terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A ARQUITETURA E O INTERESSE PELO ANTIGO


Frank Svensson

A arquitetura e o interesse pelo Antigo
Desde o século XVIII que a Antiguidade ocupou o pensamento dos aficionados da arquitetura.  A obra de Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto e engenheiro romano do século I a. C., mereceu 26 edições durante o século XVI, e durante o século XVII  foram feitas 10 outras, para no seguinte aumentar a quantidade novamente.1  Foram esses livros que inicialmente serviram de base para todos os levantamentos, para a documentação, e para a reconstrução dos monumentos arquitetônicos da Antiguidade.

Intelectuais, artistas plásticos e escritores das mais variadas nacionalidades afluíram a Roma para aprender, in-loco.  Já em 1666, por iniciativa de Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), no reinado de Louis XIV, a França instituiu naquela cidade uma academia própria, para a qual eram enviados os artistas e arquitetos mais promissores daquele país.  Desenvolviam ali uma espécie de pós-graduação da época, após terem sido selecionados e julgados aptos a merecer o Prix-de-Rome.2

Colbert, além de ministro das Finanças, e também ministro da Marinha, dos Portos e das Colônias, dirigia o destino das artes na França.   Antes de instituir a Academia Francesa em Roma havia fundado a Academia de Arquitetura em Paris, dando a direção da mesma a François Blondel (1617-1686).  À Academia de Arquitetura incumbia a elaboração de uma doutrina, cujas princípios fossem ensinados a seus alunos, e aplicados nos Edifícios do Rei, bem como àqueles, em geral, que viessem a solicitar à mesma, opiniões sobre edifícios e projetos. A doutrina emergente foi fortemente marcada por um enfoque racionalista, enfrentando como problema maior a questão do belo.

Como determinar a beleza arquitetônica?  Para resolvê-lo os arquitetos deveriam inspirar-se na Antigüidade.   Para voltar aos bons princípios, seria preciso dirigir-se aos antigos e Colbert passou a enviar arquitetos à Itália para conhecer os edifícios romanos.  Das determinações estabelecidas por ele, para os bolsistas, constava expressamente a obrigação de fazerem levantamentos das obras da Antigüidade, e no século seguinte passou-se a exigir que esses levantamentos fossem rigorosos,  para permitir o restauro preciso e a conservação das mêsmas.3

Vários livros, além dos de Vitrúvio, passaram a ser publicados, visando ensinar como era a arquitetura e os monumentos da Antigüidade.  Em 1682 Antoine Desgodetz publicou: Les édifices antiques de Rome.  Entre muitos outros livros que vieram depois encontramos também os de Grand’Jean de Montigny que, após um período como arquiteto emissário de Napoleão na Westfália do Norte, viria ao Brasil como integrante da chamada Missão Francêsa: Architecture Toscane (1815), e le Recueil des plus beaux tombeaux exécutés en Italie dans les XV et XVI siècles
.
Roma passou a ser o ponto prioritário de visita das pessoas que se queriam cultas na época.  De diferentes países se estabeleceram aí cidadãos para servirem de guias dos seus com-patriotas visitantes.  Pontos de atração obrigatória eram os museus pontifícios,  os do Vaticano e do Capitólio, e as ruínas em Roma e cercanias.  Em 1720 iniciaram-se as escavações dos antigos palácios imperiais do Palatino, e alguns anos após foram iniciadas as da mansão de Hadriano em Tivoli.   Em 1738 foi reencontrada a antiga Herculaneum sob a cidade de Portici, e uma década após iniciaram-se também as escavações em Pompéia.   Em todos esses lugares podiam-se encontrar estrangeiros habilitados, principalmente ingleses, franceses e alemães.

