quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UNIVERSIDADE POPULAR E DEMOCRÁTICA - Uma universidade diferente.


Horácio Macedo em manifestação. Rio, 1998. Foto Leila Jinkings.


Prof. Horácio Macedo Ex-Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Documento apresentado ao Congresso Nacional da UNE, realizado em Brasília no início de 1995 *.


A educação no Brasil nunca deixou de ter o domínio da classe dirigente. Elitista, alienante, excludente, conservadora, em nenhuma época, e em nenhum nível, teve qualquer intuito de formar pessoas com o impulso e a vontade de transformar o quadro político e social. Sempre teve como tarefa principal a integração da juventude nos padrões e cânones da sociedade existente e a transformação de todos em bons cidadãos — ordeiros, conformados, enquadrados. A educação se faz visando a fortalecer a injusta e perversa ordem social, em lugar de ser um processo de libertação dos corações e das mentes. E um processo diabólico em que se criam cidadãos à imagem da sociedade em lugar de se criarem as condições para se ter uma sociedade à imagem dos cidadãos — criativa, estimulante, justa, igualitária e fraterna.

Não é menor o papel da universidade neste processo. De formadora dos quadros essenciais das classes dirigentes — advogados para a defesa da estrutura institucional, engenheiros para as estradas e fábricas, médicos para a saúde dos ricos — transformou-se, a partir dos anos da ditadura, num poderoso instrumento de dominação do capital.

De forma sutil e atraente. Moldada nos padrões da universidade dos EUA, a universidade brasileira visa a reproduzir, nas terra tropicais, uma estrutura baseada nos padrões de atividade e de excelência da instituição norte-americana. É a universidade do saber e da pesquisa, da integração dos intelectuais no inundo do capital. Nesta universidade não são sujeitos, nem mesmo objeto (a menos de objetos de pesquisa), os marginalizados, os trabalhadores, os pobres, os ofendidos e humilhados pela estrutura social.

Beneficiando-se do grande prestígio das ciências e dos avanços do conhecimento, as universidades dispõem de potente mecanismo de cooptação das melhores cabeças entre os estudantes. Já está chegando na universidade a onda da nova geração de professores que não têm outro interesse senão o de construírem uma carreira científica que lhes abra, como tem aberto, o caminho do prestígio pessoal e o da participação no poder. 

Existem, porém, na universidade, forças comprometidas com um futuro diferente. São forças que tornam vivas na instituição as contradições dolorosas e profundas da sociedade. São grupos de professores, são grandes correntes de servidores técnico administrativos, são parcela dos estudantes. A ação contra a universidade alienada e alienante tem que ser feita com a unidade destas forças. E a unidade destas forças depende, em medida muito grande, da posição dos estudantes. Foram os estudantes que, no decênio de 40, catalisaram a oposição dos brasileiros ao nazi-fascismo. Foram os estudantes que, no decênio de 50, arrebentaram com a estrutura da universidade dos catedráticos. Foram os estudantes, recentemente, que provocaram a expulsão de um presidente tão direitoso quanto o atual, sôfrego e voraz no exercício do poder. Toda esta potencialidade de ação dos estudantes pode ressurgir com força para colocar a universidade no olho do furacão da luta política.

A universidade tem que se abrir para os excluídos. Não para tutelá-los nem para dirigi-los. Mas para criar condições de se transformar em função dos problemas dramáticos da massa trabalhadora. Abrir-se para os marginalizados significa, num primeiro instante, ir materialmente (por intermédio de estudantes, professores e servidores) até eles para saber onde pode se inserir, com o seu saber e a sua prática. Num segundo momento, significa desenvolver um trabalho permanente que assegure seja a prática acadêmica uma prática social com os excluídos.

Não se trata, pois, de academicismo ou de tentativa perfuntória de interação com a so-ciedade. Trata-se da admissão profunda de um compromisso social entre a universidade e o povo oprimido; de uma opção pelos pobres, como fizeram os setores avançados da igreja. Se assim for feito talvez se possa criar uma universidade de novo tipo. Que não será, sem dúvida, uma Harvard ou uma Oxford transplantada para a terra do Brasil. Mas será uma universidade neste país do Terceiro Mundo, com uma função social avançada e importante, vivendo e sofrendo com o povo, formando cidadãos com uma consciência viva e critica, libertos e libertários, contestantes e contestadores, capazes de ajudar a fazer uma sociedade diferente e justa neste nosso pais.

