segunda-feira, 5 de agosto de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte IV.


Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.

Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson


INTERPRETAÇÃO III 

Para a metacrítica da razão da identidade lógica

Com a descentração linguístico-filosófica do sujeito e a critica das objetivações dos significados linguísticos destroem-se ao mesmo tempo as condições para a interpretação da unidade do sujeito e o conceito identificador corno os dois polos de uma consciência inicial instrumentalmente reificadora. Resta mostrar quais as consequências dessa destruição das condições filosófico-conscientes para urna critica do próprio pensamento identificador. Para Adorno (como para Nietzsche) o próton peudos* discursivos da razão reside na generalidade dos conceitos, ou seja; em que identificam o denominado outramente.

* Proton pseudos – expressão em grego: a primeira mentira. Uma falsa condição da qual decorrem outros equívocos. A frase de Schopenhauer afirmando que este mundo é o pior deles é considerada como p. p. em sua filosofia.

A impressão de identidade, diz em Negative Dialektik, é implícita.., ao próprio pensamento segundo sua forma pura.65   E a forma pura do pensamento tem sua base na generalidade do conceito, o que Adorno também caracterizou como acrescida ou violada.66  A rigidez do conceito geral, como Adorno a descreve, é, no entanto, em si urna ficção racionalista. Wittgenstein observa que a gramática da nossa língua geralmente nos mostra que as palavras podem ser usadas de muitas formas, sem que com isso deparemos algum significado fundamental, próprio ou primário. Wittgenstein emprega o termo familiar e a comparação com urna corda composta por inúmeros fios para ilustrar como as diferentes formas de se usar uma palavra se intrincam umas às outras. Essa multiplicidade de formas de uso refletem a abertura dos significados linguísticos a que me referi. Poder-se-ia até afirmar que uma força mimética atua na vida do significado linguístico, por meio do qual o não-idêntico na realidade -- parafraseando Adorno -- é refletido como algo não-idêntico nos significados linguísticos. Com isso, o desprezo para convive, para expressá-lo paradoxalmente, com a consideração do diferente de.

Adorno atribuía à língua força mimética, caso contrário não poderia cobrar da filosofia um esforço que permitisse por meio do conceito ir além do mesmo.67  De certa forma, a língua sempre exerceu esse aparentemente paradoxal trabalho, ou melhor, aqueles que a falam o exerceram. Mas se assim é, a cobrança de um uso reflexivo da língua, não reificado e sem consideração, fica menos paradoxal e desesperado do que em Adorno. Será algo em estilo com o que cuidadosamente se poderia chamar de capacidade de discernimento, imaginação e razão, sem com isso recusar uma utopia conciliatória.
Isso é somente um primeiro esboço de uma metacrítica que precisamos continuar a construir. Não é possível ignorar o significado dos problemas que fundamentam a crítica de Adorno ao pensamento identificador; o necessário é dominá-lo. A maneira correta de desenvolver uma metacrítica da crítica conceitual de Adorno seria reformular os problemas que ativam a sua filosofia. A seguir quero pelo menos dar algumas indicações concernentes a essa problemática.

O que é preciso compreender -- ou melhor, decifrar em seu sentido latente -- é o discurso de Adorno sobre o não-idêntico, que por meio da generalidade do conceito é reduzido a um só exemplar, que passa a ter a sua integridade acrescida ou violada. Adorno pensa também a violação do não-idêntico como urna inverdade da compreensão conceitual. Nisso inclui o paradoxo de expressões linguísticas que nós comumente chamamos de verdadeiras e as classifica de não-verdadeiras. Não que com isso o seu enfático conceito de verdade, o qual ele (à diferença de Nietzsche) opõe à verdade da narrativa, não possa ser nitidamente relacionado com aquilo que nós chamamos de verdade. Não se trata tampouco de afirmar o quão injusto o conceito geral é para com o particular -- mais do que as circunstâncias especificas, não é devidamente contemplado pelo uso dos signos devido à generalidade dos con-ceitos. Nisso se pode ver uma falsificação da realidade c -- como pensa Adorno -- uma injustiça para com o particular somente quando de fora procuramos compreender a dialética entre o geral e o particular, tal como se dá no âmbito do sentido linguístico, entendendo, por exemplo, a língua como instrumento -- como se as palavras fossem ferramentas com as quais se pudesse agarrar a realidade, como expresso em A dialética do Iluminismo.68  Não relacionando as metáforas acréscimo e violação à língua no seu todo, elas revelam um preconceito intencional quanto à esta; trata-se mais precisamente, como é fácil de se constatar, de uma variante naturalista da filosofia do sujeito formador de sentido.