No ano de 1732 foi fundada, na Inglaterra, The Society of Dilettanti.   De início tratava-se de um clube de viajados turistas, mas com o tempo passou a congregar viajantes ricos que financiavam escavações e publicações a respeito.4

Depois da queda de Constantinopla e da conquista da Grécia pelos turcos, em meados do século XV, era raro se visitar este país. O conhecimento sobre a antigüidade grega era restrito.  Em 1751,  dois membros da Society of Dilettanti visitaram no entanto Atenas, no intuito de produzirem um trabalho  correspondente ao de Desgodetz quanto a Roma. James Stuart, arquiteto, e Nicholas Revet, arqueólogo, fizeram, o levantamento dos monumentos de Atenas.  Quando o primeiro volume de The antiquities of Athens foi publicado, já dois outros sobre o assunto haviam sido feitos: Le Roy,  Ruines des plus beaux monuments de la Gréce (1758) e Sayer,   Ruins of Athens (1759), mas estes baseados em material antigo e  só em alguns  levantamentos sumários.  Os três livros contribuíram, no entanto, para que o interesse pela arquitetura grega aumentasse às custas da romana.  Roma deixou de ser o ponto final dos interesses “turísticos”, tornando-se uma mera passagem para o Oriente.

Um que, no entanto nunca chegou mais longe do que a Roma, foi Johan Joachim Winckelman (1717-1768), estudando a arte grega na Itália mesmo. Com sua monumental História da Arte da Antigüidade conquistou a admiração da Europa para a Grécia.  É bem verdade que uma Grécia idealizada, descrita num estilo caracterizado pelo estilo que ele mesmo atribuiu à sua arte.  Em Vila Albani e  nos pontifícios museus, a estudou, em parte sob forma de cópias romanas, formulando à partir das mesmas as suas teorias sobre a supremacia da arte grega.5

Um fato que não pode passar desapercebido é especialmente ilustrado pelo caso de Grand’Jean de Montigny.  Tendo nascido no bairro em Paris onde estavam sendo edificadas as mansões da burguesia parisiense e tendo vivenciado intensamente a Revolução  em 1789, perguntava-se quanto ao surgimento desse tipo de arquitetura ainda  na Itália.   Independente de outras particularidades essa sua motivação explica sobre modo o seu interesse pelas primeiras construções, em Florença, mandadas erigir pelos primeiros burgueses mercantis da Itália: os Médici, os Pitti, os Sforzi e outros. 6

Todas essas escavações e levantamentos, bem como, os livros a partir dai divulgados, excitaram as imaginações e na arquitetura juntaram-se às doutrinas acadêmicas determinando, uma transformação das formas e das teorias arquitetônicas que se ligariam à revolução democrática burguesa.  O conhecimento arquitetônico passava a exigir também o conhecimento histórico.

A aproximação à Antiguidade se dava de forma entusiástica mas desconexa.  O reconhecimento da importância do conhecimento histórico quanto à arquitetura implicava em saber escolher, entre uma grande variedade de elementos arquitetônicos, aqueles que resul-tassem apropriados e “corretos”.  Implicava em abandonar os cânones da composição da arquitetura clássica, e em discutir se as proporções e as ordens enunciadas por um teórico eram preferíveis às enunciadas por outro.

Contrariando os hábitos dos  “velhos” arquitetos, os “jovens” passaram a aplicar, com “liberdade”, os valores e elementos observados na arquitetura da Antigüidade, principalmente nas mansões de banqueiros e de outros favorecidos pelo capitalismo em ascen-dência.   Na medida em que aumentava a quantidade de novos clientes dos arquitetos, foi sendo abandonada a estandardização desses elementos, o que constituíra a característica essencial da arquitetura hoje conhecida como  clássica.

Voltaire, historiografo.
Em que pese as implicações dos câmbios econômicos, as mudanças de expressão arquitetônica ligaram-se a questionamentos de ordem conceptual e a uma nova forma de conhecer: a do conhecimento histórico.  Necessitava-se esclarecer como ordenar  e tornar práticas as informações advindas da observação das obras da Antigüidade.  François Marie de Arouet, cognominado Voltaire,  é aceito como o pai da historiografia, como o primeiro historiador moderno.  Seu livro: Luís XIV e sua época foi publicado em 1751 e em 1754 apareceu o Ensaio de História Geral e dos Costumes.   Esses trabalhos indicam um novo enfoque da História, permitindo novos caminhos para o pensamento arquitetônico.7   Voltaire, neste último livro, apresenta o câmbio como elemento fundamental a ser considerado pelo conhecimento histórico.  Observa, ainda, que o câmbio, como expressão de mudança da realidade, lhe é mais característico do que a condição permanente.   A história da arquitetura passou a se preocupar com a evolução da mesma.   Foi nos meados do século XVIII que os arquitetos passaram a ver a arquitetura como uma seqüência de formas cambiantes.  A partir disso passaram, ainda, a querer “ajudar” a história propondo formas novas revolucionárias, como, por exemplo, as de Ledoux, Boulée e Lequeu.

