sábado, 29 de dezembro de 2012

O NEOPOSITIVISMO DE LEONARDO BENEVOLO EM FACE DO PROBLEMA DA CONFIGURAÇÃO URBANA –

Frank Svensson . Artigo publicado em Boletim do Instituto de Arquitetura e Urbanismo UnB, nº 50, 1990.

Marxismo e planejamento urbano

Entre teóricos e historiadores não marxistas é frequente encontrarmos a opinião de que o marxismo seja omisso em relação à questão da configuração dos assentamentos urbanos. Em seu livro A origem do urbanismo moderno, Leonardo Benévolo faz uma afirmativa desse tipo. Refere-se aos textos de Engels, nos quais este polemiza com Proudhon e Sax sobre as teorias dos mesmos quanto às cités ouvrières francesas e as building societies inglesas. O engano de Engels consistiria, segundo Benévolo, em não haver proposto programas alternativos para o planejamento urbano e, assim, haver limitado a questão da cidade a uma questão da revolução econômica.

Engels preferiu ver a organização futura das cidades corno uma mera decorrência da revolução econômica que a classe trabalhadora persegue. Ele preferiu, portanto, incluir a questão da habitação na problemática social. Desse modo, é verdade que a critica marxista apresenta algumas teses fundamentais para o planejamento habitacional em andamento. Mas deixa a questão da aplicação dos princípios à área do planejamento em aberto e por muito tempo para frente se distancia do desenvolvimento no setor do planejamento urbano.1

Benévolo é vitima do enfoque idealista que afasta o planejamento urbano do movimento operário c da participação popular. A revolução econômica e social é vista como uma solução futura que não deve ser negada mas que não estaria ligada à atual ação reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana. O conteúdo social da cida-de é visto em seu estado de objeto da planificação urbana sem considerar a sua real transformação para a condição também de sujeito da planificação. Não reconhecendo essa tendência histórica da ação reciproca entre o objeto e o sujeito da configuração urbana, é natural que despreze, também, o conhecimento relativo aos instrumentos indispensáveis ao desenvolvimento da totalidade urbana. Torna-se difícil ver as organizações e os procedimentos das classes trabalhadoras como os novos meios do desenvolvimento e da configuração dos assentamentos humanos. Uma análise mais atenta de toda a obra teórica de Engels teria dado a Benévolo uma maior clareza da questão.

O conceito de espaço, implícito na observação de Benévolo, é o mesmo que Hegel defende quando analisa a arquitetura como ramo artístico. A sociedade é entendida como algo na massa construída da cidade e não como componente da mesma. A sociedade é vista em suas propriedades econômicas como algo em si, enquanto a cidade é reduzida à condição de continente material da mesma. As pessoas e as formas social-mente organizadas das mesmas não são reconhecidas como portadoras de expressão espacial e temporal.

Fig. 1. Um dos tipos de moradia operária do projeto elaborado por Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) para uma fábrica de tecidos em Moulouse, que foi objeto de critica por parte de Frederico Engels em seu livro sobre A questão da habitação.

A cidade é limitada ao conjunto de edificações e vazios, ao qual a população deve adaptar-se. Daí a sensação de vazio na visão marxista da configuração e do desenvolvimento urbano.

Espaço e tempo foram esclarecidos, por Marx e Engels, como expressão dos homens, das coisas c de todos os seres, incluindo as propriedades e as relações objetivas dos mesmos Não aceitando o conteúdo social da cidade como matéria com expressão espacial e temporal, não podemos ver o conhecimento a respeito como ciência e técnica da configuração urbana. Permanecemos na ilusão do humanismo idealista, tendo um objeto social abstrato e de realidade desconhecida como referencia para a configuração dos assentamentos humanos.


