quarta-feira, 10 de abril de 2013

O INICIO DO NOSSO TEMPO – Parte III



Elias Cornell – (1916-2008)  Historiador marxista sueco, foi Professor catedrático de História da Arquitetura e do Urbanismo no Instituto Tecnológico Chalmers – Gotemburgo.  De sua vasta produção literária destacamos: História da Arquitetura (1949); A História da arquitetura das grandes exposições internacionais (1952): As técnicas da construção, métodos e ideias através dos tempos (1970); A arquitetura da relação cidade campo (1979); As raízes da fúria demolidora (1984); e O espaço na arquitetura, história e atualidade (1996). 
   
Tradução Frank Svensson



A cidade despedaçada

Dentro dos prédios construídos segundo os princípios do funcionalismo e da eficiência, as pessoas podiam acomodar-se conforme ou contrariamente aos propósitos de arquitetos e de engenheiros.

                                       Planta esquemática de um colchos, c. 1930.

Nas comunidades ampliadas e construídas segundo os mesmos princípios não havia escolha. O modelo transformou-se num ditado do modo de vida.

Ao dividir o espaço interno de habitações, fábricas, teatros e ginásios de esporte, segundo distintas finalidades, devia-se fazer o mesmo com as diferentes partes da cidade. Mais ou menos assim pensavam os profissionais e os políticos. Era simples fazê-lo e era fácil eleger a zonificação como um princípio de diferenciação da construção social. Na realidade, era somente uma inevitável consequência da necessidade, que agora era aceita como um mérito da mesma.

Assim, as grandes e as pequenas comunidades continuaram a crescer com as suas partes, mas não partes completas como em fabris após distritos fabris, bem como áreas hospitalares, universitárias, de recreação, centros de cultura, centros administrativos. Enquanto seus predecessores couberam num mesmo centro de cidade, num mesmo terreno ou numa mesma quadra, as novas construções passaram a ocupar territórios inteiros. Muitas partes foram construídas tão grandes como o centro da própria cidade de onde saíram. Algumas instituições podiam ser até maiores, como os aeroportos com seus muitos terminais.

As cidades maiores resultaram mais estranhas e mais cheias de contradições e de conflitos. Mesmo se concordamos em que certas partes ganharam em serem desenvolvidas de per se, o seu isolamento atingia a totalidade e assim finalmente as partes também.

Muitos locais de trabalho perderam completamente o relacionamento com a comunidade da qual faziam parte, não só as oficinas e as fábricas da vida produtiva, mas também os prédios administrativos, as instituições de ensino e pesquisa, bem como as de saúde. Cada uma desenvolvia uma espécie de via própria em curiosa contradição com o restante da comunidade. A cidade passou a ser um mundo externo sem interesse, como que um mal necessário.

Vista do interior do Museu Guggenheim era Nora York, de Frank Lloyd Wright, em 1953, segundo projeto de 1943.

A vida passou a ter um andamento dilacerado e dilacerante através de dias e semanas, dividida em decorrência de momentos isolados nos quais a eficiência e o anseio contínuo quase desapareceram em razão da crescente ineficiência do todo. Cada momento foi esvaziado de sua vitalidade ao ser isolado dos demais, Os bairros habitacionais foram desprovidos de trabalho. Residir num lugar sem trabalho torna-se necessariamente algo vazio e desumano.

As famílias são levadas a recolher-se à sua vida privada, pois não há nada mais que lhes diga respeito. Crianças, velhos, doentes, donas-de-casa ficam sentados com as mãos cheias de padrão de vida mas com a alma carente de experiências. A vida apresenta-se ainda mais vazia do que ao reunir velhos e doentes. Privamos uns aos outros de vários dos lados essenciais da vida quando não cuidamos dos nossos concidadãos e os entregamos aos cuidados de outrem.

Da pura e simples moradia muitos vão todos os dias para um local exclusivamente de trabalho, no qual o planejamento racional ordena que seremos mais efetivos se não fizermos outra coisa do que trabalhar.

Vez por outra vamos fazer compras em estabelecimentos onde temos de nos submeter a exigências racionais ao consumidor que não deve pensar em outra coisa do que em efetivo consumo de coisas úteis e inúteis umas pelas outras.

Proposta de cidade mercantil, de Ludvig Hilberseimer, 1930.

