sexta-feira, 5 de abril de 2013

O INICIO DO NOSSO TEMPO – Parte I



Elias Cornell – (1916-2008)  Historiador marxista sueco, foi Professor catedrático de História da Arquitetura e do Urbanismo no Instituto Tecnológico Chalmers – Gotemburgo.  De sua vasta produção literária destacamos: História da Arquitetura (1949); A História da arquitetura das grandes exposições internacionais (1952): As técnicas da construção, métodos e ideias através dos tempos (1970); A arquitetura da relação cidade campo (1979); As raízes da fúria demolidora (1984); e O espaço na arquitetura, história e atualidade (1996).  
   
Tradução Frank Svensson


A virada do industrialismo

O industrialismo sofreu urna virada no fim do século XIX. Invenções, ao invés de meros experimentos, tornaram-se de grande utilidade. Ao aço, ao gás e às ferrovias, consideravelmente ampliados, somaram-se agora o concreto armado, a eletricidade, o motor à explosão e aos poucos a técnica aeronáutica.

Artistas, arquitetos e engenheiros libertaram, como nunca antes, o seu trabalho dos seus hábitos tradicionais. Em primeiro lugar, as encomendas tornaram-se muito diferentes. Antes engenheiros e arquitetos puderam interpretar suas tarefas submetendo-se a encomendas feitas por poderosos, na maioria da Igreja e das casas reais. Agora ninguém tinha sobre si um detentor individual de poder. Corno profissionais entre leigos, dentro de uma mesma classe burguesa, deviam tanto indicar como satisfazer as exigências implícitas às suas tarefas. A época mostrou-se brilhante para prósperos individualistas desde que conseguissem a reputação de gênios das técnicas e das artes.

Importante é lembrar, também, que os profissionais puderam reunir experiências das muitas áreas de trabalho em descobertas muito mais sintetizadas. Para a construção da sociedade isso foi determinante: a questão da visão abrangente da totalidade. Extrair unidade da multiplicidade social no fim do século XIX não era nenhuma tarefa fácil. Tarefa que não se tornou mais fácil com o tempo apesar das tentativas de muitos radicais. As forças do industrialismo apresentavam-se divididas pela mesma anarquia que seu sistema econômico, o capitalismo. E não surge nenhuma solução de forma mecânica nem quando o capital privado é substituído pelo capital de empresa, de monopólio, de cartéis, de sindicatos e de empresas multinacionais ou quando o capitalismo é substituído por uma revolução socialista. No entanto, em raras oportunidades algumas personalidades e grupos independentes conseguem compreender não só a construção da sociedade no seu todo como desencadear profundas transformações.


Que implica a libertação?

Um prédio, mais que outros, fornece-nos a chave quanto a como engenheiros e arquitetos modificaram o seu trabalho no fim do século XIX. Trata-se de Palais des Machines na exposição internacional de Paris, em 1889, um dos experimentos de construção mais bem-sucedidos daquele século. Nele o arquiteto Dutert abandonou os seus hábitos histórico-estilísticos encontrando uma nova linguagem da forma com o emprego de grandes arcos e de amplo espaço. Essa liberdade construtiva corresponde à orientação de expressiva liberdade que caracteriza a crescente emotividade dos artistas da época: Vau Gogh e Munch. O engenheiro Contamin encontrou o arquiteto a meio caminho. Superou a imagem de que estreitas necessidades ditariam a configuração das estruturas em aço. Ambas as profissões criaram a obra-mestre, escreveu um clarividente crítico da época.

É bem verdade que nem sempre arquitetos e engenheiros tiveram oportunidade de trabalhar tão coordenadamente. O mais comum é vermos os arquitetos darem independência ao lado artistisco e técnico-artesanal. Os engenheiros, por sua vez, dedicam-se mais ao científico e ao tecnológico.

Os arquitetos afastaram-se dos estilos históricos com um estilo libertário próprio, art nouveau ou jugend. Compuseram com símbolos e volumes revestindo as superfícies com fantásticas decorações. No melhor dos casos conseguiram expressões próprias por meio de uma forte simplificação artística. No pior dos casos transformaram sua arte num fim em si, uma configuração sem amarras ou intuitos mais profundos.  A alcantaria transformou-se em confeitaria, disse alguém.

                                Dutert e Contamin: Palais des Machines, Exposição de Paris, 1889.

