domingo, 24 de fevereiro de 2013

TONY GARNIER E SUA ANTEVISÃO DO SÉCULO XX


Peter Bredsdorf – Arquiteto dinamarquês (1913–81). Professor catedrático da Escola Superior de Belas Artes de Copenhague.

Tradução: Frank Svensson

                  Tony Garnier 1899


La Citè Industrielle de Tony Garnier

Em 1901 o jovem arquiteto francês Tony Garnier expôs na Academie des Beaux—Arts de Paris um anteprojeto de urna cidade industrial. Não obteve nenhum reconhecimento, mas sim amargas criticas. Mostrou-se, no entanto, depois, que esse projeto era um precoce prenúncio do funcionalismo, na forma em que se expressou nos anos 1920. Tratava-se, na realidade, simplesmente da forma de um artista antever o novo século. Esse projeto localiza-se de forma surpreendentemente solitária no tempo, não só em relação ao passado corno também à sua época. Muitas circunstâncias em torno do mesmo permanecem nebulosas. Pretendemos, com este trabalho, narrar um pouco sobre o contexto e o autor do projeto.

Grandes cidades da Europa ocidental do século XIX é um conceito amplo mas ao mesmo tempo uma caracterização bastante válida. São as cidades do século no qual a burguesia veio ao poder com suas novas concepções de liberdade, dando, inclusive, liberdade à iniciativa privada de agir sem a intervenção dos interesses públicos.   vigoroso desenvolvimento industrial e a mudança em massa para as cidades.  O crescimento sem planejamento, a desenfreada especulação imobiliária e um sem fim de fábricas poluentes. Péssimas condições sanitárias e habitacionais e a liberdade de abusar do direito de explorar a miséria humana. Os privilegiados buscando guarida nos melhores enclaves do centro urbano ou em áreas reservadas às suas mansões na periferia. A transformação das áreas centrais em quadras de serviços e escritórios segundo imponentes projetos. Áreas da preferência dos visitantes da cidade, sem contato com a miséria da periferia e do entorno. Situação ainda hoje reconhecida em nossas próprias cidades.

Inicialmente, esse desenvolvimento deu-se em relação a cidades inglesas. Rapidamente atingiu, também, a França e a Alemanha. Nada mais natural que personalidades engajadas nos problemas sociais buscassem alternativas para tal forma de crescimento urbano. Buscavam bases de maior justiça social e de um modo de vida mais sadio, sobre as quais organizar o binômio indústria/habitação. Na primeira parte do século, por meio de propostas como as das industrial villages e dos phalanstères, de autoria, respectivamente dos utopistas Robert Owens e Charles Fourier. Mais realista foi um conjunto de iniciativas de grandes industriais — a partir de seus bem intencionados interesses — construindo cidades modelo junto a suas fábricas e as iniciativas de sociedades filantrópicas construindo conjuntos habitacionais modelo, mas foram diminutos experimentos, corno agulhas no palheiro do crescimento urbano. As epidemias grassavam mesmo quando as leis cobravam condições de higiene por meio da aprovação dos projetos de moradia e construção. A simples necessidade de uma certa ordenação do suprimento de água e da rede de esgotos transformou o planejamento urbano numa questão de ordem técnica. Outra forma de planejamento urbano foi o drástico embelezamento de Paris, recortando os superpovoados quarteirões da cidade com largos boulevards canteados de novas fachadas. Essa demonstração de força suscitou a admiração dos demais países da Europa e foi repetida em escala menor em muitas cidades. Mas os novos assentamentos que surgiam no entorno das cidades existentes, graças ao direito de propriedade privada, foram difíceis de manter sob controle.

Em termos de planejamento urbano os arquitetos, inicialmente, limitaram-se sobremodo às áreas centrais com ambiciosos projetos como, por exemplo, o da Ringstrasse para o campo de tiro da Viena velha. O austríaco Camillo Sitte defendeu, no fim do século passado, uma nova forma de se configurar cidades a partir de pressupostos artisticos. Desejava urna nova criação baseada na riqueza fruitiva e vivencial dos espaços e lugares das cidades medievais. Outros achavam que o desenho urbano devia ser consi-derado a partir de ideais rigidamente clássicos. Com relação ao crescimento das cidades como fenômeno social, os planejadores da época não apresentaram nada de novo. Reportaram-se aos utopistas já havidos. A exceção foi Ebenezer Howard com sua ideia de cidade-jardim, apresentada em 1897. Queria simplesmente estancar o crescimento malsão das cidades e dirigi-lo para assentamentos industriais autônomos, que não fossem maiores do que a capacidade de reunir as vantagens de se morar na cidade com as vantagens de se morar no campo. Afirmava humildemente só haver destacado uma página da obra de cada utopista juntando às mesmas, num livro, as implicações da concretização das respectivas utopias. A construção de uma cidade jardim foi iniciada ao virar o século. Mais uma agulha no palheiro.


