segunda-feira, 8 de abril de 2013

O INICIO DO NOSSO TEMPO – Parte II


Elias Cornell – (1916-2008)  Historiador marxista sueco, foi Professor catedrático de História da Arquitetura e do Urbanismo no Instituto Tecnológico Chalmers – Gotemburgo.  De sua vasta produção literária destacamos: História da Arquitetura (1949); A História da arquitetura das grandes exposições internacionais (1952): As técnicas da construção, métodos e ideias através dos tempos (1970); A arquitetura da relação cidade campo (1979); As raízes da fúria demolidora (1984); e O espaço na arquitetura, história e atualidade (1996).   

Tradução Frank Svensson


O radicalismo

Os arquitetos e os engenheiros continuaram a sua libertação durante as décadas em torno de 1900. Aumentou o número de programas a atender e as incumbências passaram a ser mais abrangentes que as do século XIX. Nenhuma formação social apresentou maior necessidade de um planejamento global detalhado e bem pensado, mas a tarefa mostrou-se superior à capacidade daqueles que defendiam um enfoque globalista.  As tentativas só podiam dar certo na Grã-Bretanha e nem antes nem depois da época de Howard e de Geddes. Nessa época, a sociedade britânica ainda mostrava traços de liberalismo e de economia liberal — uma economia apoiada nos recursos do império. Com todas as suas estranhas contradições, essa sociedade podia abrigar, também, amplas e excepcionais experiências como Letchworth e Welwin Garden City.


                                       Fábrica Fagus, em Alfeld, de Gropius e Meyer, 1910-1911.

Em nenhuma outra sociedade capitalista foi possível levar a cabo algo semelhante. Praticamente não foi possível imaginar atividades de construção como algo mais que empreendimentos isolados. A sociedade capitalista não consegue encomendar ou realizar mais do que determinadas partes. Se não houver um pensamento socio-econômico radical nem tampouco o propósito de reformas, e se a cooperação é gradativamente institucionalizada, não pode haver quem solicite uma construção social abrangente. Nessa sociedade, além disso, é impossível ponderar entre antigo e novo ou entre cidade e campo.

Pairava no ar um desafio a arquitetos, a engenheiros e a todos os que tinham a ver com construção: desenvolver, a qualquer preço, a interpretação das questões de construção da sociedade industrial. As questões ligadas à forma eram cada vez mais prementes.

Os que tomaram a direção e a responsabilidade principal não trilharam o caminho da libertação ou da ampla visão global. Na longa luta por quem iria construir a sociedade ocidental, venceram aqueles que se valeram dos meios mais radicais.

Deixemos um único prédio nos conduzir ao que houve. É a fábrica Fagus, de 1911, uma indústria de máquinas para sapataria, na cidade de Alfeld, projeto de Walter Gropius e Alfred Meyer. Aqui os arquitetos quiseram libertar-se de toda e qualquer dependência cultural e aproximar-se do absoluto. Escolheram uma expressão futurista e vanguardista, como diziam os italianos da época.

Com a construção da fábrica Fagus, a simplificação da arquitetura dá uma virada. Os arquitetos afastam-se de qualquer esforço ambíguo quanto à escolha de materiais, à expressão, a estilos históricos e a volumes ricamente esculpidos. Para aproximar-se do absoluto tornam à simplificação unívoca; tornam-na absoluta. A linguagem geometrizada liga-os aos cubistas, a no-va tendência que desejava fazer da arte somente arte. Abandonaram o expressionismo, que exigi-ra que a arte fosse expressão de sentimentos.


                                   À esquerda: esboce imaginário de urna cidade do futuro, de Sant'Elia, 1914.    À direita: perspectiva de Ferdinandsbrücke em Viena, de Otto Wagner, 1905.


A tentativa de formalizar a construção social do industrialismo

Gropius e Meyer assumiram posições radicais. Não é fácil saber com que rapidez o projeto da fábrica ficou conhecido. Mas enquanto estava sendo construída, o italiano Antonio Sant'Elia desenhou uma série de esboços de una cittá futurista. Com esse nome designava tanto uma cidade do futuro como uma cidade futurista. Transformou, no papel, a cidade retangulada de Otto Wagner, do século XIX, num sonho quanto ao futuro, urna cidade onde os arranha-céus apareciam como esculturas cubistas em concreto armado veiculando traços de gigantescos aparatos. Escreveu: Temos de inventar e mudar a cidade do futuro de tal forma que pareça um enorme e tempestuoso estaleiro, cheio de vida, movimentado, dinâmico em cada uma de suas partes, e a casa do futuro parecida com uma enorme máquina.