Entre as paradas de nossa trajetória há duas especialmente curiosas: as especificas instituições de cultura e as prisões. Numa somos obrigados a aceitar mais do que aguentamos, na outra somos despojados de mais do que podemos suportar. A ambos extremos apontamos através de meios tecnicamente planejados, utilizando dois meios com os quais a sociedade não despende suficientes recursos.

Especialmente estranhos sio os trechos da vida usados para trafegar entre as paradas. As comunicações são tidas como soluções racionais dos problemas dos assentamentos humanos, mas isso é uma meia-verdade, com toda a falsidade que uma meia-verdade possa ter. Na realidade, os assentamentos existem para servir à eficiência de nossos atos, em vez de as comunicações servirem aos assentamentos.

Muitos imaginam que caímos nesse modo de vida às avessas por causa de um desastre ou algo imprevisto; outros opinam ser questão de uma espécie de necessidades racionais. Tudo isso é fatalismo. Trata-se, ao contrário, do fato de engenheiros, arquitetos e empresários, durante décadas, insistirem em programar a nossa despedaçada existência. Para a totalidade foi Le Corbusier que nos deu o primeiro aviso com seu grande Plan Voisin, em 1925. Não foi o único. Um projeto do arquiteto alemão Ludwig Hilberseimer mostra o quão conscientemente trabalhadas eram as ideias já nos anos 1920.

Hilberseimer desenvolveu propostas de estabelecimentos onde todas as ideias c hábitos de muitas décadas de arquitetura comercial seriam resumidas num bairro a ser extrapolado por toda uma cidade.

Com sua proposta, Hilberseimer queria mostrar como se devia transformar o centro de uma cidade num aparelho de distribuição da sociedade de consumo. Pode parecer errado, mas Hilberseimer mobilizou toda a sua capacidade criativa para obter a extremada uniformidade que constitui a interpretação consequente da exclusiva e preestabelecida finalidade: eficiência e produção em larga escala, assambarcando totalmente o comércio a varejo.

O projeto de Hilberseimer é uma advertência ou um sintoma, mais do que um modelo a ser seguido. Projetos tão consequentes ninguém encomendava. Mas os princípios têm sido empregados, variando de tamanho, nos centros urbanos onde empresários e autoridades decidiram substituir o antigo pelo novo. Essa espécie de total comercialização de partes inteiras da cidade com a ajuda de eficiente arquitetura não ocorreu só para partes novas ou onde as antigas edificações foram destruídas durante a Segunda Grande Guerra.

Fomos testemunhas, também, de como a periferia entumecida da cidade passa a pressionar o antigo centro, exigindo que algo construído para a vida plena de alguns milhares de habitantes tem de passar a servir a centenas de milhares.

Então a construção social culmina numa violenta e trágica crise cultural. Assim, empresários, empreiteiros, políticos e planejadores em grau variado são tomados de incrível ambição de construir o novo. Se nenhuma força contrária se ergue para impor juízo, as seculares tradições de cultura podem ser substituídas por nada em dez anos de especulação e ignorância, de presunçoso desprezo por tradições. Diga-se desprezo pelo humano.

É questão tanto de arquitetura como de urbanismo. As dificuldades multiplicaram-se. Já a arquitetura construída fora dos limites da cidade era inadequada. Quando as novas forças começaram a inovar, construindo no centro da cidade, foram poucos os que acharam que podia ser de outra forma. Na maioria dos casos, os políticos, as autoridades, os profissionais e os financiadores atropelam o centro da cidade justamente com a mesma arquitetura radicalista que já pode mostrar na periferia as suas deficiências.

Ainda pior será o passo seguinte. Os empresários apoderam-se de um território no campo fora da cidade e aí constroem estabelecimentos comerciais de grande porte com desérticos estacionamentos de asfalto. O planejamento anárquico do comércio de varejo atinge um estágio burlesco. Antigas e recentes áreas habitacionais são privadas de seu comércio de vizinhança, e uma parte da população, a que não possui automóvel, fica praticamente impedida de fazer compras. Ao mesmo tempo as lojas do centro da cidade são esvaziadas pela concorrência dos grandes centros comerciais fora da mesma. Algo que apressa ainda mais a demolição dos antigos prédios.

