domingo, 14 de abril de 2013

PRIMEIROS ELEMENTOS DE UMA TEORIA MATERIALISTA DIALÉTICA DO CONHECIMENTO – Artigo publicado na antologia: Attualità del materialismo dialèttico. Editori Reuniti. Roma, 1974. Parte II



Ludovico Geymonat (1908-1991) - filósofo, matemático e epistemólogo, militante comunista italiano. Reconhecido conhecedor do legado teórico de Lenin. Autor de vasta literatura sobre Teoria do Conhecimento.

Tradução: Frank Svensson


V   Propomo-nos agora a examinar um pouco mais miudamente os processos do conhecimento, ficando bem entendido que, para compreender o valor autêntico e determinar o grau de objetividade alcançado por esses processos, é necessário estudá-los em sua realidade histórica, sem apelar para um caráter ilusório absoluto que -- como dissemos nos parágrafos precedentes -- alguns pretenderam perceber na sua origem e nos seus resultados. Tratar-se-á, em outros termos, de precisar o tipo de contato por etapas ou por aproximações sucessivas que, segundo o materialismo dialético, se realizará no desenvolvimento do conhecimento (principalmente no desenvolvimento cientifico).

Como já vimos, a hipótese metafísica, segundo a qual a realidade seria constituída de elementos últimos, conduzir-nos-ia inevitavelmente a admitir a possibilidade de conhecimentos absolutos (um conhecimento que busca captar tais conhecimentos torna-se ele mesmo evidentemente absoluto). Vimos depois que um exame minucioso dos processos de conhecimento, considerados em sua concretude histórica, nos leva a abandonar essa consequência; teremos sem dúvida alguma de renunciar também à própria hipótese metafísica (hipótese que até o início de nosso século se revelou inteiramente incompatível com os desenvolvimentos mais modernos da física). Mas essa renúncia implica em aceitar a tese segundo a qual a realidade deve ser considerada como última e definitiva. Ora, é precisamente nessa tese que o materialismo dialético se fundamenta para justificar a sua tese do conhecimento como aprofundamento.

Se concebemos de fato a realidade como sendo constituída de muitos níveis, compreendemos prontamente que um certo sistema de conhecimentos surge ligado a um desses níveis mas não a todos os níveis sucessivos; sentir-nos-emos então autorizados a afirmar que tal sistema possui um indubitável valor objetivo no qual se consegue efetivamente captar o nível da realidade, mas não lhe atribuiremos um valor absoluto, prevendo que ele será enriquecido e corrigido por outro sistema de conhecimentos capaz de captar níveis mais profundos.

Nessa perspectiva, o tema conhecer significa essencialmente progredir de um conhecimento a outro, ou seja, penetrar melhor a realidade.

Quando falamos de uma verdade cada vez mais próxima da realidade, não estamos querendo afirmar que exista uma verdade absoluta à qual deveriamos chegar pouco a pouco; pelo contrário queremos afirmar a existência de uma realidade inesgotável e garantir que nossos conhecimentos sucessivos, níveis conquistados cada vez mais profundos que conquistamos, estejam em condições, graças a seu próprio desenvolvimento, de fornecer-nos imagens progressivamente mais completas e satisfatórias.

Lembrando-nos de que, para o materialismo dialético, a realidade mesma tem um perpétuo futuro, será fácil dar-nos conta de que, segundo essa doutrina, só uma concepção dinâmica do conhecer (como, justamente, foi aqui apresentada) está em condições de nos explicar porque os nossos processos de conhecimento conseguem se adequar a essa realidade. Quem poderá pretender, de fato, capta-la com categorias imóveis, se estão em perpetuo movimento?

É claro que renunciar à ideia de poder captar o real em sua totalidade não equivale a admitir -- estribando-se num certo kantismo de tipo agnóstico, defendido no século XIX por vários cientistas -- que exista, para além dos fenômenos, uma coisa em si que se pode por principio conhecer, e que não implica em nenhum caso negar à ciência a possibilidade de estabelecer afirmações válidas sobre as estruturas efetivas do real. Abandonar a pretensão de captar por um ato intuitivo a totalidade dessas estruturas, não exclui de forma alguma que se possa capta-las em número crescente, e dentre elas, justamente algumas mais significativas.