Voltaire é visto, também, como o primeiro historiador social, preocupando-se mais com o progresso cultural do que com sucessos políticos e militares.  Nos três capítulos sobre Belas Artes, em Louis XIV e sua Época, quase não menciona a arquitetura.   Mas, em seu artigo: “História”, da Enciclopédia, afirma que a história da arte é a mais útil delas, sendo assim a primeira pessoa a incorporar a história da arte à da civilização.8

O enfoque de Voltaire não favorece meramente a descrição do havido.   Inclui também a crítica do havido, ousando excluir de seu interesse, por exemplo, as fábulas, as quais julgou ser a base do fanatismo, e da credulidade.  No havido haveria, portanto, aquilo que deveria ser valorizado e aquilo que podia ser desprezado. O conhecimento histórico exigia, em outras palavras, formulações teóricas que definissem o que considerar com prioridade.   Até então não se havia posto em dúvida a explicação mítica de Vitrúvio, nem a explicação de Tito Lívio sobre as origens da arquitetura de Roma.

Como comprovar a autenticidade das origens e dos fatos históricos passou a substituir  por argumentos racionais as velhas mitologias.  As formas consideradas autênticas, da Antigüidade,  foram tomadas como protótipos históricos reais.   A pesquisa das origens históricas da arquitetura passou a ter tanto ou mais importância que a leitura dos 10 livros de Vitrúvio.9

Os textos de Voltaire referem-se, ainda, à idéia de progresso como uma tendência  no sentido do aperfeiçoamento.  O avanço no campo da ciência e da indústria estimulou os pensadores a  sustentarem o mesmo para o campo das artes.

Voltaire concebeu, ainda, a história como universal.   Antes dele, aquilo que se chamava: História Universal era relacionado essencialmente com a história do cristianismo.  Do mêsmo modo, o que se escreveu sobre arquitetura o foi limitado às formas dos elementos de uso comum.   Criticando a Bossuet por não haver mencionado a muçulmanos e hindus, Voltaire abriu caminho a um estudo de todas as civilizações, independente de sua relação com a cultura greco-romana.  A arquitetura de toda e qualquer cultura passou a ser de interesse para o conhecimento arquitetônico.

Voltaire voltou o seu interesse também para a Idade Média.  As teorias arquitetô-nicas da Renascença haviam consideravelmente desprezado a arquitetura medieval.   Voltaire não só englobava como de interesse a cultura de todos os povos como a de todos os tempos. É verdade que foi mais tarde, na Inglaterra e não na França onde mais rapidamente se desenvolveu  o interesse pela arquitetura da Idade Média, levando os novos industriais a quererem as suas mansões em estilo néo-gótico.   Mas foi Voltaire o primeiro a dedicar-se a um melhor conhecimento daquela época.

Deve-se, ainda, a Voltaire a nova atitude com respeito ao oriental e aquilo que para nós ocidentais foi visto como exótico.  O interesse e a idealização daquilo que nos está distante no espaço e no tempo veio a ser um dos principais traços do romantismo arquitetônico.   A busca racionalista de “instrumentos” teóricos para a formulação do conhecimento histórico surgia mesclada com considerações sensoriais.

O pensamento de Voltaire faz parte dos câmbios ligados à ascensão da burguesia inicialmente progressista.  O novo conhecimento histórico, desencadeado pelas teorias de Voltaire é de vital importância para o entendimento da arquitetura ligada às grandes revo-luções democráticas burguesas, e encontra-se na base, também, de toda a teorização do romantismo que tão fortemente a caracterizou.

O conhecimento histórico da arquitetura está fundamentalmente ligado ao conhecimento social
O esforço iniciado por Voltaire,  de caracterizar  elementos teóricos -- feitos, épocas, câmbios, evolução, tendências, e progresso, -- que permitissem a produção de conhecimento histórico está, inicialmente, muito limitado à observação do imediatamente manifesto.   Não é por acaso que a arquitetura vista como a configuração de prédios, comparece marcadamente nesse processo.