Leigos, profissionais e dirigentes em muitos países já reconheceram a necessidade de um enfoque totalmente distinto de todas as questões de planejamento. De planos urbanos passaram para planos regionais e planos de âmbito nacional. O objetivo só tem sido parcialmente obtido. Numa sociedade que no seu mais íntimo só reconhece a economia de empresa, as distintas partes têm enorme dificuldade de entender situações e circunstâncias maiores. Por mais bem-intencionados e abrangentes que sejam os planos, acabam sempre deturpados, postos sob o comando da imediatista economia de empresa com suas ideias de lucro fácil e imediato.

Assim culmina a caótica dissolução de cidade e campo e é substituída por vazias quadras comerciais com vazios estacionamentos, ao mesmo tempo em que a área rural diminui e é poluída por tempos imprevisíveis. Cada passo do caminho é anunciado como necessário a uma economia racional, e cada prédio é caracterizado como arquitetura racional até o ponto de perder sentido.


Trata-se de uma escolha global

 Será que os habitantes do nosso planeta irão preferir a destruição a longo prazo ou a renovação de sua construção social? Para o povo em geral parece fácil escolher. A dissolução de cidade e campo é uma necessidade histórica. Não podemos escolher ou cidade ou campo por não se tratarem de coisas distintas. E a industrialização é necessária para desenvolver a vida de quatro bilhões de pessoas.

O projeto de Marcel Breuer para Grand Central City em Nova York; c. 1967.

Escolhendo renovação poderemos fazer de cidade e campo um dos maiores avanços da história da humanidade, mas em países demais e em regiões demais a maioria dos empreendedores e construtores tem seguido a estrada larga, onde a construção social cresce por meio de suas partes. Iniciativas abrangentes são mais para nivelar a estrada. Bem diante de nossos olhos avança uma dupla destruição por sobre todos os assentamentos humanos, por sobre todas as áreas rurais e naturais que possuímos.

O que fora cidade e o que fora a sua mais próxima área rural é destruído pela super-utilização. Aquilo que fora área rural um pouco mais longe da cidade é destruído por subutilização. As cidades grandes ficam cada vez mais parecidas umas com as outras em seus distintos países e com suas distintas origens: Nova York, São Paulo, Tokyo, Sidney, Nova Delhi, Seul. Também cidades com planejamento mais antigo são inseridas na mesma tendência: Londres, Paris, Estocolmo, Milão, Cairo, México. Cidades nas quais os dirigentes dominam a política do uso do solo não diferem muito: Leningrado, Moscou.

Nem mesmo sinais evidentes de catástrofe têm levado a alguma decisão: só os mais pobres permanecem em Nova York, o povo não consegue mais andar nas ruas de Tóquio. Apesar disso, os empreendedores em Nova York, nos últimos anos, encomendam arranha-céus maiores do que nunca.

Funcionalistas de renome internacional ganharam medalhas de ouro de seus próprios colegas, ainda nos anos 1960, ao exibirem desenhos e maquetes sobre como ajudar as forças de especulação a adensar Nova York algumas vezes mais. A mesma arbitrariedade que destrói a paisagem e com isso a própria população de enormes partes do mundo, uma população que se destina às cidades, aumentando ainda mais as dificuldades já lá existentes.

As pessoas não fogem para lá atraídas pelos encantos da cidade, como no século XIX e no início do nosso século. Fogem para lá por não terem para onde ir. Fora de inúmeras das cidades grandes, abancam-se formando favelas maiores e piores que as mais lamentáveis de Londres no século XIX.

A grande criatividade artística vez por outra é solicitada. Paira sobre as cabeças de altos e baixos e tenta jogar o papel de altiva detentora das soluções de todos os problemas da construção social. Mas seus recursos são limitados. As personalidades que a lideram pairam como os últimos individualistas de uma série de cinco séculos na qual Brunelleschi e Filarete foram os primeiros.

                                       Vista de Brasília, 1998.