A ação recíproca da produção material e da produção espiritual como essência da conformação urbana

Para obter clareza quanto às leis internas, que explicam a ação recíproca entre o conteúdo social, o corpo construído da cidade, o caráter técnico e o artístico da sua totalidade, e necessário considera-los como formas específicas de trabalho, tanto de trabalho concreto como de trabalho abstrato, de produção material e de produção espiritual. As características principais da anatomia da sociedade foram esclarecidas por Marx em sua teoria sobre a infraestrutura e a superestrutura da mesma. A partir do resumo dessa teoria, no prefácio da Contribuição à critica da economia política, podemos formular algumas questões básicas sobre a configuração urbana: Quais são os lugares onde a produção material se desenvolve na cidade? Como é que esses lugares estruturam a espacialidade da cidade? Quais e como são os lugares onde se processa a reprodução da produção material? O que caracteriza os lugares pelos quais circulam os produtos e os produtores? Como se expressam, espacial e temporalmente, os lugares dos aparelhos jurídicos. políticos, religiosos e culturais da superestrutura da Sociedade? Como se relacionam os lugares entre si, refletindo em seu uso princípios de justiça e de desenvolvimento social? Em sua análise da anatomia da sociedade.

Marx aborda, também, a objetividade do tempo social. Menciona os momentos de câmbio, entre urna formação socioeconômica e a seguinte, como indicadores qualitativos do desenvolvimento da sociedade. Cada formação socioeconômica vem dotada de suas leis históricas próprias, as quais orientam o surgimento e o desenvolvimento da mesma. As formações específicas submetem-se a leis mundiais que se unem no processo da História Geral. Manifestações espaciais e temporais das formações socioeconômicas sobrevivem umas nas outras. Da mesma forma encontramos expressões de distintas formações em cidades, regiões e países os mais diferentes.

A relação entre a configuração urbana c a generalização teórica das formações socioeconômicas não é automática e imediata mas existe e é fundamental para o conhecimento da temporalidade dos assentamentos humanos. Como é que poderíamos melhor entender a temporalidade da configuração urbana no Brasil, por exemplo, sem considerar as igrejas, os prédios de administração e os palácios senhoriais surgidos, com urna nova linguagem arquitetônica, em Florença e Roma, durante o séculos XV, na passagem da formação feudal para a capitalista? Como é que conseguiríamos entender, de outra forma, a dissolução da homogênea imagem da cidade feudal, justamente por esses novos tipos de prédios e seus espaços externos?

Foram modelos trazidos por arquitetos como Terzi e Nasoni, da Itália para Portugal, que depois se espalharam por todo o mundo colonial português. Isso ligado ao fato de Portugal ter surgido como uma nova formação socioeconômica de mercadores e nave-gadores, em ruptura com a sociedade feudal e agrária da Espanha. É nisso que encontramos, também, as raízes históricas da cidade colonial portuguesa com uma configuração tão diferente da cidade colonial espanhola. Como poderíamos entender melhor a configuração da cidade colonial holandesa, trazida para o Recife, a não ser em relação ao período de florescimento do capitalismo mercantil dos e nos Países Baixos? Corno poderíamos entender melhor os modelos de edifícios desenvolvidos no ambiente romântico e otimista Revolução Francesa, sob forma de parlamentos, academias de Be-las Artes, bibliotecas, bolsas de valores, teatros, mercados, mansões burguesas e conjuntos de habitação operária? Da Paris de Napoleão Bonaparte esses tipos de edifícios foram espalhados por todo o mundo, inclusive para países tão diferentes como a Rússia e o Brasil, por meio de arquitetos como Montferrand e Montigny.

Como poderíamos melhor entender a configuração de edifícios portuários e de estradas de ferro, gasômetros e armazéns, prédios de administração pré-fabricados em ferro, hospitais, escolas e capelas, os quais, à partir das grandes exposições internacionais em países de avançada industrialização, cobriram o mundo colonial? Corno poderíamos entender de outra forma a presença de Barry Parker. em São Paulo, tentando aí aplicar o modelo da cidade-jardim inglesa? Ou a introdução dos princípios da arquitetura e do urbanismo do capitalismo monopolista de Estado, por meio de Warchavchic e Le Corbusier? Ou, ainda, da configuração inerente ao imperialismo transnacional, sob forma de bancos, hotéis de alto luxo, casas-garage e supermercados?