Quando Sant' Elia morreu, em 1916, tinha somente 28 anos, mas na nossa imagem histórica global a sua ideia aparece como um sintoma temporal típico. Talvez houvesse mais gente brincando com propostas desse tipo.


                                       Ville Coutemporaime, de Le Corbusier, 1922.

Demorou ate 1922 para que a arquitetura do futurismo e do cubismo começasse a ser seriamente aplicada à construção social. Le Corbusier, com praticamente a mesma idade de Sant'Elia, apresentou, então, uma proposta de une ville contemporaine. Como Geddes e outros, denunciava a maneira irresponsável de seu tempo construir e cuidar das cidades. Somente dois anos depois de surgir a Welwin Garden City, fundada com todos os seus aspectos, Le Corbusier sentiu-se estimulado a depurar o urbanismo jogando-o numa drástica utopia. Utilizou a grande admiração da sociedade burguesa pelo genial e ligando-se ao extremado radicalismo artístico da época mostrou como devia ser construída uma cidade de uma só vez para três milhões de pessoas.

Os precursores da totalidade tinham decidido resolver os conflitos que o tempo introduzira entre cidade e campo. O tempo pôs o industrialismo em contradição com a cidade e o campo ao mesmo tempo em que aumentou a tensão entre o antigo e o novo. A renovação dar-se-ia por meio de um paciente trabalho de reformas. Propuseram, ainda, que as unidades seriam comedidamente grandes.

Le Corbusier pôs-se à frente de uma tendência radical trocando reforma por revolta. Aceitava a cidade grande com todos os seus principais componentes, mas desejava, ao mesmo tempo, livrá-la de todas as inconveniências surgidas por crescentes arbitrariedades desde o século XVIII. A maneira era das mais antigas. Propôs a formalização total da construção social do industrialismo.

Le Corbusier queria chegar muito mais longe do que Tony Garnier, que se contentara com um genérico jeito grego de cidade. Trabalhou mais ou menos como Filarete no século XV ou como algum mestre egípcio de há mais de quatro mil anos.

Todos os componentes da sociedade na qual ele mesmo morava e atuava foram por ele reunidos numa imagem organizada, repentinamente pronta e definitiva, concluída como por um golpe de gênio, sem nada a acrescentar ou tirar, sem opinião de adeptos ou inimigos, sem manifestação de desejos de empreendedores burgueses e muito menos de representantes do povo: o autoritarismo do arquiteto.

Como conteúdo, técnica e quantidades passaram a ser outros, é preciso ver a nova sociedade também de forma essencialmente outra que não a antiga formalização pura e simples. Com novo conteúdo e com outras quantidades, o próprio caráter da sociedade passou a ser outro.

Louis de Soisson em Welwin Garden City pôde conservar muitos traços antigos entre os novos, porque a tarefa recebida o fora segundo um novo método e um método que o ajudou a evitar a rigidez da forma pura e simples.

Le Corbusier adotou um método antiquado. Mas na criação artística não era admissível a mínima indicação de algo antigo. Dessa forma, a sua Ville Contemporaine lembra uma Chicago ou uma Nova York ordenada por uma formalização cubista, com ajuda do mesmo tipo de conjugação empregada no plano de Versalhes e depois também por L'Enfant para Washington, a primeira tentativa de a partir da base propor uma cidade da nova era do industrialismo.

Quanto à imagem da cidade, Le Corbusier quis ir muito mais longe que os planejadores do século XIX. Aqueles haviam negligenciado totalmente a questão do espaço; esticaram as ruas mais do que estas podiam aguentar; suprimiram os quintais com o aperto e a proximidade dos prédios não permitindo, ainda, que os locais de trabalho viessem para os bairros estritamente residenciais.

Tudo Le Corbusier queria sanar, deixando os volumes exteriores do cubismo substituir e excluir a antiga espacialidade. Exagerando, podemos dizer que, de mais de uma maneira, virou os problemas da cidade pelo avesso. Se dessa forma houve urna inovação, houve também a perda da espacialidade pelo excessivo crescimento da cidade e pela conivência com outros aspectos negativos: os arranha-céus, a monotonia, a invasão das terras de plantio e o desprezo pela área rural em geral. Solidarizou-se, tam-bém, com o urbanismo da demolição — muito pouco procurou salvar da herança cultural material da cidade. Daquilo que havia surgido através dos séculos respeitou muito menos do que Napoleão III e o prefeito Haussman. Os arruamentos propostos por eles continuavam a ser concretizados até 1920, mas Le Corbusier quis chegar muito mais longe.

