quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O PERÍODO EUROPEU DE GRANDJEAN DE MONTIGNY Parte III


Frank Svensson. Apontamentos para o estudo das origens europeias da arquitetura no Brasil. O trecho referente a Grandjean de Montigny na Europa.


A atuação de Montigny na Alemanha

Entre 1810 e 1813 Montigny trabalhou, na cidade de Cassel, para Jerome Bonaparte, a quem Napoleão fizera rei da Vestfália do Norte. Não é possível ignorar o fato de tratar-se de um cargo de arquiteto num governo de intervenção, ou mesmo, de ocupação.. Isso explica, em parte, por que o trabalho de Montigny, em Cassei e em suas cercanias, constitui um período pouco conhecido da sua obra. Parece, mesmo, tratar-se de atividades mais conhecidas no Brasil do que na própria Alemanha.


Capa de livro publicado por Montigny sobre o seu projeto para a sala do trono de Jerome Bonaparte, em Cassel

No Brasil, o seu próprio testemunho, dado a seus alunos e por esses a outras gerações de arquitetos do Rio de Janeiro, viria a resultar no inusitado interesse atual por sua vida c obra.

Na Alemanha os príncipes territoriais eram grandes proprietários de terra, permitindo uma nova forma de feudalismo. Diversos fatores haviam debilitado o poder político e econômico da burguesia alemã. O espírito burguês, quanto às artes, brilhava com sua ausência durante os séculos XVII e XVIII.          O estilo cortesão-aristocrático era diretamente importado da França ou trazido por intermédio de artistas franceses, convidados a trabalhar na Alemanha. Comum também era se copiar obras francesas. inclusive as de arquitetura. 28

 A dinastia de arquitetos Du Ry constitui um exemplo disso. Ligou-se a Cassel através de convite feito para vir atuar na região de Hess feito a Paul Du Ry que se encontrava trabalhando na Holanda. O filho de Paul, Charles Du Ry (1692-1757), veio, poste-riormente, a ser o Oberbaumeister em Cassel. Ali nasceu o filho deste, Simon Louis Du Ry (1726-1799), o qual estudou arquitetura na Suécia, na França c na Itália, tornando-se mais conhecido por seu plano para a cidade de Carlsruhe.29

Simon Louis Du Ry foi substituído, em Cassei, logo antes de sua morte, pelo arquiteto alemão Heinrich Christoph Jussow (1754-1835). Durante três anos Jussow havia estudado, na França e na Itália, como bolsista do conde regente da região de Hess. Ganhou, ainda, uma bolsa de um ano para estudar na Inglaterra. Jussow foi Baudirektor da cidade de Cassel até a ocupação francesa, a qual durou de 1806 a 1813.30

Durante o período de Jerome Bonaparte corno rei da Vestfália do Norte, Jussow, um arquiteto de grande experiência, foi substituído pelo bem mais jovem Grandjean de Montigny. Por que foi substituído e a partir de que princípios éticos c/ou ideológicos Montigny aquiesceu em substituí-lo é difícil detectar com precisão. O fato constitui, no entanto, um exemplo histórico de algo que não é nada incomum, principalmente em se tratando de trabalho de arquiteto em pais que não o seu de origem.

Em situações sustentadas por novas condições políticas, ou financeiramente promissoras, muitos arquitetos têm substituído outros sem a mínima atenção para com os trabalhos anteriormente já desenvolvidos por aqueles. Isso é feito principalmente em se tratando de substituir os arquitetos do país hospedeiro, sem maiores problemas de consciência ou de ética e sem maior cuidado em arraigar as propostas no contexto cultural e histórico do novo país.

Para tomar posição em face de um tal comportamento, parece-nos necessário considerar que a ética surgida com a passagem da formação feudal para a capitalista, como era o caso na França, implicou o surgimento de um novo tipo de indivíduo, o qual passou a julgar o mundo de maneira nova e a se comportar de forma distinta da da nobreza. Novos róis e novos valores surgiram e, com isso, uma nova maneira de pensar. Formou-se uma nova estrutura de consciência ética. Conhecimento e moral passaram a desenvolver-se em ação reciproca, formando uma unidade totalmente nova. A época da li-vre concorrência abriu novos campos à criatividade do arquiteto.