O melhor resultado, com sua simplificação artística, os arquitetos conseguiram quando deram novo sentido tanto ao estudo histórico como à mão-de-obra artesanal. Uma tendência nesse sentido havia sido iniciada na Inglaterra já nos anos 1850, quando o filósofo da arte John Ruskin apresentou avaliações tanto éticas como místicas do artesanato da construção. William Morris transformou a teoria da arte aderindo ao socialismo. Morris dominava vários ramos de artesanato e desejava dentro do possível resgatar o valor humano do trabalho. Estudou história, não por causa dos estilos, mas por algo que a era do industrialismo havia desprezado. Algo que incluía, também, as tradições populares e regionais. Em 1859, construiu a sua famosa mansão, Red House, com o arquiteto Philip Webb. Nela não se fez dependente nem do velho nem do novo. A casa foi construída com tijolo prensado com muito cuidado e com amarrações muito bem feitas. Todos os detalhes de interior foram trabalhados à mão, em parte pelo próprio Morris. Ele tinha grandes exigências quanto à autenticidade artística e não empregava imitações ou decorações industrializadas.

Alguns arquitetos escandinavos prosseguiram na linha de Morris, levando ainda mais longe a qualidade artesanal mas sem a sua linha política. Mesmo assim, o Museu Nórdico de Estocolmo, o Fórum de Copenhague e a Prefeitura de Estocolrno constituiram um considerável avanço.

0 valor artístico próprio da arquitetura, que os arquitetos defendiam, podia implicar intensa e custosa decoração. A sociedade burguesa aplicava parte de seus excedentes em custosa arquitetura artesanal. A qualidade variava segundo gosto de subjetivas tendencias. Morris e seus seguidores tinham outros objetivos. Eram burgueses esclarecidos portadores de cultura. Desejavam criar qualidades para o bem-estar e o conforto cotidiano, para uma vida menos marcada pelo desejo de representatividade. Muitos deles achavam que se tornavam mais livres adotando formas artísticas rnais simples. Alguns projetaram mansões para a alta burguesia. Mas havia também os que se dedicaram à habitação em condições mais comuns propondo até mesmo pequenos assentamentos obreiros. E bem verdade que Port Sunlight e Bournville dos anos 1880 e 1890, bem corno Átvidaberg de 1889, são resultado da boa vontade de grandes empresários, mas são melhores e mais agradáveis que as longarinas institucionais antes encomendadas por líderes filantrópicos. Por trás da simplificação das minimansões podia haver bem-intencionados intuitos de política cultural.

A simplificação artística podia expressar-se com a ajuda de um estilo histórico clássico. Uma considerável aplicação surgiu com a exposição de Chicago, em 1893. Foi talvez para legitimar a participação dos Estados Unidos na herança cultural ocidental que comissionados adotaram o grande estilo da representação. Wall Street Ideology começava a ganhar forma. O novo capitalismo americano decidiu apresentar-se refinadamente. Meios estilísticos com tradições desde o tempo do Palazzo Mediei são aplicados à escala monumental dos novos bairros de instituições. The White City foi a denominação da exposição dada à sua simplificada e sumária coloração e ao seu imenso tamanho. Uma variante mais modesta foi a exposição de Estocolmo em 1909, A cidade branca.

                               Vista atual de rua secundária em Port Sunlight 1890.
    
Pouco depois, entre 1910 e 1930, muitos arquitetos ligaram-se a classicistas extremados como Boullée e Ledoux, do século XVIII, ou a Schinkel, do século XIX, o grande classicista alemão. Nos anos 1920, vários arquitetos extremaram a sua linguagem formal a tal simplicidade que um crítico a classificou como um implacável classicismo. 

Por meio de toda a evolução das construções dos anos 1880 e 1890 encontramos um espírito de experimentação tão forte quanto o do início do século XIX. Diz respeito ao artístico e ao técnico, bem como à ação recíproca de ambas as áreas. Um caminho novo surgiu com os experimentos em concreto armado. Nos anos 1890, (o desenvolvimento era liderado por engenheiros. Muito poucos arquitetos imaginavam as imensas possibilidades do novo material, mas já bem dentro do século XX começaram a vê-lo como o principal material a ser empregado no desenvolvimento da arte de construir. Foi com a ajuda do ferrocirnento que as profissões da construção deram seu passo maior para sair das formas tradicionais de construir e foi só com ele que a tecnologia da construção passou a conduzir o pensamento de todos os trabalhadores da construção. Rapidamente tivemos todos de participar da invenção do concreto armado.

Os engenheiros empregavam o ferro desde 1 o século XVIII. No fim do século XIX dominavam tão bem esse material que foram capazes de construir torres com 300 metros de altura: Eiffel em Paris; ou pontes com 600 metros de comprimento: Baker e Fowler sobre Firth of Forth na Escócia. O concreto como tal já vinha sendo empregado há mais de dois mil anos. O Pantheon de Roma foi uma façanha já em sua época.