Uma coisa é considerar que a cada estagio do processo do conhecimento transpareçam limites coibindo todo caráter exaustivo aos conhecimentos considerados; outra, completamente diferente, é afirmar que esse processo se encontre diante de uma barreira intransponível. Os limites sempre presentes da pesquisa científica, não têm o caráter de uma ruptura metafisica entre o mundo dos fenômenos e o mundo real, mas são limites temporários entre as etapas sucessivas de uma série ilimitada de conhecimentos, todos de um mesmo tipo se bem que aproximados gradativamente.

Não há e não pode haver -- escreveu Lenin -- diferença de principio entre o fenômeno e a coisa em si. A diferença e simplesmente entre o que é conhecido e o que ainda não é, sendo que todas as fantasias filosóficas sobre os limites específicos existentes entre um e outro, sobre o fato de que a coisa em si se encontraria para além dos fenômenos, não passam de palavras vazias, caprichos e invencionices.

Para completarmos a nossa análise dos processos do conhecimento em sua realidade histórica, devemos finalmente nos questionar em que sentido podem ser compreendidas as transformações às quais são submetidas as teorias cientificas para permitir uma aproximação cada vez melhor da realidade. De acordo com o que afirmamos no primeiro parágrafo, por conta da importância dos dados da observação, respondemos que tais transformações devem, antes de mais nada, ser entendidas como um enriquecimento desses dados, surgidos em decorrência do emprego de novos instrumentos de observação, mais possantes e mais sutis. Mas isso não basta as transformações às quais nós devemos submeter as teorias cientificas para torná-las mais próximas da realidade, concernem também ao seu aparelho conceptual. Trata-se frequentemente de transformações limitadas ao circulo de qualquer postulado ou de qualquer modelo explicativo; mas em tais casos, elas chegam a comprometer as teorias fundamentais do conhecer a si mesmas.

O que o materialismo dialético sustenta, é que os aprofundamentos mais significativos das teorias cientificas são ligados justamente a este último tipo de transformações: transformações que a metafísica rejeita dogmaticamente, mas que, pelo contrário, é indispensável aceitar para não deixar que se perca o sentido efetivo das revoluções cientificas.  Sem duvida, não é fácil admitir que uma categoria (como o espaço, o tempo, a causalidade etc.) possa ser usada num sentido diferente do sentido tradicional. Mas querer torná-la qualquer coisa algo de absoluto, de imutável, de estático é tão injustificado como atribuir um caráter de absolutismo meta-histórico aos dados da observação ou às verdades cientificas.

Se nos propomos ser coerentemente antidogmáticos, nós devemos ter a coragem de rejeitar o definitivo no plano das categorias, vendo nelas algo de flexível, de mutável, de essencialmente dinâmico. É a teoria leninista da flexibilidade das teorias, complementar da do aprofundamento. Como o demonstrou Giorello, ela constitui uma das teses mais importantes da gnoseologia de Lênin: e ainda hoje ela aparece corno um dos instrumentos-chaves para compreender a significação autêntica da dialética complexa da ciência contemporânea.


VI     Neste ponto da discussão, aparece uma questão de grande interesse: de que modo a evolução desenvolvimento do conhecimento -- de um nível dado a outro mais profundo -- pode ser qualificado de racional ou ressaltar um tipo de racionalidade?

Como observa Omelyánovski em trabalho apresentado na II Conferência sobre problemas filosóficos das ciências da Natureza, realizado em Moscou em 1970. Einstein sustentava que os conceitos de base e os princípios fundamentais das teorias não são deduzidos (dados empíricos) de forma lógica e, nesse sentido, são criações livres do espírito humano, ele que vivia particularmente graças aos conceitos e aos princípios que fazem passar a ciência de um nível dado, a outro mais profundo.

Podemos declarar-nos inteiramente de acordo com Einstein sobre o caráter irredutível dos dados empíricos, reconhecido hoje unanimemente pelo conjunto dos que estudam esses problemas. Mas o ponto mais importante da tese de Einstein é outro: é a afirmação de que, não podendo ser dedutíveis de dados empíricos, os conceitos deverão ser livres criações do espírito humano. Para sublinhar o caráter livre dessas criações, outros eminentes físicos têm afirmado tratar-se no caso deles, da imaginação mais audaciosa, imaginação muito mais fecunda do que simplesmente recorrer a ideias malucas ou sem sentido.