O duvidoso em Adorno não é o paradoxal e o aporístico de seus principais pensamentos, mas um resto de ingenuidade quanto à filosofia linguística. Adorno reconheceu, é bem verdade, e acentuou várias vezes que a filosofia não pode posicionar-se fora da língua para formular uma crítica do pensamento conceptual, mas a ideia de uma crítica do conceito identificador pressupõe um tal posicio-namento fora da língua. A filosofia de Adorno é um ataque à língua como limite da filosofia do sujeito; sem saber revela tal segredo. O paradigma da filosofia do sujeito para o conhecimento da realidade foi buscado -- desde Kant até o jovem Wittgenstein -- na física matemática. A critica do pensamento identificador censura consequentemente o conceito geral como tal, e, assim, censura a razão discursiva pela relação interna entre teoria e técnica, entre conhecimento e ação, ideias implantadas na gramática lógica das teorias físicas. Dessa forma, pode parecer que o uso normal da língua comete a mesma violência sobre a realidade histórico-social como na natureza de urna rede de relações nomológicas, e que violenta justamente essa natureza. Essa constelação fundamental do pensamento explica a perspectiva filosófica reconciliadora e explica ao mesmo tempo as insolúveis aporias de sua filosofia: Adorno só pode pensar a outra consciência instrumental longe da razão discursiva e só pensar a ordem não imposta da sociedade numa natureza redimida em sua totalidade.

A consciência do caráter natural do sujeito, que A dialética do Iluminismo exige,69 não é suficiente para desmitologizar a idealista filosofia do sujeito. Primeiro a consciência de que o caráter linguístico do sujeito pode quebrar o encantamento da filosofia do sujeito e fazer aparecer a práxis comunicativa que fundamenta a base da vida do significado linguístico, desde que o representativo e o crítico são somente imagens do sujeito conceptualmente "identificador" e instrumentalmente ativo.7° Com isso arrancamos a base da crítica do conceito identificador. Se queremos falar seriamente de uma relação entre os momentos violadores ou violentos, não-verdadeiros ou genéricos em matéria de crítica linguística, só pode ser questão de problemas dentro da língua. Dessa forma, os momentos de acréscimo e de violação não a sobrecarregariam sem um uso específico de conceitos genéricos, e o não-verdadeiro seria tomado por uma não-verdade da língua (e não como uma inverdade criada pela língua). A critica de Adorno pode ser reformulada (e diferenciada) nesse sentido se entendermos a violência no pensamento identificador como bloqueios especificos, patologias ou perversões na comunicação linguística ou na práxis da sociedade. Então e só então fica claro em que sentido a generalidade dos significados linguísticos pode violar a integridade do não-idêntico ou ocultar o específico de um fenômeno. Somente quando trazemos de volta o não-idêntico existente dentro da língua para um horizonte de práxis linguística intersubjetiva fica claro quando e em que sentido a desproporção entre geral e específico pode implicar uma violação ou amputação do não-idêntico, e quais as perturbações, bloqueios e limitações específicas da comunicação que são revelados em tais desproporções. Na medida em que conseguimos nominar a injustiça que o uso reificador das generalizações e dos clichês linguísticos acrescenta ao específico, mostramos implicitamente os recursos inerentes da língua que podem ser usados para fazer justiça ao mesmo. Para explicitar isso quero valer-me de três exemplos (ou tipos de exemplos), nos quais a questão da desproporção entre o geral e o particular surge de diferentes formas.


1. A experiência de carência lingüística em relação à experiência própria.

O limite da capacidade de comunicação da língua que aqui enfrentamos certamente está ligado à generalidade e à intersubjetividade dos significados linguísticos, os quais, por outro lado, são uma condição a possibilidade de comunicação linguística (e auto compreensão). Aqui poderíamos falar de uma carência linguística da própria língua. Adorno refere-se a algo semelhante quando fala da desproporção entre opinião e conceito. O mesmo acontece ao decisivo significado que Adorno atribui a todas as formas de uso literário da língua e à objetivação estética como corretivo do uso discursivo da língua. O uso poético, literário, retórico e configurativo da língua constitui urna ampliação produtiva da capacidade de uso da língua, por meio da qual o indizível pode ser dito e aquilo encapsulado na mudez da experiência individual torna-se disponível e comunicável. Trata-se realmente de uma prestação paradoxal da língua. Por meio da introdução da expressão lingüística no espaço da comunicação geral, essa se torna algo mais do que meramente urna expressão individual: põe a nu um pedaço de realidade comum. Assim como o exemplo de Wittgenstein quanto a impressões, o "não-idêntico" na experiência torna-se comunicável pela expressão intersubjetiva, ou seja, pelo fato de seu caráter privado ter sido expresso.

