domingo, 9 de dezembro de 2012

O NOVO E A MODA NA FORMAÇÃO DOS ARQUITETOS


Demétrio Ribeiro - arquiteto, ex-professor da FAU-UFRGS, pioneiro do urbanismo no Rio Grande do Sul e ex-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (nacional) durante anos de chumbo.   

A arquitetura pode ser definida corno a organização dos espaços habitados. Além de atender necessidades humanas básicas é uma arte, porque a percepção do espaço organizado gera urna gratificação estética capaz de também comunicar valores relacionados com ideologias sociais.

Antes de continuar, é necessário afastar qualquer mal-entendido, dizendo claramente que a percepção estética funciona como linguagem, mas a sua essência não reside nisso, reside na gratificação primária inerente à plenitude da percepção da forma. A faculdade de perceber formas está na base do desenvolvimento humano. O pleno exercício dessa faculdade provoca uma satisfação especifica, irredutível a qualquer outra cousa. Dessa fonte de prazer, sempre renovada através dos séculos, nasceram todas as artes e ainda hão de nascer outras.

A experiência estética e a produção artística são realidades especificas da cultura humana. Mas se é falso pretender que se reduzam a expressões superestruturais do sistema de produção vigente, é igualmente falso negar a influência da superestrutura ideológica sobre o desenvolvimento da cultura estética c artística.


Arquitetura e classes sociais

A arquitetura, segundo Christopher Caudwell, passou a existir na fase da evolução histórica em que as formas das construções utilitárias adquiriram também a função de comunicar esteticamente valores sociais:

O caçador primitivo expressa o valor de uso realisticamente. Sua habitação é uma caverna seu recipiente é um porongo, sua arma é uma pedra lascada, a roupa é urna pele de animal. Nesse sentido a sua arte aplicada é tão realista como os seus desenhos. O nascimento da sociedade de classe vê o nascimento dos palácios e dos templos onde a função "abrigar" é organizada afetivamente para expressar a majestade e o caráter sagrado da classe dominante.

A estruturação dos espaços da sociedade de classe obedece necessariamente aos paradigmas culturais de organização formal próprios de cada cultura. São clássicas as comparações feitas por Taine entre os jardins de Versalhes e os versos alexandrinos no século de Luís XIV. Existem entre as diferentes expressões formais de uma época. e entre elas e a cosmovisão dominante, afinidades de tal ordem que há que reconhecer na organização formal artística urna representação descritiva - muito mais que simbólica - da estrutura da sociedade e da concepção social do mundo.

Um subproduto inevitável da expressão ideológica na Arquitetura como em outras artes é a sinalização da novidade. O conteúdo profundo dessa necessidade reside na noção de moda.

Na obra de Bukharin, destinada a colocar ao alcance do grande público a interpretação marxista dos fenômenos sociais e culturais, o Manual Popular de Sociologia Marxista, a moda é caracterizada como afirmação da possibilidade de manter-se entre os mais ricos e mais informados. A moda é assim uma expressão cotidiana da diferença dos níveis sociais. Não foi por acaso que a moda perdeu qualquer importância na URSS, entre 1917 e Kruchev.

A moda na arquitetura é, na sua essência, (nem sempre conscientemente assumida) uma expressão da superioridade econômica de uns indivíduos sobre outros.


Um ritmo que se acelera

Por motivos óbvios, o ritmo dos ciclos da moda acelera-se na atualidade, até na arquitetura, apesar da natureza relativamente durável dos produtos dessa arte. A busca febril da expressão da moda constitui hoje um dos motores fundamentais da evolução da arquitetura. Esse processo merece ser examinado e analisado detidamente. É um processo dissimulado aos olhos de muitos profissionais e críticos por uma proteção ideológica que tende a confundir a sua origem com motivos estéticos ou culturais. Isso não significa que as teorias da arquitetura só tenham a função de embelezar o papel da arquitetura como expressão da moda. Significa sim que existe na realidade cultural da arquitetura uma contradição interna, que não deve ser perdida de vista, entre os vínculos da arquitetura com as demais expressões artísticas por um lado e a exigência quelhe é feita de expressar uma participação na vanguarda cultural do momento.


A dialética da inovação

O ''novo" para ser reconhecido deve pertencer ao existente, não pode ser totalmente desconhecido, nem totalmente conhecido. A percepção do "público" dirige em certo modo o processo, e valores nascidos aleatoriamente e imprevisíveis, subordinados até as manipulações mediáticas e comerciais, impõem-se como elementos determinantes na evolução da arquitetura.


A moda e o formalismo

Os elementos formais destinados a sinalizar a novidade não têm necessariamente raízes utilitárias nem estéticas. São meros símbolos do poder de inovação dos produtores da obra. Provêm normalmente do vocabulário formal associado ao tipo de arquitetura em voga, a partir duma visão desse vocabulário como estilo, no velho sentido do termo. O uso repetido de detalhes formais desligados de sua origem tem como resultado a propagação do formalismo na prática da arquitetura em detrimento da verdadeira criatividade.

