terça-feira, 29 de janeiro de 2013

ARQUITETURA, UMA DEFINIÇÃO. – Parte II

Claude Méril Schnaidt (* 23. Junho 1931 em Genebra; † 22. Março 2007 em Paris). Militante comunista franco-suiço, arquiteto e teórico da arquitetura.

Tradução: Frank Svensson


XVII -- Nos marcos da sociedade sem ciasses

Se pode haver semelhança, e mesmo identidade, entre as técnicas e as formas das arquiteturas do mundo capitalista e do mundo socialista, os objetivos de uma e de outra são diametralmente opostos. Esse antagonismo aparece sobretudo nas definições. Os autores dos países socialistas que procuram explicar a arquitetura através de suas relações mútuas com a sociedade consideram essas relações como não-reversíveis. Realmente, o efeito da sociedade sobre a arquitetura não é do mesmo sinal do efeito da arquitetura sobre a sociedade. À maneira de todos os produtos humanos, a arquitetura é meio para um fim social. Está a serviço da sociedade. Destarte, a pergunta o que é a arquitetura ? decompõe-se em duas indagações : em que a arquitetura é determinada socialmente? e que efeito ela exerce e pode exercer nos homens e na sociedade? Colocadas numa situação concreta estas duas interrogações conduzem a uma terceira: que funções e que características tem e deve ter a arquitetura no socialismo ?

Construir o âmbito da sociedade sem classes, agir de modo que esse âmbito seja propício á transformação socialista da vida em sua integralidade -- tal é uma das maiores tarefas da URSS e das democracias populares. Para consegui-lo, esses países contam com trunfos decisivos : a propriedade coletiva do solo e dos principais meios de produção e monetários, o exercício do poder político pelos trabalhadores e a planificação a longo prazo da economia em beneficio de todo o povo. A infraestrutura do território, a proteção do meio ambiente, a exploração das terras, a ampliação e a renovação das cidades, o desenvolvimento da indústria da construção civil, a edificação das habitações e dos equipamentos urbanos, as rendas e os subsídios são, em principio, objeto de uma única e mesma política aplicada em vários níveis e que tem por meta elevar continuamente o grau de satisfação das necessidades da população, eliminando os desequilíbrios regionais, as desigualdades entre a cidade e o campo e a segregação social das aglomerações. Quaisquer que sejam suas particularidades, as sociedades socialistas subtraíram o solo, os imóveis e a cidade à lógica do lucro. Elas resolveram a contradição entre a responsabilidade social da arquitetura e sua dependência da iniciativa privada.


XVIII -- Serviço público. Criação coletiva.

Dentro deste contexto, a arquitetura muda fundamentalmente de conteúdo. Torna-se serviço público, criação coletiva. Quando a sociedade alcança a condição de dono da obra, quando ela destina a si mesma seus próprios produtos, a criação arquitetural já não pode ser uma série de obras esporádicas executadas por profissionais independentes.    A socialização da arquitetura, a magnitude, a urgência, e a complexidade dos problemas a resolver requerem a formação de equipes, de órgãos que congreguem competências científicas e técnicas muito diferentes, trabalhando continuamente em domínios especializados. O coletivo dos cérebros múltiplos tende a substituir o arquiteto-homem de síntese. A criação, que designava a atuação do arquiteto apenas, compreende o conjunto do processo.

Esta evolução questiona mais uma vez a especificidade da função do arquiteto e o compele a superar uma contradição nova e urna antiga. Realizada a revolução, o arquiteto que exerceu seu mister no. regime capitalista demora algum tempo para adaptar-se. Não é sem dificuldades que ele vivencia essa transição de urna sociedade para a outra. Mais tensa e mais incômoda é a contradição entre a tradição bem antiga de individualismo universalista, de espontaneidade artística da profissão, e a necessidade objetiva de concentração, de especialização e de racionalização do trabalho no seio de grandes estabelecimentos onde predomina o anonimato. Essas contradições e a rápida transformação das circunstâncias históricas nas quais elas se manifestam explicam a diversidade e a instabilidade das definições de arquitetura oriundas do mundo socialista.


XIX -- Ferramenta da revolução

Em primeiro lugar, a arquitetura é uma arte, mas uma arte cuja natureza é asperamente controversa. Para os arquitetos tradicionalistas soviéticos formados na Rússia tzarista, a arquitetura é a arte eterna. Para os militantes da Frente Esquerdista da Arte (LEF), para os arquitetos construtivistas, a arte é um bem de que o proletariado está em vias de apropriar-se, de socializar da mesma forma que os meios de produção, de tratar com nem mais nem menos consideração que os outros ramos de atividade. Ela torna-se assim um instrumento da revolução, da transformação da sociedade, dos homens e de suas relações, um utensílio da "reconstrução do modo de vida". A arte já não organiza apenas a consciência e o psiquismo, mas a própria vida, que ela libera e amplia às dimensões do homem total. Vinculada à realidade revolucionária, enriquecendo-se nas fontes da ciência, cuidando da adequação da forma à função, ela não obedece a nenhum dogma. Reinserida no material, a arte contribui para devolver os objetos àqueles que os produzem.


XX -- Herança cultural

No decorrer dos anos 30, os "realistas" triunfam em todos os campos. Politicamente, a mudança de vida, cujo nível a despeito de tudo se elevou, é deixada para mais tarde. Ideologicamente, presume-se que os valores antigos constituíram uma necessidade crescente das massas, que não compreenderiam nem acompanhariam mais as vanguardas. A assimilação da herança cultural é transformada em prioridade das prioridades. A arquitetura torna-se a arte dos mestres nesta matéria. Permanece como a arte de construir e de adaptar "cada edificação aos imperativos técnicos, culturais ou utilitários que lhe são próprios". Mas o que importa é a união íntima da expressão ideológica com a verdade da 'expressão artística. Esta proposição não é tão vazia quanto parece. Significa que os arquitetos devem, nestas condições, tornar expressivo um projeto social que foi decretado sem a sua participação.


XXI -- Meio material

Nos anos 50, quando o socialismo não é mais construido em um país somente e a industrialização da construção civil está deslanchando, a arquitetura continua sendo a arte de edificar. Contudo, se bem que ela não se identifique com a construção, não pode ser considerada exclusivamente como uma das disciplinas da arte. Suas obras são ao mesmo tempo do domínio da arte e da cultura material. Dez anos depois a arte de construir desaparece das definições: A arquitetura é o meio material criado pelo trabalho humano no qual acontecem a vida e a atividade do homem . . . A arquitetura é uma forma da cultura material e, destarte, está estreitamente ligada à atividade produtiva da sociedade; ao mesmo tempo, é também uma categoria da arte. (Elementos de estética marxista-leninista, 1962, pp. 540-541). O aparecimento do conceito de meio indica urna mudança de escala do objeto da arquitetura, a domesticação de espaços interiores cada vez mais compactos.

A reviravolta expressa por esta definição desemboca num debate que prossegue até hoje. Alguns pensam que a arquitetura, como o desenho industrial, é urna arte aplicada. Outros, contrários a esta tese, acrescentam inclusive que, se a arquitetura é meio material, não pode ser também arte, o que não exclui a influência da arte na arquitetura. Para Bruno Flierl, que está envolvido na polêmica desde que nela se empenhou, a arquitetura é o meio ambiente do homem, seu espaço construído, determinado pela história e a sociedade, modelado esteticamente e modelável pela arte, no qual o homem realiza sua vida e suas atividades. Ela é executada tecnicamente na qualidade de produto material, necessário e utilizado, do trabalho criativo. Serve de meio sociocultural orientado para a comunicação social e manifesta-se como objeto concretamente formado da percepção sensorial (Bruno Flierl, 1967, Academia Alemã de Arquitetura, 1967, pp. 44-45)
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XXII -- Idioma vindo de alhures

O empenho ds homens em fazer com que a arquitetura fale não nos ajuda a aclarar seus discursos a este respeito. O que se passa na realidade? A arquitetura é um dos constituintes do ferramental criado pelo homem para apropriar-se da natureza. Esses utensílios que o cercam e o servem só existem por e para ele. Produtos do pensamento e das mãos homem, continuam sendo, contudo, objetos da natureza, fragmentos de matéria, cujas leis são inalteráveis. Uma vez criado, e embora devendo sua existência e seu poder à atividade criadora, o utensílio inicia urna vida autônoma, num sentido fictício e num sentido real.

A atividade consistiu em separar o objeto utilizável da massa indefinida do universo, em dar-lhe urna realidade prática distinta da dos outros objetos. Tudo o que restabeleça as relações do objeto com seu contexto material o reintegra na indiferenciação do todo, aniquila-o corno produto humano eficaz. Por exemplo, a oxidação e a inadequação do dimensionamento da viga metálica acarretarão sua ruína. Isolado da natureza, tendo recebido urna forma própria e um nome, entrando em relação com seus congêneres, o objeto põe-se a falar ao homem como professor num idioma que parece vindo de outro lugar
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Assim, a atividade humana produtora de objetos torna-se criadora de ilusões. Sua relação com os objetos desenvolve-se contraditoriamente. A atividade concretiza-se em e para os objetos e perde-se simultaneamente. Os objetos supõem-na, encarnam-na, contêm-na, mas dissimulam-na. O que o homem faz :a arranca também de si mesmo. Fetichismo e alienação acompanham a realização das coisas humanas. Não admitir isso é como tomar gato por lebre e querer que os outros também o tomem.


XXIII -- Comédia dos senhores

Como os foguetes, a alienação funciona pela queima de vários estágios propulsores. Com a divisão do trabalho material e intelectual, o espírito pode libertar-se da realidade e construir abstrações, desenvolver teorias. As representações elaboradas substituem o conhecimento imediato, usado e abusado. Esse progresso não impede a consciência de imaginar-se que é outra coisa distinta da consciência da prática existente. Ao contrário, impele ao crime, possibilita as grandes fantasias ideológicas que partem de uma realidade, refletida em seguida por meio das representações existentes, selecionadas e admitidas pelos grupos sociais dominantes, mas, que, apesar disso, se arvoram em totalidade.

Esses produtos espirituais não têm em si mesmos nenhum poder. Eles vêm a ser mutilantes na medida em que se introduzem na linguagem, produzem desvios de pensamento e se traduzem em formas, principalmente arquitetônicas. Quando são captados e intencionalmente utilizados pelo poder econômico e político, tornam-se francamente opressivos. Os senhores são obrigados a manter os subordinados em subordinação. Precisam vigiá-los, intimidá-los, incitá-los a trabalhar, ao mesmo tempo em que reforçam o seu prestigio de senhores. Violências e comedias são necessárias para a manutenção da ordem.

Daí a profusão de imagens e palavras destinadas à auto-exaltação da classe dirigente, à sua glorificação pelas classes dominadas, à desconsideração e à autodepreciarão dos oprimidos. A arquitetura e suas teorias mostram gritantemente a que grau de refinamento podem ser levadas as práticas mistificadoras. Agir como se elas não existissem e perorar imperturbavelmente sobre a carga semântica e o código simbólico dos monumentos, das casinholas dos subúrbios e dos traçados urbanos e considerar as pessoas atrasadas e perpetuar seu costume ao fetichismo.

É precisamente à relação do homem com os fetiches que os marxistas chamam de alienação. Ela manifesta-se como arrancamento de si e perda de si mesmo; a potência do homem e substituída por uma potência estranha que o subjuga e que ele não pode dominar. Drama que só terá fim com a reconquista pelos homens da sua própria potência, com a supressão dos superfetiches, sejam eles a mercadoria, o dinheiro, o capital ou o Estado.


XXIV -- Materialização da potência criadora do homem

A emergência e a expressão do poder criador do homem muitas vezes são expostos pelos marxistas como elementos de compreensão do fenômeno estético e da arte em geral. Multiplicando os meios de satisfazer suas necessidades, o homem cria necessidades novas. Por exemplo, a questão não é mais aquecer-se e cozer os alimentos, mas não sofrer o inconveniente da fumaça que invade o ambiente. A urgência imediata não sendo mais uma obsessão de todos os instantes, estabelece-se um distanciamento em relação à necessidade. O homem pode então elaborar projetos, contemplar a obra acabada, regozijar-se não apenas com a sua utilidade, mas também com o testemunho que ela comunica do ato criador. Aqui nasceria o sentimento estético e a possibilidade de obras cuja função primordial seria refletir para o homem a imagem da sua potência criadora. Esta hipótese suscita numerosas indagações muito embaraçosas que tendem a mostrar que ela, sozinha, não é suficiente para urna abordagem da totalidade da realidade. Em todo caso, a arquitetura, que nunca é objeto de puro consumo cultural, escapa-lhe em boa medida.

O pensamento de William Morris e dos construtivistas russos, sem dúvida porque estava firmemente embasado na prática, não deparava com este limite. Dentro da perspectiva aberta por esses criadores comprometidos com a luta revolucionária, a arte e a arquitetura desfetichizam-se a tal ponto que o problema do seu relacionamento não aparece mais. O prazer da potência humana efetiva-se no trabalho e no uso concreto dos produtos do trabalho. Estende-se à totalidade da produção com o desaparecimento da exploração do homem pelo homem, quer dizer, da maldição que pesa sobre o trabalho, o intercâmbio comercial e o consumo. Assim sendo, tudo aquilo que é fabricado pelo homem volta a ser obra de arte, expressão do prazer fruído do trabalho livre, materialização da força criadora humana apropriada. E a arte estando no todo, seu nome desaparece da linguagem.


XXV -- Arma dos sem-teto e dos mal-alojados

Raciocinar sobre o conceito de arquitetura pode parecer despropositado quando, neste final de século XX, existem na Terra cem  milhões de homens e mulheres totalmente sem abrigo e mais de um bilhão que dormem em tugúrios feitos de papelão, de latas amassadas e de taipa, sem falar do número incalculável de famílias que, a peso de ouro, ocupam casas superpovoadas, as multidões que diariamente suportam cidades de pesadelo. Essas massas lutam de várias maneiras para reapropriár-se do mundo que lhes foi confiscado pelos abastados pugnam por obter os meios de satisfazer suas necessidades, entre elas a sua necessidade de arquitetura. Entre esses meios, o conhecimento do que é a arquitetura não é desprezível. Já é tempo de vulgarizar realmente esse conhecimento. Porém isto não basta. É preciso expungir a arquitetura de todos os seus falsos mistérios, desembaraçá-la de sua tendência para a mitomania. Tal é a condição para que ela possa servir de instrumento aos que mais necessidade têm dela


B i b l i o g r a f i a :

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