A investida aos limites da língua é, nas expressões da arte, bem como nas expressões menos significativas de nossa capacidade linguística produtiva, a resposta à sempre renovada carência linguística da língua. Mas a língua, ou seja, a capacidade linguística, compreende ambas: a possibilidade de o significado esvaziar-se e emudecer, bem como de renovar-se e ampliar-se. Somente se, conforme Adorno, pensamos a superação da carência linguística em termos messiânicos, ou seja, como a conquista de uma língua verdadeira na qual o próprio conteúdo revelar-se-ia, nos recursos imanentes da língua, que vez por outra tornam fácil ou difícil superar a carência linguística, revelar-se-iam desesperadamente inacessíveis. Não se trata de contestar que nossa língua sub specie aeternitatis* é desesperadamente inatingível, mas de verificar se pode fornecer um correto conceito sobre como nossa língua realmente funciona e quais as possibilidades que permite.

* Expressão em Latim: sob a forma eterna, ou seja, ver as coisas como qualificadas pela essência divina, originadas eternamente de Deus.

A carência linguística em relação à experiência própria é ao mesmo tempo uma carência linguística para com a realidade -- nesse sentido a capacidade linguística produtiva a que me referi tem um significado para a descrição da realidade, para o discurso moral e para a argumentação filosófica. Adorno mostra, como ninguém o tinha feito antes, o significado da expressão e da representação para a filosofia, o significado do momento estético que não é ocasional para a filosofia.72 Adorno somente articula os problemas na polaridade entre sujeito e objeto, não conseguindo esclarecer corno o problema da apresentação e o problema da verdade se interlaçarn. Tais diferenças em problemas serão esclarecidos nos próximos dois exemplos.


2. Sobre o uso "enriquecedor" e o uso "limitador" da língua, bem como o entrelaçamento da inverdade com a injustiça podem ser vistos no conto Wittgensteins Neffe, de Thomas Bernhard, que contém uma sugestiva narrativa:

Os chamados psiquiatras caracterizaram a doença de meu amigo corno isso, como aquilo, sem a coragem de reconhecer que não há um nome determinado para essa doença ou para qualquer outra, o que há são sempre denominações errôneas, enganadoras, desde que eles e os demais médicos, por meio de denominações hospitalares sempre errôneas, tornam a vida fácil e criminosamente cômoda para si mesmos. Continuamente pronunciam as palavras maníaco e depressivo, e em todos os casos sem razão. Continua-mente se refugiam (como todos os outros médicos) em novos termos científicos (protegendo-se a si, mas não aos pacientes).73

Escolhi essa curta citação de Bernhard por ser tão plurivalente que permite associações de direcionamentos os mais diversos. Poder-se-ia, de início, dizer que Bernhard descreve uma práxis psiquiátrica que do ponto de vista cognitivo é acrítica e do ponto de vista terapêutico é desumana. Termos psiquiátricos são empregados para objetivar e classificar as pessoas empurrando-as para as rotinas de tratamento. Continuamente refugiam-se... em novos termos científicos, fazendo-nos pensar em falta de conhecimento específico encoberta com o emprego de uma terminologia de diagnóstico superficial e ligeira, usada para defender a autoridade do médico ou só por comodidade (criminosa), ou seja, que os médicos por causa das eficientes rotinas não se dão ao trabalho dos casos específicos. Os médicos no nosso exemplo tornaram a vida fácil e criminosamente cômoda para si mesmos, isto é, sua incompetência e comodidade têm consequências criminosas. Ao invés de proteger os pacientes (ajudá-los, engajar-se em seus problemas), protegem a si mesmos. As denominações hospitalares são falsas pelo motivo de serem usadas impropriamente e para proteger a si mesmos. Sua falsidade é parte de uma falsa práxis, que é falsa por divergir da obrigação do médico. Numa tal práxis todas as denominações são falsas pelo fato de terem sido empregadas falsamente.

Psiquiatria e medicina são naturalmente exemplos arbitrários (mesmo se não para Bernhard) por nós escolhidos; poderíamos muito bem haver falado de (exemplos buscados de) sistema judiciário, burocracia ou bobagens corriqueiras. Mas fiquemos com a psiquiatria. Poder-se-ia pensar que um outro uso de termos profissionais como maníaco e depressivo (ou mesmo de termos mais apropriados) não marcaria o fim das tentativas de classificação, mas sim o início de um tratamento terapêutico. No primeiro caso, empregam-se os termos profissionais psiquiátricos justamente como classificações de espécimes de frutas e de legumes que devem ser sortidas para estocagem, no segundo caso, constituem as primeiras tentativas a respeito do caráter e da etiologia de uni enfermo fazendo com que a imaginação do terapeuta seja dirigida num outro sentido. No último caso, a classificação serviria a uma primeira orientação de um processo terapêutico, no qual se trata da concreta conquista de sua história. Não é possível ver nas próprias palavras (ou frases) se são usadas de uma ou de outra forma. Só no segundo caso há condições de corretamente formular perguntas sobre a verdade ou a falsidade de previsões e suposições.

Poderíamos passar de classificações de pessoas e doenças para a classificação de fenômenos socioculturais, por exemplo, obras de arte. Há uma forma de classificar empregando conceitos de forma e estilo que têm muito em comum com o uso de expressões profissionais e chavões quanto à vida social. O conceito da forma das sonatas pode por exemplo ser usado abrigando tudo desde Haydn até Beethoven e Schubert num mesmo escaninho, mas pode também -- junto a outros conceitos de teoria da música -- ser diferenciado historicamente permitindo uma frutífera análise individualizada (algo demonstrado de forma inigualável por Adorno). Mas ao invés de arrastar associações deste campo para o das ciências sociais e da cultura, retornarei à psiquiatria. Bernhard emprega a palavra falso de uma forma que lembra a caracterização feita por Adorno do pensamento identificador. O não idêntico é aqui as pessoas individualmente e suas histórias como doentes, violadas a ponto de impedir um tratamento comunicativo, perdendo assim a possibilidade de reconquistarem a si mesmas. As pessoas são coisificadas, transformadas em meros exemplares e postas de lado. Assim se comportam os médicos na narrativa de Bernhard, como todos os demais médicos.

Aqui não nos interessamos pelas raivosas e injustas generalizações de Bernhard. Podem ser lidas, no entanto, como observações de que práticos da medicina coisificam os pacientes comportando-se como instituições (também fora da psiquiatria). Como institucionalizados, esses práticos da medicina adquirem um poder impenetrável, que excede qualquer alcance moral. Todos os médicos -- não se trata mais de pessoas que agem incorretamente como indivíduos, mas de membros de uma instituição que cumprem seus papéis preestabelecidos. (Marx teria chamado de máscaras de caráter.)
Poder-se-ia falar ainda da institucionalização de falsos usos da língua. No modernismo, tais institucionalizações são ligadas a uma sistemática produção de conhecimento, a discursos institucionalizados das ciências empíricas. Para captar todas as conotações da palavra falso em Bernhard necessitamos também falar das ciências que fornecem o quadro cognitivo dos profissionais coisificadores. Isso nos leva de volta a Adorno. Para ele os profissionais coisificadores estão indissociavelmente ligados à reificação das pessoas pelas ciências. Uma ciência humana é reificadora se toma a física como ideal metodológico, pois então seu procedimento inclui as mesmas relações entre saber e técnica da gramática lógica das teorias da física. Consideremos -- hipoteticamente -- que uma ciência psiquiátrica entendesse assim. Então a recusa de comunicação da qual Bernhard culpa os médicos já estaria compreendida na língua e na técnica da psiquiatria. Nesse caso a pala-vra "falso" não poderia ser entendida em Bernhard como indevida em seu emprego como expressão específica e significativa da psiquiatria, mas como caracterização de uma linguagem científica: seria falso em razão de suas regras de uso normal já implicarem uma coisificação dos pacientes.