Como poderíamos entender melhor, ainda, o fato de os modelos da configuração urbana das repúblicas populares do mundo pouco industrializado terem sido buscados nos países em busca do socialismo e não nas intumescidas megalópoles do sistema capita-lista em decadência socioeconômica?

Para melhor entendermos as relações entre a configuração urbana e o desenvolvimento da produção material que a solicita e a produz, é necessário, também, considerar a produção espiritual da sociedade. A produção espiritual, dedicada à produção de ideias, não constitui uma forma isolada e independente de produção, dentre as relações com a produção material, como duas formas da mesma produção. Assim fica mais fácil compreender a configuração dos assentamentos humanos, como produzida para e por meio do processo de produção da sociedade e do modo de vida dos homens.

A produção espiritual ocorre por meio de atividades tais como a religiosa, a moral, a política, a filosófica, a científica e a artística. Diferentes das da produção material, essas formas ganham a função específica de desenvolver a consciência, ou melhor, uma determinada forma de consciência social. Por produção espiritual não designamos tudo aquilo que é desenvolvido sob a forma de consciência, mas somente aquilo que é criado por grupos específicos de pessoas, dentro de um sistema social de instituições, com a finalidade de desenvolver o espiritual. A consciência intencionalmente produzida se distingue daquela que surge em ligação à produção material. Comum a ambas as formas de produção é a criação de relações sociais. Na produção material as relações são, predominantemente, ligadas a coisas, enquanto que na produção espiritual são mais ligadas a ideias. As ideias se apresentam como a correspondência mental das relações reais entre os homens e as coisas.

Por que é que se dá uma divisão entre as formas específicas da produção material e da produção espiritual. Numa determinada fase do desenvolvimento histórico, o homem começa a produzir mais para os outros do que para si mesmo, o que dá origem à mer-cadoria e ao valor de troca, bem como múltiplas relações sociais. O trabalho, que se limitara à condição de produção para uso próprio, ganha caráter social. Ao mesmo tempo em que se dá uru aumento das relações entre os produtores, dá-se, também, um distanciamento dos indivíduos entre si. O indivíduo é alienado do conjunto de relações e perde a possibilidade do domínio consciente das mesmas. Em face de tal situação apresenta-se a necessidade da reprodução mental dessas relações, de modo a poderem participar da consciência, agora impedida de basear-se, simplesmente, nas informações da prática imediata da vida.

A intelectualidade surge como um segmento social específico, em função da distinção entre produção material e produção espiritual. Aqueles produtos do pensamento — lendas, mitos, crenças, etc. — fixados nos sistemas de símbolos e comportamentos que eram comunicados pelas aptidões do indivíduo — lembrar, falar, ouvir e organizar visualmente — passam a ser objeto de profissões específicas. Ao mesmo tempo, as relações sociais tornam-se independentes, sob formas que influenciam e são influencia-das pelo distanciamento dos indivíduos entre si.

A alienação dos indivíduos, em relação às múltiplas relações do crescente processo de produção pode dar a impressão de unia maior liberdade individual. É essa impressão que está na base das diferentes conceituações do liberalismo. Uma análise mais profunda mostra, no entanto, que a alienação do indivíduo para com o processo de produção, na realidade, é expressão de crescente dependência das pessoas entre si, exigindo novas formas de consciência quanto à totalidade. Essa consciência, bem como as relações por ela refletida, tornam-se cada vez mais estranhas às experiências vivas das pessoas. O pensamento abstrato liga-se à passagem para relações abstratas, entre as quais as que se dão no comércio e nas transações financeiras constituem um bom exemplo. As novas formas de relações substituem os contatos pessoais c mesmo uma boa parte de nossas relações com os objetos mais imediatos. Por intermédio das diferentes formas de consciência social, a sociedade procura compensar a falta de convivência e comunhão dos indivíduos. A consciência social torna-se, no capitalismo, um privilégio e resulta numa atividade exercida por tipos específicos de profissão.