Essas palavras têm sem dúvida um fundo de verdade, se as interpretamos simplesmente como afirmações enérgicas da necessidade de que o cientista -- quando constata os limites de uma etapa do conhecer, ou seja, de teorias construídas com as categorias características dessa etapa -- saiba se libertar, com o antidogmatismo coerente de que falamos no último parágrafo, da pesada carga da tradição científica e filosófica, introduzindo conceitos e princípios que se afastam radicalmente dos tidos como rígidos e imutáveis pelas gerações precedentes.

O que, no entanto, nos deixa perplexo é o outro aspecto, num sentido mais geral, que parece presente nas palavras citadas acima. Referimo-nos à afirmação de que o desenvolvimento em profundidade de nossos conhecimentos, em particular dos conhecimentos científicos, sendo fruto da livre criação, seria um processo que escaparia, por principio, a qualquer enquadramento racional.

Se levarmos em conta o fato de que os epistemólogos mais modernos, que se dedicam à passagem de uma teoria a outra na história da ciência -- por exemplo, Popper, que tem se ocupado várias vezes expressamente com a criação de uma nova teoria quando as precedentes foram declaradas falsas --, estão de acordo no essencial com a afirmação de Einstein citada um pouco antes, devemos concluir que tal passagem escapa efetivamente de todo tipo de racionalidade.  Ora, o materialismo dialético se recusa a fazer tão danosa concessão ao irracionalismo. Longe disso afirma que, se é verdade que a passagem em questão escapa à lógica formal com os seus aparelhos metodológicos, ela não escapa, porém, à lógica dialética (Omelyáriovski).

Não negamos que o recurso a esse tipo novo de lógica possa suscitar muitas dúvidas, mesmo naqueles que, com Engels, aceitaram o caráter dialético -- e, assim, dinâmico -- da realidade e do conhecimento. A lógica dialética, invocada pelo materialismo dialético para evitar danosas concessões ao nacionalismo, na realidade parece comportar riscos tão grandes quanto os oferecidos pelas concessões contra as quais precatar-nos. Basta pensar no perigo de cair na lógica hegeliana, tristemente célebre por suas três fórmulas abstratas e errôneas. Entretanto o fato é que esse perigo pode ser evitado, quando nos limitamos a interpretar a lógica dialética como uma tentativa -- a única conhecida até agora -- de captar uma forma de racionalidade no devir, mesmo quando este se afigura irredutível a um movimento mecânico puro e simples.

É fato conhecido: uma tentativa desse gênero consiste essencialmente na atribuição de uma função nova e muito particular à contradição existente os diversos momentos do devir, no fato de considerá-la como uma ligação que, de dois momentos, por meio de suas contradições, faz surgir um novo momento, o qual, em se situando num plano mais elevado, elimina os aspectos contraditórios dos dois momentos precedentes. A racionalidade posta em evidência, em última instância, na unidade estabelecida entre dois aspectos que pareciam incompatíveis.

Por maiores que sejam as dúvidas suscitadas em nós pela lógica dialética, devemos sinceramente reconhecer que ela parece se adaptar admiravelmente àquilo que é possível constatar concretamente nas fases mais delicadas do desenvolvimento do conhecimento científico. Pensemos, por exemplo, na física dos primeiros anos de nosso século, quando se viu face a duas teorias da luz -- a ondulatória e a corpuscular -- , tanto uma como a outra demonstradas por experiências inatacáveis. Ninguém pode contestar o surgimento naquela situação de um caráter inteiramente paradoxal; como ninguém poderá contestar que foi justamente a ampliação desse paradoxo -- fenômenos luminosos nos raios materiais -- por exemplo, os feixes de elétrons -- que fizeram surgir a mecânica quântica, resolvendo a contradição, em modificando radicalmente as teorias antigas -- de objeto físico, de causalidade etc. -- e abrindo assim o caminho para um aprofundamento muito importante de nossos conhecimentos científicos. Quem poderá negar que nesse caso e em muitos outros, foi justamente o paradoxo descoberto dentro de uma disciplina (ou seja, a contradição surgida entre duas teorias igualmente dignas de aceitação) que permitiu avançar até um novo grau de aprofundamento? Omelyánovski chega a sustentar que é quando um paradoxo põe os pesquisadores em oposição suficientemente radical às ideias dominantes da época que ele se revela verdadeiramente em condições de lhes indicar de que maneira tais idéias poderão ser modificadas.