A maioria dos arquitetos de boa formação teórica tem consciência da pressão que as necessidades da moda podem exercer sobre a produção arquitetônica e distinguem claramente essas pressões das possibilidades de inovações autênticas na arquitetura. O risco de confusão existe ao nível da formação básica e ao nível da produção cotidiana muitas vezes submetida a exigências publicitárias.


As modas contra a renovação

A arquitetura, como todas as artes, depende da renovação para viver. A renovação, quando acontece, é a ruptura com o convencional. É uma ruptura necessária, por assim dizer imposta pelo esgotamento do vocabulário convencional. Assim o esgotamento do vocabulário eclético da arquitetura europeia do final do século XIX cedeu o passo à redescoberta da beleza das formas geométricas simples, à descoberta da beleza dos produtos da indústria (panos de vidro, perfis laminados, dos espaços limpos e despojados, iluminados pelo sol. Descobriu-se então a beleza de formas antes desconhecidas geradas pelas novas técnicas. Essa renovação profunda do olhar humano foi a essência da arquitetura dita moderna, em suas múltiplas manifestações.

Mas a ruptura com o convencional transformou-se na convencionalização da ruptura. As formas novas de objeto de contemplação renovada passaram à condição de símbolos convencionais e mortos da novidade ostentada apenas como atributo social da vanguarda cultural, e não mais como apreensão estética nova do mundo. A esse novo convencional haveriam de suceder uma nova ruptura e a redescoberta de imensos campos de expressão estética, das formas criadas pelas culturas do passado, a beleza da ornamentação, do que só visa ao prazer da percepção sem a chancela do verídico ou do econômico. Mas também a euforia do pós-moderno haveria de ver surgir em seu seio uma convencionalização do anti-convencional, utilizando um vocabulário das formas estereotipadas reabilitadas como simples símbolo de estar na moda.


Exemplos nossos

A arquitetura dos últimos 50 anos no Brasil oferece exemplos de esvaziamentos do novo pela moda. No período da oficialização da arquitetura moderna, ao lado de criações verdadeiramente novas (Niemeyer, por exemplo), inúmeras obras não passaram de agregados de elementos formais convencionais sinalizando apenas o caráter "atualizado" da edificação. Rampas em vez de escadarias, estruturas parabólicas para sustentar coberturas, dispositivos destinados a controlar a incidência de raios solares (os brise-soleils) desempenhavam o papel de símbolos puramente convencionais destinados a dizer que o patrocinador da obra - pessoa, empresa ou repartição pública - tinha a capacidade de estar em dia com a moda.

No período posterior, que se veio a chamar pós-moderno, também se pôde observar o contraste entre as amplas possibilidades de inovar resultante da superação de tabus das teorias da arquitetura e a mesquinhez da visão superficial e estreita de quem só viu nisso uma moda nova. Formas inventadas ou redescobertas pelos arquitetos libertos dos tabus supostamente éticos da primazia da utilidade, da veracidade construtiva, passaram a ser banalizadas, isoladas de seu contexto e transformadas em símbolos convencionais do "estilo" pós-moderno, o "último grito da moda".

Houve exemplos caricaturais como o do professor pós-moder-nista dos anos oitenta, ordenando ao aluno que desenhava a fachada dum prédio urbano: "Coloca um capitel clássico nesta fachada! É o que se faz hoje em dia!"


Competição e publicidade

A majestade e o caráter sagrado das classes dominantes de que falava Caudwell são hoje a glória e a onipotência dos grandes empreendimentos capitalistas e dos Estados a seu serviço. A mistura da expressão estética propriamente dita com a expressão simbólica convencional destinada a provar que a obra é in permeia hoje todas as produções da arquitetura, até as praças públicas e os conjuntos habitacionais populares.

A ética capitalista subordina tudo ao lucro. Na arquitetura os valores estéticos tendem a ficar subordinados ao êxito publicitário.

Como já foi ressaltado, a fruição da beleza em si mesma não depende de valores éticos ou políticos, mas os percursos culturais que conduzem a novas descobertas estéticas ou artísticas não são independentes do contexto histórico em seu conjunto. Desconhecer o contexto social e econômico da arquitetura é subordiná-la cegamente a esse contexto.

Na vigência do atual sistema e da ideologia que orienta a comunicação social e a formação da juventude não há defesa possível da liberdade de criação na Arquitetura sem consciência do peso ameaçador das exigências da publicidade e da moda, presente desde a escola.

Daí a oportunidade que podem ter agora reflexões e indagações sobre esse tema.

N o t a s :
1. Illusion & Reality [International Publishers. New York 1942-p. 259]. A curta e bela vida de Christopher Caudwell merece ser lembrada aqui. -Nascido na Inglaterra em 1907, escreveu para ganhar a vida desde os dezesseis anos de idade, como repórter, romancista poeta e ensaísta. Um ensaio seu sobre a Física mereceu o seguinte comentário do cientista britânico J. B. S. Haldane: "Acredito que esse livro será um repositório de idéias para filósofos das futuras gerações."

Aderindo ao marxismo, escreveu o ensaio aqui citado, reconhecida contribuição à crítica marxista da arte e da literatura. Filiou-se ao Partido Comunista e ingressou  na Brigada Internacional do Exercito Republicano Espanhol, então em luta contra o franquismo. Morreu em combate em 1937, antes de completar 30 anos.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário