terça-feira, 30 de abril de 2013

A ANTIUTOPIA ou A armadura de bronze da necessidade histórica O materialismo histórico -- A filosofia da História, de Karl Marx


Robert Misik -- (capítulo IV de: Marx para apressados. Eds. ALVA – Brasília 2006.

Tradução: Frank Svensson


Será que O Manifesto expressa o triunfo da vontade sobre a sociologia?


Será que Marx é, ao fim de tudo, movido por uma ética, por um sentimento e pela motivação de combater o mal e a injustiça? Formular isso dessa forma não é violar a ideia central de Marx? Isso não é matar Marx de uma vez? Nada parece estar tão em baixa cotação nos nossos dias como as motivações morais.

Mesmo os revoltados pelas injustiças, pela brutalidade da riqueza que implica miséria, reagem mal quando acusados de moralizadores. Após os distúrbios de Seattle, Davos, Gênova e Florença, Die Zeit (Hamburgo) constatou o nascimento de um novo movimento radical de esquerda; o jornal Libération (Paris) festejava a geração da justiça social. E o eterno rebelde Daniel Cohn-Bendit exortava seus verdes a não se afastarem da gération morale.

Atentemos para a palavra do moralizador: a principal motivação da nova geração de rebeldes é a indignação moral face às fotos de crianças de ventre inchado, ou mais geralmente face às injustiças sociais, julga também Dieter Rucht, professor do Centro Científico da Pesquisa Social de Berlim, que trabalha sobre os movimentos sociais de protesto.

Entre os mais dotados descobrimos uma variedade de antiquado paternalismo. Aquele que ates-ta o moralismo de outrora evidencia um pouco de condescendência. Aquele que baseia seus procedimentos sobre a moral é sujeito suspeito. Entre as características mais singulares do nosso tempo, são inúmeras as motivações morais do engajamento, do comportamento quotidiano, seja entre os amigos do imoral, seja entre os amigos da moral. Fazemos ver às pessoas moralmente indignadas que geralmente o ocultam e sofrem veladamente a indignação; de mesma forma, os adversários das pessoas moralmente indignadas creem, no mais das vezes, que sua objeção é suficiente para desembaraçarem-se das mesmas. Em todo caso, é muito raro perceberem do que se trata: qual é o mal em se portar com moral?

Se a moralidade dos motivos e dos atos éticos é tão frequentemente associada a um moralismo enfadonho, a uma simples ingenuidade, a uma simplicidade excessiva e crédula, em parte isso se explica pelos sucessos dos adeptos do capitalismo e pelos cínicos estragos das lutas de opinião. A firmeza da doutrina econômica ultraliberal em que atualmente nos banhamos contribui para o descaso da moral. Leva a conclusões inesperadas para o profano, aumentando provavelmente seu prestígio intelectual, dizia Keynes. Por exemplo: aquele que não visa senão a seu interesse pessoal ajuda melhor o desenvolvimento de uma comunidade do que o que procura sempre fazer o bem, mas só consegue fazer o mal. Como na prática esse ensinamento traduzido é reiteradamente espartano e incômodo, isso lhe dá ares de virtude.

O fato que pode servir de base a uma superestrutura lógica, gigantesca e rígida, confere-lhe beleza. Ao permitir explicar injustiças sociais e uma crueldade flagrante corno problemas inevitáveis decorrentes do progresso e fazer passar as tentativas de substituir as coisas por uma ação provavelmente mais nefasta que benéfica, esta teoria recebe uma aprovação quase geral.

Isso não esclarece completamente porque a ação baseada na moral tem gosto duvidoso, mesmo para adversários do liberalismo econômico. A depreciação da moralidade, como facilmente con-cebida, é arma privilegiada do arsenal das doutrinas ultraliberais da economia de mercado. Forçoso é constatar algo simultaneamente surpreendente e lógico: em seu menosprezo pela ação ética, eles se voltam à tradição de Marx. Tendo por consequência a certeza, compartilhada à esquerda como à direita, de que só dados objetivos são importantes, não desejos, esperanças e ilusões dos homens.