Se as coisas se passam efetivamente assim -- e a história da ciência parece no-lo confirmar por muitos exemplos --, a introdução de novos conceitos e princípios de base não se nos apresenta mais como o produto de uma livre criação do espírito ou de uma imaginação maluca demais, mas como o efeito de uma autêntica lógica interna ao desenvolvimento da ciência. O cientista militante, que se deixa guiar unicamente pela introspecção, pode enganar-se quanto à possibilidade de por acaso chegar a certas inovações; mas o filósofo, que se esforça por compreender globalmente o processo da pesquisa, capta as motivacões mais profundas, inatingíveis através de um simples exame de ordem psicológica.
Mais uma vez, compete ao estudo daquilo que efetivamente surge no desenvolvimento concreto da ciência de servir de guia para o materialismo dialético. Mas trata-se de um estudo conduzido sem limitações preconcebidas e, em particular, sem a presunção dogmática de que a racionalidade só se exprime na lógica formal. Os adversários de boa fé do materialismo dialético deveriam meditar sobre o fato de que, se a utilização da lógica dialética está em condições de revelar urna ligação racional nos casos em que as considerações adialécticas nada veem senão o caos parece justo renunciar a priori a esse tipo de lógica.


VII    Até aqui só aludimos à categoria da totalidade, que detém um lugar de primeiro plano na concepção usual da dialética. É conveniente, portanto, submetê-la a um exame mais atento com uma referência particular à maneira pela qual o materialismo dialético trata do problema geral do conhecimento científico e dos problemas específicos que lhe são conexos. Por outro lado, com referência à aplicação de uma tal categoria à concepção do mundo, limitamo-nos a discuti-lo brevemente no primeiro parágrafo. Considerar o vasto circulo de processos do conhecimento em sua totalidade, significa sublinhar que eles constituem um continuum no qual não encontramos separações estanques entre um processo e outro, mesmo quando conservam as suas diferenças; por exemplo, não se encontra a separação apriorística entre categorial e pré-categorial, que já examinamos no segundo parágrafo, ao criticar a fenomenologia.

Desse continuum não estão excluídas, dado o seu caráter dialético, as modificações, mesmo rápidas, pelas quais se realiza o processo de aprofundamento dos conhecimentos científicos, definido nas páginas precedentes. O fato é que a conquista de um conhecimento mais profundo decorre justamente -- como procuramos explicar anteriormente -- da radicalização dos paradoxos surgidos nos níveis precedentes da evolução do conhecimento; radicalização que constitui uma ligação efetiva, autêntica, entre o antigo e o novo, e não uma separação estática entre eles. Ademais sabe-se que, segundo a teoria do aprofundamento, um conhecimento superior não anula os precedentes, mas os engloba, permitindo-nos descobrir por que eram válidos, dentro de certos limites, mas não além deles.

A aplicação da categoria da totalidade aos processos do conhecimento nos mostra que a garantia do conhecer deve ser buscada justamente no quadro global (em perpétuo desenvolvimento) desses processos, ou seja, no próprio tipo de dinâmica que os caracteriza, sem privilegiar uni em relação aos outros. Para ilustrarmos os equívocos decorrentes da recusa, por parte de certos filósofos desse gênero de garantia global ou dialética, julgamos oportuno considerar por uni instante as consequências extremamente graves que se podem deduzir, num caso particularmente significativo, duma tal recusa e da atribuição de uma validade efetiva unicamente às categorias primordiais ou intuições do saber comum, e não às mais acuradas e mais amplas, elaboradas a partir destas, por meio de pesquisa científica. O exemplo que pretendemos examinar diz respeito à noção de causa.

Quem tem o hábito de privilegiar os níveis mais baixos do conhecimento considera evidente que a verdadeira significação da causa é aquela que encontramos na vida cotidiana significação que, se aceita, virá travestida e deformada, seja da noção mecanicista de causa à qual recorreu durante séculos a física clássica, seja ainda, em grande medida, da noção da causalidade probabilística introduzida pela mecânica quântica, seja, enfim, da noção de interação comumente utilizada nos mais recentes desenvolvimentos da teoria dos campos -- noção estritamente conexa à de totalidade --. Para esclarecermos a atitude nitidamente antidialética de quem assim pensa, tentemos imaginar um dialogo entre ele e um físico moderno, focalizado no problema da causalidade.

