quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A ARQUITETURA COMO FORÇA PRODUTIVA – Parte II

Francesco La Regina.* Texto extraído de Archittetura, Storia e Politica, 1976.

* Francesco La Regina foi professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de - Nápoles. Desenvolveu trabalhos e pesquisas na área do patrimônio histórico arquitetônico e ambiental. È autor de trabalhos como: William Morris e l'anti-restoration mouvement e Regioni: beni culturali e territorio (com R. di Steffano e A. Aveta).

Estando em íntimo contato com as transformações mais profundas da sociedade moderna, a arquitetura deve reivindicar o caráter político como horizonte unitário da própria relevância social. A crise da cultura arquitetônica moderna não é somente a consequência das mudanças estruturais, ocorridas no âmbito da produção da construção civil, mas sobretudo o resultado da ação consciente e predisposta dos homens. Por essa razão, a exigência de desenvolver criativamente as forças produtivas arquitetônicas e a urgência de modificar a articulação das relações humanas no ambiente que nos acolhe encontram na política sua unidade real. O projeto arquitetônico fica, dessa forma, fora de todas as efêmeras reduções técnicas e de todas as prefigurações ideológicas. Este projeto é parte integrante de um processo geral de transformação do real, que se concretiza influenciando em todos os níveis que delineiam a profundidade do presente histórico. Portanto, não deve haver dissolução da atividade arquitetônica na atividade política, mas a integração orgânica de especificas formas de produtividade social, que somente no encontro dos respectivos aspectos positivos confirmam o aspecto criativo e difusor de uma na outra, e vice-versa. A arquitetura não é urna atividade parcial e unilateral ou especialista que convive ao lado de outras atividades, e nem mesmo é instrumento imediato para a ação política. No momento em que a coletividade é chamada a conquista-la, a atividade arquitetônica encarna-se espontaneamente no contexto de urna experiência social consciente, sendo que nela a arquitetura não é um bem de consumo indiferenciado e sujeito eternamente às leis do mercado e da especulação, mas a transição e ao mesmo tempo a forma necessária do pleno desenvolver-se e formar-se da cultura.

O principal aspecto para a compreensão da realidade arquitetônica é o de constituir, nas atuais condições. um "produto" necessariamente subordinado aos processos de auto-organização e valorização do capital. Diante dessa constatação, não existe outra escolha: deve-se tornar parte ativa no processo de renovação e socialização da cultura arquitetônica. Apesar das aparências, a natureza "política" da arquitetura não implica a dissolução e a renegação da disciplina, mas a sua exaltação na de passagem de uma condição elitista a uma condição de máxima socialização. Recusando todas as aspirações a visões de conjunto onipresentes, a arquitetura genérica é a relevante possibilidade de superar o pragmatismo especifico da hegemonia das classes dominantes e de encontrar "outros" ângulos de observação, pelos quais a realidade arquitetônica seja esclarecida até o fim, na extraordinária complexidade de suas implicações. Nesse sentido, qualquer convite ao "respeito integral" do especifico disciplinar ou a sua "recusa total" pode revelar-se como uma provocação, ou como a ideologia adequada a uma fase não desejada, defensiva da relação hegemônica política/cultura. Em torno dessa relação, a arquitetura mostra a sociedade e suas contradições, e mostra como nesta estão incorporados todos os momentos decisivos do presente histórico.

A nova dimensão da arquitetura está hoje em um terreno fértil de conflito e encontro: de conflito com a subordinação do produto arquitetônico e urbano aos interesses das classes dominantes, e de encontro com as massas populares para a gestão social do ambiente construído e edificável. Mas a reapropriação social da ar-quitetura não se extingue no projeto de uma clientela e de urna gestão "desta arquitetura", porque esta arquitetura reflete-se na qualidade dos seus espaços e na articulação capitalista das relações humanas. A nova dimensão da cultura arquitetônica aumenta como critica da estrutura geral do processo social do trabalho arquitetônico, no amplo leque de suas articulações teóricas e práticas. Na critica dessa estrutura deve-se hoje trabalhar também pela requalificação da disciplina arquitetônica, como superação do processo de máxima desvalorização e subordinação da arquitetura que descende da divisão existente do trabalho.