Atitude que obtém franco sucesso, a ponto de uma criança saber hoje ser preciso conhecer as realidades econômicas e ater-se a fatos. Não se ter em conta o que deseja um indivíduo e as ideias e ilusões que lhe povoam a mente tornou-se lugar-comum que quase não se põe em questão. A última e imensa certeza de nosso tempo, que de resto quase não há, é a da primazia da economia que a política não pode contrariar e só um imbecil exaltado questionaria. Ninguém ousa contestar que o mundo funciona segundo sua lógica, que é puramente econômica, impõe-se como lei da natureza e à qual nem governo, nem empresa, nem indivíduo podem evitar. Só uma pessoa bizarra pode perder tempo a dar tratos à cabeça quanto a alternativas de lógicas de desenvolvimento ou questões filosóficas ou históricas. Esse tipo de pensador está tão fora de moda quanto espíritas ou comunistas.

Os apologistas da ordem estabelecida estão vitoriosos em toda a linha. Teríamos mesmo o direito de dizer: vejam precisamente porque, admita-se o propósito do comunista italiano Antonio Gramsci, pelo centésimo aniversário de Marx, após a primeira guerra mundial: Não seremos todos marxistas? Todo mundo é um pouco marxista sem que o saiba (Écrits politiques, t.l, p. 145, Paris, Gallimard, 1981).

Isso se encaixa? Encaixa-se muito bem, lendo e sublinhando aspectos das profusas ideias de Marx. Afirmávamos que Marx desenvolveu suas teses contestando a filosofia hegeliana e a pós-hegeliana. Quando Marx decidiu acertar contas com sua antiga consciência filosófica, Hegel já estava morto havia quinze anos. Para Hegel, toda a vida era essencialmente espirito, não prática. Hoje é forçar portas abertas afirmar que a existência material e as condições de vida concretas dos homens exercem papel capital em seus projetos e objetivos de vida, nas imagens que se fazem do mundo. É banal observar que, por estar em condições de formar consciências esclarecidas, de instaurar instituições democráticas, um aparelho de Estado que funciona e um sistema de instâncias jurídicas, sociais e culturais, as sociedades devem ter atingido certo grau de desenvolvimento material e que o respeito a outrem e à lei terá grande dificuldade de se im-por, enquanto a grande maioria da população ve-geta na miséria e na fome. Isso absolutamente não era evidente à época, quando se podia filosofar livremente sobre o espirito, a consciência ou o saber, sem muito considerar o estado de evolução de uma sociedade.

Se o jovem erudito Marx foi cedo um opositor, também o foi porque o jovem rebelde Marx sabia que a revolução que se descortinava no horizonte não se faria, porque o revolucionário Marx desejava. Nosso universitário questionador não se vê em confronto somente com a filosofia especulativa, bate-se com todas as nuances de um socialismo ético e afetivo. Toda a vida abominou aqueles que assentaram o socialismo numa utopia elaborada na sua torre de marfim, que obedeceram a uma ética forte, mas desdenharam as realidades.

Aos 25 anos Marx lutou contra esses e contra os Jovens Hegelianos. As revoluções efetivamente necessitam de um elemento passivo, de uma base material, escreve ele com a arrogância incontida do debutante; acrescenta: não basta que o pensamento seja realizado, é necessário que a realidade faça pensar. (Crítica do Direito Político Hegeliano, p. 206). Aqui desponta o modo de argumentação que Marx desenvolverá no materialismo histórico. Esse materialismo não significa -- como pretendem certos adversários -- que os homens sejam essencialmente movidos por motivos materialistas, ou que o homem seja mau. Significa que o nível de produção material e constitutivo do grau de desenvolvimento da civilização de um pais. A liberação é um fato histórico, não um fato intelectual, lemos na “Ideologia Alemã”, e ela é provocada pelas condições históricas, pelo estado da indústria, da agricultura, do comércio, das relações ... (1. A. p. 22).

 Convém aqui introduzir duas categorias essenciais do marxismo: as forças produtivas e as rela-ções de produção. A noção de forças produtivas descreve o nível material geral de uma sociedade, ou seja, o nível do saber-fazer e o das invenções, o grau de tecnizacão: uma sociedade que dispõe de fábricas automatizadas e que pratica a agricultura com ajuda de grandes máquinas agrícolas e se vale de substâncias químicas atingiu um nível de desenvolvimento das forças produtivas mais elevado que uma sociedade onde o camponês aciona o arado puxado por bois ou os artesãos fabricam manualmente, com alguma ferramenta, os objetos de uso quotidiano. A noção de relação de produção descreve, ao contrário, as condições sociais nas quais se desenvolve a produção. A sociedade divide-se em homens livres e em escravos trabalhando para aqueles? Decompõe-se em uma nobreza proprietária de terras, em camponeses atados à gleba e em cidades com comerciantes livres, onde artesãos vendem os bens que produzem? Ou estamos ante uma sociedade capitalista desenvolvida, em que uns vivem do trabalho assalariado, outros de seu capital, uma sociedade marcada por generalizada produção de mercadorias e uma economia monetária?