Independente de pertencerem à classe superior ou de trabalhar a serviço da mesma, tais pessoas pensam pelas outras no que diz respeito a diferentes áreas do trabalho e do conhecimento. As classes superiores controlam, por intermédio de seus representantes ideológicos, a vida espiritual da sociedade no sentido de manter o sistema reinante. O papel da atividade espiritual não se limita, entretanto, a servir a uma determinada classe social. A consciência social, que resulta em trabalho espiritual, constitui a correspon-dência mental das necessidades que todos os indivíduos têm, uns para com os outros. Dessa forma, o trabalho espiritual preenche uma função social fundamental quanto à alienação dos indivíduos.
Os urbanistas do capitalismo agem como representantes dos demais indivíduos, em face das relações de que se viram privados no campo da arquitetura. Eles procuram satisfazer as necessidades espirituais e sociais dos indivíduos nesse setor específico. Se o seu trabalho é dirigido por interesses de uma certa classe social é, por outro lado, aplicado às necessidades de todas as classes. A produção do urbanista ganha, assim, um significado universal, expresso, em relação a interesses específicos, com traços universais no trabalho particular.


A qualidade da configuração urbana não existe fora de sua determinação quantitativa

Tudo aquilo que faz do ser e do fenômeno aquilo que eles são, o que os distingue de todos os demais seres e fenômenos, constitui a qualidade dos mesmos. A qualidade se expressa em propriedades. Uma propriedade caracteriza o objeto ou o fenômeno somente sob um aspecto, enquanto que a qualidade traduz a sua totalidade. Durante o modo de produção capitalista, os produtos que foram imaginados em função de seu valor de uso são transformados em mercadorias carregadas de valor de troca. A busca da qualidade, ou seja, de satisfazer todas as propriedades da totalidade, entra em contradição com a necessidade de repetição, de uniformidade, de rapidez de produção.

Querer ver a produção material em contradição com a espiritual explica a vontade de pôr a qualidade da arquitetura em contradição com somente algumas de suas propriedades. Somente alguns lugares são aprovados como arquitetura. Os demais são caracterizados como sem interesse arquitetônico. Analisando melhor a produção dos lugares, notamos, no entanto, que a relação existente entre as mudanças quantitativas e as qualitativas tende a resultados diferentes, dependendo do direcionamento: capitalista ou socialista.

O capitalismo estimula uma crescente diferenciação entre trabalho corporal e trabalho mental, entre produção material e produção espiritual, entre quantidade e qualidade. O desenvolvimento dessa contradição está submetido à tendência do capitalismo de também forçar a produção espiritual a, principalmente, produzir mercadorias com predominante valor de troca. Aquela atividade que persiste em se dedicar a produzir valor de uso fica cada vez menor numa produção espiritual em contradição qualitativa com a produção material. O trabalho intelectual é posto em contradição com o trabalho corporal. O trabalho espiritual tem a sua natureza adulterada e o seu caráter concreto é transformado em abstrato.

Quando um intelectual quer produzir qualidade, encara com desinteresse as necessidades e as exigências dos trabalhadores da produção material. Quando os trabalhadores da produção material decidem-se por trabalhar sob suas próprias condições, entendem o desejo de qualidade dos intelectuais como urna forma secundária de trabalho. O projeto do urbanista torna-se estranho ao lugar e à espacialidade que se destina. Desenhos, normas e especificações tornam-se algo em si mesmo, passível de aplicação em regiões e países os mais variados.

Quando o capital permite ao intelectual um trabalho com motivação social, dando sua contribuição efetiva ao desenvolvimento histórico, isso se dá às custas da qualidade do seu trabalho, ou seja, justamente daquilo que proporciona ao mesmo a sua condição de trabalho intelectual. Dá-se às custas de propriedades tais como individualidade, autonomia, realização pessoal e significação histórica.