Brasília, a extraordinária e monumental capital do Brasil, foi construída com promissora confiança nos arquitetos-mestres da nação brasileira: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.    A contradição entre a brilhante obra de arquitetura e a vida social tornou-se grande demais. Já em 1946, muito antes de Niemeyer configurar seus prédios em Brasília, ele escreveu palavras que davam o que pensar a respeito de seu trabalho:

A arquitetura deve ser uma expressão do espírito das forças técnicas e sociais dominantes de uma época. Quando essas forças não estão em equilíbrio, surge um conflito em prejuízo do conteúdo e da totalidade da obra. Somente considerando isso conseguimos entender o caráter dos planos e dos desenhos apresentados. Gostaria muito de poder apresentar um resultado mais realista. Seria o tipo de trabalho que não reflete somente refinamento c satisfação, mas também uma cooperação direta entre o arquiteto e a sociedade no seu todo.

Por mais difícil que tenha sido para o reconhecido gênio realizar algo, por mais forte que tenha sido a sua consciência social, assim descreveu Brasília, em 1960, já a bom caminho de sua concretização:

É lamentável perceber como as condições sociais reinantes entraram em contradição com o espírito do Plano Piloto causando problemas que não é possível resolver com esquadro e desenho, e muito menos - como querem alguns ingênuos - apelando para uma arquitetura social, algo que não leva a lugar nenhum a não ser em bases socialistas.

Apesar de o trabalho de Mayer, Novickis e Le Corbusier com Chandigarh no Punjab ter sido decantado por milhares de colegas, a cidade deles também entrou em contradição com a vida naquele estado da India.

É difícil entender como as autoridades puderam convidar esses americanos e esse franco-suíço. Talvez por uma reputação tardia das possibilidades do funcionalismo e do cubismo permitirem um planejamento futurista.

A Índia acabara de livrar-se da supremacia britânica com seu classicismo europeu. Constituía para a população do país somente um símbolo de opressão imperialista, tendo sido expulsos aqueles que se valeram do mesmo. Ao invés de construir uma cidade que pelo menos visasse à equidade social, os dirigentes deram aos arquitetos a incumbência de substituir a sociedade de castas por uma sociedade de classes capitalista. O funcionalismo criou, com seu cubismo, símbolos para um novo imperialismo. A nova independência nacional não teve como se expressar. Um ar de desenraigado cosmopolitismo é que viria a brilhar. Nem um sinal de liberdade popular. Um arquiteto hindu, que não participou do coro mundial de arquitetos, escreveu:

Há mais de 14 tipos de casas em Chandigarh para gente com diferentes níveis de renda. As áreas são bem planejadas se vistas à luz de determinadas necessidades dos habitantes. A principal e mais significativa necessidade não foi considerada. O que quero dizer é que não há a possibilidade de as pessoas dos distintos níveis de renda se relacionarem entre si. Gente de baixa renda não tem coragem de frequentar as áreas de gente de alta renda. Essa maneira de planejar implica pressão psicológica e social sobre seres humanos. Não há nenhuma interação de duas áreas. Não reina a liberdade social e nenhuma expectativa de vida humana. Em decorrência passam a dominar as tensões emocionais. Tais consequências sempre ocorrem onde não há sinais de visão global.

 Mesmo havendo fortes tendências de considerar totalidades maiores do que as partes dilacerantes que caracterizam a maioria das cidades, Brasília e Chandigarh não insinuam querer resolver as contradições capitais da Construção social, aquelas entre cidade e campo bem como entre essas e o industrialismo. Apesar de seus autores buscarem algo essencialmente mais elevado e maior do que os construtores de partes da cidade, sua obra cresce sem raízes na sociedade para a qual aceitaram planejar. Decorre daí que a sociedade tem de atender aos propósitos do arquiteto, quando na realidade era o arquiteto que devia servir à sociedade. As relações não ficam melhores se constatarmos que a sociedade atende aos propósitos da arte. Nos ouvidos do povo tal tipo de justificativa soa como vazia, senão como um prepotente desafio.

                                       Chandigarh, 1975.

No trabalho dos utopistas radicais há muitas contradições difíceis. Muitas estão ligadas ao enfoque do fator tempo. Creem ser dinâmicos e criar construções sociais dinâmicas, mas seu trabalho na realidade é mais estático do que qualquer construção anterior.

Seu trabalho não pode considerar nem o passado nem o futuro. O mais curioso é que seu trabalho como construção palpável não considera nem o seu próprio tempo. Os profissionais desenvolveram sua técnica e economia afastadas de qualquer posicionamento vivo para com o processo de construção. Fazem desenhos tão condicionantes que o trabalho de construção perde o sentido.