Mas ainda nos anos 1880, os metais limitavam-se mais a astes e o concreto mais a blocos ou volumes fundidos in loco. A partir do século XVIII, inventores haviam aprendido a produzir cimento em fábricas, tornando-se independentes das jazidas vulcânicas. Significativo é o fato de essas invenções receberem denominações ex-traídas da natureza e da história: o cimento portland deveria imitar o monte da Isle of Portland, o cimento romano deveria imitar o material das ruínas de Roma.

Os inventores do concreto armado criaram um terceiro material. Uma mistura nada fácil de compor, na qual o ferro respondia pela tração, e o concreto, pela compressão. O material ganhou uma forma própria de se comportar: a monolítica, diziam os engenheiros. Isso significava uma nova utilização para o concreto. Conseguiram anular a diferença entre apoio e apoiado, formando corpos e cascas como bem quisessem. Uma forma de o material atuar praticamente desconhecida até então e que agora a cada ano evidenciava novas formas de emprego.


As partes transformam o todo

Toda essa nova liberdade das partes e toda essa nova tendência de ação recíproca entre os detalhes atingiu também a conformação da própria sociedade, por toda parte onde se construía e se reconstruía, sobre cidade e campo indiscriminadamente.

A maneira mais comum era construir segundo antigos planos e assim modificar enorme-mente a forma dos assentamentos. Uma das modificações mais estranhas da construção da história humana surgiu assim: o arranha-céu.

Quando a especulação imobiliária impôs aperto a cidades como Chicago, Buffalo e Nova York, os grandes empresários condicionaram a necessidade a uma peculiar consequência. Encomendaram prédios com mais pavimentos do que se aguenta subir por meio de escadas. Isso foi resolvido quando algumas firmas de engenharia, nos anos 1880, conseguiram experimentar e desenvolver elevadores para pessoas com segurança máxima. Ao mesmo tempo, os técnicos da construção começaram a encapsular os peri-gosos esqueletos metálicos em cerâmica livrando-os do perigo do fogo.

Os arranha-céus desenvolveram-se rapidamente. Os arquitetos aprenderam a fazer da necessidade uma virtude. Aprenderam a dominar as grandes dimensões com a arte da simplificação. O disforme e o gigantesco foram substituídos por elaborada composição de fachadas e de volumes. Enormes corpos simplificadamente esculpidos foram erigidos sobre decorados andares térreos. Adler e Sullivan foram as principais personalidades dessa nova arquitetura. Os legisladores seguiam atrás com regras estabelecendo que os prédios se deviam estreitar gradativamente à medida que ficavam mais altos.

As forças mercantis ganharam meios de as cidades se alargarem e crescerem em altura por cada nova geração. A arbitrariedade, desculpada com arte e leis, perdeu as rédeas como nunca antes. Manhattan, em Nova York, continua sendo construída sobre um plano da Nova Amsterdam, a cidade de holandeses do século XVII.

Na Europa, onde as tradições eram mais antigas e as grandes cidades não foram tão rapidamente ampliadas, os políticos e os profissionais tentaram dominar a transformação com meios menos drásticos. Um caminho foi o indicado pelo austríaco Otto Wagner. Ele admitiu como óbvio que as cidades sempre cresceriam, mas queria ordenar tal crescimento. Fazer da necessidade uma virtude é uma frase de Gottfried Semper sobre tal comportamento. Semper era um teórico da arquitetura do meio do século XIX, que muitos ainda consideravam. A arte só reconhece um senhor: a necessidade, esta era uma outra frase de Semper. Foi esta que Wagner adotou como lema de uma proposta de concurso, em 1890.

                                       Otto Wagner: vista a partir dos planos de ampliação de Viena, 1910. 

Entre ruas e ferrovias devidamente retificadas, Wagner queria instalar quadras em tabuleiro de xadrez em estilo Sezession; assim os seus compatriotas denominavam o art nouveau. Entre as quadras localizar-se-iam imponentes prédios e elegantes parques. Dessa forma, os planos seriam repetidos, distrito após distrito, ilimitadamente, a partir do projeto central da cidade de Viena.

É difícil julgar qual a importância realmente dada a Wagner. Esses princípios foram considerados um pouco por toda parte e ampliações de cidades começaram a seguir o modelo da retificada cidade do século XIX. Até mesmo em cidades totalmente novas foi aplicado o mesmo sistema. Com planos tardios desse tipo, Walter Burley Griffin, de Chicago, ganhou um concurso, em 1912, para Canberra, a capital da Austrália. O padrão principal não é muito diferente daquele usado por L'Enfant para Washington: am-pliados e multiplicados planos para Versalhes, acoplados em grandes sequências, algo ordenadas, mas com pouca consideração à topografia e aos cursos d'água. O grande experimento desse tipo Griffin viu crescer em sua cidade natal: a grande exposição de 1893; um ideal denominado City Beautiful.

