segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

CULTURA E LUTA DE CLASSES - Parte I


Arnold LjungmanMilitante escritor sueco do GRUPO CLARTÈ – formado na França por Phillippe B. Barbusse – de pensadores suecos marxistas do período entre guerras. Sua obra destaca A Visão de Mundo do Marxismo (1947), O Problema Kierkegaard (1964) e A Estética de Gyorgy Lukàcs (1967).

Tradução – Frank Svensson


Quem estudou a história dos tempos modernos está familiarizado com o estreitamento das formas de vida e das relações sociais no fim da Renascença. Do âmago da luta entre nobreza, burgueses e monarquia no continente europeu ergue-se, ao iniciar-se o século XVII, rígida e centralizada constituição estatal com monarca absoluto no ápice, em Carta Magna que apoiada no princípio da autoridade aspira conservar a divisão hierárquica da nobreza ad infinitum. Uma ordem que na França, país de origem, caracteriza-se pela predominância das velhas forças sociais. Nobreza francesa e Igreja tiveram liberdades limitadas, mas mantiveram privilégios econômicos e jurídicos. De dentro da nobreza o monarca recruta seus mais próximos e também forma o fulcro da aristocracia burocrática exigida pelo centralismo adotado. Mesmo se se procura, de início, concomitantemente Satisfazer os interesses da burguesia pela via da política comercial mercantilista, apoiando a manufatura e a indústria, a situação inverte-se com rapidez. O apoio transforma-se numa camisa-de-força que leva os portadores do novo modo de produção a revoltarem-se contra o absolutismo.

No confronto absolutismo x burguesia, a ideologia é muito importante, com expressão maior no início. Liga-se a condições especiais de surgimento da oposição. Mais que outros regimes restauradores, o absolutismo assegurou uma ação política incólume a elementos descontentes. O antigo sistema partidário das guerras dos huguenotes e dissidências extinguiu-se, e não existia constituição parlamentar moderna que possibilitasse aos burgueses evidenciarem-se. Até mesmo tentativas de gestão local na Idade Média foram extirpadas por Luís XIV, e cidades e províncias passaram a ser dirigidas por funcionários reais com poderes quase ilimitados.

Não difícil de entender é a crítica ao estabelecido assumir caráter de luta cultural: oprimidos usam as armas disponíveis. Para a burguesia da época, a literatura veio a ser instrumento de insuperada eficácia. Não que a atividade literária passasse despercebida das autoridades. Pelo contrário, até a revolução foi objeto da mais exigente censura, apesar de nenhuma das medidas contra ela surtir efeito. Para o escritor habilidoso há sempre como burlar a censura, como nunca faltaram editores dispostos a arriscar recursos e conforto por boas causas. Se necessário, imprimiam-se indesejáveis obras na Inglaterra, na Holanda, e as contrabandeavam para a França. A insegurança da vida dos escritores era compensada pela autoridade que a perseguição proporcionava à mensagem deles. O público era consciente da iniciativa pessoal que havia por trás das palavras e sua atenção aumentava na razão oposta.

A oposição não surge pronta e equipada, tal qual um Pallas, da cabeça da burguesia. Justamente quanto à ideologia, a ordem social absolutista caracteriza-se por formidável estabilidade. Não só pela hierarquia -social ligar-se a um sistema de hábitos, tradições e ma-neira de pensar com séculos de afirmação (para a grande massa, mais ou menos óbvio), como por no trabalho cultural basear-se em concepção de extraordinária unidade e hermetismo, visão de mundo em que o gosto por polidez e refinamento convive intimamente com o delicado código de honra da aristocracia e o severo racionalismo necessário à vida sob regime burocrático e centralizado. Em história da literatura caracteriza-se este estilo como clássico francês, enunciando contradição para com o desejo de liberdade do período histórico que lhe é anterior. À espontânea afirmação renascentista dos anseios humanos opõe uma psicologia pessimista que exige repressão de emoções e incondicional submissão à razão, em nome da autoridade social. A doutrina do indivíduo, que destaca seu próprio caminho, é substituída pelo princípio das ordens como norma-mor da conduta individual. (Em suas comédias, Moliére ironiza os burgueses que desejam transgredir sua condição social e copiar os hábitos da aristo-cracia!)

O que ocorre na literatura e no pensar está na arte em geral: por toda parte vemos a preferência pelo determinado, pelo regulamentado, pelo delimitado. Poussin, pintor da época, afirma: Minha natureza move-me a buscar situações ordenadas e a evitar toda confusão e mistura. A arquitetura gótica é menosprezada por representantes do classicismo como monstruoso aborto de uma época obscura. Chega-se ao exagero de substituir os maravilhosos vitrais de Notre-Dame por vidros lisos transparentes. Os jardins de Versailles são submetidos a formas geométricas euclidianas. Arbustos e árvores são podados como pirâmides, canteiros definidos com esquadros e compassos, passeios traçados a régua. A água é enfiada em canais e nas formas geométricas dos lagos, e dos chafarizes jorra água na mais perfeita ortogonalidade.