Lyon, centro regional

A cidade de Lyon, a terceira da França em tamanho, sofria, para bem e para mal, principalmente para mal, as consequências do crescimento de uma cidade grande. Um centro mundial da indústria da seda, mas também com grandes fábricas de maquinaria e de produtos químicos. Uma cidade onde notáveis invenções foram lançadas  onde novos ramos industriais vieram á luz, mas onde os trabalhadores para ali atraídos eram pessimamente alojados e alimentados. Uma cidade onde, por volta de 1830, ocorreram algumas das primeiras manifestações obreiras de protesto da Europa ocidental, e depois disso durante muitas gerações foi importante centro de resistência socialista.

A região de Lyon tem, ainda, um importante lugar no regionalismo do século XIX, marcado pela compreensão das relações existentes entre o contexto físico próprio e o desenvolvimento econômico e cultural. Na França a defesa da vinculação da população com sua região transformou-se cedo numa forma de protesto contra o acentuado centralismo do governo nacional, e foram cientistas franceses os que primeiro se ocuparam com questões regionais. (Na Inglaterra o regionalismo começou a ser formulado por Patrick Geddes, que apenas deu continuidade às ideias já desenvolvidas na França, aperfeiçoando-as como instrumento de planejamento). A cidade de Lyon passou por consideráveis transformações na segunda metade do século XIX. Já nos anos 1860 foi objeto de trabalhos de saneamento urbano tendo Paris corno modelo. Em 1880 realizaram-se vários projetos de renovação urbana com um enfoque nitidamente sanitarista, c em 1900 foram implantadas instituições de educação e outros serviços dignos de uma metrópole regional.


Tony Garnier o arquiteto de Lyon

Esse contexto teve, sem dúvida, importância para o jovem arquiteto Tony Garnier, que nasceu em 1869 e cresceu num dos melhores bairros operários de Lyon. Estudou arquitetura na Academia de Belas-Artes daquela cidade entre 1886 e 1889. Não sabemos se as suas primeiras imagens de urna cidade e da arquitetura do futuro surgiram com ele ainda aluno. Em 1889, foi contemplado pela Academia de Lyon com uma bolsa para formação continuada em Paris. Ali chegou portanto no ano da grande exposição internacional — a exposição da qual a maioria se lembra por causa da torre Eiffel. Passou com facilidade pelos exames de admissão à Academie des Beaux Arts, cursando com energia as disciplinas ali oferecidas. Era sua intenção obter as melhores menções, no sentido de conquistar o Prix de Rome, o que conseguiu em 1899. Essa distinção deu-lhe o direito de estagiar durante alguns anos na renomada academia francesa sediada na Villa Mediei em Roma.

       Tony Garnier: perspectiva de uma cidade do futuro.

A obrigação dos bolsistas era familiarizar-se com estudos de restauração de monumentos da Antiguidade. Já na chegada a Roma, Tony Garnier estava firmemente convencido de que sua missão principal era demonstrar como urna cidade do futuro poderia ser configurada. Mas na bicentenária instituição que o abrigava não havia mais compreensão para tais experimentos do que em Paris, muito pelo contrário. A academia de Roma comunicou a Paris que o comportamento de Garnier não era condizente com a época, e os esboços de uma cidade do futuro que ele apresentara e expusera em Paris em 1901 foram simplesmente destruídos.

De nada lhe valeu argumentar que urna cidade moderna pode perfeitamente ser inspirada no antigo — algo de que estava plenamente convencido e que defendia tanto no seu projeto como antes. Para poder continuar seu trabalho em Roma, dedicou-se à reconstrução de toda uma cidade da Antiguidade: Tusculum ou Tusculo cidade da antiga Itália (Lácio); hoje Frascati.  Possuía uma história de cidade satélite de Roma, com mais de 50.000 habitantes, mas fora destruída nos anos 1100. A nova ocupação de Garnier não despertou admiração, mas foi aceita e bem mais tarde veio a ser muito reconhecida. 