O materialismo histórico leva a uma dupla conclusão. Primeiramente, os diferentes graus de desenvolvimento das forças produtivas correspondem (cada um) a diferentes relações de produção. A ordem social de uma sociedade, onde a grande maioria da população trabalha na agricultura, dispondo só de meios rudimentares, é o feudalismo, isso independentemente de que um critico filosófico considere a servidão boa ou má; uma economia de mercado e monetária desenvolvida, tendo produção globalizada e relações comerciais se estendendo além dos continentes se relacionará mal com uma escravatura generalizada. 0 que não quer dizer que a economia de mercado desenvolvida critica a escravatura de modo mais eficaz e duradouro, corno jamais fez uma critica humanista que invoca a dignidade de um homem nascido livre.

Em segundo lugar, homens que produzem com relações de produção e forças produtivas históricas determinadas desenvolvem essas forcas produtivas, melhoram seu saber-fazer e seus instrumentos, fazem invenc6es. Nos nichos dessa sociedade tomam lugar classes intermediarias (como comerciantes) que aportam produtos vindos de longe ou transformam os processos logísticos. Assim é que artesãos não trabalham mais só por si, para seus mestres ou para seu entorno imediato, mas igualmente para comerciantes que lhes confiam produtos para vender algures, acumulando novo capital de mercado, permitindo reorganizar o processo sobre base mais ampla. 0 grau de produtividade e a organização da produção podem continuar a se desenvolver em meio a certas relações sociais, ate que fiquem anacrônicas e a organização tradicional não mais possa satisfazer a nova modernidade. E então que nascem as tensões e os conflitos sociais. As novas classes, mais dinâmicas, revoltam-se contra as antigas classes superiores anacrônicas. Segundo nossa concepção, todos os conflitos do historia têm sua origem na contradição entre as forças produtivas e o modo de troca, formula Marx (IA. p. 60).

Marx não se ateve a aplicar a análise materialista a épocas passadas. Introduziu novo método de estudo histórico, embora sua teoria haja revolucionado também a reflexão sobre a história, até então história de grandes homens, ideias e grandes acontecimentos (afora instituições como Exército ou Igreja). A história moderna da sociedade e a sociologia atual seriam impensáveis sem a herança de Marx, que aplica sua crítica histórica materialista à sociedade em que vive e ao capitalismo.

Já vimos que desmontando o mito do Homem, Marx mudou a possibilidade de criticar de fora o capitalismo. Para ele não mais existe a utopia vinda do céu, causa da origem inicial do Homem, que se oporia ao mundo capitalista das mercadorias. Não lhe restam mais que duas possibilidades: renunciar à crítica da ordem estabelecida ou relocar a crítica para essas condições. O projeto de Marx não é acusar o capitalismo, mas expor uma análise provando que o capitalismo sempre contribuiu para sua autocrítica ativa e prática.

Efetivamente, como as formações sociais precedentes, a ordem capitalista não é mais que uma dessas relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento de suas forças produtivas (homens). À medida que o capitalismo corresponde a esse grau de evolução, é relativamente independente da vontade dos indivíduos.

Uma formação social não desaparece jamais antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas às quais possa dar livre curso... Isso porque a humanidade jamais se põe problemas que não pos-sa resolver. ("Contribuição à Critica da Economia Política", Prefácio - pp. 4-5).

Mesmo esse modo de produção atinge um ponto em que as forças produtivas não podem mais se conter dentro de seu envoltório capitalista. Este se romperá em pedaços. At hora da propriedade capitalista já soou ("O Capital", 1, 3, p. 205). É sob esta forma satírica que Marx se exprime em O Capital, uma de suas últimas obras, que prioritariamente consagrou uma análise detalhada da dinâmica econômica. Os trabalhos preliminares a estes textos remontam aos anos 1840, o grande período criativo de Marx, 1844 a 1848.

Em resumo: Marx não teve a menor intenção de conceber uma utopia. Não se tornou comunista porque desejasse o comunismo ou julgasse o capitalismo moralmente reprovável, mas teria reagido muito mal se alguém lhe fizesse tal observação. Para ele, a supressão da propriedade privada e a socialização cooperativa representam simplesmente um potencial, uma tendência da sociedade capitalista. O comunismo não é para nós nem um estado que deve ser criado, nem um ideal sob o qual a realidade deverá ser regulada, escrevem Marx e Engels em "A Ideologia Alemã". Denominamos comunismo o movimento real que abolirá o estado atual. As condições desse movimento resultam de premissas existentes (I. A. p. 33).