Nos países capitalistas, muitos intelectuais procuram resolver a contradição entre a produção material e a produção espiritual por meio de um posicionamento de vanguarda. Como planejadores progressistas, querem estimular o desenvolvimento histórico limitados à própria área de atividade e de conhecimento profissional. Enquanto a sociedade capitalista não passa à condição de sociedade socialista, tal desenvol-vimento não pode, no entanto, ser outro que não o desenvolvimento da sociedade capitalista. Engajar-se na transformação da Sociedade exige mais do que um engajamento meramente profissional. A vanguarda dos intelectuais, dos artistas e dos trabalhadores culturais é forçada a aproximar-se da vanguarda revolucionária. A vontade, então, de fazer do trabalho intelectual uma parte da revolução dos operários, como transformadores reais da produção material, passa, facilmente, a ser o posicionamento dos intelectuais, tendo corno resultado que a eliminação do capitalismo deixa de ser o objetivo principal.4

O autor tem-se perguntado quais as razões porque tantos colegas de profissão, nos países capitalistas em que viveu, limitam a sua ação progressista a uma dialética do projeto. Primeiro, o autor pensou encontrar a resposta, ligada à chamada autonomia ar-tística e àquela realização pessoal que a materialização de um projeto de arquitetura proporciona. A experiência em países socialistas fez ver, no entanto, que os motivos são bem mais profundos. Os intelectuais progressistas dos países capitalistas caracterizam-se por não duvidarem da conveniência de se organizarem profissionalmente, tendo como objetivo o desenvolvimento social. Mas raramente reconhecem o contraditório, em atribuir ao trabalho intelectual um papel precípuo, segundo regras e leis que os distanciam de urna práxis social e concreta. Pretendem combater o capital — o que implica combater as formas históricas do trabalho concreto através das quais se manifesta — e ao mesmo tempo aprovar a divisão do trabalho material e espiritual, em sua forma mais refinada: limitar-se ao agrupamento em escritórios, escolas superiores e associações profissionais especificas.

Uma outra tendência dos urbanistas progressistas dos países capitalistas é a de se contentarem em configurar artisticamente soluções alternativas para a habitação e os assentamentos humanos, com pretensão a transformações de caráter social. Lutar por urna melhor arquitetura implica, no entanto, também lutar por um socialismo com capacidade de passar de propostas artísticas individuais para uma arquitetura de ampla praxis social. A experiência específica pessoal da arquitetura é transformada, então, em critério social reinante que reconquista a unidade da configuração dos assentamentos pré-capitalistas, mas num plano mais elevado c desenvolvido: o do socialismo.

Para muitos dos arquitetos progressistas da sociedade capitalista, a solução dos problemas da humanidade apresenta-se como a mais sutil e desenvolvida expressão de seu próprio problema: o mundo do porvir é imaginado permitir a liberdade espiritual que constitui a riqueza mas também a miséria dos intelectuais da sociedade capitalista. Creem ver, na revolução proletária, aquela força material capaz de concretizar seus próprios sonhos e valores. A luta do intelectual progressista contra o sistema capitalista transforma-se, facilmente, numa luta contra aquilo que parece contrariar as suas moti-vações artísticas e intelectuais pessoais. Enquanto não conscientizar-se de que essa sua oposição a tudo aquilo que pode por em risco sua posição como trabalhador espiritual exclusivo, o seu posicionamento progressista ganha assim uma dimensão conservadora.5

Após a substituição da democracia burguesa pela democracia popular, na transição para o socialismo, sobrevivem muitos velhos conceitos sob forma de idealismos, interpretações religiosas e ideologias de classe média. Esses resquícios conceituais misturam-se às espontâneas conclusões do dia a dia, antes que elas sejam melhor relatadas. Para que o saber do intelectual e o conceito extraído do dia a dia do operário ganhem validade cientifica a favor da classe operária, faz-se necessário o esforço conjunto de ambos, no sentido de eliminar aquilo que separa a produção espiritual da produção material. Um primeiro aspecto essencial desse trabalho comum é reconhecer corno direção ontológica preferencial aquela que vai da produção material para a espiritual, em semelhança à que vai do objeto para o sujeito. Reconhecer isso implica reconhecer, também, que a mudança radical realizada pelo proletariado, das condições de propriedade do processo de produção, constitui o aspecto central da transformação espacial e temporal da cidade.