Agora transferiram seu fantástico enfoque também para os assentamentos já existentes. Por isso existem sobremodo apenas duas maneiras de tratar casas já existentes: derrubá-las ou declara-las objeto de preservação por interesse histórico. Só nos últimos anos os construtores começaram a reconhecer o quanto perderam por haver esquecido a arte de renovar reconstruindo.

Proposta de cantear com tapumes uma via expressa em Boston. Desenho de Spreiregen para The American Institute of Architects, c. 1965.

A falsa noção de que toda massa edilícia em princípio é intransigente tem levado a estranhas consequências em certos círculos de especialistas. Uma proposta de reconstruir a cidade de Boston evidencia traços absurdos. Alguns comissionados do American Institute of Architects não conseguiram pôr-se de acordo com certos conjuntos de prédios que denominavam de áreas cinzentas em razão de seu caráter indefinido. Não propuseram demolição nem preservação considerando essas massas cinzentas da cidade em razão de seu caráter indefinido. Tinham de sulcá-las com vias de tráfego, e para proteger-se a si e a outros corno eles, o grupo de arquitetos e o filósofo classista que tinham como chefe decidiram construir tapumes ao longo das vias. A si mesmos e a seus irmãos de classe os que tomaram tal iniciativa chamam de nós, e para esses nós formularam exigências quanto à imagem da cidade ao longo do percurso do entorno para o centro da cidade.

Os autores desse projeto foram ao mesmo tempo ingênuos e cínicos e totalmente alheios ao problema da totalidade. As dificuldades são literalmente amputadas, de forma mais radical do que ousaria qualquer utopista pelo fato de designarem determinado segmento social corno abominável valendo-se do urbanismo.

Se a proposta desse grupo de arquitetos houvesse sido aprovada, os cidadãos ricos de Boston poderiam hoje trafegar tão bem como os habitantes ricos de Manchester quatro gerações antes ou como escreveu Engels:

O melhor da questão é que esses ricos aristocratas financeiros podem acessar à cidade pelo caminho mais rápido, atravessando os bairros operários, sem sequer perceber o quanto estão próximos à maior miséria tanto à esquerda como à direita do caminho.

A arbitrariedade durante o liberalismo na Inglaterra seria elevada à condição de princípio artístico nos Estados Unidos durante o capitalismo tardio.

Será que as forças, as ideias e as tendências de oposição não têm influência, não conseguem fazer-se valer? Apesar de sua força ser pequena no mundo ocidental, não são totalmente sem efeito. Que têm importância para o futuro é evidente. Trata-se de todas as dispersas e tênues forças que avançaram nos caminhos em que começaram, no fim do século passado, Geddes e Howard e seus pares.

                                        O centro de Cumbernauld, 1969.

Em continuação, as iniciativas também foram britânicas. Associações, comitês e comissões, privadas e estatais, trabalharam através dos anos 1920 e 1930 com as difíceis questões quanto ao crescimento das cidades e o destino das áreas rurais e naturais, tudo sob a pressão do desenvolvimento do industrialismo tendo capital e especulação por trás e pela frente.

Foi durante a Segunda Grande Guerra que a escolha de caminho para a construção social em sua totalidade novamente se colocou na Grã-Bretanha.

Patrick Abercrombie foi solicitado a sintetizar todas as tendências no livro Greater London Plan, 1944. Ele reflete algo da mesma determinação que todo o país mostrou em função da vitória na guerra. As perdas foram enormes. Ao mesmo tempo era possível pensar com liberdade acerca de planejamento enquanto as atividades de construção estavam em baixa. Os planos incluíam o propósito de os serviços públicos apoiarem uma densidade menor de população para Londres com a criação de cidades autônomas e multifuncionais no entorno. Tratava-se de dar continuidade àquilo que Howard iniciara. Em 1946, o Parlamento aprovou The New Towns Act, uma decisão de grande conteúdo e muito bem redigida sobre como construir cidades novas. Seriam multifuncionais e comedidamente grandes, e deviam interagir com suas áreas rurais tanto em termos de produção agrícola como de gestão ambiental.