Voltando a Paris, em 1904, a reconstrução de Tusculum tornou-se objeto de exposição  e foi aceita como seu trabalho principal. Foi autorizado, no entanto, a expor também, como complemento a seu trabalho de Prix de Rome, os esboços de sua cidade do futuro, sem dúvida urna provocativa atividade extracurricular. O material elaborado por Garnier entre 1901 e 1904 não é conhecido, com exceção do plano diretor por ele divulgado. Sabe-se, no entanto, que além desse plano foram expostos muitos esboços sobre detalhes da cidade por ele proposta. Nem de parte da Academia em Paris nem da imprensa especializada surgiu alguma manifestação de estímulo ao trabalho de Garnier. A única referência positiva veio de um periódico de sua própria cidade: Construction Lyonnaise. Garnier desapontado esteve a ponto de emigrar da França. No entanto deixou-se convencer a ficar, em função de um emprego municipal oferecido a ele em Lyon. Suas primeiras incumbências foram o seu famoso projeto de abatedouros, um grande hospital, um estádio municipal, uma exposição internacional em Lyon, etc. Ao mesmo tempo, participou de vários concursos, dando-se tempo, ainda, de desenvolver o projeto de uma cidade do futuro. Em 1917 teve este trabalho publicado em dois volumes, com 164 pranchas, sob o título Une cité industriei/e, Étude pour La Construccion des Villes.


A visão urbana de Garnier

A obra segue um programa bastante sucinto e é parcimoniosamente descrita. Apresenta urna cidade numa paisagem imaginada. configurada inteiramente a partir do plano geral, com planos parciais de bairros de distintas funções. Com soluções habitacionais diversas e até detalhes de interior e de exterior de prédios institucionais, residências e fabricas. Tudo avivado por perspectivas aéreas da cidade, de sítios urbanos, de ruas, de casas e de interiores. Um grandioso trabalho, ilustrado por ideias inusitadas de construção e arquitetura urbana, apresentadas por um arquiteto francês na virada do milênio (1900).

O programa formulado individualmente por Garnier pode ser descrito como de uma cidade moderna, tendo a indústria como principal elemento configurador, localizada em sua região de origem, o sudeste da França. Idealizou a cidade com uma população de 35.000 habitantes, não por achar que essa fosse uma quantidade ideal, mas por considerar que uma cidade menor não teria os problemas que gostaria de abordar arquitetonicamente, ao mesmo tempo que uma cidade maior seria impossível de manusear da forma por ele desejada. Em sua imaginada paisagem havia ainda uma micro-região, campos de lavoura capazes de nutrir a população urbana, um rio como via de transporte dos produtos industrializados. um afluente capaz de produzir energia elétrica, luz e aquecimento para toda a cidade. Pressupunha que a rede viária, o transporte, a água e o esgoto seriam de responsabilidade pública. Seria de responsa-bilidade pública também, a definição do uso do solo, o loteamento do mesmo, o 

   . Plano esquemático da Cité Industrielle, 1904-1917

do mesmo, o abastecimento, a saúde e o lixo. Ideias essas bastante avançadas para um tempo em que qualquer planejamento de cidade era bloqueado pela propriedade privada da terra e por um enfoque avesso à intervenção do setor público em assuntos que poderiam ser resolvidos por empreendimentos particulares.


    Tony Garnier - Citè Industrielle vista do centro e do setor industrial 

Em seu conciso e austero texto. Garnier confronta sua nítida divisão da cidade em áreas de função especifica com a contínua ampliação da diversificada constituição urbana. Justifica a divisão da cidade — quadras estreitas, dispostas no sentido lesteoeste — invocando a orientação dos ventos e a melhor incidência solar. Exige sol direto em todos os quartos de dormir, proíbe palcos internos, proíbe uma ocupação superior à metade do terreno c proibe muros divisórios entre as casas. As partes verdes, entre as casas, devem relacionar-se formando urna espécie de parque de livre acesso aos pedestres. O tráfego de veículos é vinculado a urna rede viária de fácil compreensão, com urna via principal no sentido leste-oeste partindo da estação da estrada de ferro. Ruas com características distintas são arborizadas de forma distinta.

Apesar do grau de detalhes apresentado, a ideia básica do projeto parece haver existido desde 1904, ou até mesmo desde 1900. Há no projeto uma concordância incomum entre a totalidade e os detalhes, impregnada por um conceito arquitetônico no qual só o simples, o prático, o verdadeiro são aceitos como belo. Um conceito que já relatara a partir de Roma, em 1901. quando remeteu a Paris os seus primeiros esboços. Um claro enfoque capaz de analisar e dispor o caráter básico da cidade relacionado a seus elementos mais simples. Um desejo de não deixar nenhum problema sem solução. Do ponto de vista da técnica urbanística a novidade da cidade de Tony Garnier consiste na clara diferenciação de funções com um sistema viário também claramente diferenciado. Algo surpreendente numa época em que ninguém previa como iria se desenvolver o tráfego urbano.

