segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

ENTRE A PALAVRA E A HISTÓRIA


Valton de Miranda Leitão – Psiquiatra e militante político do Partido Socialista Brasileiro PSB.


O homem sente-se seguro quando imagina ter encontrado a ordem. É assim na arte, na ciência e na filosofia. O famoso matemático grego Arquimedes ao descobrir o seu teorema foi tomado de tal excitação que saiu gritando nú pela rua: Eureca! Eureca! Encontrei!

A excitação que uma melodia musical provoca no compositor resulta desse encontro com a harmonia. Pedaços de sons desconexos são associados como numa unidade. O sentimento de satisfação ao inventar essa totalidade pode provocar no compositor da música ou no escritor como no cientista ou filosofo, uma explosão de alegria. Um sente-se perto do belo e o outro imagina ter encontrado a verdade. 

As palavras, as imagens e os sons, antes instrumentos da literatura, da poesia, da arte e da ciência, atualmente fazem parte do acervo ideológico das elites que os oferecem como mercadoria nas prateleiras do grande supermercado comunieacional. O saber anda, nesse sentido, de mãos dadas com o grande Capital. Esta é a fronteira da reviravolta idealista que os pensadores de raiz marxista deverão enfrentar no duelo teórico.

Um grande número de intelectuais — outrora ditos de esquerda — parecem ter perdido a dimensão relativa de valores como verdade e beleza. Proclamam enfaticamente no campo político a vitória final do neoliberalismo capitalista, no campo científico-empírico-analítico Popper é vitorioso, e no campo sócio-cultural-psicológico a linguística dá as cartas. Isso tudo determina a falsa impressão de que uma corrente de pensamento tão forte como a esquerda socialista perdeu o debate ideológico para um inimigo menos preparado — num sentido universal — mas mais competente e pragmático na manipulação dos artefatos materiais e espirituais.

O sistema de dominação monitora o verbo, e deste modo, aquieta a rebeldia e silencia as massas. O símbolo tomou o lugar do conteúdo e a fantasia substituiu a realidade.          A humanidade pré-filosófica acreditava que Prometeu dera-lhe a gramática, o fogo e a metalurgia. O desenvolvimento histórico do homem levou mais de dois mil anos para sepultar este mito e implantar a historicidade articuladora de trabalho e linguagem. Agora, a nova onda filosófica quer retomar a eternidade da palavra e atribuir-lhe uma dimensão ideológica intrínseca. O nome de uma pessoa seria mais importante que sua biografia afetiva (história pessoal) e o símbolo linguístico transcenderia a realidade histórico-social. E uma espécie de idealismo objetivo que atribui às palavras uma realidade inerente e original.

Tudo se passa como se a poesia épica de Homero fosse o próprio belo e não um momento da beleza numa etapa mitológica do desenvolvimento da história humana.     A natureza do debate entre historia e linguagem é paradoxal porque um saber utiliza o outro como mediação e secundariza o opositor nesta diatribe da ciência. De um lado Marx (não o de Althusser) e Freud (não o de Lacan) e do outro Witgenstein, Habermas e Apel discutem a primazia entre o devir de um homem nascido na história e sua cristalização no interior da linguagem.

O homem, deste modo, continua a procurar o tesouro mítico que para alguns está escondido dentro da palavra e, para outros. aparece e desaparece no lampejar e apagar temporal da cultura. As questões que a chamada modernidade coloca em discussão exigem urna reflexão sobre princípios e fundamentos filosóficos. Certamente que o alcance deste artigo não representa sequer um esboço de ensaio sobre o tema. Entretanto a presente formulação contrasta a experiência empírica das coisas e da linguagem enquanto instrumento do saber com a mitificação da palavra no bojo de um novo idealismo.

Somos levados a pensar num retorno a Platão onde as ideias-modelo antecedem as coisas e a experiência do mundo que não passa, nestas condições, de urna cópia dessa realidade ideal e imutável. As palavras, então surgem como substitutos modernos do modelo platônico, naturalmente levando-se em conta que a contribuição da Antropologia e da teoria do inconsciente emprestam-lhe muito maior solidez. Esta teorização pode ser apresentada objetivamente como o. admirável Mundo Novo, de Huxley, onde a fantasia e o sonho tomam o lugar da realidade concreta.

O retorno ao mito dá-se então pela fusão da parafernália comunicativa com o saber produzido pela sociedade industrial contemporânea. O mito de uma sociedade não-ideológica mostra-se corno conformismo, imobilismo e apatia coletiva, A ideologia burguesa agora embutida no sistema comunicacional e na indústria cultural é consumida inconscientemente pelas massas. O resultado é uma intoxicação que paralisa a rebeldia, o sonho da transformação e a utopia. A crítica atual deve encontrar um caminho para desmontar essa ilusão de que chegamos ao fim da História.

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