Graças ao trabalho com as New Towns desenvolveu-se a construção social depois da Segunda Guerra Mundial na Inglaterra, na Escócia e no País de Gales, segundo duas linhas opostas: contra a linha de intensa destruição rumo ao caos, luta apesar de tudo uma linha favorável à renovação. Incluindo Welwin, foram mais de 20 novas cidades a serem desenvolvidas. Em torno de um milhão de habitantes tiveram as suas condições de vida melhoradas. A pressão nas cidades grandes diminuiu um pouco e a rapinagem exercida pela industrialização também.

O que a política de construção social britânica não conseguiu frear foi a continuada exploração em Londres e em outras grandes cidades. Londres perdeu o seu caráter específico. Ainda nos anos 1950 muitos podiam justificar a sua enorme expansão com a sua construção em pouca altura. Depois disso a cidade tanto se expandiu como cresceu em altura. As grandiosas possibilidades que Abercrombie e seus auxiliares descortinaram com a reconstrução após a guerra foram em muito deturpadas.

Talvez a política de construção social britânica seja a mais determinada em todo o mundo ocidental. Sinais de continuidade apareceram em vários países — Estados Unidos, Canadá, Austral —, enquanto os países na Europa seguiram caminhos exclusivos, mesmo aqueles que buscaram a perspectiva socialista.

Em muitas partes tanto empresários como construtores têm se valido de pesquisas econômicas e sociais em seus preparativos. Como especulação, inflação, conjunturas e conflitantes vontades tanto na direita como na esquerda sempre driblaram com iniciativas, em nenhum lugar tem sido fácil monitorar a totalidade.

Muito da imensa anarquia depende do fato de gente por demais haver estado unida num ponto ter aceito o tráfego como um fator do destino sem retorno.

Os responsáveis pela nova cidade de Cumbernauld na Escócia procuraram dar um passo adiante em matéria de tráfego. Decidiram organizar todo o centro da cidade em função da questão de tráfego, tanto para os que tinham o que fazer no centro ou que por ele iriam passar. Em torno de 1960 é que a sociedade do tráfego começou a ser seriamente concretizada em sua extremada consequência; aquilo que Le Corbusier insinuara uma geração antes. Um corte pelo centro da cidade lembra um ferry-boat mais que uma imagem de cidade.

Aqueles que desenvolveram os planos para Cumbernauld usaram frequentemente o argumento de que a era do automóvel veio para ficar. Esse tipo de argumento ajuda a levar a nossa construção social à dissolução e ao caos. O tráfego torna-se o símbolo da paisagem, o crescimento incontido das indústrias ou as favelas do Rio de Janeiro, Carachi ou Cairo como objeto de preocupação. Que é necessário observar todas as questões de uma só vez está claro e evidente, pelo menos desde o tempo de Geddes e Howard.

Mas são extremamente poucos os países do mundo onde as pessoas tomaram por regra colocar a totalidade em primeiro lugar quando de sua construção social. Hoje a China é o país principal desse diminuto grupo, e a China é o pais mais populoso do mundo.

Os chineses lembram frequentemente de quão tortuoso o caminho do desenvolvimento pode ser, mesmo assim já conseguiram chegar a um bom pedaço do caminho de sua construção social desde a libertação, em 1949. Como agem talvez é mais fácil de entender considerando sua máxima andar com duas pernas, usar os dois contraditórios lados de cada situação.

Decidiram nivelar a contradição entre cidade e campo, por meio de nova coparti-cipação, ao mesmo tempo em que nivelam a contradição entre artesanato e mecanização e entre o antigo e o novo.
Uma condição é a propriedade da terra. Pouco a pouco toda a terra se tornou de propriedade comum, apesar de o direito de uso do Estado não-exclusivo e muito da coletivização passar por decisões locais.

Outra condição é a ponderada responsabilidade onde as determinações centrais só oca-sionalmente se impõem à autoconfiança do povo.

A grande reforma comunal dos anos 1950 foi uma proposta claramente popular de Honan. Mao Tsé-tung contribuiu pessoalmente para que se tornasse uma das reformas mundialmente mais decisivas de construção social.