Planos do século XIX foram aplicados em grande quantidade por não exigirem muito com relação a leis e normas. Até os anos 1920, senão até mais tarde, estes planos surgiram em muitos dos países ocidentais e até mesmo no Japão. Foram considerados até em colônias com pouca presença de colonizadores.

As questões relativas à relação cidade e campo nem Wagner nem outros seguidores dos métodos de ampliação de cidades do século XIX levaram em conta. Que eram questões prementes e difíceis de solucionar tanto Marx como Engels já haviam evidenciado desde os anos 1840. Mostraram claramente que as contradições deveriam ser resolvidas de forma a tanto a cidade como o campo serem considerados para uma vida tão digna numa como noutro. Da mesma forma como advertiam contra o socialismo utópico, advertiam contra a suposição de uma solução enquanto a sociedade capitalista persistisse.

É significativo terem sido Artur Soria y Mata e um círculo de republicanos espanhóis em torno dele os primeiros que acreditaram ter a solução para essa enorme contradição. O lema principal de seu trabalho, Soria y Mata declarou, em 1882, ser: Ruralizar la vida urbana; urbanizar el campo.

Essa efetiva formulação quanto ao objetivo da conformação social atua dialeticamente como uma exortação sob forma de lema.

Com relação à Ciudad Lineal, o projeto e os princípios de planejamento iniciados por Soria y Mata e seu grupo eram mais idealistas. Com ela os problemas de Madri seriam resolvidos, diziam. Seus princípios seriam genéricos e com eles seriam construídas povoações interligadas de Pequim a Bruxelas e trechos semelhantes. O sistema era cheio, também, de doutrinas formalistas, com as quais linhas retas teriam valor próprio em desenho e em construção.

O princípio de Soria y Mata é uma alternativa ao de Otto Wagner; uma correção da cidade do século XIX formada por estradas de acesso em vez de avenidas contorno.

La Ciudad Lineal seria constituída de intermináveis séries de povoações conjugadas ou separadas com assentamentos de diferentes tipos ao longo de uma via de tráfego para vários tipos de transporte. Prédios administrativos e instituições culturais variavam com unidades habitacionais de diferentes classes sociais e por toda parte haveria locais de trabalho, tanto em fábricas e escritórios como na lavoura. Cada trecho da cidade seria ligado ao campo por ambos os lados.

O movimento idealista em torno da ideia da cidade em linha atuou durante várias décadas e teve resultado na Bélgica, no Chile e até mesmo na União Soviética.

Uma louvável tendência do planejamento da cidade e do campo era que Soria y Mata queria eliminar a elevação do valor da terra. A ideia era retirada de Henry George, o economista, filósofo e político norte-americano. A visão tornou-se, no entanto, sectária e utópica na medida em que se submeteu às contradições da sociedade capitalista. Um bairro segundo seus ideais surgiu junto a Madri.

Arturo Soria y Mata: proposta para ampliar Madri segundo os princípios da Ciudad Lineal.

Um dos traços da construção social do fim do século XIX conhecemos muito pouco: a origem e a aplicação do zoneamento, ou seja, a divisão segundo finalidades como administração, comércio, indústria, cultura, habitação, bem como a divisão habitacional por classes sociais.

A construção de cidades não conhecera nenhuma distribuição mais detalhada de seus componentes e tampouco algum zoneamento planejado. É bem verdade que a construção habitacional em torno das muitas squares de Londres havia anunciado uma tendência, mas sem nenhuma correspondência sob forma de exclusivos locais de trabalho ou de instituições.

O zoneamento decorre fundamentalmente das necessidades de localização do industria-lismo, frequentemente de seus ditados locacionais. Os proprietários das empresas deci-diam pessoalmente quais os terrenos a adquirir e povoar de fábricas. Leis e normas vinham depois. Ordenamento e decisões eram tomados a posteriori. Planos nítidos a executar, respaldados por autoridades, eram raros. As condições variavam de lugar para lugar conforme as relações de propriedade, as construções já existentes, fortificações, cursos d'água, topografia, tradições quanto ao uso da terra por pastos e lavoura.

O resultado daí advindo, profissionais e dirigentes tentavam em muitas cidades ordenar com leis e normas, de forma a dividir a cidade segundo conveniências. As medidas geralmente eram sábias a posteriori; as decisões dos planos, talvez ate os próprios desenhos dos planos, surgem quando a maioria das construções já fora concretizada.

As razões e os argumentos são muitos. Nos Estados Unidos dizem que o zoneamento começou em São Francisco. O povo queixava-se do mau-cheiro das lavanderias e queria transferi-las para um mesmo lugar. Na realidade, tratava-se dos que lavavam: eram imigrantes chineses. O zoneamento pode, portanto, ter tido origem racista justamente nos Estados Unidos.