A partir do texto de Bernhard podemos, portanto, pensar diferentes formas de uso indevido da língua tais que a inverdade das afirmações está ligada à injustiça dos atos. O pensamento identificador é ligado aqui à recusa de comunicação e a uma vio-lação da integridade pessoal. Não poderíamos, naturalmente, pensar uma tal relação entre inverdade e injustiça se não entendêssemos o objeto da pesquisa corno interlocutor potencial de uma comunicação linguística.74    Fatos sociais e psicológicos só são em última instância acessíveis a partir de atitudes dos participantes da comunicação. Nisso reside não só a base dos limites de uma possível objetivação de fenômenos sociais e psíquicos, mas também um uso indevido de conceitos genéricos (ou um uso de indevidos conceitos genéricos): em nível de declarações pode manifestar-se corno inverdade e em nível dos atos e das atitudes como violação do "não-idêntico". Não se trata aqui de desenvolver uma alternativa da teoria científica empírica. Quero apenas afirmar: somente se, como Adorno, encararmos o fisicalismo como uma objetivação anticomunicativa da realidade, estabelecida já nos pressupostos de uma produção linguística da realidade, podemos pensar que uma crítica de empregos reificadores -- em estilo como o acima mencionado -- nos obriga a ir além do conceito em seu nominalismo. Na realidade, obriga-nos somente a ultrapassar um entendimento científico e linguístico dogmaticamente limitado.


3. Opressão do sistema e raiva do não-idêntico;75  bloqueios da reflexão.

A dialética do Iluminismo reza que a lei da contradição é o sistema numa casca de avelã. A aparência de identidade, que segundo Adorno é implícita ao pensamento conceptual, é ao mesmo tempo a imagem de uma ordem das coisas gerada pela opressão sistêmica do pensamento conceptual. Adorno entende a opressão psicológica do sistema corno correlação do princípio do eu, obrigação de formar um eu unitário. À luz da opressão sistêmica revela-se o não-idêntico, o incomensurável, o inordenável, como ameaça: fúria e medo são formas típicas de reagir à experiência do não-idêntico. O não-idêntico deve ser evitado, afastado (corno no processo de socialização), ser visto como tabu (como nas sociedades primitivas),76 renegado (como em todas as formas de dogmatismo) ou psiquicamente eliminado.

Para Max Weber, o processo de racionalização no mundo moderno é, em grande parte, um processo de sistematização, tanto no nível do conhecimento corno no da ação. Essa ideia de Weber sobre urna relação prática e teórica entre racionalidade e sistema foi adotada por Adorno, mas de certa forma com indicações inversas: Adorno acentua a loucura na opressão sistêmica. Não só sistemas paranoicos, ideológicas visões de mundo e burocráticos modelos de ordem são vistos por Adorno como loucura; ele encontra momentos de loucura e paranoia também nos sistemas filosóficos. Em Adorno, a critica do pensamento identificador torna-se uma critica da razão totalizante, e a sua própria filosofia torna-se uma tentativa de desembaraçar-se da opressão sistêmica do pensamento conceptual.

Agora, novamente, é cabível, dentro do quadro de modelo unidimensional da relação sujeito-objeto, responsabilizar o caráter discursivo do pensamento conceptual pela rigidez do sistema. Adorno pensa a palavra discursivo monologicamente: ele pensa infraestrutura e argumentação segundo o modelo de um contexto de frases dedutivo. Por isso é forçado a reinterpretar as idealizações que estão na base da lógica formal -- ou seja, a aceitação idealizada de significados fixos -- como uma característica dos próprios conceitos. Para ele a rigidez do sistema dedutivo reside no próprio conceito. As explicações psicológicas da opressão sistêmica dadas por Adorno são, no entanto, mais convincentes do que aquelas lógico-conceptuais. Não menos, a descentração lingüístico-filosófica do sujeito exige o reconhecimento de que o caráter discursivo do pensamento conceptual não pode ser plenamente caracterizado em termos de uma relação dedutiva entre frases. À argumentação é inerente não só oscilar entre conceito e coisa, mas também oscilar entre um conceito e outro quanto à coisa. A argumentação, que segundo seu conceito tem vários sujeitos participantes (mesmo quando esteja interiorizado corno reflexão, não carece somente de relações dedutivas linearmente estabelecidas entre frases, mas também de significados fixos. À medida a que distintos enfoques, atitudes e empregos da língua colidem entre si e são postos em questão na argumentação, esta ganha uma dimensão "formadora de significado", e a vida do significado linguístico assume uma forma reflexiva dentro da mesma. Eu gostaria de dizer: mesmo se uma dimensão de identidade lógica é essencial para a argumentação (assim como para a fala em geral), não se compreende o especificamente racional na argumentação se a reduzirmos a essa dimensão teórico-cientifica. É justamente isso que se tem mostrado na mais recente discussão teórico-cientifica. Nem mesmo a racionalidade nos avanços científicos da física pode ser entendida por meio de um modelo formal de racionalidade de argumentação. Nesse sentido poder-se-ia acusar Adorno de haver tornado a si um conceito racionalista da razão discursiva, e somente por isso a sua crítica da razão totalizante torna-se uma crítica da razão discursiva.