A burguesia por vezes escandalizou-se, por vezes entusiasmou-se vendo para onde os novos tempos podiam caminhar. Os grandes esboços de Le Corbusier não eram meros caprichos como o de Sant'Elia. Teimosamente continuou trabalhando neles, modificando e acrescentando. Só algumas partes foram construídas. É difícil saber se realmente acreditava conseguir com que todas as forças econômicas e burocráticas apoiassem os seus empreendimentos como, por exemplo, construir tudo novo no centro de Paris.

O mais importante para o desenvolvimento não foi aquilo que Le Corbusier pôde ver construído ou não. O historicamente determinante foi o fato de seus pares levarem adiante as ideias da arquitetura cubista também para a cidade como um todo.

Aquela imagem de uma nova totalidade apresentada por Tony Garnier e Sant'Elia gene-ralizou-se. Mas só a uns poucos foram encomendadas propostas globalizantes, nem em relação a novas cidades nem à renovação da relação entre a cidade e o campo. A quase todos foi reservado só construir alguma parte. Por outro lado, nenhuma parte é bastante em si mesma. Consciente ou inconscientemente, estão relacionadas a alguma totalidade, explicita ou não. Todas as partes ganham, assim, o jeito de fragmento, tanto no século XIX como no nosso século (Século XX). Acontece que os fragmentos têm um outro caráter, mais obstinado e mais difícil de unir ou de conciliar com outros aspectos da relação cidade e campo, independentemente de serem antigos ou recentes.

Quais eram, portanto, as intenções dos cubistas com sua tentativa de abandonar o passado e entrar direto no futuro com a ajuda de seu futurismo, passando por cima de seu próprio tempo? Na realidade suscitaram sentimentos bastante complexos, reunindo todas as tendências de simplificação havidas numa só: a cubista. Ocultaram seu contraditório posicionamento por detrás da objetiva realidade por eles criada com suas reluzentes e refletoras fachadas e volumes, nitidamente recortados e nitidamente sombreados.

O fundamental era criar uma nova realidade, compor uma arquitetura futurista a qualquer preço. Para tal composição sintetizaram uma linguagem formal que de todas as formas devia apontar para o desconhecido, uma miragem. Uma miragem passível de uso foi a cidade de arranha-céus. Os Estados Unidos ainda conservavam o seu brilho de país do futuro no inicio dos anos 1920. De suas maiores cidades podemos invocar os arranha-céus, e de sua capital, o plano para com isso tentar acabar com o caos. Buscar inspiração nos Estados Unidos era bom justamente por sua arquitetura ser tida como do futuro. Não era necessário vê-la como história. Além disso, a européia América não tinha traços medievais. Sua construção social foi iniciada sem muitas raízes em alguma urbanização antiga e era por isso mesmo muito mais simples como modelo., muito mais fácil de usar e transformar do que a européia. No entendimento generalizado dos anos 1920, a história da arquitetura terminava por volta de 1840. Depois vinha algo -- desconhecido e só depois vinha o presente com algumas poucas raízes em prédios de exposições, fábricas, estações de estrada de ferro e arranha-céus.

A arquitetura dos cubistas era, por assim dizer, composta de traços buscados diretamente no futuro, sem a mediação de construções já conhecidas. Aqui os cubistas se encontram numa curiosa dependência para com a história, uma dependência muito mais condicionante que a dos predecessores da simplificação. Estes conheciam a liberdade de sua libertação. Os cubistas caíram no oposto, na paradoxal dependência da renúncia.

Como os que os precederam após a passagem do século, em 1900, compreenderam a necessidade de trilhar novos caminhos para criar um melhor meio ambiente para as pessoas. O futuro teria de ser diferente do passado. Mas ao invés de aprofundar o estudo da história e conhecer o passado para bem e para mal, tirando novas conclusões e ensinamentos dos erros cometidos, os cubistas deram um passo totalmente diverso. Classificaram a história como um único e grande erro, um único conjunto de preconceitos que precisava ser superado. Não ampliaram a sua visão histórica para além da limitada e ultrapassada região dos estilos. Ao invés valeram-se do que havia de incompleto na teoria dos estilos como pretexto para desprezar toda a cultura de cidade e campo, bem como quase tudo que o passado nos havia legado. Era bem isso que tinham consigo consciente e inconscientemente quando erigiram a sua arquitetura do futuro, independentemente de qualquer conhecimento histórico. O futuro foi construído na crença de que tudo daria certo desde que se fizesse justamente o contrário do que fora feito no passado. A partir do mundo conhecido evadiram-se para o mundo desconhecido.