Uma utopia, sem dúvida, nos dias de hoje. Mas o mundo se fez e se faz com os sonhos que se materializam. E os sonhos que se sonham correspondem às necessidades férreas da evolução social. Estas necessidades estão batendo às portas da universidade. Saibamos abri-las de par em par.


Porque Universidade Popular ?

Esse movimento foi lançado com o intuito de criar um projeto realmente alternativo para a universidade. O que motivou foi a constatação de que a universidade brasileira é um dos modelos da neoliberalização e da qualidade total na educação sem qualquer    resistência efetiva, apesar de tanto o movimento estudantil quanto o de funcionários e professores defenderem a universidade pública para todos. A principal ideia que nos veio à mente foi a de que falta de resistência efetiva seja resultado de um entendimento estreito do que é universidade pública.

Percebemos que o significado do público restringiu-se a gratuito, principalmente no movimento estudantil. No Aurélio, público significa: do, ou relativo, ou pertencente, ou destinado ao povo, à coletividade. Que diferença de significados! Será que a universidade não pode ser gratuita mesmo se estiver trabalhando para e sendo sustentada pelos interesses privados? Ora, é claro que o problema ultrapassa a semântica! A universidade, assim como o Brasil e o mundo, é palco de urna acirrada disputa de projetos. De um lado, o projeto do exportador, formalizado em neoliberalismo. Do outro, o projeto de libertação da grande massa explorada, de sua ascensão ao poder e da construção de uma sociedade igualitária e fraterna. Banalidade? Não — o eixo de toda a questão. Se se perde de vista a luta de classes, qualquer tentativa de defesa da universidade pública cai no idealista e no reacionário! Todos defendem a "universidade pública", mas poucos querem com isto torná-la coisa do povo e para o povo! Por isso optamos por Universidade Popular; pública em todo o seu conteúdo.


A Universidade Neoliberal

 A universidade, mais do que nunca, é uma penitenciária às avessas, em que se prende o que está fora. Fizeram dela uma cidade de cristal fortificada contra a barbárie social. Nestes últimos anos, o mundo passou por graves modificações. Enquanto o socialismo vive sua crise, as forças capitalistas internacionais, sob a forma neoliberal, ampliam sua bárbara dominação. Sofre com isto a imensa maioria da humanidade. A criação de blocos econômicos, a corrida tecnológica sem limites, o intervencionismo militar e a consequente ampliação da submissão dos países de terceiro mundo são fatores visíveis desta nova fase.
Com Collor e sua modernidade, o Brasil cai totalmente sob o jugo das grandes potências. Inaugura-se aqui a era das barbáries. São exatos e mortais os tiros: arrocho salarial, sucateamento do Estado, privatizações, desemprego em massa. Nunca houve tanta fome e miséria. Nunca o Estado esteve tão fraco. A democracia que conquistamos demonstrou-se puramente formal e artificial. Da ditadura das armas, passamos à da mídia e dos mecanismos econômicos. Livre mercado, Estado mínimo etc. aparece, claramente como mecanismos de justificação à implantação da barbárie social.

O neoliberalismo no Brasil se fortaleceu a tal ponto que nem o impeachment o abalou. Ao contrário, com Itamar ele se fortaleceu ao ponto de infligir a grave derrota ao projeto democrático-popular que foi a eleição de Fernando Henrique. É justamente devido a esta derrota das forças populares que como nunca torna-se imperativo defender a universidade popular. ! Não há como negar a luta de classes! A universidade está nela e é instrumento de opressão.

Urge virar isto. O primeiro passo é a luta por urna universidade popular, ou seja, a luta contra a implementação do projeto neoliberal, bem corno pela execração da tecnocracia (tecnicismo + burocracia). No final da década de 60, no contexto da Guerra fria e do militarismo, foi efetivamente implantado o Programa Brasileiro-Americano de Auxílio ao Ensino Elementar (PABAEE), cujo eixo e
ra o modelo tecnicista de ensino e que rapidamente dominou a universidade. Sua essência é colocar o processo educacional como meio de organizar o processo de aquisição de habilidades, atitudes e                  conhecimentos específicos, úteis e necessários para que os indivíduos se integrem na máquina do sistema global. O papel da escola é o de aperfeiçoar o sistema vigente articulando-se com o sistema produtivo.

