quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

CULTURA E LUTA DE CLASSES - Parte III

Arnold LjungmanMilitante escritor sueco do GRUPO CLARTÈ – formado na França por Phillippe B. Barbusse – de pensadores suecos marxistas do período entre guerras. Sua obra destaca A Visão de Mundo do Marxismo (1947), O Problema Kierkegaard (1964) e A Estética de Gyorgy Lukács (1967)

Tradução – Frank Svensson


A apresentação anterior está fortemente simplificada, mas preciso limitar-me às principais etapas do processo de libertação da burguesia da herança do absolutismo, na segunda metade do século XVIII. Se estudarmos essa tendência geral de desen-volvimento e passarmos a analisar casos isolados, veremos que a luta por emancipação se dá num esquema diferente: toma forma de soluções individuais em que impulsos contrários unem-se em sínteses de caráter pessoal. Vide o escritor Lessing. Na Alemanha rompeu com as formas clássicas, apresentou-se como precursor da pseudomorfose, o que não o impedia de filosoficamente estar mais ligado ao iluminismo antigo, à tendência que a pseudomorfose começou a superar. Com isso não se diz tudo. No fim da vida Lessing desenvolve-se na direção de um spinozismo modificado que não se identifica com Herder nem Goethe (nem com o materialismo deste), mudança que parece haver atingido o iluminista Mendelssohn, seu amigo de luta, que o levou à morte.

Mais complicada é a posição de Diderot. Em sua crítica e em suas peças de teatro, talvez nenhum outro mostrou tanta paixão pelas virtudes e pela ética burguesa como expressão-mor da tendência sentimentalista. Em contrapartida, representa nos romances libertinagem de caráter frequentemente incontrolável: as Cartas Indiscretas podem honradamente ser equiparadas a O Otomano, de Brébillon o jovem, a As Memórias do Cavalheiro de Faubla, e à obra-prima O Sobrinho de Rameau, em que faz o herói desenvolver com prazer uma visão de vida irrefreadamente cínica, de eriçar os cabelos da burguesia que no teatro aplaudiu seu moralizante Pai de Família. Filosoficamente, Diderot cumpriu o mesmo percurso e atravessou as modalidades possíveis, do iluminado deísmo de Voltaire (Cartas sobre os Pássaros) a um materialismo ateu com fortes conotações sentimentais e panteístas. Se se considera ter sido ainda precursor de ideias que Rousseau divulgou sobre a sociedade, as pesquisas avessas a Diderot têm algumas razões: ele recusa encaixe em nichos pre-estabelecidos.

Mas não é tudo. As contradições encontradas em Lessing e Diderot podem ser explicadas como reflexo do conflito psicológico no qual a burguesia se encontrava, quando da tensão entre o revolucionário desejo de mudança e a vontade de adaptação ao estabelecido. Cabe lembrar que nenhum escritor pode ser reduzido a mero produto social. Se quisermos compreender lhe a obra, teremos de considerar os elementos e os fatores pessoais que a determinam, tarefa não fácil, porque só por abstração se distinguem elementos pessoais de objetivos sociais. Para ilustrar o problema, permitam-me ater-me à figura literária central que em si concentra as principais correntes espirituais da época, ao tempo em que melhor do que outros ilustra as dificuldades práticas que os representantes da cultura burguesa enfrentaram durante o absolutismo: Goethe.

Talvez possam ser consideradas conhecidas as circunstâncias principais. Nascido em Frankfurt e pertencendo a uma velha e reconhecida família patrícia, Goethe estudou direito nas universidades de Leipzig e Estrasburgo. Familiarizou-se com a tendência literária Sturm und Drang, à qual aderiu de corpo e alma, que na Alemanha marca a vitória definitiva da oposição revolucionária burguesa. Seus dois trabalhos mais significativos, a peça de teatro Gõtz von Berlichingen e o romance O Sofrimento de Werther são típicos expoentes de sturm und drang, carregados de ideias radicais e de juvenil e tormentoso protesto. Em Gõtz von Berlinchingen o herói é um dirigente da grande revolta camponesa alemã em 1525, aí narrada com indiscutível simpatia. Influência maior sobre a época teve O Sofrimento de Werther, que de forma simples, natural, expressava a emoção fundamental: a revolta emocional à libertinagem e o apreço pelo idílio familiar burguês. Mas não só. Em Werther, Goethe inclui tendenciosa narrativa do odioso orgulho (para a burguesia) de ser nobre. Observa-se raramente ser o ferido sentimento de classe que leva Werther ao suicídio, e o fim do livro se constitui numa crítica à igreja (Nenhum padre o levou ao túmulo).

Os anos de Sturm-und-drang (1771-75) foram de intensa produção literária para Goethe, com Gõtz e Werther, o fragmento de Prometeu e o primeiro esboço da peça Egmont, que como Gõtz mostra um subversivo como herói, bem como as partes centrais e mais vivas de sua maior contribuição literária, de seu testamento espiritual: Fausto. Além disso, poemas de amor, baladas e odes, talvez as mais encantadoras que criou. Como expressão lírica, marcaram época. Com o indiferente desdém de um gênio, Goethe varre a poeira de um século de dicção poética e deixa as gastas metáforas clássicas parecerem recém-lavadas, com clareza e brilho que fa-zem o leitor prender a respiração. Sem esforço Goethe já conseguira, pelos escritos de sua juventude, o que a revolução literária que Wordsworth e Coleridge (25 anos mais tarde) iniciaram na Inglaterra, quando com o alarde de uma considerável maquinação teórica quiseram fazer a jovem cantante dominar a língua do cotidiano da classe média.