Suponhamos que o físico em questão tenha explicado ao nosso sujeito os métodos pelos quais conseguiu calcular com muita precisão a probabilidade de certos acontecimentos subatômicos: por exemplo, a emissão de partículas pelos átomos de uma substância radioativa. Depois de ter seguido atentamente a exposição de seu interlocutor, o anti-dial ético fará a seguinte pergunta: Qual é a verdadeira razão pela qual, entre dois acontecimentos que, segundo os cálculos, têm a mesma probabilidade, um se verificará num tempo t e o outro no tempo T, muito diferente de t ? Corno o físico não lhe vai responder, ele concluirá Tua impossibilidade de responder à minha indagação demonstra que a mecânica quântica é incapaz de captar a autêntica realidade que se esconde sob a aparência probabilística do fenômeno.

Sem negarmos que esta conclusão seja o esboço de uma exigência justa -- ou seja, a de buscar teorias mais profundas que a da mecânica quântica --, parece-nos claro que demonstra muito bem os limites metafísicos da antidialética, decorrentes justamente de sua recusa de aceitar, com suas consequências, a tese da flexibilidade das teorias, bem como da pretensão de poder dar uma significação ao conceito de causa tomado isoladamente, fora do contexto histórico no qual é utilizada.

O que lhe oporá o materialista dialético? Opor-lhe-á que a noção comum de causa não reflete total e diretamente uma ligação existente no mundo objetivo : de fato, como as noções mais complexas de causa, elaboradas gradualmente pela ciência, ela não possui, por si mesma, nenhuma significação imediata evidente. Sua significação deriva inteiramente do fato de que ela está inserida numa teoria bem determinada, da qual parece independente por estarmos habituados a enfrentar tal contexto histórico inconscientemente. Mais precisamente ela se insere num sistema centrado na ideia de geração, que não goza de nenhum direito a priori de ser privilegiada em relação a outras idéias.

C. B. Bazenov escreveu a esse respeito : Não há nenhuma razão para considerar a estrutura intuitiva da geração como urna parte fundamental da realidade por ela mesma: é preciso, pelo contrário, tomá-la pelo que ela é efetivamente: uma descrição aproximadamente verdadeira dessa realidade. Sem dúvida alguma, a categoria de causalidade subentende a presença de um mecanismo interno determinado de ligação entre estados e sua simples sucessão. Mas, se nas primeiras etapas do conhecimento cientifico um mecanismo foi imaginado justamente sob a forma de uma estrutura intuitiva de geração, já hoje não é assim; não há nenhuma razão para confundir esse mecanismo interno com a estrutura constitutiva do processo de geração. Fazer dessa estrutura uma característica integrante da causalidade é um ato simplesmente dogmático. É fruto da ação de privilegiar o saber primitivo e a incompreensão da teoria do aprofundamento por aproximações sucessivas.


VIII     Neste ponto da discussão, surge urna questão de certa forma desconcertante: se a significação de termos corno causa é sujeita a variação de uma etapa ou de outra de nosso conhecimento, o que será da tese da objetividade das leis da natureza (leis em cuja formulação se emprega muito frequentemente a noção de causa?

Para dar urna resposta, é necessário refletir com uma certa atenção sobre a noção mesma de objetividade das leis naturais. Se no materialismo mecanicista essa noção foi utilizada para indicar que as leis naturais conseguiriam formular com urna certa exatidão absoluta uma parte fundamental da realidade -- compreendida como um sistema rígido de seres, no qual não seriam possíveis outras transformações a não ser a resultante de movimentos mecânicos --, no materialismo dialético, ao contrário, ela possui uma significação bem diferente: na realidade ela serve para indicar que as leis da natureza constituem descrições aproximadamente verdadeiras da realidade – com-preendida como um sistema não mais rígido, mas essencialmente fluido --, descrições cujo grau de aproximação varia de urna fase a outra da evolução de nossos conhecimentos. Nessa perspectiva, objetividade significa somente capacidade de refletir qualquer estrutura do real, não de esvaziá-la totalmente; indica a existência de uma relação efetiva -- não ilusória -- com o mundo objetivo, mas uma relação que não é absoluta, mas sim passível de modificações constantes, de integrações, de aprofundamentos.

