sábado, 31 de agosto de 2013

DE MARX AO MARXISMO CONTEMPORÂNEO

Frank Svensson

                               

Texto distribuído aos alunos a título de introdução do curso de extensão ministrado na Universidade de Brasília em 08 de novembro de 2003.



        A revolução russa (1917) e a revolução alemã (a República de Weimar, 1918-19) caracterizam períodos de desenvolvimento do marxismo. Pela primeira vez dois partidos socialistas adotaram-no declaradamente como ideologia, ao deterem o poder do Estado. Evidenciaram-no como das principais correntes de pensamento do século XX. Diferentemente d'antanho, o marxismo ganha sua Meca. Passa a ter referências geopolíticas concretas: capta orientações sem limitar-se a pronunciamentos de personalidades como Engels, Kautsky, Plechanov.

          De 1920-70, o marxismo-leninismo soviético e do leste europeu marca-se no desenvolvimento do marxismo. A social-democracia abandona ou se liga a distorções do marxismo. Pós-Segunda Grande Guerra reduziu-se a liderança teórica dos pensadores. No ocidente, o marxismo evolui como corpo teórico  e olha para o mundo acadêmico. Susan James (1985) revela: esses novos teóricos marxistas, à diferença de seus antecessores, não viram a obra de Marx como fonte de previsão do futuro ou como elaboração de um manual de ação revolucionária, mas como origem de um rico e instigante método explicativo da realidade.1

           Dividido o socialismo internacional (comunistas x socialistas) e contradições à baila entre marxistas revolucionários e partidos institucionalizados por enfoques díspares da teoria marxista, decompôs-se a original unidade dialética de Marx (conhecimento histórico, revolução, teoria econômica e organização do movimento obreiro). Haver-se desintegrado a obra de Karl Marx quiçá ratifique o principal problema marxista atual: divisão em áreas e projetos, tendências teóricas e práticas discordantes. Que se pergunte: que restou do projeto original de Marx? Sua totalidade dialética constituía um sistema garan-tido por relações internas de componentes que se condicionavam.

Nem a teoria de Marx (filosófico-econômica) nem a práxis (estratégia revolucionária e organização de trabalhadores como classe) basearam-se nalgo fora dos homens, entendidos nas atividades, em condições históricas partículares. A disparidade entre a síntese de Marx e as que dele decorre resulta dele incluir o concreto trabalho humano em sua dialética histórica.

        Composto de lógica dialética, filosofia da natureza e filosofia do espírito2, o sistema hegeliano formava a totalidade das partes inter-dependentes. Interrelacionar áreas da realidade entre si como tomos da totalidade caracteriza tanto Hegel como Marx e o marxismo inicial. Nisto é concreta a continuidade Hegel...Marx...primeiros marxistas. Distinguiam partes constituintes das totalidades produzindo distintos conceitos sobre elementos mantidos no desenvolvimento do marxismo em decurso.   A principal mudança imposta por Marx foram suas restrições ao conceito hegeliano de absoluto, ao entendimento de uma idéia ou de um espírito desde o surgimento do universo e independentemente da história humana. Hegel via na natureza objetiva uma expressão dessa idéia em segundo estágio, quando não tinha consciência de si, sua precondição para estruturar seu sistema. A crítica de Marx à noção hegeliana do absoluto fundava-se na crítica naturalista de Feuerbach a Hegel, Feuerbach concebendo o homem dotado de sentidos numa totalidade verdadeiramente terrena. Diversamente de Feuerbach, Marx via o homem como ser objetivo e ativo, atuante em circunstâncias históricas. Desenvolveu sua filosofia da história com conteúdo distintíssimo da de Hegel. Para Marx, a essência da história humana residia no desenvolvimento das forças produtivas dentro das suas condições sociais. Nada como pensava Hegel, defensor de que o desenvolvimento espiritual dos homens era a questão-mor.

 A economia constituí em Marx a base das relações sociais, do comportamento social. O restante de sua totalidade é a elaboração de uma estratégia da revolução socialista:

1) a teoria da revolução socialista;

2) a teoria e o trabalho de organização da classe obreira (havia inter-dependência; não se entendia a teoria marxista desligada da teoria da organização da classe obreira e vice-versa). Condições históricas conduziram essas duas partes a se separarem com o tempo.

        O conceito de totalidade de Marx baseia-se numa práxis filosófica de caráter político. A práxis revolucionária é sua principal categoria. Sem ela, as demais partes da totalidade de Marx ficam elementarmente isoladas. Vê-se na revolução socialista resposta a uma objetiva necessidade histórica e econô-mica, dependente de uma prática revolucionária, e a organização da classe trabalhadora como movimento independente de prática revolucionária. No caso pode-se reduzir a totalidade de Marx a uma teoria da história e a uma teoria econômica, objetivas porém isentas do processo histórico como teoria sobre a história ou teoria sobre a economia capitalista, para a continuidade da história.