Do ponto de vista da conformação urbana, nega totalmente o formato comum — variado c surpreendente ou rígido e bem proporcionado — das ruas e dos sítios urbanos da Europa. Garnier queria a cidade verde, como se as casas estivessem em um parque. Mas os prédios não seriam simplesmente distribuídos no verde, deveriam configurar uma disciplinada paisagem urbana em nítido contraste com as áreas cultivadas e a natureza do entorno. Um contraste marcadamente expresso pela localização da cidade num plateau delimitado por um majestoso muro de arrimo voltado para o vale ao sul da cidade. Arquitetonicamente, a mensagem de Garnier comunica sua consequente exigência de que os prédios expressem as funções. os lugares neles contidos e os processos construtivos inerentes aos diferentes tipos. Um grau de honestidade que, segundo Garnier, contém em si o belo, urna beleza capaz de ser enriquecida por esculturas em interação com os prédios e com a vegetação.


Quem influenciou Garnier e a quem ele influenciou?

Vários historiadores da arquitetura e do urbanismo têm se ocupado em esclarecer quem e o que na virada do século teria influenciado Garnier em seu trabalho com a Cité Industrielle. Para vários dos prédios unitários é possível encontrar referências mais e menos seguras. O debate europeu sobre a configuração urbana pouco o interessou. Há escritores, no entanto, que acreditam achar traços de Sitte em seu trabalho (o livro de Camillo Sitte foi traduzido para o francês em 1902), ou em sua rede viária retangular, encontrar traços dos classicistas. O verossímil no entanto é que tenha se sentido mais influenciado pela tradição urbanística francesa e pela observação da racionalidade das cidades coloniais da Antiguidade. Deve ter acompanhado o avanço técnico contido na solução dos grandes projetos públicos de sua época.

Quando, em 1910, recebeu a incumbência de projetar o hospital de Grande Blanche, fez uma viagem de estudos à Alemanha e à Dinamarca. Em seu relatório de viagem salienta de forma especial a construção iniciada do hospital de Bispebjerg, em Copenhague, com seus departamentos distribuídos como pavilhões ligados por um sistema de transporte subterrâneo. Esse hospital foi visto por ele como urna cidade-jardim para doentes. Quem não gostaria de haver assistido a A Casa da Cultura. um debate entre seu autor Martin Nyrop e Tony Garnier? Um nacional-romântico e o outro internacional-racionalista.*


      Tony Garnier, Citè Industrielle, Casa da Cultura.

Muito poucos são propensos a crer que Garnier tenha sido influenciado por Ebenezer Howard. embora o livro To Morrow de Howard, já houvesse sido traduzido para o francês em 1903 e que ele estivesse trabalhando na implantação de uma cidade de 32.000habitantes (Letchworth). ou seja, mais ou menos do mesmo tamanho que a cidade de Garnier. Howard defendia a propriedade comum do solo urbano e que o assentamento urbano fosse cercado de áreas cultivadas para o seu auto-sustento. Apesar de apresentarem pontos em comum, as duas propostas tinham caráter muito distinto. Howard ilustrara sua proposta com diagramas, tratava-se, portanto, de um modelo aplicável a diferentes situações concretas. Garnier projetou urna cidade concreta para uma paisagem imaginada. Howard não desejou que sua cidade crescesse além do tamanho pensado — entre outros impedimentos haveria o da faixa verde que circundaria a mesma. Sua cidade era circular e concêntrica. denunciando uma forma estática.

A conformação da cidade de Garnier permitia o crescimento não só da cidade, mas também de suas partes especificas. Mais comum do que atribuir a Garnier um influência do tipo garden-city é dedicar-lhe urna postura socialista e ver a sua cidade do futuro como a concretização das visões de Charles Fourier na primeira metade do século XIX. Além disso, Fourier escrevera seus textos na cidade de Lyon. Suas ideias quanto a cidades industriais menores de novo tipo se concretizaram com o familistère construído por iniciativa do industrial J. B. Godin junto à sua fundição em Guise, no norte da França, entre 1860 e 1880, depois transformada numa cooperativa de trabalhadores. Que Garnier desejasse a propriedade comum do solo urbano era um pressuposto natural para uma construção racional de uma cidade, mas não implicava defender a propriedade coletiva da terra em geral. Desejar a preponderância do público como responsável pelo aprovisionamento dos principais gêneros. bem como a administração de água. luz e lixo, era uma postura progressista para a sua época, mas sem ser socialista, embora tenha previsto a construção no centro da cidade de instituições de amparo a desprovidos e a desempregados.