Vários metodólogos modernos, de orientação neopositivista, exprimem sua recusa à antiga interpretação mecanicista das leis da natureza, afirmando que elas não têm valor de hipóteses. Trata-se de uma tese que, examinada sem preconceitos, não parece muito diferente -- em substância -- da dos materialistas dialéticos (centrada, como já vimos, numa significação nova da noção de objetividade). É preciso, no entanto, reconhecer que a dos materialistas dialéticos parece preferível sob três pontos de vista:

1 - porque essa tese reconhece a legitimidade das aspirações, presentes em todos os cientistas militantes, de buscarem uma forma de objetividade

2 - porque ela é compatível com a atribuição de um grau, mesmo limitado, de objetividade dos próprios conhecimentos pré-científicos,  na medida em que eles se revelam adequados para formular, por intermédio de suas categorias rudimentares e pouco precisas, as estruturas encontradas nos primeiros (menos profundos) níveis da realidade; e

3 - porque ela consegue dar um sentido claro ao progresso cientifico, entendido como a passagem de um conhecimento, adequado a um certo nível da realidade a outros conhecimentos adequados a níveis mais profundos.

O verbo refletir foi aqui usado no sentido de reflexão ativa. Para esclarecer os nossos argumentos, pode ser útil lembrar uma assertiva de Bazenov sobre a relação entre o inundo objetivo e as categorias a que recorremos para dar uma imagem cada vez mais aproximativa: Essas categorias -- escreve ele -- são um reflexo da realidade, mas a realidade em si não é uma corporificação das categorias de que dispomos.

O significado dessas palavras é evidente: qualquer que seja o estágio de nosso conhecimento, dispomos de categorias bem determinadas para formular uma imagem do mundo -- categorias que se podem qualificar de reflexo da realidade, na medida em que elas estão próximas da imagem em questão -- ; errado seria sustentar que a realidade é uma corporificação dessas categorias, considerando sempre possível poder dar uma imagem cada vez próxima, recorrendo a categorias ulteriores mais precisas e mais refinadas. Ou seja: as categorias são bem objetivas, mas somente de uma objetividade relativa, não absoluta.

Para explicar o significado do conceito imagem do mundo, alguém já propôs relaciona-lo à noção -- tirada da lógica moderna -- de modelo, afirmando que o mundo pode ser refletido por várias imagens, assim como as teorias matemáticas não categóricas podem ser representadas por vários modelos. Todavia, convém salientar que essa analogia negligencia a tese mais característica do materialismo dialético, que fala também da multiplicidade de imagens, mas com um sentido totalmente diferente: considera de fato que a existência de várias imagens em suas isomorfias é uma questão de pouco interesse, na medida em que o importante é reconhecer a existência de uma sucessão de imagens -- não isomorfas -- próximas da realidade, ou seja, construídas por meio de categorias progressivamente mais refinadas, e por isso mesmo mais aptas a descrever, com crescente profundidade, as estruturas do real.

Os materialistas dialéticos afirmam, às vezes, a situação, delineada por Bazenov, fazendo, límpida, embora complexa distinção entre "mundo físico" e "mundo objetivo". O inundo físico é -- para quem aceita essa forma de se expressar -- a representação do mundo objetivo elaborado pouco a pouco pela física -- no sentido mais amplo -- representação que consiste num sistema de conceitos e proposições, logicamente ligados entre si. E é evidente que em tal sistema, toda lei terá um lugar bem determinado, não mutável sem a modificação do sistema inteiro, se bem que será justo, desse ponto de vista, de atribuir-lhe uma validade absoluta.

Entretanto, examinando o desenvolvimento histórico das pesquisas científicas, verificamos que a física muitas vezes revolucionou seu próprio mundo, como, por exemplo, quando a física não clássica foi substituída pela física clássica. Não nos surpreenderá que, em casos semelhantes, ela mude mesmo as leis da natureza, para compatibilizá-las com o novo sistema de conceitos e de proposições que vinha elaborando.

O inundo objetivo é, pelo contrário, a realidade que nos esforçamos por captar, construindo mundos físicos mais próximos dela. Com relação ao mundo objetivo, não faz sentido falar de leis imutáveis, porque elas mudam com a passagem de um mundo físico a outro.

A objetividade das leis não fica de qualquer modo perturbada pelo fato de poderem se transformar. Na realidade ela não pode ser comparada a uma pretensa imutabilidade, ou ter um caráter absoluto. A objetividade reside unicamente no fato de que os sistemas de conceitos ou de proposições, nos quais as leis em questão estão inseridas, não são simplesmente convencionais mas são autênticas aproximações cada vez mais profundas do mundo objetivo.