Nas comunas, a agricultura tornou-se variada e rentável, rentável inclusive como novas culturas apoiando novas indústrias autossustentáveis. As comunas tornaram possível a construção de grandes e pequenas indústrias por toda parte. Assim, as antigas regiões industriais do leste do pais não precisaram mais suportar sozinhas a industrialização. No interior do país, onde os chineses pouco a pouco descobriram os seus fantásticos recursos naturais, a industrialização também teve início, até longe no oeste em áreas de baixa densidade populacional.

Justamente por isso é que a mesma atmosfera invade a cidade de Shangai, com seus 10 milhões de habitantes, e a menor aldeia, fazendo com que os chineses com meios os mais distintos promovam o seu desenvolvimento.

Os milhões de arruinados camponeses pobres que vieram para Shangai fugindo da miséria no campo nos anos 1930 em cooperação com a antiga população artesanal da cidade reuniram milhares de pequenas oficinas em centenas de fábricas nas terras sem lavoura do entorno da cidade. Em terras de plantio os chineses não implantam assentamentos. Assim, formaram-se bairros autônomos, com habitação própria, a curta distância dos locais de trabalho e com escolas, clínicas, lojas e organizações políticas e culturais.

Lá onde os velhos escombros de favelas existiam, as autoridades assentaram prédios de apartamentos de vários andares construídos por profissionais do ramo e as mulheres iniciaram indústrias de bairro próprias.

As centenas de mercados da cidade passaram a se relacionar com as áreas rurais e recebem seus gêneros sem intermediários e por meio de uma única forma de transporte.

O fato de se restringir a propriedade de automóvel próprio é só uma das formas de manter o tráfego nos limites aceitáveis dentro da relação cidade e campo. Montando uma economia variada, em cada lugar os chineses restringem também a necessidade de transportar gêneros a grandes distâncias.

Nos assentamentos menores muitas condições são inversas às das grandes localidades. Nas comunas, os camponeses e outros profissionais se reúnem e constroem eles mesmos as suas casas e oficinas. A quantidade é frequentemente dada desde antigamente quando unidades administrativas chamadas bsien se formaram em torno das aldeias atingíveis a pé.

Onde não há ferrovia nem fábrica de cimento, o povo desenvolveu a tradição rural de casas com abóbadas de blocos de adobe ou tijolo queimado em fornos próprios. Um hábito originado de escavar as quebradas e reforçar as abóbadas revestindo-as com caulim. Os hábitos variam conforme as tradições e os recursos materiais. As casas são construídas em longarinas ou em prédios de dois andares e são frequentemente consideradas por arquitetos para reinterpretação nas cidades.

De um modo geral, tanto auto construtores como engenheiros e arquitetos são muito cautelosos com as inovações na China. Durante a época da grande marcha aplicaram estilos históricos locais em prédios institucionais, mas geralmente com uma linguagem arquitetônica simples e parcimoniosa, sem as pretensões do radicalismo e do cubismo e sim com traços do passado chinês. Calma e sistematicamente reúnem suas experiências e acham que com o tempo encontrarão seu estilo próprio, aquele que convém à sua sociedade, mas creem que as distintas regiões do país irão apresentar diferentes exigên-cias tanto em relação à técnica como à forma. O estilo é de certa forma uma teoria para a construção. Não deve ser imaginado a partir de especulações intelectuais. Ao invés, surgirá de dentro da grande prática.

Com as grandes edificações dá-se o mesmo que nas pequenas comunidades. Valem-se das forças do industrialismo para igualar as contradições entre cidade e campo, entre indústria e lavoura. Levam adiante o gigantesco trabalho de uma história milenar, aquele que foi interrompido quando estrangeiros se impuseram à China durante os últimos séculos da Ultima dinastia.

Mas onde os construtores de canais e pontes dos imperadores uma vez arregimentaram à força artesãos e serventes, passou a haver trabalhadores tecnologicamente habilitados que desempenham o seu trabalho a serviço da comunidade, represam os rios e distribuem água por áreas muito maiores do que antes.

Sobre todas as partes do país com maior ou menor densidade populacional espalharam-se novas comunas. Com todas as suas unidades sob diferentes graus de industrialização substituíram a cultura de camponeses e pastores, a cultura de cidade e campo ou de entumecidas cidades. Se os chineses puderem continuar como começaram o seu país, este se desenvolverá uma única e coesa construção social, onde a industrialização não ameaçará com caos, mas com sua renovação totalizante.

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