À diferença dos grandes utopistas, de Thomas Moore aos do socialismo primitivo, Marx sempre evitou fazer-se uma imagem da sociedade comunista. Também isso ajudou consideravelmente os doutrinários do socialismo de Estado do antigo bloco do Leste a fazer passar seu modelo social como concretização da teoria marxista. Em nenhuma parte de sua obra Marx descreve a sociedade comunista ideal, os dados concretos do socialismo real não têm a que ser comparados. Não há mais que uma passagem célebre onde Marx, que sempre respeitou sua proibição quase bíblica de cair na utopia, deixou-se levar a um breve esboço do que poderia ser a vida no comunismo. Levando em conta a divisão do trabalho em vigor no capitalismo, o homem é caçador, pescador, pastor ou crítico. Diz Marx: ... enquanto que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, o que me permite a possibilidade de fazer hoje tal coisa, amanhã outra, caçar de madrugada, pescar de manhã, pastorear de tarde e fazer critica após o jantar, segundo meu bel-prazer... (I. A. p. 32). Mas não atribuamos muita importância a essa passagem, que pode hoje ser classificada como produto de uma imaginação errante.

 Quando imaginou a sociedade comunista em seu foro interior, Marx tinha em mente, esperamo-lo, uma comunidade mais desenvolvida. De qualquer modo, é mais provável que nem tenha formulado dela uma representação. Sociedade socialista não é coisa concluída, mas como todos os estados sociais deve ser entendida como coisa em perpétua transformação e reorganização, afirmou o velho Friedrich Engels muito tempo após a morte de Marx, quando alguém lhe pediu para descrever como via a sociedade futura. Seria simplesmente o produto das condições que o capitalismo abandonaria, uma vez cumprido o seu tempo. Eram condições desconhecidas de Marx e seus amigos. Estes, ao contrário, estavam convencidos de que o capitalismo era destinado a desaparecer.

A última certeza deve-se a uma das ideias herdadas do marxismo que tem suscitado inúmeras controvérsias. Gerações de exegetas de Marx e de revolucionários reunidos com seus legados examinaram milhares de páginas escritas de suas obras, virando e revirando frases e guardando na mente as passagens. As teses do materialismo histórico deixam notadamente uma questão crucial sem resposta: se as leis da dinâmica interna do capitalismo exacerbam as tensões e as contradições, conduzem necessariamente à revolução, como escreveu Marx nos Manuscritos de 1844. Essa tese do fim natural e inquestionável da dominação da classe capitalista, Marx não só formulou nesse texto de juventude, mas numa carta ao amigo Weydermeyer:

No que me concerne, não é a mim que cabe o mérito de haver descoberto a existência de classes na sociedade moderna, tão pouco da luta que movem. Historiadores burgueses haviam exposto isso bem antes de mim. A evolução histórica dessa luta de classes e dos economistas burgueses haviam descrito a anatomia econômica. O que eu trouxe de novo foi: 1° demonstrar que a existência de classes não é ligada senão a fases históricas determinadas do desenvolvimento da produção; 2° que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado ("Cartas sobre O Capital", p. 59)

Para os marxistas pós-Marx há uma pesada e explosiva herança a assumir. Se o movimento real da formação da sociedade capitalista necessariamente conduz à queda da ordem burguesa e ao reino do proletariado, é de se perguntar que papel cabe aos combatentes dessa luta de classes que Marx considera motor da história. O teórico francês há pouco morto, Cornelius Castoriadis, julga que na medida em que se mantêm as afirmações essenciais da concepção materialista da história, a luta de classes não é fator à parte (A Instituição Imaginária da Sociedade. Paris. Le Seuil, 1999 p.43).

Introduzindo a noção de necessidade histórica, Marx, o teórico da liberação, faz intervir uma segunda alienação, desta vez teológica, e estabelece uma espécie de providência comunista, tendo por fatal consequência que o revolucionário não tem outra missão senão fazer triunfar a implacável necessidade com toda sua energia e sua vontade. A questão não é mais saber o que os homens querem e desejam, mas como se conscientizam e põem-se de acordo quanto ao que a história lhes encarregou: desenvolver as forças produtivas e fazer saltar as cadeias das relações de produção, quando chegar o momento.