A fúria contra o não-idêntico que se expressa na opressão pelo sistema não é expressão de racionalidade discursiva mas, pelo contrário insinua uma falta de racionalidade discursiva. Tal falta de racionalidade discursiva se expressa como incapacidade e bloqueio de argumentação. Falei de bloqueio da reflexão por reunir a incapacidade de experiência (de engajar-se na coisa ou na realidade) e a incapacidade de autocorreção. Esse rígido sistema é correspondido por um rígido eu — nisso Adorno estava certo. Mas não é preciso sair da razão discursiva para, corno Adorno tentou, imaginar uma coerência fora da opressão do sistema,77 uma forma de individuação além da rígida opressão da identidade. A perspectiva normativa de uma unidade livre de opressão é praticamente inerente às bases linguísticas da razão discursiva.

O conceito de Adorno sobre a razão discursiva assemelha-se àquela imagem da razão delineada pelo limitado cientificismo iluminista. Apresenta-se em Adorno com indicações invertidas. Enquanto o iluminismo cientificista extrai de dentro da matemática e do paradigma da matemática a sua imagem afirmativa da razão, a ciência natural matemática e a própria matemática tornam-se paradigmas de uma racionalidade que reifica sob forma do discursivo. Descentrando-se linguisticamente o sujeito, tese e antítese também ficam erradas. Isso implica ao mesmo tempo uma desmitologização (ou desdiabolização) da lógica formal, da matemática e da física.   A sua racionalidade não corresponde à imagem que o iluminismo cientificista havia configurado a respeito das mesmas. Matemática e física também são ligadas a sistemas de signos linguísticos, cujo significado só pode ser formado. estabilizado e modificado por meio de uma práxis comunicativa. Eles também pedem profissionais de perfis imprecisos, o que se evidencia em crises de identidade. A física é por certo o protótipo da maneira de pensar objetivante. Pelo fato de construir e pesquisar a realidade como uma rede de contextos nomológicos, abre ao mesmo tempo um campo para possíveis intervenções instrumentais e controle técnico. Mas como objetivante, a física não pode ver seus fundamentos como não-objetivantes, sua base numa práxis histórica. Da mesma forma que a lógica formal se abstrai da vida do sentido linguístico, a física se abstrai da dimensão comunicativa da práxis humana. É, por assim dizer, conhecimento sobre a realidade sub specie aeternitatis um sujeito singular. Daí o papel central do sujeito singular na filosofia dos novos tempos. Mas o cientificismo não foi estabelecido na física, mas sim na filosofia do sujeito, e a crítica do pensamento identificador é de certa forma cientificismo com sinais trocados. Reprova o conceito por aquilo que uma metafísica que despreza a língua lhe ocasionou. O fato de o que realmente interessa não poder ser dito nem segundo Adorno nem segundo o jovem Wittgenstein (mesmo se a filosofia depois de Adorno contra Wittgenstein insiste em dizer o que não é possível dizer78  liga-se ao fato do sujeito não poder existir sob as premissas da filosofia do sujeito como o limite do mundo fisicamente objetivável.79   Dessa forma a tentativa de ultrapassar os limites da consciência instrumental torna-se urna tentativa da filosofia aporética (de aporia) de por meio do conceito ir além do conceito.80  Adorno só pode pensar que a parte da razão verdadeira que ultrapassa o instrumental -- ele a classifica de mimese -- se encontra fora da esfera do pensamento conceptual. A descentração linguístico-filosófica do sujeito não implica entretanto a demonstração de uma dimensão mimético-comunicativa no interior da razão discursiva. A razão discursiva sempre foi mais do que lógico-formal, razão instrumental e opressão do sistema. Por isso as suas potencialidades imanentes só precisam ser liberadas para pôr a razão instrumental em xeque e dissolver a falsa imagem da totalização.