Tendo em vista poluição, tráfego intenso c barulho, fábricas e oficinas são frequentemente vistas corno uma presença incômoda nos assentamentos humanos. Mas todos nos reconhecemos que a indústria pertence à cidade e constitui uni fator indispensável para o seu desenvolvimento. Engels fez ver que em cada fábrica pode-se encontrar o gérmen de uma cidade. É a forma privada de propriedade capitalista que acentua os aspectos negativos das fontes de produção. É a forma privada de propriedade que explica por que as cidades são rodeadas de assentamentos marginais qualitativa-mente inferiores aos assentamentos da população proprietária. A propriedade social dos meios de produção e as formas de planejamento econômico próprias às democracias populares fazem da configuração da cidade uma parte do desenvolvimento nacional. Um fato que não elimina a necessidade de análises profundas de outros condicio-namentos tais como: fontes de energia, rede viária, disponibilidade de mão-de-obra e equilíbrio ecológico. A configuração da cidade coincide com condicionamentos que resultam da eliminação da propriedade privada dos meios de produção.

Nos países governados por regimes trabalhistas tem-se considerado, por exemplo, que o prazo gasto no percurso entre a moradia e o local de trabalho não deve exceder ao de uma hora de relógio. Imaginem a consequência disso na configuração de uma cidade quanto a vias e formas de transporte coletivo.

As ideias do reformismo, quanto à configuração dos assentamentos humanos, afastam da atualidade socioeconômica a verdade sobre a luta de classes. Contrapropõem a teoria da colaboração de classes, que submete o proletariado à burguesia, aludindo a uma futura integração do capitalismo ao socialismo. Aos instrumentos próprios das classes obreiras e permitido o direito de existência, mas desestimulado, na prática, o de participação nas decisões sobre a configuração urbana. A ação de tais instrumentos — partidos e associações obreiras — é desviada para aspectos colaterais da luta de classes, cujo objetivo principal é a substituição do capitalismo pelo socialismo. A questão da propriedade, que é também uma questão relativa ao poder na sociedade, não pode ser reduzida a um principio de justiça social para uma revolução econômica futura e distante, que segundo Benévolo e os que pensam como ele parece poder ocorrer sem a luta atual das classes obreiras pelo direito de participação nas decisões sobre a configuração de seus locus standi.


A cidade como o lugar da História

No livro O Manifesto do Partido Comunista, Engels e Marx mostram ser o proletariado a única classe revolucionária. O proletariado torna-se a força material social capaz de transformar as condições de propriedade dos meios de produção como condição da transformação e do desenvolvimento da sociedade como um todo. Outras classes sociais também se opõem à burguesia. Os segmentos intermédios, o pequeno fabricante, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês, também combatem a burguesia, mas fazem-no somente para garantir sua existência como classe média, pois são conservadores. No Manifesto do Partido Comunista são caracterizados, até, como reacionários, em seu esforço por fazer a História girar ao contrário. Tornam-se revolucionários quando reconhecem sua transição inevitável para a ação proletária assumindo uma posição favorável à classe operária.7

Isolando o planejamento da configuração urbana do conhecimento da transformação objetiva do mundo, e limitando-o aos domínios da produção espiritual, aliena-se o mesmo do desenvolvimento objetivo da História. A contribuição de Engels e Marx ao planejamento urbano consiste em terem demonstrado o caráter objetivo da espacialidade e a condição objetiva da temporalidade no período industrial: o caráter revolucionário do proletariado. Se o planejamento urbano não considera esse fator de transformação, não levará mais longe que a uma proposta idealizada de unia momentânea situação da cidade. Limitado à conformação dos edifícios e seus interstícios, o planejamento urbano transfere o conteúdo humano e social da cidade para um plano abstrato e mal definido. Por mais criativos e organizativos que tais planos sejam não con-seguirão evitar o conflito entre os lugares construídos e a dinâmica inerente à materialidade social da cidade.