Os indivíduos de que se trata liberar não são mais que os executantes de leis históricas independentes, ou pelo menos muito indiretamente o produto da atividade desses indivíduos. Visto assim, o proletário da luta de classes não é mais que uma marionete manipulada por essa lei do mundo. Certos críticos viram nesse raciocínio a origem do estalinismo: infelicidade! Se o proletariado não satisfizer o que lhe pede a história, será obrigado a entrar na armadura de bronze da implacável necessidade. Em nome de uma revolução que perde o homem de vista e nada tem em conta além das leis históricas, tudo é permitido -- mesmo o combate sangrento contra o próprio homem. Vejamos a amarga critica que faz Albert Camus em O Homem Revoltado (Paris, Gallimard, 1951) contra Marx, contra essa concepção de revolução onde o homem é tido como simples joguete, ou melhor, um agente da história, desde que a revolta está no homem, a recusa de ser tratado como coisa (coisificado) e ser reduzido à simples história. Em conseqüência, a revolta em Camus é também revolta contra uma revolução que, ademais, exige do homem que aceite seu sofrimento em nome da realização de uma necessidade histórica. Na sua célebre peça didática A Decisão, Bertold Brecht mostra a que ponto um sacrifício pode chegar para satisfazer a necessidade histórica.

Embrasse te boucher. Mais                                                                                                           Change le monde; il en a besoin!                                                                                                   ...                                                                                                                                               Donc, nous décidons: maintenant                                                                                                 De notre corps retranchons notre propre pied,                                                                                !I est horrible de tuer.                                                                                                                  Pouretant nous tuons non seulement les autres                                                                                                                                                          mais aussi les nôtres, quand iL le faut.                                                                                               Car seule la violence peut changer                                                                                             Ce monde meurtrier, comme                                                                                                         Le savent tous [es vivants.                                                                                                             II ne nous est pas encore permis, dissions-nous,                                                                        De ne pas tuer.                                                                                                                          C'est uniquement par la volenté inflexible de                                                                              changer le monde que nous avons motive                                                                                     Cette décision.

(La Decisión, poema de Bertold Brecht)

Nunca Marx foi tão longe. Ao contrário: em vários lugares de sua obra, contestou uma inter-pretação por demais determinista. Várias vezes insistiu que as leis econômicas descobertas pela economia política não eram leis da natureza, mas que as relações sociais determinadas são produtos dos homens como o tecido, o linho etc. e não têm efeito de lei enquanto os homens não as modificarem. Donde a célebre frase: À tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre a cabeça dos vivos (O Brumário XVIII, Louis Bonaparte, p.69).

Isso seria difícil de compreender se todo o poder da história se voltasse ao desenvolvimento das forças produtivas e se fosse efetivamente sem importância saber quais ilusões e quais desejos alimentam as gentes. O desenvolvimento das forças produtivas é o campo do real que delimita o sentido do possível para o homem: se na sociedade como é, não encontramos mascaradas as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhe correspondem, todas as tentativas de lhe fazer explodir não passarão de donquichotismo, escre-veria Marx (Cl, p.95), e jamais o materialismo histórico procurou dizer mais.

Marx sempre investiu muito de seu tempo na reunião das forças revolucionárias, o que teria sido relativamente inútil se a revolução devesse advir dela mesma, assim como fundar um partido para provocar um eclipse solar. Marx cria profundamente no progresso do moderno e assim deixa suficientemente de fragmentos contraditórios e susceptíveis de induzir em erro, permitindo a certos discípulos ulteriores conferir à sua doutrina uma tendência determinista, fatalista, mecanicista, como disse Antonio Gramsci. Em toda vida Gramsci foi contrário a essas simplificações, da mesma forma que o marxista francês Louis Althusser, que questionava como é teoricamente possível sustentar a validade dessa proposição marxista fundamental: a luta de classes é o motor da história, ou seja, sustentar teoricamente que é pela luta política que é possível desmembrar a unidade existente, quando sabemos precisamente que não é a política, mas a economia, determinante em Ultima instância? (Por Marx, p. 221)

Em primeiro lugar isto não é uma imprecisão teórica, mas uma fraqueza humana a reforçar nossa deriva. Gramsci reconheceu que esse determinismo tinha um sentido: pois se tornou historicamente necessário e justificado pelo caráter subalterno de camadas sociais determinadas. Quando não temos a iniciativa da luta e de que a luta termina por se identificar com uma série de defeitos, o determinismo mecânico torna-se formidável força de resistência moral ... Eu fui momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim (Gramsci dans le Texte, Gallimard p. 153).