A mudança se dá em 1775, ano em que Goethe passa a trabalhar para o duque Karl August, em Weimar. De modo geral, com isso termina o sturm-und-drang e vem a conversão do revolucionário burguês em cortesão aristocrata e ministro. Para a compreensão oficial de Goethe, a evolução é extremamente orgânica e natural. De difusa e efervescente inquietação, os anos de juventude chegam ao fim, e o escritor entra purificado na idade adulta criando grandes e imortais obras, desenvolvendo até inatingíveis alturas lados humanos de sua personalidade, que o mundo admirou por mais de um século.

Infelizmente, quase não há como caracterizar essa descrição histórica como não estonteante. Seria errado mostrar, como tem ocorrido, o emprego de Goethe pelo duque de Weimar como traição consciente aos interesses burgueses que combatera. Ao contrário, pode-se crer que de início moveu-o a ambição política. No jovem duque Karl August pensou haver encontrado o instrumento que o auxiliaria a concretizar a mudança que sonhara para a sociedade alemã. Os primeiros tempos de Goethe como ministro experimentaram agitadas reformas em todos os setores, mas a oposição de velhas forças foi intensa demais. Lendo suas cartas e seu diário íntimo do período de Weimar, percebe-se como otimismo e prazer de trabalhar são substituídos por amargas decepção e resignação, inclusive com o próprio duque. Viu-se rapidamente entre romper com suas mais íntimas intenções ou com os valores dominantes. Contorna o problema usando sua característica indecisão. Após repentina viagem secreta, vista como fuga, vai à Itália e inicia relações diplomáticas com o duque. Concorda em voltar, desde que a liberdade de movimento lhe seja assegurada.

A conciliação custou caro ao Goethe pessoa e ao Goethe escritor. Despreocupada existência de intelectual assalariado só para pensar não garante boa produção. E a relação oficial com o duque lhe impunha milhares de obrigações e considerações que com o tem-po minariam sua personalidade. Desligado do meio inte-lectual de origem e inimigo do contexto aristocrata em que estava condenado a viver, sentiu-se mais isolado e estranho às tendências de seu tempo, A insegurança quanto às novas gerações o tornam indiferente e irritado. O Livro do Desânimo é o significativo título de um capítulo de Divan Leste-Oeste e poderia ser de todo o trabalho, com a provocativa atitude de defesa para com entorno: Enviam-me saudações e odeiam-me até a morte.

À crescente solidão segue-se a crescente passividade espiritual. A força criativa de Goethe atenua. Os primeiros anos de Weimar têm vital produtividade, surgem os esboços de Ifigênia em Táuride, Torquato Tasso e Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Praticamente terminam as grandes propostas, vindo a longa e trabalhosa elaboração dessas concepções e as propostas do sturm-und-drang (Fausto e Egmont).

A inspiração lírica de Goethe permanece forte para ser reprimida. Perdura em seu pensamento poético o colorido do sentimento spinozista pró-natura (Proõmion) e em poemas esparsos como A Elegia de Marienbad e O Cântico do Vigia da Torre (Fausto - 2.a parte) pode aflorar ainda na sua mais avançada idade. Muitas de suas últimas máximas evidenciam aguda capacidade de observação e clara visão de vida, mas são exceções. Em geral, após a volta da Itália, versos e prosa caracterizam-se por crescente enrijecimento e perda de vitalidade, até na expressão linguística. O maravilhoso frescor e o imediatismo das obras juvenis desaparecem e são substituídos por estilo rebuscado de chancelaria, que só em tempo de mecanização e complicação como o nosso pode ser aceito como clássico. O desenvolvimento disto nada tem a ver com a idade, posto que escritores como Dante, Milton, Hugo e Yeats escolheram com audácia e agudeza as palavras até avançada idade. O declínio de Goethe aos 40 anos não foi por fatores fisiológicos.

Com a exaustão poética deu-se outra muito mais trágica, no Goethe ser humano. Abandonar seus sonhos juvenis de liberdade política não constituiu destemida e historicamente necessária submissão, mas acanhado processo de repressão do inconsciente que lhe gerou neurose e má consciência. Nas imagens de seus últimos anos se verifica que o Goethe por muitos homenageado é um misantropo infeliz e insatisfeito que abomina a si e à humanidade. Como poderia ser doutra forma? O homem que aos 25 anos criou A tragédia de Gretchen, no fim da vida, ministro, declinou da proposta do duque agraciar uma assassina de criança condenada à morte. Goethe rompeu as raizes de sua mais profunda emoção e praticamente lhe restou a hipocondria.

Há a história sobre o encontro de Goethe com Beethoven, elogiada por Romain Roland, que melhor esclarece o que se menciona. Goethe estava com 63 anos. Com 43, Beethoven era ardoroso revolucionário, disposto, porém a humildemente curvar-se ao escritor a quem admirava, independentemente de aversão a arrogância e status. Encontraram-se ao ar livre, num parque com muita gente. Falou-se, o duque e a duquesa estavam por chegar. Formaram-se alas dos lados do caminho. Também Goethe se postou de lado, chapéu na mão e cabeça curvada. Iradamente, Beethoven pôs seu chapéu e se foi dali.

Goethe nunca esqueceu isto. Testemunha Mendelssohn, sistematicamente negou-se a ouvir músicas de Beethoven, que para Goethe lhe irritavam o gosto estético. Pelo visto mais do que os seus admiradores ressentia-se, ante um indomável desejo de liberdade que se apossava dele ao ouvir as composições de Beethoven face o preço pago pela obtenção de sua própria "harmonia"

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