Garnier não revela de quem seria a propriedade das fábricas (ou os construtores e os habitantes) da sua cidade. Prevê reformas sociais, mas não uma nova estrutura social. Seu entusiasmo é o mesmo quando busca soluções habitacionais ótimas e mínimas para as famílias obreiras e quando deixa sua imaginação discorrer sobre casas para os bem-sucedidos. É preciso boa vontade para encontrar muitas das idéias de Fourier na proposta de Garnier, atendo-nos à descrição de Fouricr de urna cidade em transição para a forma ideal (como Godin concretizara).


       Tony Garnier, Citè Industrielle, Estação ferroviária.

O engano fourierista quanto a Garnier talvez possa ser atribuído ao romance Travail de Émile Zola, que conta a estória de um engenheiro idealista, que transforma uma decadente cidade mineira numa cidade industrial ideal. O engenheiro é despertado para o problema por um pequeno texto escrito por um não nominado discípulo de Fourier.   O romance descreve urna comunidade feliz com residências ajardinadas para todos, além de incontáveis possibilidades de lazer c educação. Uma comunidade tão perfeita que podia dispensar prisões e igrejas. É possível que esse romance, que hoje nos parece supersentimental, editado em 1901, tenha impressionado Garnier, levando-o a incorporar um programa social no projeto que já tinha em andamento. De qualquer maneira, imprimiu graciosamente uma frase desse romance de Zola na fachada do prédio destinado a abrigar um centro de vivência. Mas nada poderia ter mostrado de forma tão nítida quão frágil era a ligação de Garnier com os socialistas utópicos.

É mais fácil descobrir uma postura regionalista ao invés de uma postura política em Garnier. Na sua — bastante imprecisa — argumentação sobre a relação da sua cidade com as demais cidades e entre esta c o campo; na sua incorporação de uma cidade antiga ao projeto; na sua consideração à especificidade do clima e da topografia; na sua observação quanto a museus de história e de botânica à necessidade de um local de exposições regionais, etc. Garnier deve no mínimo ter lido ou ouvido à respeito do congresso sobre regionalismo que a Sociedade de Geografia organizou em 1894 em Lyon, considerando naturalmente a região de Lyon c suas possibilidades de desenvolvimento como tema. Não se sabe com segurança qual foi a verdadeira mola propulsora do projeto de Garnier. o que o fez prosseguir trabalhando no mesmo após a decepção de 1904. Tampouco quanto a quem ou o que o influenciou. Em contradição a tantos outros grandes arquitetos. manteve silêncio sobre tais circunstâncias, marcadas por urna mistura de acentuada busca de reconhecimento c profunda modéstia. É muito possível que o seu trabalho como arquiteto para uma mostra internacional em Lyon, em 1914, de prestigiosos projetos de cidade o estimulara a tornar pública a sua própria visão a respeito.
Garnier não exerceu praticamente nenhuma influência imediata sobre a geração um pouco mais jovem que ele.


       Tony Garnier, Citè Industrielle, porto marítico.

Durante os primeiros dez anos após a publicação de seu trabalho, foi considerado por demais radical, engenherático c -não artístico. Durante os dez anos seguintes, foi considerado corno não suficientemente radical e como que flertando com a Antiguidade. Sabe-se que Le Corbusier, aos vinte anos de idade, o visitou em Lyon, em 1907. Le Corbusier foi, também, o primeiro arquiteto de renome que elogiou Garnier, após a publicação do trabalho em 1917, por sua contribuição à nova objetividade da arquitetura e do urbanismo (Esprit Nouveau. 1921). Talvez seja com Le Corbusier como intermediário que Garnier tenha exercido a maior influência sobre o desenvolvimento. Mesmo depois de o funcionalismo haver penetrado seriamente no mundo ocidental, causava surpresa cada vez que surgiam exemplos da anterior e consequente obra-mestre. Não surpreende, portanto, que em 1932 tenha sido objeto de urna nova edição.

 Bispebjaerg Hospital, projetado por Martin Nyrop e construido entre 1908 e 1913, com 700 leitos ampliáveis para 1600. Sua forma é pavilionar, comportando dois centros cirúrgicos, dois centros clínicos e vários departamentos especializados

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