Além dos textos de Engels sobre .4 questão da habitação e O Manifesto do Partido Comunista, a sua crítica às teorias de Feuerbach, na qual analisa, com Marx, A Ideologia Alemã, são de fundamental importância para um melhor compreensão de como viu a problemática da cidade.8 Nesse texto, Engels e Marx mostram que o interesse do indivíduo em relacionar o seu trabalho específico com a produção maior da sociedade, não decorre da vontade pessoal do urbanista. A transição para o trabalho socializado na cidade obedece a leis objetivas, independentes da vontade individual de profissionais específicos do planejamento urbano. Marx e Engels constataram ser a cidade o lugar da História, sendo nela também que a burguesia se desenvolve e, durante seu período como classe progressista, desempenha um papel revolucionário. Viram, do mesmo modo, que é na cidade que surge o proletariado e aí desempenha o seu papel histórico de criar as condições para o surgimento e a consolidação do socialismo. Constataram ainda a tendência histórica de serem eliminadas as contradições entre o trabalho material e o espiritual, bem como entre a cidade e o campo.

Quando Marx e Engels reconhecem o que é próprio à cidade, não a veem como vitima de uma inevitável dissolução que só poderá ser compensada por uma revolução econômica futura. A partir do enfoque materialista dialético e histórico, compreendem a cidade corno expressão de urna ordem que foi criativa e organizadora, mas na qual muito tem de ser destruído para ser superado, em direção a conflitos cada vez menores entre o corpo construído da mesma e a materialidade da sociedade. Marx e Engels não propõem urna nova ordem abstrata em substituição. A cidade é vista em seu processo de desenvolvimento como parte de um problema maior: a passagem da sociedade para a condição de sociedade sem classes antagônicas. Quanto maior for a participação dos instrumentos próprios às classes obreiras no processo de decisão da configuração urbana menores serão os conflitos entre o continente construído e a materialidade social da cidade.

A grande contribuição do marxismo ao conhecimento sobre os assentamentos humanos é a constatação de que a configuração dos mesmos, à partir de modelos de situações idealizadas, tem de evoluir para um configuração baseada no conhecimento da trans-formação da cidade. O conhecimento da transformação urbana implica evoluir da posição de relacionar a cidade a planos definitivos — mas na realidade ocasionais quanto ao conteúdo social — para uma crescente ação coletiva na qual o conteúdo social é considerado em sua mudança para a condição de sujeito do planejamento urbano.


A contradição entre o social-realismo e o vanguardismo idealista, quanto à configuração urbana

Um terceiro aspecto fundamental quanto à necessidade de trabalho conjunto de intelectuais e operários é o fato de a divisão da produção, em produção material e produção espiritual, também separar a consciência e os processos de conscientização, dos atos externos ao pensamento que constituem a sua base e motivo. Essa divisão entre produção material e produção espiritual, entre a consciência e sua base material reflete-se na configuração da cidade. Expressa a tensão entre aquela tendência que quer limitar a cidade a certos aspectos julgados como de interesse e a tendência que quer a cidade inteira corno obra de arte. Todas essas formas de dissociação sofrem modificações dentro do mesmo processo que busca eliminar as formas burguesas de propriedade e que faz com que a produção passe a pertencer a toda a sociedade.

Na medida em que o poder sobre a produção é transferido para os produtores, torna-se possível a integração daquilo que antes se apresentava dissociado. As razões objetivas e as intenções subjetivas tendem a unir-se, na medida em que o trabalho desempenhado pelo indivíduo passa a ser para ele e reflete, em sua consciência, a sua ancoragem social. Essa reconciliação entre trabalho concreto e trabalho abstrato não é obtida se limitada ao trabalho individual. É necessário que o interesse do indivíduo por seu próprio traba-lho seja parte de seu interesse pela produção global da sociedade. A reconciliação entre a produção material e a produção espiritual implica libertar-se da alienação e de dissociações, o que só é possível se toda a sociedade evoluir da condição de objeto do planejamento para a condição, também, de sujeito do mesmo.

Na luta pela substituição da democracia burguesa pela democracia popular, o diálogo do intelectual com o visionário tende a interromper-se. O diálogo passa, cada vez mais, a tratar do existente e do atual, dentro de uma crescente participação coletiva, entre proletários da produção espiritual e da produção material. Juntos em formas socialmente organizadas, lutam pela eliminação daquilo que diferencia a produção espiritual da material. O trabalho em comum nas organizações próprias ao proletariado passa a consi-derar um desenvolvimento concreto real, o qual constitui a verdadeira mudança daquilo que fora um mito e uma esperança. O futuro vai sendo transformado objetivamente em transição para o socialismo real, em conquistas reais, sob participação real e, com difi-culdades reais.