Muitos aspectos da arquitetura moderna e do urbanismo moderno no Ocidente podem ser ilustrados com essa negativa ligação à história.

Quintais, ruas e lugares urbanos eram característicos da edificação antiga. Lançavam as casas como volumes livres eliminando o melhor do sentimento espacial de sua imagem da cidade. Seu distanciamento da história era, portanto, muito mais sério do que simplesmente abolir a linguagem formal dos estilos com seus ornamentos e decorações.

Em relação a muitos aspectos, essa negativa dependência no inconsciente dos arquitetos parece pesar muito mais do que os argumentos desconexos e sem fundamento apresentados em suas justificativas. Os pátios de novos e antigos bairros eram apertados e insalubres; as ruas pareciam corredores disformes com tráfego excessivo. Teria sido possível recriá-los com suas qualidades originais, transformá-los em excelentes lugares do novo contexto. Da mesma forma, poderia ter sido resgatada a ambiência das ruas e das praças. Mas a própria espacialidade também era histórica e agora o importante era fazer o futuro diferente. Assim, os planejadores fugiram de pátios, ruas e praças. Ao invés de saudáveis e belos lugares ajardinados, preferiram os isolados volumes dos edifícios.


O triunfo da sociedade do tráfego no planejamento

Os radicalistas encontraram argumentos em seu favor na questão tráfego. Para muitos deles o tráfego tornou-se mesmo a coisa principal. Foi só quando incorporaram o tráfego no pensamento arquitetônico que finalmente acharam o caminho para sobrepor-se à cidade e ao campo. Talvez não imaginassem ser esse o caminho também em direção ao caos. Aqueles que não foram cínicos fatalistas acreditaram de fato poder monitorar a questão do tráfego.

É importante encontrar o ponto no qual os planejadores pensam estar a maneira correta de enfrentar o tráfego. Principal e importante porque os planejadores vieram favorecer consideravelmente o automobilismo com os seus projetos. Como sempre, trata-se de enfocar a questão de todos os lados. Não podemos escorregar para a ideia de que o tráfego pode ser conduzido por meio da construção social por via mecânica.

Como é mesmo a questão do tráfego? Observemo-la com um pouco mais de contexto do que o superaquecido momento de hoje.

As ferrovias com suas redes e estações são intervenções que a relação cidade e campo consegue suportar. Foi necessário preparar bem o seu caminho. Coisa que não foi feita com o automobilismo. Em pequenas como em grandes povoações este foi recebido sem maiores preparativos.

Os veículos a motor simplesmente apossaram-se de estradas, ruas, praças e campos. Até o início dos anos 1920, foram poucas as mudanças necessárias — melhorias vistas do enfoque do tráfego. As grandes estrebarias de Roma foram suficientes para o número de carros da cidade até os anos 1930. Nem mesmo nas cidades maiores o problema do tráfego foi argumento da política de demolição. Especulação, necessidades gerais de novos locais e opiniões militares eram as justificativas para as demolições. Ordenação do tráfego com soluções das do tipo de Hénard era possível aplicar às malhas viárias já existentes.

Só no início dos anos 1920 é que o volume de tráfego começou a pressionar as cidades de forma a exigir soluções especiais. O ano de 1923 é decisivo. Então os italianos abriram a sua primeira autoestrada, o trecho Napoli--Pompeji, e os norte-americanos, a sua rua especial para automobilismo, Bronx River Parkway, em Nova York.

Os automóveis atingiram a mesma posição dos trens de ferro. E ainda mais porque as no-vas vias surgiram para impedir a pressão sobre as velhas ruas e estradas. Eliminar o tráfego não era a questão, tampouco o era diminuí-lo.

Quem de forma mais clara assumiu as conseqüências das novas formas de encarar o tráfego foi Le Corbusier, usando tanto as ideias de Hénar como, em apoio, as de Tony Garnier. Le Corbusier não só aceitou o tráfego como o elevou à condição dé elemento principal da organização de toda a construção social. Com isso deixou de lado todas as raízes do velho urbanismo. O que forneceu nada mais era que o Plan Voisin, de Le Corbusier, 1925 primeiro enfoque consequente da sociedade inteiramente de tráfego. Mais um passo fora dado para fora da cultura de cidade e campo, uma espécie de passo final de desprezo e negação, um sinal para todos os interessados em construção social do mundo.

O Plan Voisin era também um sintoma assustador. A formalização triunfante era também uma capitulação, uma forma de formalizar a anarquia sem considerar a ordem social, talvez ate de não levá-la em conta.