Recordemo-nos do ensinamento de Gramsci, onde no lugar de "arte" podemos entender "arquitetura", se é necessário precisar. É necessário falar de luta por urna "nova cultura", e não por urna "nova arquitetura". Talvez não se possa nem mesmo dizer, para sermos exatos, que se luta por um novo conteúdo da arte, porque isso não pode ser pensado de forma abstrata, separado da forma. Lutar por urna nova arte significaria lutar para criar novos artistas individualmente, o que é absurdo, pois não se pode criar artificial-mente os artistas. Deve-se falar de luta por uma nova cultura, isto é, por uma nova vida moral, que não pode deixar de ser intimamente ligada a uma nova intuição da vida, até que esta se torne um novo modo de sentir e ver a realidade, e portanto conectada intimamente aos ''artistas possíveis" e às "obras de arte possíveis"; 6

Não deriva dessa afirmação a ideia de liquidar a cultura arquitetônica, mas sim a necessidade de ampliar a perspectiva de trabalho por meio do aprofundamento das condições nas quais, no plano da elaboração disciplinar, é necessário determinar e desenvolver as atribuições do significado deste ou daquele aspecto da arquitetura. O comparecimento de determinados "prazos culturais" não é nunca um fim em si mesmo, mas assume importância histórica de acordo com um mecanismo inquietante, no qual comparece a urgência de atingir, o quanto antes, uma confrontação sobre as questões centrais da problemática, eliminando lacunas e atrasos quanto a intensidade da procura de um "ambiente diverso" por parte da coletividade.

Hoje, o problema fundamental é o da individuação e construção de um eixo de encontro político-cultural ao longo do qual possam alinhar-se as forças culturais que saem desagregadas das grandes lutas pelo arranjo do território, pela defesa do ambiente, pela reforma da casa. A definição teórica desse eixo é preliminar à ligação e à gestão política das lutas do ciclo arquitetônico urbano por causa da necessária unificação e agregação dos grandes componentes democráticos e populares da nossa sociedade em torno do núcleo operário e contemporaneamente por causa do controle e guia do mesmo processo de reestruturação produtiva e cultural do setor em torno de novas hipóteses de desenvolvimento.

É claro que o arco das mediações culturais, que neste momento devem ser cobertas, é ainda mais amplo que no passado. Trata-se de fazer desta crise de reestruturação produtiva e cultural da arquitetura a ocasião definitiva para levar em conta, no cerne das contradições abertas pelo mesmo processo de crise e reestruturação e pelas lutas sociais, as perspectivas concretas de urna "nova síntese" do espaço arquitetônico e urbano. A individuação do caráter desta "nova síntese" e de sua "validade" política e cultural coloca-se entre os problemas fundamentais para a nova organização da atividade e para a "presença" arquitetônica no mundo de hoje.

Exatamente por isso não se pode deixar desmoronar o processo renovador iniciado pelo Movimento Moderno: responder àquele programa, tornando-o verdadeiro à luz de uma consequente historicidade, significa trabalhar para que a arquitetura seja restituída a si mesma na pesquisa de soluções que permitam a intervenção ativa na realidade sócio-ambiental. Obviamente, trata-se de um compromisso a ser projetado em um longo período, no qual se deve pesar a consciência do pavoroso vazio cultural em que nos movemos hoje, e que nos expõe cotidianamente a inclinações apologéticas e absolutizações liquidatárias. No momento, existe somente uma escolha: encontrar o ângulo correto de observação e intervenção sob o qual o inteiro processo arquitetônico seja esclarecido até o fim, com visão e julgamento unilaterais. Estes nos são oferecidos pelo presente histórico, dentro da sociedade capitalista, e qualquer tentativa de repropor em termos "objetivos" a realidade arquitetônica é destinada a falir.

É claro que diante de urna situação como a atual, tão complexa em seu dinâmico desenvolvimento, é absurdo e perigoso continuar a perpetuar certos equívocos e a valer-se de esquemas culturais inadequados e unilaterais. A própria condição da arquitetura contemporânea predispõe-nos a uma ampliação orgânica das nossas experiências, o que significa que não podemos ser redutivos e indiferentes na escolha dos métodos e das vias que se oferecem à pesquisa disciplinar para tentar sair de unia situação confusa e indeterminada. Mais do que nunca, a principal tarefa da cultura arquitetônica é abrir-se para uma orgânica integração dos dados nos quais se articula e se exprime uma construção moderna e coerente do espaço antropológico. Todavia, também mais do que nunca, é necessário cumprir urna função geral de orientação e de clareza, provocando os problemas da organização ambiental de um ponto de vista específico: o ponto de vista do proletariado moderno. Encaminhada nesse sentido, a pesquisa disciplinar readquire sua profundidade teórica e contribui para o esclarecimento de como análise e projetação, método e conteúdo, teoria e práxis da arquitetura tendem, em última instância, a coincidir em um complexo nó de implicações políticas e tornam-se um modo especifico de tomar parte, de assumir urna responsabilidade precisa com relação ao problema geral de transformação do real. A cultura arquitetônica possui uma relevância social — emancipa-se da condição subalterna de apêndice "interno" ao sistema, irreversivelmente subordinada às escolhas do capital — se através do seu desenvolvimento e radical renovação a classe operária estende a própria hegemonia na luta para "mudar" o mundo, para revolucioná-lo na qualidade de sua dimensão espacial.


N o t a s :

6 - Cf. S. Piccone Stella, Intelletuali e capitale nella società italiana dei do-po-guerra, De Donato, Bari, 1972.       






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