observação direta ensina, mas a tecnologia amplia o alcance do olhar.

O cinema investiga intimidades e paisagens, registra a vida, o movimento dos corpos; e, quando manejado com talento, pode revelar os valores mais profundos dos indivíduos e da sociedade. Por isso interessa ao arquiteto que  pretende intervir nos condicionantes espaciais da vida coletiva.

Um interesse secundário, não menos importante, decorre de que o cinema documenta e reflete sobre a arquitetura.

 O cinema brasileiro desde suas origens nos últimos anos do século XIX utilizou como cenários ambiente reais, Só na década de 1940 a Cia. Vera Cruz estabeleceu estúdios de filmagem capaz de dispensar totalmente a filmagem em locações reais, tendo construído para o filme Tico tico no Fubá (Adolfo Celi, 1952) a primeira cidade cenográfica em terras brasileiras. A maioria dos nosso filmes porém foi feita em prédios e ruas realmente existentes, registrando assim paisagens naturais e constru-ções humanas como se encontravam na data da filmagem. Essa característica própria do cinema brasileiro, talvez decorrente de recursos financeiros limitados, tornou-se quase que um princípio ético durante o ciclo do Cinema Novo, engajado em docu-mentar o Brasil e refletir sobre suas condições sociais. Glauber Rocha assim registrou a Via Sacra de Monte Santo no Sertão baiano e o que restava do arraial de Canudos hoje inundado por uma das barragens do rio S. Francisco, em Deus e o Diabo na terra do sol; Luis Sergio Person, a indústria e o centro de São Paulo em São Paulo Sociedade Anônima, (1965); e Cacá Diegues, o subúrbio carioca em Chuvas de Verão (1977). Filmes de puro divertimento como as chanchadas da Atlântida documentaram profusamente Copacabana, seu grande hotel e o centro do rio nos anos 50.

A arquitetura brasileira, objeto de estudos universitários, também não foi esquecida. Glauber Rocha a utiliza como caracterização do substrato ideológico da ação que narra ou da situação que apresenta. Veja-se o uso que faz das três sucessivas capitais do Brasil em A idade da terra (1980): Salvador significando a opressão colonial, religiosa e barroca; A Cinelândia no Rio de Janeiro a retórica pomposa da república dos bacharéis; e Brasília como proposta utópica, a capital libertária do Terceiro Mundo.

Anteriormente, em Terra em transe (1967), Glauber já estabelecera a vinculação entre a arquitetura estilo Beaux-arts e a retórica conservadora republicana utilizando os interiores do Teatro Municipal do Rio de Janeiro como palácio presidencial de Porfírio Vargas, o presidente golpista. No mesmo filme, o parque Lage corresponderá a retórica reformista precedente ao golpe militar de 1964 enquanto uma favela carioca serve de cenário para a denúncia explicita do peleguismo e da demagogia populista.

A arquitetura nem sempre tem papel tão importante na construção dos significados do filme como lhe dá Glauber Rocha, Por vezes é apenas o cenário adequado a classe social do personagem, como é o caso do Conjunto Habitacional de Pedregulho (Reidy, 1948) em longas sequências de Lucio Flavio, Passageiro da Agonia (Hector Babenco, 1977) , e em trecho mais curto de Central do Brasil (Walter Salles, 1998) assim como e o Edifício Copam (Niemeyer,1951) em Cléo e Daniel (Ademir Ferreira, Humberto Pereira e Jorge Santos, 1970).

A arquitetura mais anônima, comercial, também tem sido retratada e analisada pelo cinema brasileiro. O Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002 ) examina o edifício do título, um condomínio de  276  apartamentos em Copacabana, pelo depoimento dos moradores. E Redentor (Cláudio Torres, 2004) revela a carência de moradia e os aspectos menos éticos do mercado imobiliário no Brasil, assim como Central do Brasil (Walter Salles, 1998) retrata tipo de conjuntos de casas uni-familiares construídos pelos programas habitacionais oficiais, Serão muitos os exemplos aos quais o leitor poderá sempre acrescentar mais um.