                                       Plan Voisin de Le Corbusier, 1925.

A visão de Le Corbusier simbolizava o futuro. Apesar de sua inusitada imaginação artística, foi assim mesmo um fatalista. Contribuiu com o que sabia: facilitar o tráfego e com isso transformar em mérito aquilo que supunha necessário. Não caminhou para onde devia: liberar a sociedade do tráfego e assim romper com o fatalismo.

Num ponto Le Corbusier não rompeu com o século XIX: dividiu o seu plano em zonas rigorosas. Independentemente dele, o zoneamento foi uma das condicionantes do surgimento da sociedade de tráfego. Em grande parte é situando muitas moradias longe dos locais de trabalho que os profissionais do planejamento, os especuladores imobiliários e os políticos lançam o habitante da cidade grande no torvelinho do tráfego. O tráfego acrescenta mais um momento isolado no seu quotidiano como se já não esti-vesse suficientemente repartido. Numa cidade pequena, pode-se fazer uma agradável caminha-da de dez minutos até o seu lugar de trabalho. Na cidade grande é-se obrigado a trafegar de carro, de metrô ou de ônibus por horas.

Se a cidade grande fosse configurada segundo as necessidades de seus habitantes e não segundo o interesse de empregadores da especulação e do comércio, as pessoas o frequentariam também. Conjugar locais de trabalho e habitação vai muito bem. Na realidade, são muito poucos os lugares de trabalho que cheiram mal ou fazem barulho. Trabalho não precisa sujar, isso decorre muito mais da indisposição de manter o seu lugar limpo.

Monitorar o tráfego motorizado é um dos problemas do nosso tempo. Quando o tráfego atua livremente tendo a indústria de aviões e de carros e as empreiteiras construtoras de estrada apoiando, estes se tornam mais poderosos e levam a construção soda/ ao caos, Uma iniciativa favorável ao desenvolvimento e ao progresso é transformada em fonte de crises e conflitos.


O racionalismo

O que a arquitetura funcionalista principalmente aplica e expressa é uma razão limitada, conveniente aos profissionais dóceis aos intuitos da burguesia nesse tempo de capitalismo tardio. Essa específica e limitada razão é levada a dirigir, de forma inatacável e objetiva, quaisquer que sejam os aspectos da construção e de seus preparativos: a artística linguagem formal, a finalidade, a sociedade, a técnica, a economia, a ciência, a pesquisa — tudo é direcionado segundo as doutrinas da pseudo-racional razão burguesa. Trata-se da totalidade, importante, com todas as suas indissociáveis contradições. Trata-se, o tempo todo, de uma razão preconcebida, uma razão apresentada por meio dos símbolos sensoriais da razão, independentemente de suas tendências para o abstrato ou para o concreto.

Aqui não carecemos de grandes exposições de teoria do conhecimento para compreender que a linguagem formal do cubismo é indiferente a questões relativas ao racional ou ao irracional, ao que seja prático ou ao não-prático. As formas do cubismo não são melhor dotadas do que outras para fazer com que os edifícios sejam práticos quanto às técnicas ou quanto às finalidades. Não é nem mesmo verdade que seriam impróprias.

Não são necessários tampouco argumentos especiais de teoria do conhecimento para entender que a adequação às finalidades dadas pelos funcionalistas, sua maneira de lidar com as funções, também é bastante arbitrária em relação ao que seja prático ou não prático, racional ou irracional. Trata-se, aqui também, de algo preconcebido, de algo suposto. É pura loteria se um prédio funcionalista realmente satisfaz a sua finalidade ao ser ocupado.

O ponto de partida dos funcionalistas era a pseudo-razão burguesa formada a partir da era dos filósofos iluministas no século XVIII, até mesmo desde Descartes no século XVII. Um ponto de partida esquemático, sem um questionamento crítico ou filosófico mais profundo.

O que mais queriam era mexer e revirar entre invenções e propostas do tempo do iluminismo e do industrialismo. Sem bem sabê-lo assumiram a maneira de projetar dos arquitetos do século XIX, algo que havia sido novo na arquitetura do século XIX e ausente da cultura de cidade e campo. Desprezaram a roupagem estilística, pois tinha raízes na relação cidade e campo.