Na espera de uma difícil e minuciosa pesquisa a respeito, contentamo-nos em afirmar que zonearnento segundo finalidades das edificações era expressão de um princípio geral dominante em todo o desenvolvimento edilício do século XIX: o todo cresceu com suas partes e as partes desenvolveram-se tanto graças ao isolamento como em relação ao todo.

Ao mesmo tempo sabemos que para as autoridades não foi fácil manter suas zonas ordenadas segundo as determinações estabelecidas.

Donos de oficinas introduziam clandestinamente seu trabalho em áreas habitacionais; construtores especuladores erigiam casernas de aluguel onde se haviam demarcado parques nos planos de urbanização e assim por diante. Momentânea e pontualmente era tão comum transgredir como seguir as regras. Muitos empreiteiros talvez dissessem a verdade ao afirmar que não conheciam as normas e os regulamentos de ordenação urbana. Ocorria até que as pessoas conseguiam convencer os tribunais a declarar as normas inválidas, caracterizando-as como invasão da liberdade de iniciativa empresarial.


A busca do todo

 Não era suficiente trabalhar somente com as partes, e não tinha cabimento continuar deixando o todo crescer só em função de suas partes. Essa era uma ideia com a qual algumas pessoas previdentes, de diferentes profissões, começaram a preocupar-se na década das grandes mudanças qualitativas.

Esses pioneiros começaram a dedicar-se a questões de planejamento e edificação. Participaram da mesma libertação burguesa que muitos outros interessados em questões de construção, mas viram algo mais e diferente. Não se contentavam em diferenciar, mudar e construir partes novas, grandes ou pequenas. Queriam desenvolver o todo de forma abrangente.

Não pertenceram a nenhum movimento unitário. Mas unia-os um propósito comum: o de conhecer e renovar a totalidade e sua relação com as partes novas e antigas, bem como com a relação das partes entre si. De certa forma, previam ter de compreender e dominar as contradições da construção social --  Termo aqui empregado no sentido da conformação abrangente dos assentamentos humanos, tanto do ponto vista físico como social. A falta, em nossa sociedade de um tal enfoque explica o porquê da falta de um termo correspondente -- mais do que os especialistas e os leigos durante o século XIX.

O que procuraram interpretar e realizar era algo bem claro para todos: a conformação da sociedade havia mudado, descaracterizando-se com o avanço do industrialismo sobre a cidade e o campo. Apesar desses pioneiros terem sido poucos e os efeitos de suas obras terem sido desiguais, são eles os renovadores de toda teoria e prática da construção social ocidental. A sua compreensão incluía tanto o desenvolvimento social como o técnico e o artístico, bem como os condicionamentos apresentados pela sociedade, pela natureza e pela história. Tiveram coragem de atacar o problema mais difícil: a dupla contradição entre a cidade e o campo e entre ambos e o industrialismo.

Camillo Sitte, um arquiteto vienense, tinha visto a sua cidade crescer segundo planos esquemáticos e com muito pouca interação entre prédios, ruas e praças. No fim do século XIX, propôs àqueles que planejavam ou restauravam que considerassem aspectos artísticos como uma dimensão da sociedade como um todo. As referências, eles deviam buscar na história, principalmente nas cidades medievais. Dessa forma, conseguiriam evitar a monotonia e o disforme.

O interesse de Sitte dizia respeito à totalidade como percebida pelos arquitetos: a imagem da cidade anterior à era do industrialismo. Considerava que o século XIX havia perdido sua unidade na diversidade. Sitte desprezava os assentamentos do indústrialismo; ou melhor, não os considerava.

Não devemos encarar superficialmente a obra de Sitte e seus seguidores. Procuremos compreender sua teoria e sua linguagem formal. Fizeram avançar os ensinamentos de 2.500 anos de história da arquitetura procurando valer-se das casas e das quadras de per se em favor da imagem abrangente da cidade. O que os convenceu a tomar tal posição, uma das últimas do desenvolvimento da arquitetura do século XIX.

Queriam dar coerência interna e rítmica à vida dos bairros e das cidades. Muito disso se havia perdido em épocas quando se construíam quadrículas viárias, assentavam-se subúrbios, eliminavam-se ruas para construir bulevares. Mas tratava-se naturalmente de algo mais do que recuar a variedade visual. Dizia respeito à forma da cidade corresponder à sua função tanto no seu todo como em seus detalhes. Entre muitas outras coisas, Sitte mostrou que o tráfego fluía melhor no centro das cidades medievais do que nas quadrículas de largas ruas. Comparadas com os cruzamentos nos arruamentos em quadrícula, as encruzilhadas e os entroncamentos das cidades medievais continham somente uma quinta parte dos cruzamentos das quadrículas. Nas encruzilhadas e nos entroncamentos, as vias secundárias desembocam nas principais, enquanto nas quadrículas todas as ruas são de igual grandeza.