Com a revolução burguesa, as formas de supremacia de classe foram forçadas a se modificar. As formas pelas quais as diferentes classes sociais se comunicavam entre si ganharam traços mais dignos. Tratava-se de novas condições de classe, marcadas por re-lações humanas que, quanto à forma passaram a mostrar traços de maior consideração para com o próximo. Mas, quanto ao conteúdo, permaneceram antagônicas com relação ao poder e à propriedade.

Hipocrisia, egoísmo e interesses mercantis, continuaram a impregnar as relações humanas comuns à formação socioeconômica capitalista. O desenvolvimento de novos hábitos deu-se dentro de um processo cheio de contradições. As questões relativas à personalidade do arquiteto passariam a ser vistas como o centro de sua vida espiritual, com extensões aos campos da ética, da filosofia, da religião e das artes. Suas iniciativas passaram a ser relatadas ao conceito de sucesso. Obter o mesmo implicaria em reco-nhecimento social, fazendo crescer, como consequência direta os méritos morais do arquiteto em questão. A iniciativa, o empenho, o cálculo e a intensidade aplicada em obter a solução das contradições pessoais ligou-se à ambição, apresentada como um es-tímulo natural da sua vida social. •

À descoberta que o homem fez de si mesmo, segundo o en-foque burguês, se seguiu a crença de que a libertação do indivíduo automaticamente implicaria seu aperfeiçoamento moral. A forma de atuar do arquiteto passou a refletir a confiança na capacidade de o indivíduo livre autodesenvolver-se. Um desenvolvimento sem pré-requisitos, que não pode levar a resultados que não os favoráveis, mesmo os de ordem moral. O individualismo e o racionalismo caracterizam essa liberdade de pensar, de amar e de criar do indivíduo.

Para a arquitetura surgiu um novo tipo de personalidade. A arte da Renascença jogou luzes sobre o mundo interior do arquiteto, exposto a tendências contraditórias, inerentes ao novo período. Um período que misturou de forma muito nítida, valores em extinção com aqueles que surgiram com as condições burguesas. Uma tensão que se desenvolveu ligada ao enfoque da personalidade do indivíduo, como ser natural e como ser moral, e que marcaria, de forma muito clara, todo o século XIX.

Durante o período bonapartista de Montigny, a origem revolucionária do mesmo não pode ser ignorada, mas ao mesmo tempo o significado popular da Revolução era aniquilado inapelavelmente. O poder pertencia à bem aquinhoada burguesia. O apoio que esta obtivera da classe operária, para conquistar o poder, passou a ser totalmente ignorado. Da mesma forma, as tendências contraditórias da arquitetura tornaram-se nítidas, pondo aquelas que limitavam-se a buscar o cerimonial e o convencional, em contradição com as que buscavam o conhecimento de novas formas de vida e de trabalho.

A arquitetura que buscara conhecimento na História, desde que Souflot fornecera os desenhos para a igreja de Saint-Geneviéve (Pantheon), em Paris, passou a entregar-se a elegante ilusionismo e à astúcia para com os princípios da arte renascentista. A reinterpretação das expressões da Antiguidade, passou a sofrer influências de uma nova visão de mundo e a conduzir a uma nova interpretação da liberdade de fazer arte.

A liberdade reconhecida ao gênio passou a ser entendida como um direito de cada arquiteto. Toda e qualquer expressão pessoal passou a ser considerada como única, insubstituível, obedecendo a leis próprias e a seu código próprio de normas. Ao arquite-to passou a ser permitido integrar escolas, grupos e ter irmãos de luta, mas em se tratando de criar só era considerado a si mesmo. Tratava-se da arquitetura proposta por um homem isolado, diferente da de seus confrades de produção arquitetônica.31


As obras de Montigny na Alemanha

As atividades de Montigny na Alemanha implicaram a manutenção de edifícios da corte e da capital da Vestefália do Norte, bem como na elaboração de projetos para agradar a nova "Casa real". Os desenhos de seus projetos estão guardados em diferentes luga-res. Afora seis desenhos existentes no Rio de Janeiro, há uma proposta de ampliação da cidade de Cassei, no Hessisches Staatsarchiv, na cidade de Marburg. Outra parte desta mesma proposta existe em Potsdam, no Zentrales Staatsarchiv. Alguns desenhos e croquis existem arquivados no Staatlichen Kunstsamlungen do Palácio Wilhelmshóhe, em Cassei. Ali se encontram, também, dois exemplares de seu livro: Palais des États et Sa Nouvelle Sale a Cassel.32