Durante um certo tempo sobrevive a luta entre posicionamentos de vanguardismo e de realismo por parte dos profissionais específicos da configuração urbana. A previsão de um futuro idealizado continua a existir em muitos céticos à participação real num desenvolvimento da sociedade como um todo. Persiste a oposição ao fato da atividade dos profissionais da configuração dos assentamentos humanos sistematizar-se socialmente, dentro de limites a que não estavam habituados. Mas os meios dos quais a classe trabalhadora passa a dispor superam tal oposição graças ao caráter autocorretivo da luta objetiva pelo socialismo. Arquitetos e urbanistas tornam-se, também eles, trabalhadores que se conscientizam da necessidade de meios cognitivos e abrangentes, tais como o partido, os sindicatos, os planos nacionais de desenvolvimento, as diferentes formas de planejamento e orçamento participativo, a análise sistemática dos fenômenos em seus processos históricos, as experiências mais avançadas de outros países que mais longe já chegaram no caminho da conquista e da consolidação do socialismo, e o exercício da profissão sob formas de interesse público.

As complexas tarefas da edificação social — principalmente as de caráter econômico — tornam, segundo Engels, necessária a utilização do aparelho de Estado. Os partidos e as associações especificas da classe operária necessitam exercer o seu poder sobre o Estado burguês para quebrar a hegemonia das classes dominantes e iniciar as mudanças econômicas capazes de assegurar a passagem para uma democracia popular. Fortalecer o aparelho de Estado, também no campo do planejamento urbano, segundo o interesse da classe obreira, constitui unia medida indispensável de combate à burguesia transnacional.

Engels salientou, também, a importância da produção sob formas cooperativas tendo como objetivo a socialização total da produção. Fez ver a necessidade, no entanto, de que o significado dos interesses de associação e de cooperativismo não fosse maior do que o interesse pelos problemas da sociedade como um todo. A análise da aplicação dessas diferentes modalidades de atuação, em favor dos interesses da classe operária, no que diz respeito à configuração urbana, não encontra, no entanto, maior interesse por parte dos teóricos e dos historiadores da arquitetura e do urbanismo, no mundo capitalista. Como Benévolo, eles transferem a mudança revolucionária proletária para um futuro indefinido e ignoram o desenvolvimento processual que leva à mesma.

Substituindo o processo de transformação da materialidade social por um planejamento limitado ao conteúdo edificado da cidade, não é possível um conhecimento maior sobre a razão fundamental tanto da mudança espacial como da mudança temporal da cidade. Não é a crítica marxista, e sim o planejamento idealista, que, em seu enfoque limitado do que seja espaço e do que seja tempo, e atendo-se ao trabalho da produção espiritual, apresenta um vazio quanto à critica da constituição e da configuração urbana.  


Notas bibliográficas:

1 - Ver de Friedrich Engels, Wohnungsfrage, (A questão da habitação), 1872.
2 - Ver de Leonardo Benévolo, Le origini dell 'urbanística moderna (A origem do urbanismo moderno), Editori Laterza, Bati, 1976, pp. 142-192.
3 - Ver de S. T. Meliujin, Las leyes dialéticas dei desarrollo de la materia, La matéria en su unidad, infinitud y su desarrollo, pp. 275-304.
4 - Ver de Alberto Asor Rosa, Lavoro intellettuale e utopia dell avanguardia nel paese dei socialismo realizzato, Socialismo, cittá e arquitetura URSS 1917-1937. Officina Edizioni, Roma, 1971,pp. 215-250.
5 - Ibidern.
6 - Ver de Friedrich Engels A situação da Classe Operária na Inglaterra, o capitulo: "As grandes cidades." Edições Afrontamento, Porto, 1975.
7 - Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, O Manifesto do Partido Comunista.
8 - Ver de Friedrich Engels e Karl Marx, A Ideologia Alemã, o trecho sobre Feuerbach.  

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