Para tratar seus projetos de forma racionalista, levaram ao extremo uma imagem da necessidade humana, com apoio na forma como o iluminismo passou a considerá-la. Assim foi possível abandonar a maior parte do que havia de hábitos e de tradições. Modos burgueses e populares tornaram-se tão ridículos uns quanto os outros aos olhos dos funcionalistas. Caracterizaram a maioria como preconceitos ao invés de perceber o que neles fosse mais válido ou menos válido. Puseram de lado os condicionamentos históricos, apoiando-se em gratuitas suposições quanto às exigências de seu tempo e outras imprecisões. Com isso puseram de lado, na realidade, quase todas as condições, pois quais são as que não são históricas?

Como racionalistas burgueses, os funcionalistas assumiram a tarefa de identificar o que fosse útil ou inútil. Escolheram, assim, certos cortes e momentos evidentes e palpáveis da existência, dos quais se pode falar a respeito e pesquisar valendo-se do linguajar da eficiência, da técnica e da pseudorazão. Não hesitaram em dimensionar modelos de comportamento segundo os mesmos métodos que Taylor e outros defensores da eficiência capitalista elaboraram para a gestão de fábricas e escritórios. A soma final é que os arquitetos e seus auxiliares substituíram o conhecimento sobre os homens com suposições quanto a um comportamento no qual atividades extremadas e manipulativas se sucederiam em lógica sequência. Expressões culturais, folguedos de crianças e muitos aspectos da vida foram praticamente abolidos.

Segundo as doutrinas formuladas, chamaram ciência e quase-ciência para apoiar suas suposições: variantes superficiais de behaviorismo, sociologia a-histórica, limitada psicologia da percepção e gosto em moda.

Que linguagem formal poderia expressar melhor esse racionalismo unilateral, absoluto e filosoficamente idealista de uma forma de pensar arcaica, quanto à lógica de limitados aspectos da vida, do que o cubismo com suas imagens abstratas e inanimadas? Com a ajuda das mesmas os arquitetos conseguiram levar a veneração do racional um passo mais longe do que os mestres do século XVIII, a extremadas e vazias abstrações, livres de qualquer ligação com as tradições de cidade e campo, distantes de qualquer expressão sensorial consciente ou inconsciente, até um estado de espirito do qual aboliram toda a possibilidade de responder a qualquer variação racional ou irracional do modo de vida.

A questão das classes sociais mereceu um tratamento especial. Os funcionalistas e seus defensores afirmavam construir para urna sociedade sem classes. Em sua crença idealista pensavam alguns ser possível fazer revolução com arquitetura. Outros pensavam preparar a revolução construindo sem diferenças de classe. Ambas as partes queriam tornar o futuro radicalmente distinto do passado. Por certo não sabiam para quem o modelo de vida da filosofia utilitarista fora formulado. Não o fora para os burgueses da sociedade do século XIX, e menos ainda para os do século XX. Foi formulada para os desprovidos, para aqueles que a sociedade, desde o século XV, vinha espoliando o direito de existência cultural. Segundo um modelo de resignação dos pobres que os filósofos classistas e filantropos do século XIX haviam formulado, é construída a filosofia habitacional funcionalista. Avançou só um pouco com relação ao que pensaram os arquitetos no início do século XX quando, sem hesitação, quiseram zonear as áreas habitacionais segundo classe social. Os desprovidos não deviam naquela época ressentir-se de maiores necessidades de cultura. Deviam substituir um modo de vida mais rico fazendo da resignada simplicidade um mérito.

Na ideologia do funcionalismo não há mais lugar para belos méritos. A partir de sua preconcebida e racional visão burguesa determinam pura e simplesmente o que é conveniente para as famílias de uma classe menos favorecida que a deles. Quais os hábitos e as exigências que essa classe possa ter não se perguntam. Se houvessem pressentido que isso existia teriam assim mesmo feito o melhor para eliminá-lo. Sua for-ma mais drástica, o preestabelecido modelo, ganhou dos alemães, que atribuíram à classe trabalhadora o direito de morar segundo Das Bauen fiir das Existenzminimum (Construção para as condições mínimas de existência), esse o nome, de fato, de um texto programático de 1920.

Agora os funcionalistas deram mais um passo. Ao invés de proporcionar aos menos favorecidos um modo de vida mais rico com crescente bem-estar, sugeriram, em palavras, desenhos e prédios, que também os burgueses aderissem à simplicidade absoluta. A própria classe dos arquitetos devia dedicar-se à mesma depurada utilidade, como os filósofos classistas desde o tempo anterior à revolução francesa consideraram natural e inevitável para os pobres. Esse seria o caminho para construir uma sociedade sem classes. Possivelmente seguiria alguma par-te especial para os mais favorecidos ou em ascensão quanto ao padrão de vida.