O desenho livre dos planos de Sitte permitia que terreno e cursos d'água concordassem com as vias em curva e em rampa, enquanto as quadrículas em conflito com a topografia do terreno tinham de admitir ladeiras, becos sem saída e outras interrupções.

Em 1888, Camillo publicou seu livro Der Stãdtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen (Construção das cidades segundo seus princípios artísticos). Para seu tempo e para o mundo que o sucedeu, deu vida ao que considerava o principal valor da história da edificação: o sentimento espacial da cidade. Sentimento que se havia per-dido nas ruas intermináveis e nos edifícios monumentais gratuita e arbitrariamente localizados. Com relação a esse aspecto, a importância da obra de Carnillo Sitte ainda perdura.

Defender princípios artísticos é indispensável. Só defender princípios artísticos é, no en-tanto, insuficiente, algo que concerne a qualquer forma de arte. Em se tratando de configuração urbana, ninguém mais autorizado a se pronunciar do que escoceses e ingleses, os que primeiro viram o industrialismo expandir o seu progresso e a sua arbitrariedade, formando manchas as mais diversas nas cidades, no patrimônio cultural, nas reservas naturais, frequentemente sem ressarcir com valores novos aqueles destruídos.

Um dos que melhor compreenderam o problema em toda a sua extensão e multiplicidade foi Patrick Geddes, em Edimburgo, um pesquisador naturalista de amplos conhecimentos. Desde a juventude, classes, assentamentos humanos, técnica, arte e economia eram de seu domínio, cientifica e genericamente. Tornou claro prin-cipalmente a ação reciproca das partes entre si.

Geddes menosprezou as contradições de classes e subestimou a força anárquica das em-presas capitalistas. Sua doutrina foi mais ecológica do que dialética. Mesmo assim está entre os primeiros a exigir que os planejadores da sociedade preparassem suas propostas com múltipla cientificidade. Cities in evolution (Cidades em evolução) é um livro de 1915, com uma visão abrangente do extraordinário conhecimento amealhado por Geddes por meio de suas lutas e de seus estudos. Pesquisa anterior a planos é seu lema maior, simples, evidente e indubitavelmente acertado, mas ainda hoje pouco considerado por autoridades e profissionais.

É principalmente graças a Geddes que a nova visão ganhou o nome de urbanismo. Algo desconcertante.  Desde Geddes as questões ligararn-se a algo muito maior: como devem os assentamentos, as regiões e até mesmo as nações considerar um planejamento abrangente, cientificamente preparado, para resolver a dupla contradição entre cidade e campo, por um lado, e entre esses e o industrialismo, por outro lado? A verdadeira urbanização dizia respeito à edificação urbana dentro da cultura de cidade e campo. Tal desenvolvimento já havia começado a esvaziar-se no século XVIII. O industrialisrno, por sua vez, não é a origem do urbanismo. Ao contrário, aponta para a sua dissolução, algo que poderíamos chamar de desurbanização.

A estranha incumbência de lidar com projetos de comunidades desde a base foi algo que um grupo de ingleses assumiu já no inicio do século XX. Seu clarividente e destemido pioneiro foi Ebenezer Howard, um homem de forte engajamento social, primeiro como agricultor, depois como estenógrafo. Muitos amantes das artes e reformadores sociais eram de seu conhecimento: Ruskin, Morris, Octavia Hill. As piores condições habitacionais da história eram do conhecimento dos mesmos: desde os estudos de Engels e os romances de Ellisabeth Gaskell nos anos 1840 até o relatório da Real Comissão Britânica sobre as condições habitacionais das classes trabalhadoras em 1884.

Durante um tempo, Howard, na América do Norte, deixou-se impressionar pela pretensio-sa utopia de Edward Belamy: Looking Backward (Olhando para trás), transformando os Estados Unidos numa idealizada sociedade cooperativa. À diferença do americano Bellamy, o inglês Howard era extremamente prático. Rapidamente redigiu um livro sobre planejamento de comunidades: Tomorrow: a peacefull path to real reform (O amanhã: caminho pacifico de verdadeira reforma). Edições posteriores tiveram como título: Garden cities of tomorrow (As cidades jardins de amanhã).

O livro inclui pensamentos claros e fundamentais quanto à construção social sem praticamente nenhuma alusão a opiniões de especialistas. Trata, isso sim, de equilibrar, da melhor forma possível, as forças da cidade, do campo e do industrialismo. Howard comparava essas forças a magnetos. Queria participar da construção de uma sociedade na qual as contradições fossem transformadas de conflitos em ação reciproca. O poder do capital devia ser compensado por cooperação. A nova forma de construção social seria movida com comércio, lavoura e indústria. De preferência, devia ser auto-sustentável e dotada de todas as instituições necessárias: moradias, parques e demais serviços. Howard ganhou muitos adeptos. Todo um movimento com associações e companhias, Letchworth, a primeira experiência, foi inaugurada em 1903, e Welwin Garden City, a segunda, em 1920.