IX    Desenvolvidos estes esclarecimentos, agora podemos finalmente empenhar-nos, com muita prudência, no difícil debate sobre as relações teoria-prática, limitando-nos a examinar um aspecto muito atual: será possível justificar racional e praticamente o am-plo e sistemático emprego que a tecnologia faz das descobertas da pesquisa científica ?

Não é difícil evidenciar tratar-se de um problema que suscita muita dúvida e perplexidade. Uma pergunta surge espontaneamente: se as leis científicas não são absolutas como o admitem tanto os neo-positivistas como os materialistas dialéticos, que valor se pode atribuir às indicações que nos são fornecidas acerca do desenvolvimento efetivo dos fenômenos? Se, empregando a inquietante expressão de Bazenov, elas não são corporificadas pela realidade, quem pode recorrer a elas justamente para agir sobre essa realidade?

Fazer ver que questões como essa são puramente abstratas e capciosas, tem pouco valor; podemos tranquilamente compreendê-lo referindo-nos à medicina como biologia aplicada. Nesse caso, na realidade, essas questões transformam-se imediatamente em interrogações dramáticas: quem nos assegura que os medicamentos produzidos hoje, com base nas descobertas mais modernas da química e da biologia, serão verdadeira-mente eficazes? Quem nos garante que, à luz dos conhecimentos científicos que abordaremos mais tarde, eles não se revelarão inúteis ou simplesmente nocivos?

Do ponto de vista do materialismo dialético, as dúvidas expressas por tais questões, são extremamente instmtivas, porque elas esclarecem quais erros podemos identificar em razão de conceder um caráter absoluto à objetividade, ou seja, da incompreensão fundamental da tese leninista segundo a qual admitir a presença de um elemento ativo do nosso conhecimento (teoria do reflexo ativo) não significa negar a sua capacidade de se pôr em contato -- mesmo incompleto -- com o mundo objetivo.

Já nos esforçamos várias vezes, em páginas precedentes, por refutar, no plano teórico, a identificação da objetividade com o caráter absoluto. Propomo-nos a mostrar agora como são insustentáveis as consequências que podem ser tiradas (e que, realmente o são por diferentes autores) no plano prático. É possível resumi-las assim: quando queremos agir por bem sobre a realidade, devemos -- senão em palavras, pelo menos por atos -- abstrair o máximo possível daquilo que a ciência pretenderia nos ensinar a respeito.

Examinemos então as bases possíveis desta conclusão. Para justificá-la de alguma forma, só vemos dois caminhos: ou negar qualquer valor a um conhecimento somente parcial do mundo objetivo, ou sustentar que o resultado de nossos atos sobre o mundo não depende de nosso conhecimento dele mesmo, mas exclusivamente da paixão com a qual nos apressamos a executá-los.

Negar qualquer valor a um conhecimento que se declara simplesmente aproximativo do mundo objetivo conduz, no plano da pratica, à tese seguinte: a verdadeira racionalidade deveria consistir na interdição de qualquer ato enquanto não se esteja de posse de um conhecimento completo e absoluto do mundo sobre o qual se pretende agir. Ou seja: deveríamos considerar como racional o fato de se nos abstermos de agir hoje a fim de podermos agir melhor amanhã.

Como todos percebem, trata-se da bem conhecida tese, característica de todas as formas de atentismo. Os perigos dessa atitude são largamente conhecidos, sendo inútil aqui enumerá-los. O ponto que, no entanto, é menos conhecido, e no qual vale a pena fixar nossa atenção. é que o atentismo decorre justamente da negação da dialética, em nome da exigência de um saber absoluto -- não aproximativo e sem estar em contínua mudança --. Trata-se de uma exigência aparentemente nobre e sedutora: mas o fato de engendrar o atentismo esconde a sua verdadeira natureza. Ela não passa de uma miragem uma miragem que nos desvia do presente, fazendo-nos esquecer, por meio de fantasmas, as nossas responsabilidades cotidianas de homens.