A crítica filosófico-linguística do subjetivismo possibilita uma diferenciação da crítica da razão lógico-identificadora que também implica uma relativização. O que resta é um fulcro relativo na crítica do pensamento identificador que diz respeito à própria posição da filosofia. A definição da filosofia de Adorno -- que o esforço cabe aquele que por meio do conceito ultrapassa o conceito -- permanece válida num certo sentido mesmo depois que o seu conceito de conceito identificador é posto em questão, Com isso referimo-nos ao ponto em que o pensamento de Adorno coincide com o de Wittgenstein, mesmo o do Wittgenstein tardio. Não se trata mais da utópica perspectiva de uma razão transdiscursiva, mas do caráter impróprio do discurso filosófico, da relação entre falar e mostrar em filosofia. A filosofia mostra aquilo que evita um enunciado linguístico -- não porque o específico evite a generalização conceptual, mas pelo fato de a filosofia tematizar a própria relação entre o específico e o geral, entre a língua e o mundo. Ao mesmo tempo, a filosofia trata da questão de como entendermos a nós mesmos como seres falantes. Juntamente com a relação entre língua e mundo, o problema da racionalidade constitui o principal tema da filosofia. Mas o objetivo da filosofia não é nem demonstrar opiniões sobre a realidade nem fundamentar normas morais, mas evitar confusão, lembrar o já sabido (Wittgenstein) ou lembrar o esquecido (Adorno). O entendimento para o qual a filosofia aponta é o de se localizar acertadamente o que fazemos com a língua e o que somos por meio da língua. As descrições da filosofia, suas explicações, argumentações e exposições visam a esse intuito. Mas essas descrições, explicações, argumentações e exposições valem-se de uma linguagem objetivante que emudece ante o tema da filosofia que não é objetivável -- da mesma forma como os significados linguísticos não o são -- os quais não por acaso passaram a constituir um tema central na filosofia contemporânea. Isso não implica que as sentenças filosóficas sejam falsas ou sem sentido; implica, pelo contrário, que o uso correto de frases filosóficas é impróprio. As sentenças filosóficas cumprem seu objetivo quando chegamos ao ponto de ver as coisas com clareza. Querem mostrar o que dizem. Por isso, parafraseando Adorno, a filosofia não é indiferente e superficial quanto à exposição ... pelo contrário, é imanente em sua ideia;81 por isso é essencialmente impossível de ser referenciada  e por isso comporta a ideia de sistema filosófico -- literalmente sistema cognitivo -- um mal-entendido filosófico quanto à própria natureza da filosofia.83 Na filosofia deparamos realmente, como pensou Adorno, o limite do conceito, mas só filosofando consideramos os limites da língua e não nos encontramos inteiramente dentro da língua ou -- como talvez quiséssemos -- além de seus limites.
Tenho examinado a crítica da lógica identificadora e totalizante encontrada em Adorno pelo fato de parecer ser o mais importante defensor da mesma. A critica pós-modernista da razão totalizante difere naturalmente daquela de Adorno por meio da decidida recusa de uma filosofia de reconciliação. Nisso reside somente uma imaginária vantagem sobre Adorno. Nele a perspectiva filosófico-reconciliadora implica não menos uma defesa da razão contra o irracionalismo, um interminável esforço dialético para na má razão descobrir rastros de uma melhor. A metacrítica da crítica do pensamento identificador mostra que tais rastros são mais nítidos e difíceis de apagar do que Adorno quis reconhecer: não é preciso nenhuma esperança messiânica para aclará-los.

Mas se abjurarmos a esperança messiânica quanto ao absoluto sem ao mesmo tempo revidar o caráter absolutista da crítica racional, uma crítica da razão totalizante só pode desembocar em afirmação, regressão ou cinismo. O exemplo de Adorno mostra na realidade que a descentração do sujeito torna necessária uma relativização da crítica racional: a crítica da razão totalizante não atinge mais a razão discursiva como tal, mas um emprego incompleto, imperfeito ou pervertido da razão. Relativização não implica necessariamente atenuar, quer dizer que mais ou menos delineamos os limites dentro dos quais a crítica racional faz sentido sem reverter em metafísica ou cinismo. Isso implica dar uma nova chance à razão e ao sujeito. Tal possibilidade não pode naturalmente ser do tipo que o iluminismo racionalista profetizou para o sujeito e a razão. Mas que tipo de possibilidade então seria? Com essa pergunta retorno ao terna sobre o moderno e o pós-moderno.