O movimento das garden cities de Howard teve uma dupla significação para a construção social do Ocidente, mesmo se a consequência de fato foi pouca. Por um lado, pela primeira vez a construção social do industrialisrno foi algo diferente de uma utopia no planejamento e um caos na execução. Esses dois extremos tinham sempre dominado o processo e o fazem na maioria dos casos. Por outro lado, a relação do subúrbio com a cidade mudou. O subúrbio deixou de ser um mero apêndice passando a ter autonomia como assentamento humano.
Ebenezer Howard: diagrama para planejamento da relação cidade e campo, 1898.

Além disso, Howard manteve distância da filantropia.  Nem Letchworth nem Welwin foram vitimas de tutela patriarcal, livrando-se depois de qualquer tutela sociopolítica.

Howard teve tal sucesso porque soube escolher colaboradores competentes e autônomos, porque soube distinguir entre preparação e execução e porque percebia a vitalidade das contradições entre a cidade e o campo e entre essas e o industrialismo. Suas ilustrações são diagramas e não planos. Sua construção social cresce na comunidade em que vive e atua. Não existe pronta na imagem interna de um sonho. A relação com Londres era importante. Constatou que Letchworth ficava longe demais. Welwin foi localizada mais perto da capital, permitindo ponderar melhor entre dependência e autonomia.

Howard e seus colaboradores aprenderam tanto com Camillo Sitte quanto com Patrick G-ed-des. Estes nunca cristalizaram os planos em desenhos precoces e decisões sumárias, não cristalizando assim a imaginação artística. Romperam claramente com uma longa tradição das utopias. Deixaram planos, esboços e desenhos esperar até o tempo ficar maduro para tanto, ou seja, até conhecerem bem a paisagem, a situação e a pretendida distribuição de trabalho e habitação e até perceberem como indústria e lavoura iriam funcionar dentro do todo.

Dessa forma, o assentamento resultou descontraído e promissor tanto em Letchworth como em Welwin. No plano que Raymond Unwin e Barry Parker cuidadosamente elaboraram em Letchworth, especialistas identificam aquilo que foi chamado de City Beautifull. Arquitetos mais jovens com difusas exigências de objetividade têm falado de romântica alienação, onde os arquitetos das garden cities não tiveram outra intenção além de construir casas simples e despretensiosas para o povo em geral.
                                            Barry Parker e Raymond Unwin; o primeiro plano geral de Letchworth, 1904.

A partir de quadras numa disposição ortogonal, com lojas, escolas e outras instituições, espalham-se indústrias e áreas residenciais em livres agrupamentos conforme as exigências do terreno. Depois começam as áreas de lavoura, em menor quantidade do que a desejada por Howard. As casas caracterizam-se pela diferença de estilos segundo o gosto dos arquitetos e dos usuários. A exigência principal foi bem atendida: é possível construir um assentamento bem organizado, onde os usuários moram perto do trabalho e onde indústria e lavoura apoiam-se mutuamente. Obtido isso, importa pouco que arquitetos formalistas e antiformalistas de décadas posteriores, a servico do gosto das elites burguesas, tenham dificuldade de fazer coincidir suas impressões com suas ideias preconcebidas.

Louis de Soisson foi arquiteto de Welwin Garden City durante os primeiros anos. Com liberdade, mas de forma consequente, ordenou essa comunidade -- obra de toda uma vida. Valeu-se de constatações, boas e más, da experiência com Letchwort.

No centro ha dois conjuntos de ruas ortogonais -- um de cada lado da ferrovia -- e a estacão. Um comporta instituições e centro comercial, o outro, indústrias. O contraste com as áreas residenciais com suas ruas tortuosas e escolas espalhadas equanimemente é mais claro do que em Letchworth. As casas dos anos 1920 em Welwin são de estilo georgiano, ligam-se ao classicismo da Inglaterra do início do século XIX.


                                        Welwin Garden City, situação em 1945

Letchworth e Welwin constituíram, portanto, dois momentos do desenvolvimento do movimento das cidades jardins de Ebenezer Howard. Considerando a intenção global: permitir que o industrialismo cooperasse com a relação cidade e campo. Letchworth mostrou-se, ao longo do tempo, como a experiência mais bem-sucedida. O fator que fez com que Welwin progredisse primeiro foi a curta distância de Londres. Nos anos 1920, não era fácil prever que a pressão sobre Welwin seria tão grande que impedisse o desenvolvimento da lavoura. Para Letchworth, por sua vez, a maior distância de Londres foi uma vantagem. Indústria e lavoura estão bem ponderadas. Como a indústria foi localizada na própria cidade e nunca pôde expandir-se sobre os terrenos agrícolas, a relação cidade e campo continuou bem ponderada.