A face reversa do supracitado dilema -- ou seja, a afirmação de que o resultado de nossos atos efetivos e concretos sobre o mundo não dependeria daquilo que conhecemos dele, mas somente da paixão com a qual o consideramos -- nos parece ter hoje um considerável numero de defensores. Trata-se de uma atitude, frequentemente adotada de boa fé, que se exprime na seguinte tese: a condição essencial para conseguir transformar o mundo é efetivamente querer transformá-lo, ou seja, ter bem claro na mente o objetivo que se pretende perseguir com essa transformação. Não há duvida de que tal atitude pode ensejar atos heroicos, incontestavelmente meritórios do ponto de vista pessoal: não há dúvida igualmente, como a história nos ensina, de que ela sempre foi, ou quase sempre foi, essencialmente estéril.

Para realmente conseguir transformar o mundo, não bastam as boas intenções é necessário saber escolher os meios que, numa situação dada, serão os mais adequados para atingir o objetivo fixado. A pretensão de poder prescindir disso desemboca inevitavelmente no subjetivismo, no voluntarismo e, às vezes, no misticismo.

Vale a pena observar que essa atitude decorre também, em última instância, exatamente como o atentismo, de unia incompreensão fundamental da dialética. Para se convencer disso, é suficiente considerar a base em que ela se apoia: é a afirmação de que os meios de nossos conhecimentos (científicos ou não) não seriam de nenhuma utilidade real para a ação, por não oferecerem uma garantia absoluta de sucesso. A esse argumento, o materialista dialético poderá comodamente responder: o erro que se esconde na raiz dessa presunção é o de confundir a racionalidade com o caráter absoluto, negando dogmaticamente todo valor, por um lado, dos conhecimentos somente aproximativos, e por outro, dos instrumentos de ação que não permitem uma garantia absoluta.

Além dos atentistas e dos voluntaristas, mais ou menos conscientes, existe ainda uma terceira categoria de pessoas que sustentam, por motivos mais aceitáveis, que o apelo aos conhecimentos científicos não representa algo de essencial para a ação. Os conhecimentos científicos -- dizem -- podem certamente ser úteis para tornar as nossas ações mais eficientes, mas não lhes conseguem impor um sentido. Esse sentido não pode provir senão de uma visão global do mundo, que, só ela nos pode ajudar a compreender e a dimensionar a verdadeira importância de nossas ações dando-nos unia plena e total consciência das decisões a tomar em favor da nossa ação.

Não negaremos a validade dessa exigência, ou seja, dessa vontade de ter em conta o mais possível a função primeira atribuída, sobre o plano da prática, à uma visão global do mundo. Acrescentaremos ainda que essa visão possui sem dúvida alguma uma função essencial no plano do conhecimento, mesmo ultrapassando os limites dos conhecimentos científicos. Não e raro que se cometa, a propósito desse enfoque, um grave erro: o de considerar que seja possível ter uma visão global de mundo satisfatória, percorrendo um caminho totalmente independente dos conhecimentos científicos, erro que decorre, em primeiro lugar, da incapacidade de distinguir entre relação de simples impropriedade e relação de independência efetiva, e em segundo lugar, de uma concepção muito restrita, rígida e mecânica tanto quanto à estrutura dos conhecimentos científicos, como da estrutura da filosofia -- compreendida precisamente como elaboradora de visões globais de mundo --.

Uma vez evitado esse erro, fica claro que os conhecimentos científicos tornam a ter -- de pleno direito -- uma significação maior para a prática, não só na medida em que sejam capazes de fornecer meios que permitam uma maior eficiência de nossos atos, mas também por estarem ligados por uma relação muito articulada de interações com a filosofia -- interpretada no sentido definido ainda há pouco --. De fato, uni exame rigoroso da história das Pesquisas científicas e filosóficas nos mostra que em quase todas as épocas a ciência e a 'filosofia exerceram uma profunda influência uma sobre a outra, da mesma forma que sobre a cultura em geral e, por meio desta, sobre os debates em torno das orientações a dar à ação dos indivíduos e dos povos. A pretensão de encerrar as diferentes atividades do homem em compartimentos estanques, isolados uns dos outros, é urna das heranças mais perigosas da metafisica tradicional ; herança que deve ser combatida com tenacidade, opondo-se lhe uma concepção unitária e dinâmica do inundo natural e humano. Urna das contribuições mais importantes do materialismo dialético nessa batalha constitui justamente a sua teoria do conhecimento, centrada na defesa de um novo tipo de racionalismo realista, antidogmático e aberto, visando a eliminar tanto da ciência corno da filosofia tudo o que se pretenda absoluto.

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