sábado, 20 de abril de 2013

REALISMO, SOCIEDADE DE CLASSES E ALIENAÇÃO – Parte I.





Gunnar Gunnarsson - (1889 – 1975). Pensador marxista sueco. Entre suas principais obras encontram-se Os grandes utopistas; A Comuna de Paris; Gyõrgy Lukács; De Machiavelli a Mao; O ideário da socialdemocracia; Estética marxista. e História do fascismo.


Tradução: Frank Svensson



A burguesia reconheceu que todas as armas que havia forjado contra o feudalismo voltaram-se contra ela, que todos os meios de formação que havia criado revoltaram-se contra a sua própria civilização, que todos os deuses criados a abandonaram.
Karl Marx
Verum index sui et falsi (a verdade é a pedra de tropeço sua e da mentira).
Baruch Spinoza

A decadência do Ocidente?

Antes da Primeira Guerra Mundial falou-se, principalmente em relação a Untergang des Abendlandes (O Declínio do Ocidente), de Oswald Spengler, muito sobre a decadência da cultura ocidental. As teorias de Spengler têm sido duramente criticadas. A própria divisão do mundo em Ocidente e Oriente é dúbia e serve mais para confundir a colocação dos verdadeiros problemas.1

Também em teorias dúbias pode haver um quê de verdade. Sem dúvida podemos perceber, ao longo do desenvolvimento da cultura humana, que as épocas progressistas obedecem a uma sequência de surgimento, desenvolvimento, apogeu e decadência.

As tentativas de explicar tal fenômeno -- em analogia aos da biologia -- expressam uma consciência cultural que já ultrapassou as fases de nascimento, crescimento e culminância, encontrando-se agora em declínio. O fenômeno considerado só pode ser entendido através de uma análise histórico-social. A história das sociedades até hoje havidas é uma história de luta de classes, afirmam Marx e Engels no Manifesto Comunista.2

É na dialética da sociedade de classes que podemos buscar a explicação do desenvolvimento cultural. A cultura burguesa já teve o seu período heróico. Foi quando a burguesia, orgulhosamente consciente da amplitude de sua missão histórica, lutou contra as classes feudais e desenvolveu uma cultura predominantemente progressista. O humanismo e o classicismo burguês foram, durante o Renascimento e o brilhante século dezoito francês, as alavancas usadas para demolir as Bastilhas da sociedade de privilégios.

No instante da vitória, a nova classe dominante ganhou um novo inimigo engendrado no ventre do seu próprio sistema de produção: o proletariado. O desenvolvimento da cultura burguesa em sentido regressivo é motivado pela pressão que vem das profundezas da sociedade. Já nos meados do século XIX, iniciou-se, nos países de maior desenvolvimento capitalista, a dissolução ideológica que caracteriza a decadência da sociedade capitalista. Marx indica os anos 1830 e 1848 como os da guinada. Nos países menos desenvolvidos, o capitalismo, em circunstâncias concretas, não podia mais desempenhar um papel progressista.

Marx e Engels deduziram essa decadência ideológica da posição da luta de classes entre burguesia e proletariado, na ocasião da conquista do poder pela burguesia. Esse avanço do front da luta de classes manifestou-se primeiro quando da solvência do .caráter científico da economia burguesa:

Agora não se trata mais, -- observa Marx na introdução ao “Capital” de verificar se uma ou outra teoria é verdadeira, mas se para o capital é útil, cômoda ou não, proibida ou não. Em vez de pesquisadores desinteressados, surgem combatentes pagos; em vez de pesquisa científica sem preconceitos, surge a má consciência da apologética e as segundas intenções.3

Apologética é uma das palavras chave para a compreensão da decadência ideológica.


Ciência e apologética na sociedade de classes

É falsa a interpretação de que a crítica de Marx e Engels à apologética só se referisse à decadência da teoria econômica. Marx e Engels não reconheceram a existência de uma ciência econômica autônoma  -- um enfoque que se deduz inclusive da terminologia empregada por eles, falando sempre de economia política, só fazendo uso de definições concretas, objetiva e historicamente determinadas. A especialização das ciências em compartimentos estanques não era outra coisa senão uma particularização do fenômeno de degenerescência decorrente da distribuição capitalista do trabalho e da especialização de um modo geral.

O marxismo começou como crítica à religião. Nos seus primeiros escritos, Marx estudou criticamente o problema da alienação, não só quanto à produção e suas ferramentas, mas também quanto aos homens, à sociedade e às instituições. Criticou a visão hegeliana, da filosofia do direito e as formas de convivência social, percebendo também na arte a deformação decorrente da degenerescência do sistema capitalista.