Embora a ideia de um socialismo científico baseado em leis dialéticas fosse decisivo para a vitória do marxismo como ideologia de movimento, há que considerar que seu desenvolvimento teve como determinantes as condições sociopolíticas reais da Alemanha e da Rússia. Na Alemanha existia  (1880-90) um movimento obreiro politicamente orientado para o socialismo, mas faltava um movimento revolucionário que com todos os meios lutasse  pela queda do regime reinante. Na Rússia, havia mais de meio século, ocorria o oposto: uma tradição de luta clandestina revolucionária sem um movimento operário autônomo. Foi pelo marxismo que o movimento operário alemão teve sua identidade caracterizada como revolucionária, enquanto o movimento revolucionário russo teve raízes teoricamente identificadas pelo marxismo no proletariado. Com a ajuda do marxismo podia-se ignorar que o movimento operário alemão não fora um movimento revolucionário; tanto quanto na Rússia - com a ajuda do marxismo - foi possível legitimar surgir um movi-mento operário independente, às vezes em contradição com sua intelectuali-dade revolucionária.

          Quando a tendência reformista do movimento alemão e a tendência economicista do movimento obreiro russo despontaram (anos 1890), a ideologia do marxismo teórico estava desafiada. Na Alemanha perguntava-se se era revolucionário o movimento operário. Na Rússia se questionava sobre a posição do movimento operário frente à revolução burguesa.

Tendência perceptível foi a maior compreensão pela dialética da natureza desenvolvida por Engels do que pelo conceito de atividade humana por Marx. Em muito se entendeu o desenvolvimento do capitalismo e sua passagem à sociedade socialista como decorrência de um processo histórico sujeito a leis assemelhadas às da natureza. Mesmo que um socialismo científico (à guisa das leis naturais) fundado em leis dialéticas haja sido valioso como ideologia comunista, o desenvolvimento e o conteúdo do marxismo foram determinados mais por relações sociopolíticas factuais.

Comparamos a Alemanha - movimento operário organizado e voltado para o socialismo - à Rússia, com tradição de oposição clandestina de meio século de trabalho contra o tzarismo. A dualidade histórica do desenvolvimento marxista sintetizou a dialética entre filosofia da história, teoria econômica, movimento revolucionário e organização da classe operária – a problemática.

Sabe-se dos esforços de Bernstein, Lênin e Rosa de Luxemburgo para resolvê-la. Condições como as de Marx e as de décadas posteriores não se reapresentaram. Marx inegavelmente apontou processos fundamentais da economia capitalista melhor que qualquer concorrente: a vitalidade da economia capitalista, seu poder de concentração, de centralização, e as inevitáveis crises econômicas. Previu que a classe trabalhadora tornar-se-ia específica da sociedade burguesa; que ao desenvolvimento do capitalismo haveria um movimento sociopolítico intertrabalhadores. Nisto reside a força do corpo teórico e do exemplo de vida de Marx.

Seus esforços pela síntese das condições burguesa e proletária, do objetivo e do subjetivo, de materialismo e idealismo, de ciência e crítica, de reforma e revolução, resultaram post mortem na ciência objetiva materialista revolucionária de expressão maior no marxismo-leninismo. Nele se quis man-ter a ação recíproca dos componentes da totalidade reconhecida por Marx, bastante por formas afins às da dialética da natureza. O grande embate con-temporâneo é reconhecer ativamente que o marxismo constitui corpo teórico identificado por caráter ativo e político, pelo esforço em prol da síntese dos seus componentes essenciais.

Não bastam ações e reflexões individuais, interessantes e instigantes que sejam. Implica na ação e na reflexão resultantes de formas socialmente organizadas. Partidos e agremiações que se querem de base marxista estão instados a assumir o papel de vanguarda.

N o t a s : 
           
1 - Susan James: capitulo “Louis Althusser”, in Skinner, Quentin: Return of Grand Theory in the Human Sciences. Cambridge, 1985.


2 - A Filosofia do Espírito de Hegel tem: a) Espírito subjetivo = trata das denomináveis questões psicológicas e das aptidões do humano como ser pensante; b) Espírito objetivo = espírito corporificado na sociedade humana, em sua Filosofia da História e na Filosofia Política; 3) Espírito absoluto = conhecimento absoluto de si expresso em arte, religião e filosofia.

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