Sob tamanha pressão de pré-elaborada visão de mundo, a criação inicial da burguesia tinha de ser eivada de insegurança. Valho-me de um termo de Spengler: pseudomorfose. Com pseudomorfose, Spengler refere-se ao fenômeno de uma cultura em ascensão, mas não suficientemente forte para libertar-se das amarras da anterior que se exaure, aplicando ainda suas regras e formas. É o que ocorre sob o iluminismo, na França, no fim do século XVII e no início do século XVIII, ao romper com o absolutismo religioso e político.

Quanto a conteúdos, o iluminismo distingue-se radicalmente do classicismo. Abominam a doutrina da herança pecaminosa dos homens, como a configurada em Pascal, substituindo-a pela confiança no aperfeiçoamento infinito, com base em educação e na influência do meio ambiente. Ideias, porém, emprestadas de modelos clássicos. Quando apregoa a tolerância dos evangelhos para o público teatral da época, Voltaire aponta para Corneille e Racine, mesmo se impressões recebidas de Shakespeare ajudam a modificar a regra obrigatória. Em O Barbeiro e no Casamento de Fígaro, Beaumarchais satiriza a aristocracia num estilo que conduz diretamente a Molière.

Se em ambas as obras, a posição intermediária não deixa de prejudicar o imediatismo da literatura iluminista, contribui para dar a essa tendência extraordinária penetração. Por sua fé em desenvolvimento e reformas atrai o interesse burguês, pela refinada e ele-gante forma penetra em salões aristocratas e espalha-se pelo continente, dominando o gosto culto, na metade do século. Muito cedo lança raízes na Inglaterra, onde aristocracia e burguesia rica viveram política e economicamente em uma espécie de regime de meia, desde a gloriosa revolução de 1688, obtendo na poesia de Pope e na prosa de Allison e Swift a maturidade e a riqueza que tornam sedutora essa literatura.

No "entanto, o mundo do gosto clássico nunca foi totalmente incontestável. Através da literatura iluminista mergulha uma corrente de muito mais radical caráter do que a oficial, batizada por Martin Lamm como o romantismo do período iluminista, que prenuncia uma mudança de enfoque e pensamento por opor-se ao culto exclusivo do classicismo pelo racional. Origina-se em círculos burgueses na Inglaterra e no continente, onde as exigências da reforma quanto a intimismo pessoal e religioso permaneceram mais vivas do que para a burguesia em geral e onde a reação à frivolidade do modo de vida aristocrata se tornou mais forte.

É notório que com a rigorosa ética da parcimônia esses círculos lideraram o investimento de capital na jovem manufatura, na indústria, situação que Engels pela primeira vez observou, depois utilizada por Max Weber e outros ao polemizarem sobre o marxismo. Sem introduzir discussão sobre a interpretação idealista de Weber das relações puritanismo x capitalismo, destacamos a exemplar exposição de Erich Fromm em   O Medo à Liberdade, em que mostra convincentemente como o novo espírito religioso de que Weber quer originar o capital industrial tem muito a ver com a alterada situação econômica da burguesia no fim da Idade Média.

Quando Max Weber visa atingir as bases da compreensão materialista da história, sua crítica tem de ser recusada, embora reconheçamos que no marxismo haja tendência a menosprezar o papel do elemento religioso dentro da luta ideológica que grassava entre absolutismo e burguesia. No texto sobre Feuerbach, ao narrar o desenvolvimento que leva à revolução na França, Engels cita quase exclusivamente a ação dos iluministas, considerando-a manifestação da mentalidade não religiosa que enciclopedistas ajudaram a formar. Entendimento tão superficial como errôneo. A literatura iluminista passa, na metade do século XVIII, por um processo de radicalização geral que de outras formas se expressa corno inimiga da religião. Diferentemente do deísmo do iluminismo antigo, torna-se materialista, sensorial e ateísta. Na nova forma é mais atração para os salões e os bem-providos da burguesia, financeiramente ligados a sonegadores de impostos e similares do que a industriais, comerciantes, artesãos e intelectuais que constituem a tropa de choque da revolução. Talvez se possa dizer que Mirabeau e os girondistas moderados constituíam a linha dos enciclopedistas, Danton inclusive, mas para a maioria da montanha, Robespierre à frente, o materialismo e o ateísmo são mais uma expressão da crescente dissolução da ordem social aristocrata.

Com a revolução, a burguesia aproxima-se do mais heroico papel de sua história: conquistar o aparelho de poder econômico do absolutismo, arrancar desde a raiz suas instituições sociais, e com armas à mão defender sus conquistas contra as ofensivas  militares da reação congregada. Nessa situação, não pode contentar-se com uma formação negativa. O que menos lhe convém é a filosofia epicúrica do deleite, em que o iluminismo degenerara a ética. Ao papel heroico segue-se o modo de vida heroico, exigência pós-revolução que é satisfeita relacionando-se com a rígida pureza da República Romana de repulsa estoica por comportamentos débeis. Não é difícil encontrar por trás das antigas roupagens, adotadas com emotivo entusiasmo, as fontes de inspiração, as tradições protestantes da guerra dos huguenotes e Cromwell. Iluministas são naturalmente estranhos a tal evolução. Veem Rohespierre defender a virtude só como expressão de intolerância. Percebem tão pouco o significado da revolução quanto intelectuais da Europa Ocidental como Koestler, Oeverland ou Ivar Harrie perceberam as mudanças na URSS na guerra contra o nazismo. 







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