Em seus escritos, Marx e Engels posicionaram-se ante as principais tendências da ideologia burguesa. Podemos citar a abrangente crítica aos economistas vulgares no Capital e em suas outras obras econômicas, o acerto de contas com os seguidores de Hegel em A Sagrada Família e A Ideologia Alemã, a denúncia da descaracterização da democracia e do republicanismo burguês em Louis Bonaparte e o Brumário XVIII.

Essa crítica assumiu plenamente o caráter de um acerto de contas geral com a ideologia burguesa pós-revolucionária. Já aqui se delineiam as tendências básicas do desenvolvimento ideológico vindouro. De interesse essencial é o fato de Marx, acertadamente, ter caracterizado a alienação que -- apesar de tendências em contrário, oriundas do passado ideológico progressista da burguesia -- começava a se evidenciar, em contraste com o período heróico da burguesia. Evitava-se reconhecer as contradições na sociedade, preferia-se escamoteá-las por trás de uma imagem de harmonia, em correspondência à constituição social conveniente à burguesia.

Típico desse desenvolvimento é, como Marx observa, o historiador e político Guizot. Antes de 1848, Guizot fazia parte do grupo de historiadores da Restauração francesa que claramente reconheciam o papel da luta de classes no surgimento da sociedade burguesa -- grupo ao qual pertenciam também Thierry e Michelet. Depois de 1848, Guizot transformou-se, sob a pressão da crise revolucionária, num apologista reacionário. Apavorado ante uma classe obreira que em fevereiro impunha reivindicações que iam além das concessões da burguesia liberal, procurou demonstrar que essa revolução implicava em distanciar-se do racional na História. Via esse racional encarnado na monarquia de julho!

A banalização em seu enfoque histórico vem logo à luz no texto em que compara a revolução inglesa com a francesa, e as realidades históricas, os fatores econômico-sociais, são ignorados por puro misticismo: o espírito divino intervém sem nenhum acanhamento na sequência dos acontecimentos, impedindo Cromwell de se proclamar rei! 4

A alienação apresenta-se indubitavelmente a serviço da tendência apologética. Mesmo a alienação nem sempre assumindo traços de misticismo, não é difícil perceber que Guizot inicia uma tendência geral na pesquisa histórica burguesa. Ao longo dos anos 1800 e 1900, a interpretação apologética impregna - às vezes como estonteante metafísica histórica, às vezes com empírica pseudobjetividade -- como um traço constante a historiografia burguesa.

Enquanto um historiador como Gãns, ainda após a revolução de julho -- segundo o inolvidável amigo de Marx, Karl Friedrich Kõppen --, baseado numa visão histórica democrático-revolucionária, conseguia reunir de 500 a 600 ouvintes oriundos de todas as classes sociais, de comerciantes e militares a artesãos e operários, para suas conferências na Universidade de Berlim, Raumer, oriundo da escola romântica, ocupado principalmente em louvar a Idade Média e de preferência os Hohenstaufers, tinha de se contentar com um círculo menor de burocratas, funcionários e estudantes, cuja ambição maior era a de se tornarem também burocratas e funcionários.

Em Raumer a apologética histórico científica não tinha o mesmo fulgor que em seus seguidores. A minuciosa pesquisa de Leopold von Ranke e sua admiração pelo papel dos documentos escritos, o que em si significou um avanço, emprestou à sua visão apologética da história um traço de cientificidade, que a escola romântica não conseguiu alcançar. Mas a especialização rankeana quanto à análise das fontes implicou, por sua parcialidade, num passo atrás em relação aos historiadores franceses da Restauração, plenamente conscientes do verdadeiro papel das lutas de classe.

A azeda observação feita por Köppen de que Ranke conseguiu o feito artístico de escrever um livro sobre Fürsten und Võlker (Príncipes e Plebeus), em que é verdade que se fala muito de janízaros e financistas, diplomatas e príncipes, comendadores e inquisidores, mas onde o povo anunciado no título do livro brilha por sua ausência, acerta em cheio o cerne dessa forma de escrever história: a apologética. 5

From sounds to things, reza um acertado ditado. O desenvolvimento da ciência moderna no sentido contrário leva, como observou Marx, à predileção pelo radicalismo verbal e pela retórica, o que ele critica especialmente com referência aos radicais da revolução de fevereiro. O ano de 1789 foi quando as classes revolucionárias procuraram arremedar a Antiguidade -- na vida política, em arte e literatura, na vida social e até mesmo na moda -- como fator progressista do desenvolvimento. 6