Mas não só a dimensão simbólica, a aparência ou os condicionantes sociais da arquitetura são mostrados nos filmes de ficção ou documentários brasileiros, As técnicas de construção são detalhadas em filmes tais como A marvarda carne (André Klotzel, 1985) em que o público testemunha a construção de uma casa de taipa em sistema de mutirão, da fundação à cobertura. É uma sequência que se encaixa numa ampla coleção de outras semelhantes em que o olhar antropológico característico do cinema brasileiro de ficção registram práticas de trabalho coletivo como a pesca do Xareu na Bahia em Barravento (Glauber Rocha, 1961) , ou a fabricação artesanal da rapadura em engenho primitivo, no início de Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001)

O acervo filmográfico brasileiro contem portanto um rico material didático que tem sido pouco explorado pelas faculdades de arquitetura, talvez em razão da dificuldade operacional que até recentemente impedia a projeção de películas em sala de aula.

Nas décadas de 1950 a 1970, o contato dos estudantes universitários com os aspectos da realidade do país mais ampla do que o reduzido ambiente em que circulam por origem de classe fora promovido por um vigoroso movimento de cineclubes sediados em sindicatos e agremiações estudantis, Constituíam uma rede de distribuição paralela que contornava o bloqueio das salas de exibição à produção brasileira planejado pelas distribuidoras do filme importado e ampliava a repercussão dos poucos filmes que conseguiam ser exibidos no circuito comercial. Realizavam sessões comentadas pelos autores do filme e debates após a projeção que incentivavam vocações incipientes de novos realizadores. Fatores diversos de ordem técnica e econômica, bem como a censura cinematográfica e a repressão ao movimento estudantil praticamente extinguiram o movimento cineclubista.

Hoje porém a tecnologia do VHS, do DVD e pela Internet aboliu todos esses óbices. Será fácil recensear material disponível e utilizá-lo como recurso didático em sala de aula segundo os interesses das diversas disciplinas do cursos de arquitetura e urbanismo.

De fato, o cinema brasileiro já acumulou um enorme acervo de realizações, diversificada na temática, na técnica e na linguagem fílmica. Que sirva como recurso de ordenação, e considerando diversos sistemas de produção que se sucederam na história do cinema brasileiro, o simplificado esquema cronológico que se segue:


1 a. Fase. Dos primórdios até 1930.

Filmes feitos por pequenos empresários, os cavadores , que realizavam filmes sob encomenda privada: Reuniões familiares, Propriedades , Industria em atividade, etc.
Ausência de um esquema eficiente de distribuição.

Filmes de ficção feitos por pequenos empresários destinados à exibição pública, por meio da qual se pagariam.

1908.   Nho Anastácio chegou de viagem. Julio Ferrez.
Comédia, Caipira em embaraços na Capital Federal.
Os estranguladores. Giuseppe Labanca. 40 min.
A Mala Sinistra. Julio Ferrez. Roteiro de Coelho Netto.

Filmes cantantes. Óperas e operetas em que os cantores  escondidos atrás da tela cantavam em sincronia com as cenas projetadas.

Os Ciclos regionais:

Recife;
1923. Edson Chagas e Gentil Roiz. Ourives e gravador fundam a Aurora Filme. (13 filmes)
1925. Aitaré da Praia. Embora se trate de um drama relacionado com a vida dos jangadeiros, parte da ação se passa em Recife, em ambientes de alta sociedade onde se reencontra o par romântico que fora separado pelas tramas do destino.
1927. A filha do advogado. Ary Severo, Jota Soares. A filha do advogado é violentada pelo seu irmão, filho bastardo mantido em segredo.

Amazonas:
 Amazônia Cine-Film. Sociedade de 4 comerciantes e Silvino Santos, cinegrafista.
1920. Amazonas, o maior rio do mundo. 1920. Perdeu-se o filme e o negativo.
1922. No país das amazonas. Exibida na Exposição do Centenário da independência, Ficou cinco meses em cartaz no Rio de Janeiro, foi exibido em cinemas parisienses e londrinos.
Observação: trechos de No país das amazonas podem ser vistos em Cineasta da selva, cinebiografia de Silvino Santos realizada por Aurélio Michelis em 1997.

Cataguazes.
1926. Phebo Sul América Film. Humberto Mauro.
1928. Brasa dormida
1929. Sangue mineiro.


2a. Fase. A produção industrial.

O cinema falado. F. Alves, Procópio Ferreira e outros astros do teatro e do rádio atuam em filmes musicais e chanchadas. Chanchada, gênero de cinema brasileiro, quase sempre com um enredo simples entremeado de números musicais no palco de boates elegantes, (pelo quais o público de todo o brasil conhecia as músicas e os cantores que ouviam no rádio) Os personagens eram quase sempre um par romântico em apuros, um ou uma duplica de comediantes que descobre, e com ajuda do galã, derrota perigosos bandidos na cena antecedente dos beijos finais. Filmes de puro divertimento, toscos nos primeiras realizações mas alcançam maior qualidade tecnica e artística na década de 1950, especialmente naquelas chanchadas dirigidas por Carlos Manga.