Esta certeza do futuro é um erro particularmente sedutor, porque é fonte de força: mesmo se as classes inferiores foram humilhadas e ultrajadas, ofendidas, sem influência e perseguidas quando se puseram à frente, quando se puderam dizer que o futuro lhes pertence; uma fonte inaudita e inesgotável de reconforto moral donde resultam os impulsos mais fortes para tomar uma iniciativa prática capaz de se transformar (Gramsci) em um desdobramento da vontade coletiva. De sua parte Marx não o teria visto muito diferentemente. Alguns anos antes de sua morte, escreveu numa carta: O sonho da iminência do fim do mundo incitou os primeiros cristãos a combater o universo romano, dando-lhes certeza da vitória.

Hoje a esquerda de todas as cores perdeu essa fé na vitória. É certo que lhe restou seu lado objetivista, como mostramos no início, a aversão pelos bons sentimentos, pelos pensamentos estúpidos e nalguns uma certa mordacidade pós-bolchevique que os faz considerar -- ao melhor com um certo levantar de ombros -- os resultados mais antipáticos (isto é um eufemismo) da mundializacão capitalista, como o preço a pagar pelo progresso. O materialismo histórico afirma, essencialmente, que não vale a pena senão para o que parece possível no horizonte, porque a nada serve desejar o que quer que seja, quando a realidade vai noutro rumo. Isto é sempre válido, mas aquele que quer engajar-se por urna sociedade melhor ou por um maior respeito pela natureza deve ter em mente que nenhuma forca oculta da história o fará em seu lugar. Eventualmente, o mundo não evoluirá noutro sentido, se indivíduos morais dotados de razão e de livre arbítrio não se engajarem.

Em sua última obra de filosofia política, Gérald A. Cohen pôs o dedo na ferida num pequeno livro recentemente aparecido Gleichheit ohne Gleichgültigkeit, (Igualdade sem indiferença) Hamburg. 2001. Esse veterano da velha esquerda norte-americana passou metade da vida a defender a tese que depois passou a considerar como o erro fundamental do marxismo: Com um pouco de ajuda de alguns adeptos do socialismo, o capitalismo produzirá o nascimento do socialismo. Hoje ele diz ter passado a um ponto de vista moral e se esforça para que nos deixemos inspirar por ideais, pois não haverá uma sociedade justa sem uma ética da justiça; para eliminar as condições de existência mais escandalosas, carecemos do fermento da moral. Sem isso, diz Cohen, todas as ideias segundo as quais o ativismo político não necessita de moral, mas só de conhecimento das necessidades históricas e a rigor dos interesses práticos para os quais a gente se reúne no intuito de lhes atender sempre com gabarolice; a despeito de sua confiança na história seriam, em primeiro lugar, os valores que teriam motivado Marx: a igualdade, a comunidade e a realização de si do homem foram, efetivamente, componentes indubitáveis do raciocínio e da argumentação do marxismo.

Cohen pleiteia atualmente uma sorte de moralismo esclarecido, sem recair na utopia. É irrealista de se opor à realidade; quando o mundo se põe em marcha, ele pode tomar diferentes direções. A que escolher dependerá dos indivíduos, de sua moral e das ideias que defendem. Cohen: Os homens têm a possibilidade de tomar decisões. E: Nós devemos trabalhar com as forças sociais sem obrigatoriamente tomar a direção que elas preferem. Seu colega politólogo novaiorquino Stephen Bronner recentemente declarou que hoje o engajamento pelos valores socialistas ou outros não se justificam mais, exceto pela convicção moral de fazer avançar assim a justiça.

O moralismo tem um lado menos cool. Ativistas moralmente indignados tendem também ao ativismo pelo ativismo: porque devem sempre estar em movimento, e a imobilidade significa a morte do engajamento - o que as naturezas calmas consideram enervante, tanto mais que tudo é interligado: a guerra com os interesses geoestratégicos e o neoliberalismo com a pobreza e a destruição do meio ambiente etc. etc. Por toda parte do planeta ocorre algo deprimente. Os que proclamam o grande Eu acuso ultrapassam bem mais facilmente a estreita linha que separa o pathos moralizador do simples kitsch e acabam por dizer não importa o quê. Tudo isso, no entanto, não é motivo para ser contra as convicções morais, que não são irrealistas, mas reais, têm forca própria e não podem ser desligadas das ideias, da filosofia que Marx dizia constituir uma força material, desde que amparada nas massas.

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