Tony Garnier era o nome de um francês exclusivo, que se tornou urbanista-chefe na cidade de Lyon, em 1905. Dedicou quase 20 anos de sua vida elaborando planos cuidadosos e detalhamentos para uma cité industrielle, com 35 mil habitantes. Tratava-se de um projeto de cidade ideal ligada a Lyon.
Planta geral da eité industrielle de Tony Garnier, anterior a 1917.

O político Edouard Herriot escreveu que Garnier era representante de sua época ao rnes-mo tempo em que buscava inspiração no mais puro espírito grego. Garnier realmente partiu das quadrículas gregas, mas, ao mesmo tempo, quis mostrar como era possível num tal plano diferenciar zonas segundo habitação, indústria e instituições públicas, sem maiores distâncias e mantendo a cidade com muita vegetação nas ruas e nas quadras.


                                        Planta geral da cité industriel de Taunay Garnier, anterior a 1917. 

Garnier achava que mesmo comunidades menores deviam ser dotadas de todas essas partes sem que as zonas fossem rigidamente diferenciadas. O sistema zonal, que surgirá como uma auto-defesa da cidade no século XIX, Garnier procurou elevar à condição de princípio arquitetônico do planejamento urbano, uma racionalização que resultou infeliz, urna indicação de como construir a sociedade por pedaços.

Um traço unitário foi o material de construção. Garnier foi o primeiro a querer construir toda uma cidade em concreto armado. Com o concreto buscou a mesma simplificação estética impessoal que os gregos, praticamente sem nenhuma ornamentação. Em certos detalhes mostrou-se um fantástico construtivista.

Com relação ao tempo a cité industrielle de Garnier situa-se entre Letchworth e Welwin Garden City. Desenvolveu a ideia de totalidade numa outra direção que a de Unwin e Louis de Soisson. Na sua ânsia de libertar a construção social de seus traços caóticos, sacrificou, no planejamento, a própria liberdade.

Aqui começa, portanto, a mesma forma de transição de liberdade e irregularidade para a rigidez formal e formalista tantas vezes reinventada pelos homens em suas culturas com distintas formas de economia bem como em todas as suas culturas de cidade e campo. Garnier a Ultima experiência até aqui: trata-se, agora, de formalizar a construção social do industrialismo. O traço helênico descoberto por Herriot mostra que Garnier, consciente ou inconscientemente, aplicou a formalização como uma espécie de lei histórico-cultural: reunir todos os conflituosos elementos da construção social numa imagem abrangente, segundo um padrão geométrico.

Em 1917, Garnier publicou um livro sobre sua cité industrielle, e em 1920 publicou outro sobre os trabalhadores de Lyon. Com isso, sua proposta passou a exercer uma considerável influência mesmo só tendo sido construídos alguns poucos prédios.

As novas ideias e a nova prática desde Sitte até Garnier expressam profundas mudanças qualitativas. Ocorreram todas justamente quando do fim do início da sociedade industrial no Ocidente. Geddes viu seu tempo como a transição de um período da antiga técnica para o da nova técnica. As exigências dos pioneiros de reconhecimento e de renovação, de humanismo e de atenção para com a natureza e a história eram tão cabíveis quanto previdentes. Quiseram elaborar planos abrangentes, de longo prazo, mas também passíveis de alterações.

O trabalho desses pioneiros é uma espécie de prenúncio na nossa perspectiva histórica. Anunciam a possibilidade de a sociedade industrial, a partir de princípios próprios, poder planejar e realizar a sua construção social. Um trabalho infelizmente mais desenvolvido em inúmeros planos, pesquisas, pró-memórias e outros atos do que em concretizações.


No início do século XX, tanto engenheiros como arquitetos interessaram-se cada vez mais pelo tráfego como aspecto abrangente da totalidade. Interessava esclarecer o papel das vias de intenso tráfego, dos cruzamentos e dos nós viários, e não só a técnica de construção dos mesmos.

Eugene Hénard foi durante um certo tempo o mais considerado planejador de tráfego. Na rede viária proposta por ele para Paris, levou os princípios de Haussman a seu extremo. Uma proposta de concurso para a exposição de Paris, em 1900, mostra que ele queria fazer experimentos de tráfego em escala natural com bulevares, avenidas e praças.

Para dominar o fluxo de veículos inventou sistemas de circulação também em vários planos. Com isso, começou-se a trilhar o desastroso caminho que leva o tráfego da grande cidade da condição de servir às ideias dos planejadores para dirigi-las.

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A seguir: partes II e III.
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