quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

DE MARX AO MARXISMO DE HOJE


Frank Svensson – 19.10.2003   
                                          
A revolução russa (1917), bem como, a revolução alemã, a chamada república de Weimar (1918/19), delimitam um período do desenvolvimento do marxismo. Pela primeira vez dois partidos socialistas adotaram-no declaradamente como ideologia ao deter o poder do estado. Evidenciaram-no como uma das principais correntes de pensamento do século XX.  À diferença da época anterior, o marxismo ganhou sua Meca. Passou a gozar de referencias geopolíticas concretas das quais captar orientação, não se limitando mais a pronuncia-mentos individuais de personalidades como Engels, Kautsky, Plechanov e outros.

Desde 1920 até os anos 70 o marxismo-leninismo oriundo da experiência soviética e da   dos paises do leste europeu marcou o desenvolvimento do marxismo. Os marxistas da social-democracia praticamente desapareceram ou foram ligados a distintas distorções do marxismo. Após a segunda Grande Guerra diminuiu ainda mais a liderança teórica de pensadores individuais.  No ocidente o desenvolvimento do marxismo como corpo teórico voltou-se para o mundo acadêmico. Segundo Susan James esses novos teóricos marxistas, à diferença de seus antecessores não viram a obra de Marx como fonte de previsão do futuro ou como elaboração de um manual de ação revolucionária, mas como origem de um rico e instigante método  explicativo da realidade.1

Com a divisão do socialismo internacional entre comunistas e socialistas, com as contra-dições entre marxistas revolucionários e partidos institucionalizados, e entre distintos enfoques de marxismo teórico, a original dialética de Marx (entre conhecimento histórico, revolução, teoria econômica e organização do movimento obreiro) decompoz-se em suas partes.  Essa desintegração daquilo que um dia constituiu a obra total de Karl Marx é talvez a principal característica e problema do marxismo dos nossos dias.  Essa divisão em áreas distintas, com diferentes projetos, diferentes tendências teóricas e distintas práticas é hoje tão flagrante que é de se perguntar o que restou do projeto original de Marx. Sua totalidade dialética constituía um sistema que era garantido por relações internas de componentes condicionantes uns dos outros.

Nem a teoria de Marx (filosofia e economia) ou a prática (estratégia revolucionária e organização dos trabalhadores como classe) baseou-se em algo fora dos homens, entendidos em suas atividades, dentro de condições históricas particulares. A grande diferença entre a síntese de Marx  e as dos que vieram depois decorre dele incluir o concreto trabalho humano em sua dialética histórica.

O sistema filosófico de Hegel, composto da lógica dialética, da filosofia da natureza e da filosofia do espírito2, formava ele também uma totalidade na qual as distintas partes eram depen-dentes umas das outras. Essa maneira de relacionar distintas áreas da realidade entre si como partes de uma totalidade necessária era característica tanto para Hegel como para Marx, bem como para o marxismo inicial. É justamente nisso que se percebe a continuidade entre Hegel, Marx e os primei-ros marxistas. O que os distinguia eram as partes constituintes das respectivas totalidades e como por sua vez produziam distintos conceitos sobre os elementos mantidos no desenvolvimento do marxismo daí decorrente.

A principal mudança de Hegel a Marx foram suas restrições quanto ao conceito hegeliano do absoluto, ou seja, o entendimento de uma idéia ou de um espírito existente desde o surgimento do universo e independente da historia humana. Para Hegel a natureza objetiva era expressão dessa idéia já num segundo estágio, o de quando ainda não tinha consciência de si mesma. Condição básica para a estruturação de todo o sistema de Hegel. A crítica de Marx à noção hegeliana do absoluto baseava-se na crítica naturalista que Feuerbach fez de Hegel, e em Feuerbach concebendo   a sua totalidade no realmente terreno e no homem dotado de sentidos.

À diferença de Feuerbach, Marx via esse homem como ser objetivo e ativo, atuando em circunstâncias historicamente determinadas. Desenvolveu uma filosofia da história de conteúdo totalmente distinto da de Hegel.  Segundo Marx a essência da história humana reside no desenvolvimento de suas forças produtivas dentro de suas condições sociais e não como queria Hegel afirmando o desenvolvimento espiritual dos homens como a questão central. A economia constituía em Marx a base das relações sociais, ou seja, do comportamento social dos homens. O restante da totalidade de Marx, a elaboração de uma estratégia da revolução socialista, compunha-se de duas partes: 1) a teoria da revolução socialista e 2) a teoria e o trabalho de organização da classe obreira. Aqui também havia uma interdependência das partes, ou seja, não é possível entender a teoria da revolução de Marx desligada da teoria da organização da classe obreira e vice-versa. Condições históricas fizeram, no entanto, com que essas duas partes se separassem ao correr do tempo.

O conceito de totalidade de Marx baseia-se numa práxis filosófica de caráter político tendo a práxis revolucionária como sua principal categoria. Sem a mesma as demais partes da totalidade de Marx podem facilmente ser vistas como isoladas umas das outras. Vê-se então, por um lado, a revolução socialista em resposta a uma necessidade histórica e econômica objetiva dependente de uma práxis revolucionária, e, por outro lado, a organização da classe trabalhadora como um movimento em si independente de práxis revolucionária. Nesse caso a totalidade de Marx pode fácilmente ser reduzida a uma teoria da história, bem como, a uma teoria econômica, ambas objetivas mas independentes do processo histórico do qual participam, tanto como teoria sobre a história como como teoria sobre a economia capitalista para a continuidade da história e como teoria da revolução socialista.