Este livro consta de oito páginas de texto, descrevendo o projeto, e nove pranchas com desenhos de plantas, secções e detalhes para a Sala do Trono e do Parlamento, no antigo palácio residencial do conde regente. Durante o reinado de Jerome Bonaparte na Vestefália do Norte, esse palácio recebeu o 


Grandjean de Montigny: Planta da Sala do Trono e do Parlamento, em Cassel, Vestefália do Norte.

o nome de Palais des Etats. Hoje é conhecido corno Museu Friedricianum e funciona, também, como sede das bienais de arte moderna que se realizam em Cassel. Foi impresso em Paris em 1815, o mesmo ano em que foi editado o seu livro sobre a arquitetura da Toscana. Ambos os livros são do mesmo tamanho (30x47 cm) e impressos litograficamente no mesmo tipo de papel.

Morales de los Rios localiza, erroneamente, a Sala do Trono e do Parlamento no Castelo Wilhelmshõhe, e não no atual edifício do Museu Fridericianum, onde realmente foi construída. Visitando o museu, o autor encontrou uma sala dedicada à história do edifício.. Nela estão expostos os desenhos de Grandjean de Montigny (um exemplar de seu livro) para a Sala do Trono, mas sem permitir ao observador verificar que se trata de um projeto daquele arquiteto.

Os desenhos aqui citados cobrem somente uma parte dos trabalhos de Montigny em Cassel. Sabe-se que no Salon de 1814, em Paris, ele apresentou, entre outras propostas. uma de um arco triunfal para os Grandes Écuries, uma ponte e alguns chafarizes, para aquela cidade.33

Montigny propôs a construção, junto ao castelo Wilhelmshöhe, na época rebatizado para Napoleonshöhe, de um pequeno teatro que pudesse servir ao mesmo tempo como sala de baile. Seus desenhos mostram um pequeno edifício, de um só piso. Abrigaria 26 lugares no camarote real, o qual estaria situado ao fundo da sala e ligeiramente elevado com relação ao piso do teatro, capaz de receber pelo menos urna centena de espectadores. Um arquiteto alemão por nome Klenze reivindica a autoria desse projeto.

O projeto de Montigny, conservado no Rio de Janeiro, leva a mais de uma formulação teórica. As colunas superpostas que indicam a forma arredondada da sala parecem retomar una forma simplificadade um projeto de tipo Durant da Ecole Polyteechnique, em Paris.34


                       Grandjean de Montigny: Desenho de móvel. Arquivo Wilhelmshõhe, Cassei.


Le Vieux Chateau de Cassel incendiou em 1811. Montigny, em colaboração com Hector Scholer, apresentaram um projeto para sua reconstrução. Propuseram, também, uma praça com fontes e estátuas. Projetos que jamais foram executados.
Depois desse incêndio, Montigny elaborou o projeto de um novo palácio real a ser implantado na cidade. Dois desenhos brasileiros mostram essa proposta cir-cunstanciada a uma praça redonda no fim da Rue Royale. Através de um jardim irre-gular chegar-se-ia à praça onde viaturas poderiam depositar os visitantes. Dali se entrava no edifício de planta quadrada. Um projeto mais simples parece propor uma variante menos custosa, na qual foram eliminadas as alas do palácio.

Grandjean de Montiguy: Desenho de móvel. Arquivo Wilhelmshõhe, Cassel.

Morales de los Rios atribui a Montigny dois parques de tipo inglês. Um deles é a proposta de ajardinamento para o novo palácio em Cassel. O outro, Parque Cathrinenthal, denominação ocasional para o parque do Castelo Wilhelmthal, a 7 km de Cassel, faz parte de uma propriedade de veraneio do antigo conde regente da região. No castelo, hoje museu, o visitante poderá comprar publicações sobre o mesmo, nas quais o parque projetado por Montigny consta como tendo sido configurado pelo paisagista alemão Daniel August Schwartzkopf. 35