Durante o Estado Novo, acentuara-se o nacionalismo e obras importantes da literatura brasileira foram aproveitadas pelo cinema com pretensões mais sérias do que as ingênuas chanchadas, assim como filmaram-se roteiros originais de temática regional e personagens - tipos como cangaceiros e caiçaras.

1930. Brasil-Vita. Carmem Santos.
1934. Favela dos meus amores. Humberto Mauro.


Cinédia (1930).

1933. Ganga Bruta. Humberto Mauro.
1935. Bonequinha de seda. Oduvaldo Viana. Gilda de Abreu é atriz. Grande bilheteria.
1936. Alô, Alô Carnaval . Adhemar Gonzaga, com Carmen Miranda, Mario Reis e  Francisco Alves;
1940. Pureza. Chianca de Garcia sobre romance de Jose Lins do Rego.
1945. O Cortiço. Luis de Barros sobre romance de Aluísio de Azevedo
1946. O Ébrio. Gilda de Abreu.

Atlântida Cinematográfica. (1941).

Produziu 62 filmes de ficção e dois documentários.

1943. Moleque Tião. José Carlos Burle. Revela Grande Otelo.
1949. Carnaval no fogo. Watson Macedo
1950. Aviso aos navegantes. Watson Macedo (Oscarito e Grande Otelo)
1954. Nem Sansão nem Dalila. Carlos Manga. (Oscarito e Grande Otelo)
1954. Matar ou correr. Carlos Manga.(Oscarito e Grande Otelo)
1954. O Homem do Sputnik. Carlos Manga.

Oscarito: 45 filmes

Cinedistri (1949)

1960. Samba em Brasília. Watson Macedo. Pela Cinedistri.
1963. O pagador de Promessas. Anselmo Duarte. Palma de Ouro em Cannes.


RKO.

!942. É tudo verdade. Orson Welles.

Vera Cruz (1946).

Fundada por Cicílio Matarazzo e Franco Zampari. Produziu 22 filmes.
25 mil metros  quadrados cobertos; seis palcos de filmagem, oficina mecânica, carpintaria, laboratórios fotográficos capazes de produzir 700 copias por dia e até apartamentos residenciais para atores.
1950. Caiçara. Adolfo Celi. Com Eliane Lage
1952. Tico tico no fubá. Adolfo Celi.
1953. O cangaceiro. Vítor de Lima Barreto. Premio especial de melhor filme de aventuras pelo júri de Cannes. Custou 7,5 milhões de cruzeiros e rendeu no Brasil,33 milhões. Foi comprado e distribuído internacionalmente pela Columbia
1954. Floradas na Serra. Luciano Salce. Cacilda Becker e Jardel filho.
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 Maristela Filmes (1950).

Atores de prestígio cultural como Procópio Ferreira.
Mario Crivelli convence a família Audrá a investir 30 milhões na construção de estúdios e formação da companhia. No mesmo ano já emprega 200 pessoas e realiza os primeiros filmes.
1952. Simão o caolho. Alberto Cavalcanti.


Kino Filmes (1952)

A. Cavalcanti, Carlos Alberto de Oliveira, Elza Soares Ribeiro compram a Maristela e fundam a Kino Filmes. Que realiza apenas dois filmes:
1954. O canto do mar. Alberto Cavalcanti. Retirantes atraídos pelo litoral. Interpretado por pessoas escolhidas no local das filmagens
1955. Mulher de verdade. Alberto Cavalcanti.


3a, fase. Cinema de autor.

Produções independentes, apoiada por pequenas empresas de produção, empréstimos bancários ou mesmo grupos de amigos do cineasta que acompanhava todas as etapas da realização dos filmes, do roteiro a montagem final. É o momento em que o cinema brasileiro adquire características que permitem identificar uma estética própria e uma maneira peculiar de fazer filmes ainda que seja muito variado o “estilo” pessoal de cada realizador, e se perceba alguma influência do neo-realismo italiano, da nouvelle-vague francesa e do cinema clássico, ao menos nas obras iniciais do ciclo. Não teve a aceitação popular semelhante a das chanchadas da fase anterior mas teve o reconhecimento dos meios intelectuais local e internacional. O Cinema Novo. Multiplicação  de empresas distribuidoras.

1955. Rio 40 graus. Nelson Pereira dos Santos
1957. Rio Zona Norte. Nelson Pereira dos Santos.
1959. Arraial do Cabo. Paulo César Sarraceni.
1961. Fundação do CPC da Une. Leon Hirzman, Arnaldo Jabor, Carlos Lira, Oduvaldo Viana filho.
1962, Cinco Vezes favela. Joaquim Pedro de Andrade, Marcos Farias, Miguel Borges, Leon Hirzman e Carlos Diegues.
1960. Aruanda. Linduarte Noronha                                           
1963. Esta noite encarnarei no teu cadáver. José Mojica Marins.
1963.Vidas secas. Nelson Pereira dos Santos
1963. Deus e o diabo na terra do sol. Glauber rocha.
1965. Os Fuzis. Rui Guerra.
1965. São Paulo, sociedade anônima. Luís Sergio Person
1965. Menino de Engenho. Valter Lima Junior.
1966. A Grande cidade. Cacá Diegues.
1968. O bandido da luz vermelha. Rogério Sganzerla.
1967. Terra em Transe. Glauber Rocha
1969. Matou a família e foi ao cinema. Júlio Bressane
1972. Quando o carnaval chegar. Cacá Diegues.
1970. Cleo e Daniel. Ademir Ferreira, Humberto Pereira e Jorge Santos.
1973. Joana a Francesa. Cacá Diegues
1977. Tenda dos milagres. Nelson Pereira dos santos

Embrafilme.(1969) A conquista do público.

1969. Macunaíma. Joaquim Pedro de Andrade
1972. Como era gostoso o meu Francês. Nelson Pereira dos santos.
1976. Xica da Silva. Cacá Diegues
1976. Di Cavalcanti ou Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. Glauber Rocha.
1977. Chuvas de verão. Cacá Diegues
1977. Lúcio Flávio, passageiro da agonia. Hector Barbenco.

1980. Pixote. Hector Barbenco
1980. Idade da Terra. Glauber Rocha.
1982. Prá frente Brasil. Roberto Farias
1964 - 1985. Cabra marcado para morrer. Eduardo Coutinho. Mapa Filmes e Eduardo Coutinho Produções.    
1990. Os sermões. Julio Bressane.

Sucessos de público

1980. Os três mosqueteiros trapalhões. Adriano Stuart. 147 milhões de cruzeiros.
(a)1976. Dona Flor e seus dois maridos.Bruno Barreto. 131 milhões.
1980. O rei e os trapalhões. Adriano Stuart. 120 milhões
(b)1978. A dama da lotação. Nelville de Almeida 102 milhões.
(c)1980. Sete gatinhos, Nelville de Almeida
1980. Noite das taras. John Doo, David Cardoso e Ody França  + 1980. Giselle +a+b+c+  = 21 milhões de espectadores.
Público do cinema brasileiro. 25 milhões em 1960
60 milhões em 1970.

5a etapa. A retomada.

Compreende o momento atual no qual ressurge o cinema brasileiro após sua quase extinção provocada pela desmontagens das instituições governamentais de apoio à cultura e pela restrições de crédito financeiro no governo Collor de Mello. Incorpora a tecnologia digital, o pessoal técnico e atores treinados na indústria da televisão e na publicidade. Filmes diversificados que vão do mais fútil divertimento à exibição escabrosa da patologia social e às realizações artísticas de alto significado.

1997. Cineasta da selva, ( Aurélio Michelis em 1997.)
1998. Central do Brasil. Walter Salles
1999. Santo forte. Eduardo Coutinho
2000. Auto da compadecida. Guel Arraes.
2001. Abril despedaçado.Walter Salles
2002. O edifício Master. Eduardo Coutinho. (12 andares X 22 apartamentos = 276)
2002. Dias de Nietzche em Turim. Julio Bressane
2002. Deus é brasileiro. Cacá Diegues
2003. Lavoura arcaica. Luis Fernando de Carvalho
2003. Lisbela e o prisioneiro. Guel Arraes
2004. Redentor. Cláudio Torres.
2007. Cartola – música para os olhos. Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.

Referências:

ABRIL CULTURAL. Nosso Século. São Paulo: Ed. Abril, 1980-1986. [5 volumes]
CARTA, Mino (org.) Retrato do Brasil.,v.1.São Paulo: Editora Política, 1984.
RAMOS, Fernando (Org.) História do cinema brasileiro. São Paulo: Art editora, 1987.
www.adorocinema.com.br

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