Enquanto ficamos com casas isoladas, a edificação do radicalismo apresenta-se com uma arquitetura para bem e para mal. Para certas finalidades a nova divisão funcional podia parecer motivada. Finalidades bem estudadas, -com soluções práticas, podiam levar a uma nova e grandiosa arquitetura, principalmente em assentamentos esportivos. O avanço podia também ser ilusório como em muitas fábricas onde as exigências parciais de maior eficiência bloqueavam o caminho da humanização do ambiente de trabalho. In extremis a exigência de eficiência impedia a própria eficiência.

O racionalismo podia conduzir, também, a soluções absurdas e ridículas. A ideia de que muitas pessoas deviam fazer tudo num imenso local de trabalho tinha sido provada em algumas escolas já na metade do século XIX e se mostrado impossível. Em edifícios para escritórios dos anos 1930, isso se mostrou tão inadequado como no caso das escolas. Nos anos 1960, os racionalistas repetiram o equivoco com a mesma superdose de confiança na efetividade e com o mesmo desprezo pelo homem. Rebatizaram as galeras de escravos para escritório paisagem como um nome novo capaz de mudar uma coisa já ultrapassada.

Para justificar a sua linguagem formal os funcionalistas usaram vários motivos preconcebidos. Nas áreas habitacionais, principalmente, falaram da higiene das habitações. Um dos argumentos para implantar os prédios habitacionais isoladamente, sem quintais e ruas, foi buscado na ideia de que era pelo ar que as doenças se transmitiam e que o vento as levaria para longe. Um pressuposto que existiu já antes da era da bacteriologia, com início nos anos 1880, foi portanto revitalizado para dar argumento a uma nova forma de construir. O preconceito já tinha sido esquecido por quase meio século entre os profissionais da saúde e os higienistas. É significativo como uma pesquisa dos anos 1940 foi posta de lado. Uma pesquisa na parte antiga de Estocolmo, feita nos anos 1940, evidenciara que justamente esta parte era a mais saudável da cidade.


Contraditórias teorias arquitetônicas

O funcionalismo, esse radicalismo burguês, foi defendido em muitos países altamente industrializados. Como essas ideias foram aplicadas não dependeu do grau de industrialização ou do grau de desejo de industrialização dos dirigentes e dos profissionais. Dependeu do direcionamento político.

Lá onde a burguesia liberal dominava, o radicalismo tomou conta pouco apouco. A discussão havida era de cunho político-cultural. Desde 1920, o radicalismo pôde expandir-se sem encontrar maior resistência. Nos países onde as contradições políticas eram mais agudas, as questões de arquitetura e planejamento também tornaram-se mais agudas, do ponto de vista político, bem diferentes daquelas meramente de conveniência político-cultural.

Na União Soviética a revolução apresentou as novas bases para um nova construção social. Toda a terra passou a pertencer ao Estado. Quando essa excepcional liberdade foi conquistada, tratava-se de encontrar novos caminhos. Ninguém tinha a ilusão de que seria fácil. Nem todas as contradições desaparecem quando algo velho é posto fora. Novas contradições aparecem.

Muitos arquitetos e engenheiros aderiram à revolução com entusiasmo e deram abnegadas contribuições. Mas sua formação era burguesa. Precipitaram-se por atalhos do radicalismo burguês e industrial da Europa Ocidental ao invés de ir a fundo com as exigências da revolução proletária nas condições do próprio país. Ao invés de provar necessidades e métodos na prática, quiseram passar o povo para trás com esquemas superficiais quanto ao comportamento do novo homem coletivo. Encapsularam os aparatos habitacionais que serviriam a esse recém-inventado comportamento na paródica linguagem formal do cubismo.

Foi fácil argumentar de forma radical na União Soviética dos anos 1920. Poucos sabiam o que Lenin havia dito sobre o radicalismo como doença infantil do esquerdismo. Muitos queriam industrializar toda a produção de imediato e a qualquer preço.

As construções realizadas eram estranhas, construídas com métodos nitidamente artesanais em estilo futurista, o que pressupunha haver a União Soviética ultrapassado países como a Alemanha e a França quanto à industrialização. Países onde algum sinal de revolução proletária quase não era de se notar. Deve ter sido estranho para filhos e filhas de pobres camponeses mudar com a cabra, o porco e seus pertences rurais para residências novas construídas segundo os princípios de condições existenciais mínimas vindos da Alemanha.


                                       Esboço para o combinado metalúrgico de Magnitogorsk, de Leonidov, 1930.