O Iluminismo é também o início de busca de clareza quanto ao conhecimento social.   A constituição da materialidade social estava mudando e despertava indagações quanto às formas que viria a ter.  Na França a burguesia iria em breve assumir o poder, constituindo-se na classe social dominante e abandonando o seu caráter progressista inicial.

Charles L. Montesquieu (1689-1755) é um dos exemplos representativos do pensamento burguês durante o Iluminismo.  Para ele, por traz da diversidade de feitos históricos, esconde-se uma ordem  evidenciada por leis históricas, que exercem a sua ação de forma constante. Montesquieu salientou, ainda, a importância do meio natural e sua influência sobre os costu-mes dos povos, suas leis e em geral sobre a vida política dos mesmos.10

Paralelamente, na Inglaterra, David Hume (1771-1776) afirmava que o comportamento histórico dos homens era condicionado por um conjunto de princípios que se desdobram numa ordem material e social.  Outras contribuições à formulação do conhecimento histórico do período iluminista encontramos em Jean Jacques Rousseau e E. Lessing.11

Com Kant (1724-1808) inaugura-se um novo ciclo fundamental na história da humanidade, o da chamada “filosofia clássica alemã”.  Kant mesmo, significa mais uma regressão do desenvolvimento do conhecimento histórico, desde que nega a possibilidade de se descobrir uma ordem lógica e progressista na história da humanidade.  É à personalidade maior da escola filosófica alemã, Georg L. Friedrich Hegel (1770-1831) que devemos, segundo Engels, o fato de ter sido capaz de compreender:

. . . um campo incomparavelmente maior que qualquer dos que o haviam precedido e evidenciar dentro desse campo uma riqueza de pensamento que ainda causa assombro . . . 12


N o t a s :
1  Ver de C. Ceschi: Teoria e storia del restauro, Roma, 1970, p. 29.
2  Ver Henry Lapauze:   Histoire de l’Académie de France a Rome.   Librairie Plon, Paris, 1924, vol. I, pp. 1-11.
3   Segundo o Regulamento da  Academia Francesa em Roma, datado de 1788.
4  Os irmãos James e George Gray participaram das escavações em Herculaneum e divulgaram o trabalho na Inglaterra.   Sir William Hamilton divulgou informações sobre as escavações em Pompéia (Account of the discoveries at Pompeii cammunicated to the Society of Antiquaries of London, 1777).  Lord Charlemont foi um dos primeiros membros a visitar as ilhas gregas (1749).  James Dawkins foi um outro precoce visitante da Grécia.  Robert Wood visitou as ilhas gregas, o Egito, a Síria e a Mesopotamia durante os anos 1742-43 e publicou entre outros: The ruins of Palmyra (1753) e The ruins of Balbec (1757).   Stuart e Revett publicaram, entre 1762 e 1816 The antiquities of Athens, em 4 volumes, e Richard Payne contribuiu para que os templos dóricos na Sicília passassem a ser vistos com novos olhos.
5 Johan Joachim Winckelmann chegou a Roma em 1755, onde permaneceu até 1768.  Descreveu suas observações em: Sendschreiben von den    herculanischen Entdeckungen (1762) e Neue Nachrichten von den neuesten herkulanischen Entdeckungen (1764).
Ver, também de Otto Maria Carpeaux: Classicismo e anti-clacissismo em Literatura Alemã. Ed. Nova Alexandria, São Paulo, 1994.

6  Ver de Svensson, Frank: "O período europeu de Grand’Jean de Montigny", em Boletim do Instituto de Arquitetura e Urbanismo - Universidade de Brasília. N. 48.   Brasília, 1989.
7  Ver  de Louis Hautecoeur:  "A volta à Antigüidade" em História geral da arte.  vol  V, pp. 33-53.   Difusão Européia do Livro.   São Paulo, 1964.
8 Ver Peter Collins: Los ideales de la arquitectura moderna; su evolución (1750-1950),  G. Gigli,  Barcelona, 1965, p. 25.
9    Ibidem, p. 26.
10. Ibidem, p. 27.
11. Ver de Aleida Plasencia Moro, Oscar Zanetti Lecuona e Alejandro García Ál-varez:  Metodología de la Investigación   Histórica. Ed. Pueblo y Educación, Havana, 1985, o capítulo Concepto de Historia.
12. Ibidem p.27.

Para ampliar a informação sobre estes e outros pensadores, consultar um bom compêndio de História da Filosofia.


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