Neste modelo, o professor e aluno são ambos espectadores frente à realidade dada. Atualmente, a estratégia de dominação tem se modificado devido às graves transformações e crises mundiais. O neoliberalismo aparece como saída. Seguindo o seu pressuposto geral, alia o modelo tecnicista à proposta privatista. Além de preparar autômatos, liga-os diretamente — sem a interferência do Estado — aos interesses priva-dos. Nesse sentido, o ensino, torna-se meio de alienação, a pesquisa só é viabilizada se atende aos interesses do grande capital e a extensão reduz-se à prestação de serviços. Também o sustento da universidade é afetado; com a retirada de verba pública, discute-se oportunisticamente a autonomia universitária e o fortalecimento das fundações corno meio de efetivar a prostituição do conhecimento.

Fortalece-se a estrutura departamental e ameaça-se qualquer projeto interdisciplinar. Criando em vez do universal, o feudo. Conhecer cada vez mais sobre cada vez menos é a melhor política de alienação. A modernidade retrógrada se implementa na prática:  qualidade total — diminuem-se custos, desaparecem profissionais das relações e o Estado vira ficção — produtividade rápida, setorizada e de qualidade. Para quem ?

Pontos fundamentais para a construção do projeto Universidade Popular — Formas não elitizantes de admissão à universidade; O sistema de vestibular hoje adotado privilegia apenas aos estudantes mais abastados que tiveram possibilidade de cursar bons colégios e bons vestibulares. Além disso, é baseado numa proposta de ensino colegial em que o automatismo toma o lugar da interpretação. O acesso democrático deve estar adequado à realidade vivida pela imensa maioria dos jovens — o trabalho. Por isso, a não segre-gação pode passar, inclusive, pela garantia de privilégios aos jovens trabalhadores. 


Ensino para uma sociedade em mudança.

Nosso ensino em todos os níveis é meio de opressão à medida que privilegia a apreensão mecânica dos conteúdos. Mesmo os profissionais identificados com outra proposta são limitados, ou pelas péssimas condições de trabalho, ou pela imposição da meta de vestibular. A partir disso, o educando perde a noção de uma sociedade em mudança, apreende conceitos estáticos. Torna-se incapaz de interpretar a realidade e, portanto, de transformá-la. A popularização passa por uma reorientação do ensino em todos os níveis. — pesquisa voltada para o real desenvolvimento nacional (auto-sustentado) e para a resolução das mazelas sociais; — Extensão voltada para as áreas marginalizadas da sociedade;

Pesquisa e extensão são áreas de ação universitárias que mais diretamente afetam a sociedade. Por isso, foram totalmente estereotipadas. A degradação da pesquisa ocorre em vários níveis, dentre os quais o mais importante é a falta de verbas públicas. Sem elas, só há viabilidade nas garras privadas. A extensão é totalmente desvalorizada. Na universidade brasileira, por exemplo, além de ter ação limitada está voltada quase sempre ao atendimento de empresas ou da classe média. Deveria, no entanto, estar adequada à realidade brasileira e contribuir para a melhoria das condições de vida da imensa maioria dos trabalhadores. — Universalidade do currículo; fim da estrutura departamental e fomento real à interdisciplinaridade. Isso envolve uma longa discussão filosófica acerca do papel da educação na produção do conhecimento. Mas este não é o objetivo aqui. Importa é perceber que saber cada vez mais sobre cada vez menos, perdendo a visão do todo, contribui para tornar incompreensível a realidade. Assim como a cátedra, também a estrutura departamental fecha o conhecimento em círculos restritos, impedindo sua divulgação e ampla utilização em todas as áreas do saber. Qualquer tentativa de interdisciplinarizar a construção científica tem esbarrado nos limites impostos pelo departamento. Universalizar o currículo visando um conhecimento mais holístico é tarefa indispensável para desatar os grilhões.


* Horácio Cintra de Magalhães Macedo (Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1925 — 1999) foi químico, comunista, professor brasileiro e reitor.

O professor Horácio Cintra de Magalhães Macedo foi um dos grandes defensores da universidade pública de qualidade para todos. Em 1985, foi o primeiro reitor democraticamente eleito no Brasil (UFRJ 1985/89), sob a bandeira do ensino público, gratuito e autônomo. Compatibilizou ciência e política como poucos intelectuais o fazem hoje, incondicionalmente inscrito na utopia de um Brasil socialmente mais justo, democrático, livre e soberano. Horácio era um homem do século 21, da sociedade socialista, justa e igualitária.


Um comentário:

  1. Parabéns Frank. Boa matéria sobe a educação.
    Gostei muito. Continue sempre assim.

    ResponderExcluir