N o t e s :

65. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 17.

66. Ibidem, p21.

67. Ibidem, p 27.

68. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit. p. 56/69.

69. Ver ibidem, p. 57.

70. Este é também o pensamento capital na crítica a Adorno feita por Jürgen Habermas (ver principalmente J. Habermas, Theorie des Kommunikativen Handelns [Teoria dos atos comunicativos].). Frankfurt sobre o Meno, 1981, vol. I, p. 489 e a seguir, principalmente p. 522 e a seguir. Habermas descreve os limites da filosofia do sujeito da seguinte forma: "Como 'objeto' a filosofia do sujeito vê tudo o que se pode imaginar como sendo; como 'sujeito' vê antes de mais nada a capacidade de objetivamente relacionar-se com tais entidades no mundo e - teoricamente ou praticamente - dominar os objetos. Os dois atributos da consciência são imaginação e atuação... Essas duas funções da consciência estão intrincadas uma à outra: o conhecimento objetivo é estruturalmente ligado à possibilidade de intervenção no mundo como intervenção objetiva; e a ação consciente exige por seu lado conhecimento do contexto no qual intervém" (ibidem, p. 519). Com Habermas poderíamos, no entanto, caracterizar o surgimento de uma dimensão comunicativa da língua em que por meio da relação simétrico-performativa entre sujeito e sujeito se obtém a mesma importância que entre sujeito e objeto. A objetivação da realidade indica uma comunicação interna à língua. Por trás da instrumentalmente ativa estrutura monológica da língua surge, assim, uma complicada estrutura dialógica: dois sujeitos fazem-se compreendidos a respeito de algo no mundo. A gramática para os pronomes pessoais na primeira e na segunda pessoa do singular refletem a relação simétrico-performativa entre orador e ouvinte numa conversa "comunicativo-orientada". Fatos objetivos só podem existir num espaço de tais relações entre potenciais oradores e ouvintes - donde as relações gramaticais entre primeira, segunda e terceira pessoas refletem as condições especificas de objetivação de fatos sociais,

71. Theodor W. Adorno, Fragment Ober Musik und Sprache (Fragmentos sobre música e língua), em Gesammelte Schriften (Obras reunidas). Vol. 16, Frankfurt sobre o Meno, 1978, p. 252.
72. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 26.

73. Thomas Bemhard, Wittgensteins Neffe (O sobrinho de Wittgenstein), Frankfurt sobre o Meno, 1982, p. 13 e a seguir.

74. Ver a teoria de Habermas sobre a ação comunicativa como um desenvolvimento sistemático desse pensamento. Meu argumento contra Adorno é, no entanto, independente da sistemática na teoria linguística de Habermas.

75. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 34.

76. Ver Mary Douglas, Purity and danger (Pureza e perigo). Londres, 1966.

77. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 34. O pensamento de Adorno gira sempre em torno da ideia de uma unidade livre de opressão - como forma de conhecimento, como forma de individuação e como forma de solidariedade social. Expressões como a coerência do não-idêntico e conceito livre de opressão expressam tal idéia. O problema mais agudo de Adorno é possivelmente a questão sobre como ambas as formas de unidade -- por um lado a do conceito e a obrigação de identidade e sistema do eu-princípio, e por outro lado a coerência do não-idêntico -- podem ser relacionadas uma à outra. Em duas mudanças típicas em Negative Dialektik consta: Unidade e concordância são, no entanto, a tênue projeção de urna situação reconciliada, não mais antagônica, das coordenadas de um pensamento senhorial (p. 35). E: A concepção do sistema lembra, de forma distorcida, coerência do não-idêntico, que foi violada pela sistemática dedutiva (p. 36). Tais formulações comportam ao mesmo tempo a defesa de Adorno da razão discursiva contra o irracionalismo (ver ibidem, p. 20). Mas a filosofia de Adorno carece do grau de liberdade conceitual necessário para responder à questão por mim colocada.

78. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 21.

79. Ver Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, Lund 1982, p. 632.
80. Ver Negative Dialektik, op. cit, p. 27.

81. Ibidem, p. 29.

82. Ibidem, p. 44.

83. Ibidem, p. 33 e a seguir. 

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Segue parte V

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