Quando os lamentáveis herdeiros da montanha, em 1848, se manifestaram usando palavras e loas do tempo da grande revolução, tratava-se simplesmente de um baile de máscaras. Quando, durante as grandes crises revolucionárias evocaram-se os espíritos dos mortos, foi para glorificar as novas lutas, não para parodiar as velhas, para imaginariamente aumentar as tarefas dadas, não para esquivar-se delas, para reencontrar o espírito da revolução, não para repeti-lo.7  No tocante à burguesia, em 1848 era apenas a alma da velha revolução que assombrava. As palavras estavam em contradição com os atos. 8


Economia e harmonia

Com James Mil! -- o pai de John Stuart Mill -- inicia-se a decadência da moderna economia burguesa. Sua matéria-prima não é mais a realidade, mas a forma teórica sublimada de Ricardo.  Para Mill é a produção burguesa que constitui a forma absoluta de produção. Assim, as verdadeiras contradições só podem ser aparentes. Uma solução objetiva torna-se impossível. Aliás, de resto em Mill fica somente um discurso desculpativo das dificuldades - ou seja, pura escolástica. 9
 
Dessa forma a teoria de Ricardo degenera-se em apologia direta do capitalismo, em defesa do desenvolvimento burguês. Tal apologética aparece já no método de Mill: onde a situação econômica -- e, portanto, também as categorias que a expressam -- incluem uma contradição, ele faz notar a unidade dos contrários, negando as contradições em si, ou seja, substituindo a dialética real por uma concepção metafísica. Faz da unidade dos contrários a identidade dessas contradições.10 
  
Foi esse método que abriu o caminho para a economia vulgar.  N. W. Sênior substituiu o conceito de capital pelo de sacrifício, fazendo com que o lucro capitalista fosse aceito como uma justa remuneração pelo sacrifício dos capitalistas! Jean-Baptiste Say e Frédéric Bastiat tentaram suavizar o conceito de lucro estendendo-o a todos os insumos: o salário seria o lucro dos trabalhadores, oriundo da produtividade da força de trabalho.11

É bem verdade que hoje a maioria dos macro-economistas burgueses renegam tal disparate. Por outro lado defendem que a doutrina do - valor-limite deu início a uma renovação da moderna macroeconomia. Essa subjetiva teoria do valor é criação de um autodidata alemão, H. H. Gossen.12

Possivelmente tudo haveria caído em esquecimento, se a conjuntura histórica não fosse propícia. A macroeconomia via-se diante de uma crise. A teoria harmônica dos clássicos defensores havia ruído, e a presença da classe obreira -- principalmente durante a Comuna de Paris, em 1871 -- crescera ao ponto de tornar-se uma ameaça à existência da burguesia como classe. Necessitava-se de uma sólida ideologia antimarxista, e para isso reinventou-se, nos anos 1870, a teoria do valor limite, do genial idiota Gossen.

A teoria do valor limite tem sido minuciosamente vistoriada (Dobb, Vogt e outros). 13 Transforma subjetivas valorizações particulares na área que daria à ciência econômica a sua autonomia, declinando de pesquisar as relações sociais que estão na base de tais valores. Desses subjetivos valores seriam oriundas as leis econômicas, declaradas em concordância com a natureza das coisas (Menger). 14

Dessa forma, transformam as leis relativas e historicamente condicionadas, do capi-talismo, em leis naturais absolutas, que devem ser aceitas como inevitavelmente necessárias. Nisso reside uma tendência apologética, que mesmo metodologicamente desemboca na substituição do conceito de lucro pelos conceitos de juro de capital e lucro do empresário, em pesquisadores como Bohm-Bawerk. 15

O juro do capital -- ou seja, o lucro capitalista -- passa a ser um resultado da própria duração, e supõe-se ter base na própria natureza!  Cassel adapta essa teoria à demagogia capitalista cotidiana.16  Toda produção exige tempo. Esperar é um atributo necessário da produção. E o juro do capital é simplesmente o preço a pagar pela espera! 17

Assim, ressurge a velha economia harmônica em refinada forma. A ciência econômica degenerou-se numa reprodução apologética de fenómenos superficiais -- traduz tão somente as representações ordinárias em linguagem doutrinária. 18


Anti-capitalismo romântico

A defesa do capitalismo não passa somente pelo caminho da apologética liberal direta. A crítica romântica do capitalismo, que descobre dissonâncias onde os liberais enxergam pura harmonia, desemboca numa apologética indireta, tanto mais perigosa e mais atual, da qual descende diretamente a demagogia social da barbárie fascista. O primeiro defensor mais significativo desse anti-capitalismo romântico foi Thomas Robert Malthus.