Mesmo se a idéia de um socialismo científico, baseado em leis dialéticas, foi importante para a vitória do marxismo como ideologia de movimento, há que considerar que o seu desenvolvimento teve como determinantes as condições sociais e políticas reais da Alemanha e da Rússia. Na Alemanha existia já em 1880-90 um movimento obreiro politicamente orientado para o socialismo, mas faltava um movimento revolucionário que com todos os meios lutasse pela queda do regime reinante. Na Rússia dava-se o contrário. Lá havia a mais de meio século uma tradição de luta clandestina revolucionária, mas sem um movimento operário autônomo. Foi pelo marxismo que o movimento operário alemão teve sua identidade caracterizada como revolucionária, enquanto que o movimento revolucionário russo teve suas raízes no proletariado teoricamente identificadas pelo marxismo. Com a ajuda do marxismo podia-se ignorar o fato que o movimento operário alemão não era, e nunca havia sido, um movimento revolucionário da mesma forma que na Rússia com a ajuda do marxismo foi possível legitimar o surgimento de um movimento operário independente e muitas vezes em contradição com a intelectualidade revolucionária daquele país.

Quando nos anos 1890 a tendência reformista do movimento alemão, bem como, a tendên-cia economicista do movimento obreiro russo começou a despontar, a ideologia do marxismo teórico viu-se desafiada. Na Alemanha perguntava-se se o movimento operário era realmente revo-lucionário enquanto na Rússia se questionava a posição do movimento operário em face da revolução burguesa.

Outra tendência de se notar foi a de uma maior compreensão pela dialética da natureza desenvolvida por Engels, do que do conceito de atividade humana apresentado por Marx. O desenvolvimento do capitalismo e sua passagem para uma sociedade socialista foram em muito entendidos como decorrentes de um processo histórico sujeito a leis similares às da natureza. Mesmo se a idéia de um socialismo científico (à guisa das leis da natureza) baseado em leis dialéticas foi importante como ideologia do movimento comunista, o desenvolvimento e conteúdo do marxismo foram determinados muito mais pelas relações políticas e sociais das condições con-cretas e factuais. Na Alemanha, como já vimos, havia um movimento operário organizado e voltado para o socialismo, enquanto que a Rússia detinha uma tradição de meio século de trabalho de oposição clandestina ao regime tzarista. Essa dualidade histórica do desenvolvimento do marxismo tornou a dialética -- como síntese entre filosofia da história, teoria econômica, movimento revolu-cionário e organização da classe operária – problemática.

São conhecidos os esforços de personalidades como Bernstein, Lênin e Rosa de Luxem-burgo por resolver o problema. Condições idênticas às de Marx e as de décadas após não voltaram a se apresentar. Marx foi quem inegavelmente apontou certos processos funda-mentais da economia capitalista melhor do que qualquer um de seus concorrentes, como por exemplo: a vitalidade da economia capitalista, seu poder de concentração e centra-lização e o inevitável das crises econômicas. Conseguiu prever que a classe trabalhadora tornar-se-ia uma classe específica da sociedade burguesa e que no desenvolvimento do capitalismo dar-se-ia um movimento social e político entre os trabalhadores. Nisso residiu e reside ainda a força do corpo teórico e do exemplo de vida de Marx.

Os seus esforços por uma síntese das condições burguesa e proletária, do objetivo e do subjetivo, de materialismo e de idealismo, de ciência e de crítica, de reforma e de revolução, resul-taram após a sua morte numa ciência objetiva materialista revolucionária com sua expressão maior no marxismo-leninismo. Foi nele que se quis manter a ação recíproca dos componentes da totalidade reconhecida por Marx. Em muito por formas afins às da dialética da natureza. O grande desafio de nossos dias passa pelo reconhecimento ativo de o marxismo fundamentalmente constituir um corpo teórico identificado por seu caráter ativo e político. Pelo esforço em favor da síntese contemporânea de seus componentes essenciais. Para tanto não bastam as ações e reflexões individuais por mais interessantes e instigantes que possam ser. Implica a ação e reflexão resultante de formas socialmente organizadas entre as quais os partidos e agremiações que se querem de base marxista são chamados a assumir um papel de vanguarda.3
             
             
1 - Susan James no capitulo sobre “Louis Althusser” em Skinner, Quentin: Return of Grand Theory in the Human Sciences. Cambridge 1985.

2 - A Filosofia do Espírito de Hegel é constituída de três partes: Espírito subjetivo, que trata do que se poderia denominar questões psicológicas, bem como, das aptidões do ser humano como ser pensante; Espírito objetivo que trata o espírito corporificado na sociedade humana, ou seja, sua Filosofia da História e Filosofia Política; e finalmente Espírito absoluto que trata do conhecimento absoluto de si mesmo expresso na arte, na religião e na filosofia.

3 – De Per Manson: Fran Marx till Marxism – Em studie av Karl Marx och marxismens framväxt (De Marx ao marxismo – Um estudo de Carlos Marx e o desenvolvimento do marxismo). Röda Bokförlaget, Gotemburgo, 1987

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