A falta de interesse dos pesquisadores alemães para com a obra de Montigny, em Cassei, prende-se, naturalmente ao fato de ter sido ele um arquiteto da ocupação francesa daquele pais. Some-se a isso o fato de as propostas de Montigny não apresentarem o nível de outros projetos elaborados por arquitetos franceses estacionados em outros países da Europa, na mesma época. É de se perguntar, ainda, se a distância, no espaço e no tempo, entre a Alemanha e o Brasil e entre a época de Montigny e a nossa, não tenha permitido idealizações e fantasias a respeito, tanto da parte dos que, hoje, à partir da Alemanha ou do Brasil, preferem esquecer ou dos que querem tornar mais clara a memória da obra de Montigny. Um problema ligado à romantização e à idealização comum aos que em outro país que o de origem vão trabalhar num contexto cultural e profissional distinto.


Grandjean de Montigny fica desempregado e deixa a Europa

Com a queda de Napoleão Bonaparte, em 1813, Grandjean de Montigny perdeu o emprego e teve de deixar Cassel. O tzar da Rússia Alexander I dirigiu-se, em 1815, aos arquitetos Percier e Fontaine pedindo que sugerissem o nome de um arquiteto para o cargo de professor de arquitetura na Academia imperial de Belas-Artes de São Petersburgo. Esse arquiteto iria substituir o arquiteto Thomas de Thomon, também laureado Prix de Rome, e falecido em 1814. Montigny foi o primeiro nome lembrado para tal cargo, mas este declinou do convite preferindo a possibilidade surgida de seguir para o Brasil.

Montigny veio ao Brasil, em 1816, junto com um grupo de artistas e artesãos franceses. O Rei de Portugal, havia sido convencido, pelo embaixador da Inglaterra naquele país, a mudar-se para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, em 1811, ano em que o rei Dom João VI seria coroado o imperador do novo mundo de língua portuguesa, com sede de governo na cidade do Rio de Janeiro.

Grandjean de Montigny viria a ser a figura principal das mudanças arquitetônicas pelas quais o Rio de Janeiro iria passar no quarto de século a seguir. Por ironia da História, as referências para a nova arquitetura e a nova configuração urbana da nova sede do Império seriam justamente a nova arquitetura e a nova configuração urbana da Paris de Napoleão Bonaparte, de cujas tropas invasoras D. João VI fugira para o Rio de Janeiro.

N o t  a s :

28 Arnold Hauser: Historia Sopcial de la Litteratura y el Arte. 3 vols. Ediciones Guadarrama. Madri. vol II, os capítulos: Alemania y ia Ilustración, Revolución y Arte, e El Romantismo Aleman y el Europeu Oc-cidental, pp. 797-959.

29. Hans-Cristoph Dittscheid: Kassel - Willhelmshõhe, und die Krise des Schlossbaues arn Ende des Ancien Régime (Cassel -Willhelmshõhe e a Crise dos Castelos no Fim do Ancien Regime). Wernersche, Alemanha, 1987, pp 19-26.
30. Ibidem,

31. A. Titarenko: La Structure de ia Conscience Morale Essai de Recherche (A Estrutura da Consciência Moral - Ensaio). Eds. du Progrés, Moscou, 1974, o trecho: “Traits Fondamentaux de la Structure de ia Conscience Morale Bourgeoise” (Traços fundamentais da Estrutura da Cosciência Moral Burguesa). pp 142-156. Ver ainda de Shiskin. A. F.,: Etica Marxista. Ed. Grijalbo S.A., México DF, 1966.

32. Grandjean de Montigny: Palais des Etats et Sa Nouvelle Sale a Casse! - Publié par Grand'Jean de Alontigny, Premier Architecte de S. M. le Roi de Westphalie. Paris, 1815.

33. Grandjean de Montigny (1776-1850) - Un architecte français à Rio. Catálogo da exposição sobre a obra de Montigny, promovida pela Biblioteca Marmottan, entre 26 de abril e 25 de junho de 1988, em Boulogne-Billancourt. O trecho de Werner Szambien: “Grandjean de Montigny à Cassei”, pp 29-35.

34. Ibidem, 

35. Wolfgang Einsigbach. e Franz Xaver Portenlanger: CALDEN-Schloss und Garten Willhelmsthal (CALDEN-Castelo e Parque Willhemsthal). Verwaltung Der Staatlichen Schlõsser und Garten (Administração dos Castelos e Parques estaduais). Hessen. Bad Homburg vor der Hõhe, 1980.


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