O alvo do pensamento econômico de Malthus era, em princípio, o mesmo dos últimos grandes clássicos, Ricardo e Sismondi: a produção capitalista devia desenvolver-se com a maior liberdade possível. Mas os pressupostos eram, como observou Marx, distintos. Ricardo queria a produção pela produção, via o desenvolvimento da riqueza do homem segundo a sua natureza como alvo bastante.19

Consequentemente, combatia todas as classes - se necessário, a própria burguesia que se dispusessem a dificultar tal desenvolvimento. Comparando o proletariado com maquinaria, com animais de carga, com mercadoria, fazia-o de direito, pois assim é -- em que pesem todas as belas frases em contrário -- na sociedade capitalista. O cinismo reside na situação real, e não nas formulações de Ricardo.20

A apologética malthusiana do capitalismo vai em sentido contrário. Ele também almeja o mais livre desenvolvimento possível da produção capitalista,

... na medida em que só pressupõe miséria para as classes, trabalhadoras, mas deve também adequar-se às necessidades de consumo da aristocracia e de seus prepostos no estado e na igreja, da mesma forma como deve servir de apoio material das antiquadas exigências dos representantes daqueles interesses herdados do feudalismo e da monarquia absoluta. 21

processo burguês de produção deve, portanto, segundo essa teoria, criar uma base material para a velha e boa sociedade. Malthus mostra as dissonâncias do capitalismo  e nisso encontra-se com Sismondi. Mas Sismondi salienta os direitos das pessoas particulares, cinicamente esmagadas pelo desenvolvimento capitalista. Descobriu que a produção capitalista é contraditória. A sua fraqueza reside em bem constatar as contradições, mas sem compreendê-las. Não pode, assim, alcançar as tendências históricas que levam à diluição das mesmas.22

Diferentemente de Sismondi, que sublinha as dissonâncias do capitalismo e pelo menos tem vontade de superá-las, Malthus as mostra, mas não para suprimi-las, e sim para, por um lado, demonstrar que a miséria da classe trabalhadora é necessária, e, por outro lado, para demonstrar aos capitalistas a necessidade de uma considerável burocracia estatal e eclesiástica. 23


De Carlyle a Nietzsche

Um dos representantes mais originais e influentes do anti-capitalismo romântico é Thomas Carlyle. Combateu com sucesso os adeptos da trivial ideologia do progresso, que acreditava ou dizia acreditar que o desenvolvimento incontido do capitalismo beneficiaria os interesses das classes trabalhadoras. Em sua obra sobre o carlismo e em Past and present descreveu a miséria da classe trabalhadora inglesa, ironizando os hinos de louvor da economia vulgar à livre concorrência e a teoria populacional de Malthus.  Já em 1850, Marx, numa resenha de Latter-Day Pamphlets, acertadamente se pronunciava a seu respeito: O gênio foi para o inferno, mas seu culto permaneceu! 24

Na revolução de fevereiro Carlyle não conseguiu ver outra coisa senão caos e catástrofe, a derrocada final da democracia. Sentia necessidade de ordem. O domínio dos nobres numa sociedade hierárquica passou a lhe parecer uma eterna lei natural. Tais nobres eram para ele - os cavaleiros industriais! O herói de Carlyle transformou-se e adotou ares de moderno produtor de lucro, o seu romântico anti-capitalismo converteu-se em advocacia do capitalismo. 25

Um interessante caso paralelo ao de Carlyle é o alemão Friedrich Nietzsche. Assim como Carlyle, Nietzsche começou como romântico anticapitalista, e como aquele, terminou adepto do capitalismo, como defensor e propagador do imperialismo alemão anterior à guerra. Junto a elementos reacionários, a filosofia de Nietzsche encerra também elementos liberais que lhe trouxeram agressões por parte do nazismo, principalmente na obra de Arthur Rosenberg Mythos des zwanzigsten Jahrhunderts     (O mito do século vinte):

Em seu nome (de Nietzsche) deu-se a contaminação racial com sírios e negros, mesmo se Nietzsche propugnava por elevada disciplina eugênica. Nietzsche deixou se levar por sonhos de gigolôs políticos, o que resultou pior do que cair em mãos de ladrões. O povo alemão ouviu falar do afrouxamento de todos os laços, de subjetivismo, de per-sonalidade, mas nada de disciplina e edificação interior. 26

Rosenberg via claro, portanto, que Nietzsche, durante um certo período de seu desenvolvimento, foi o odiado filósofo do liberalismo -- um liberalismo que, em nome do livre desenvolvimento da personalidade, podia até mesmo agredir a sua própria base econômica, o capitalismo. Alguns dos escritos de Nietzsche contêm duras críticas ao sistema capitalista. Tais críticas voltam-se principalmente contra as expressões de degradação cultural e de depravação pessoal geradas pela divisão capitalista do trabalho. Nesse ponto Nietzsche liga-se à tradição do anticapitalismo romântico. Liga-se também, ao exaltar períodos pré-capitalistas tais corno a Renascença e o Império Romano.
Junto a essa crítica romântica do capitalismo, existe em Nietzsche um extremo oposto. Ele cria uma utopia ultra capitalista na qual hábeis e cultos dirigentes “romanos” de trabalho devem decidir sobre um bem disciplinado e dócil exército de trabalhadores:

Soldados e dirigentes estão sempre numa melhor relação uns para com os outros do que trabalhadores e patrões. Pelo menos até agora, toda cultura de base militar está bem acima da assim chamada cultura industrial. Em sua forma atual, aquela é o mais sociável modelo de convivência que já houve . . . Aos donos de fábrica e aos grandes empresários do comércio, faz falta essa forma que evidencia uma raça superior.  27

Alhures afirma:

Os trabalhadores devem sentir-se como soldados. Devem receber honorários, soldos, mas não pagamento! 28

Aí está a contradição fundamental da filosofia de Nietzsche: é decepcionado com a civilização capitalista, em parte por ser demasiadamente capitalista, em parte por não ser suficientemente capitalista! Nietzsche coincidiu viver a época em que o capitalismo alemão entrava em sua fase imperialista. Criticou a civilização capitalista tanto em relação a seu passado como a seu futuro baseando-se em parte num pré-capitalismo romantizado, e em parte numa utopia relativa ao imperialismo vindouro. De que maneira isso efetivamente se daria, tivemos ocasião de verificar não muito tempo depois. Os campos de batalha, os campos de extermínio, os fornos a gás, os crematórios, as valas comuns, testificam o domínio da raça superior.

N o t a s :

1 Comparar com E. Niekisch: Oswald Spengler. Neue Welt 7 (23): 1947.

2 Karl Marx e Friedrich Engels: Kommunistiska manifestet (O manifesto comunista), Estocolmo, 1938, p. 16.

3 Karl Marx: O Capital, vol 1, p. 11.

4 Previsão e providência, são as grandes expressões. empregadas hoje para explicar o desenvolver da História. Na realidade elas nada explicam. Na melhor das hipóteses trata-se de uma forma retórica, uma das muitas formas de descrever os fatos. Karl Marx: Misere de la philosophie (Miséria da filosofia), Marx/Engels Gesamtausgabe (Obras completas), Erster Arbeitung. VI, p. 187. A mesma tendência irracionalista aflora vez por outra durante o desenvolvimento da pesquisa histórica burguesa: veja-se, por exemplo, o que diz Ranke sobre “as leis genéricas da vida”, “a mão de Deus sobre nós”, “os maravilhosos caminhos do destino" etc., que substituem a análise das realidades econômicas e politicas.

5 Friedrich Kõppen: Die Berliner Historiker (Os historiadores berlinenses). IL 6/7, 1945.

6 O classicismo revolucionário realista de David foi o ápice da curva ascendente desse desenvolvimento,

7 Karl Marx: O Brumário XVIII de Louis Bonaparte, Estocolmo, 1939, p, 14.

8 Idem, p.14. Já nos irmãos Goncourt, é possível ler a franca e cínica traição do burguês moderno para com as tradições revolucionárias de sua classe. Veja-se, por exemplo, a reação desses senhores estudando, em seu Diário, a publicidade do período revolucionário: Destituindo esses grandes homens, um Robespierre, um Marat, de seu ar de carrascos, um não passaria de um professor de retórica togado, de um Graco velho e grotesco, e o outro um voluntarioso e caricato idiota. Basta tirar o sangue da revolução, ante essa confusão de idiotismos canibais e grandiosidade comedora de gente, e ver-se-á que emaranhado de mentiras é toda essa revolução!... E assim por diante. Não e necessário citar mais para desnudar esses brilhantes escritores em toda sua miséria ética e espiritual. O Diário dos irmãos Goncourt, vol. I, p. 169, e a famosa história da revolução de Taine, não deixam a coisa por menos.

9 Citação a partir de Lukács: Karl Marx und Friedrieh Engels ais Literaturhistoriker (Carlos Marx e Frederico Engels como historiadores da literatura), Berlim, 1948, p. 112.

10 Ibidem, p. 114.

11 Em grande parte, a obra de Say consiste numa vulgarização de The Wealth of Nations, constata a Encyclopedia of the Social Sciences.

12 H. H. Gossen: Entwicklung der Gesetze des menschlichen Verkehrs und der daraus fliessenden Regeln für Mensehliches Handeln (Desenvolvimento das normas para a melhor fluidez do transporte e do comércio humano).

13 Ver Vogt em Athenaeum, 1834. Comparar também com Maurice Dobb: Klassisk och modern ekonomi (Economia clássica e moderna), Estocolmo, 1939.

14 Menger: Grundsãtze des Volkswirtschaftslehre (Princípios de economia política).

15 Bõhm-Bawerk: Kapital und Kapitalzins (Capital e juros do capital), 141, Innsbruck, 1914.

16 Gustav Cassei: Teoretisk socialekonomi (Sócio-economia teórica), Estocolmo, 1938.

17 Ibidem, p. 200 e seguintes.

18 "A economia vulgar não faz outra coisa senão interpretar doutrinariamente a imaginação dos agentes de um modo de produção, presos a suas relações, sistematizando e defendendo a mesma". Karl Marx: O Capital III, Estocolmo. 1931, p.771.

19 Quanto aos elementos progressistas da macroeconomia clássica, burguesa, ver também: Misere de la Philosophie (Miséria da Filosofia), Marx/Engels, Gesamtausgabe (Obras completas), Erster Abt. vol. VI, p. 190.

20 Comparar com Karl Marx, Misere de la Philosophie (Miséria da Filosofia), p. 136.

21 Quanto à crítica de Marx a Malthus, ver: O Capital, p. 577, nota 76, p. 597 e alhures.

22 Em sua principal obra -- Nouveaux Principes d'Économie Politique (Novos princípios de economia política), publicada em 1819 --, Sismondi critica o axioma da economia clássica burguesa e demonstra que as crises econômicas são fenômenos inevitáveis do sistema capitalista. Demonstra também as consequências desumanas da divisão capitalista do trabalho. Seu posicionamento político o aproximou da crítica romântica de Carlyle ao capitalismo e da sua teoria quanto ao do estado pelos nobres. Em: Études sur les constitutivos des peuples libres (Estudo sobre as constituições dos povos livres) -- editado 1836, ou seja, seis anos após a revolução de julho, o que pode ter influenciado o seu posicionamento --, Sismondi apresenta-se como liberal, distanciando-se da democracia, alegando que nem o proletariado nem a baixa classe média estariam maduros para ela. Seu livro torna-se uma apologia da burguesia urbana e dos privilégios dos intelectuais.

23 Como Marx já observara, é tênue o limite entre a falta de brilho dos economistas vulgares e a rebuscada linguagem dos escritores românticos, que na economia romântica, ao contrário, se ligam indissociavelmente, como em Adam Müller, que não apresenta outra coisa senão preconceitos do cotidiano, uma raspa da camada mais superficial das coisas. Tal conteúdo, pobre e trivial, querem depois elevar e tornar poético através de expressões mistificantes,  O Capital, vol. III, p. 362.

 24 Marx/Engels: Über Kunst und Literatur (Sobre arte e literatura), vol. I, p. 566. Comparar com Schiller em Mãnnerwiirde (A dignidade humana): Zum Teufel ist der Spiritus/Das Phlegma ist geblieben. (Do demônio é a inquietude/de Phleugma a estabilidade).

25 Thomas Carlyle: The Present Time (O presente momento), p. 42-43.

26 Alfred Rosenberg: Mythos des zwanzigsten Jahrhunderts (O mito do século XX). Munique, 1938, p. 350.

27 Die fröhliche Wissenschaft, Werke in drei Bãnde (A alegre ciência, obra em tres volumes), Munique, 1966, II pp. 65-66. É; inerente a essa utopia ultra-capitalista apresentar vários traços feudais.

28 Ibidem, vol. III, p. 558.


* * * *
OBS. Em seguida partes II e III.         

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