Soluções que empresários privados solicitavam num país muito mais industrializado para os proletários urbanos de segunda ou terceira geração de uma sociedade sem revolução eram pouco aconselháveis oferecer a proletários rurais de um pais onde a revolução já havia sido feita.

Uma corrente entre os planejadores denominou-se de desurbanistas. Consideravam os seguidores de Soria y Mata como seus precursores por haverem desenhado planos segundo as ideias de George. Os desurbanistas desenharam cidades lineares e em faixa em grande quantidade para beneficiar os assentamentos com cursos d’água, e trafego em linha. Tentaram abordar também as questões quanto à cidade e o campo.

No início dos anos 1930, surgiu a crítica de Stalin  e seu círculo. O radicalismo foi tido como expressão de burguesia e capitalismo. O cubismo  foi forçado a ceder em favor de uma linguagem formal marcada pela monumentalidade e pela simetria. Os arquitetos às vezes aderiram ao classicismo russo do século XIX, às vezes às tradições estilísticas das próprias repúblicas. É difícil saber o quanto dirigentes e arquitetos consideraram expressar a nova sociedade e seu poder popular.

Nos difíceis tempos vividos pela União Soviética durante as duas primeiras décadas quase não foi possível desenvolver um estilo próprio que expressasse o conteúdo dos novos tempos. Os problemas maiores da construção social não se refletiam sobremodo nas lutas políticas e na linguagem das formas.

Tratava-se de criar planos para o desenvolvimento de três tipos de sociedade: as duas maiores cidades, Leningrado e Moscou, as novas cidades industriais e assentamentos para a produção agrícola estatal e coletiva.

As grandes inconveniências das cidades maiores não preocuparam muito Kaganowitj e outros planejadores. Possivelmente superestimaram o poder advindo da propriedade coletiva da terra. Por outro lado, era justamente graças à propriedade da terra que conseguiram elaborar alguns dos mais abrangentes planos urbanos já realizados.



                                                       Planta geral para Moscou, de Kaganowitj e outros, 1935

Um sistema com bulevares dirigindo-se do centro da cidade rumo ao entorno e avenidas 1 contorno ligando os mesmos entre si, junto a redes técnicas e à ferrovia metropolitana forma-rarn um sistema extremamente bem coordenado. Algumas grandes medidas resultaram sumárias. A divisão em zonas segundo finalidades foi grosseira. Trabalho e habitação foram mantidos se-parados um do outro. As partes foram isoladas e o tráfego tornou-se por demais intenso.

É bem verdade que os planejadores pensaram poder sustar o crescimento da cidade de Moscou quando atingisse cinco milhões de habitantes. Um simples propósito geral. Ninguém c explicou como a interrupção se daria. Com isso o propósito resultou tão utópico como o desejo dos radicalistas quanto à rápida industrialização ou a confiança dos desurbanistas na ideia da cidade linear.

Os muitos setores industriais na União Soviética fizeram parte dos planos quinquenais de desenvolvimento. Pouco a pouco substituíram e as centenas e centenas de pequenas comunidades de comércio e de administração. Distinguem-se, quanto ao caráter, dos lugares do industrialismo no Ocidente. Tanto têm menos construções antigas no centro como são mais dominados por indústrias e vida pública do que por comércio.Após a morte de Stalin é que muitas comunidades, grandes e pequenas, passaram a se assemelhar às comunidades do Ocidente que o tempo todo restaram capitalistas. Isso não pode decorrer simplesmente do fato de a União Soviética se ter tornado um país industrializado. Depende, também, da mudança ideológica dos dirigentes. Economicismo e eficiência tiveram rédeas soltas, e com isso a arquitetura se tornou funcionalista; os sonhos dos radicalistas dos anos 1920 tiveram enormes consequências, mas sem o espírito de confiança no futuro e o desejo de experimentar que caracterezaram os pioneiros.As maiores inovações da construção social na União Soviética decorreram das mudanças macroeconômicas. Pode parecer estranho que o planejamento das comunidades agrícolas coletivas não tenha gozado de maior atenção nem de profissionais, nem de autoridades. O povo nas comunidades agrícolas viu-se forçado ou a copiar a arquitetura urbana tanto para habitação como para construções, utilitárias, ou continuar construindo segundo as velhas tradições camponesas, segundo formas de autoconstrução que na realidade proporcionavam espaços maiores. As tradições permaneceram, portanto, fortemente arraigadas nos hábitos do povo. De tal forma que se desenvolveu uma pré-fabricação produzindo casas de camponeses segundo mo-delos tradicionais até os anos 1940.

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Em seguida Parte III


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