terça-feira, 30 de julho de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte III.



Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.
Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson



INTERPRETAÇÃO II –

Para a crítica da razão e seu sujeito.

Gostaria de distinguir, entre as formas de critica da razão e seu objeto, as três que têm um papel na crítica pós-modernista do racionalismo. É necessário fazer essa distinção para deixar claro aquilo que se poderia chamar de formas modernas e pós-modernas de conhecimento:

1) a crítica psicológica (desmascaramento) do sujeito e sua razão;

2) a crítica filosófica, psicológica e sociológica da razão instrumental ou da identidade lógica e seu sujeito;

3) a critica linguístico-filosófica da razão autotransparente e seu sujeito formador de sentido. Essas formas de critica da razão e seu sujeito não são independentes umas das outras, mas o direcionamento da critica difere, e essas diferenças devem ser explicitadas. O fato de os conceitos de razão e de sujeito autônomo haverem sido absorvidos pelo redemoinho da crítica logocêntrica depende, em minha opinião, exclusivamente da mistura e da sobreposição de motivos, enfoques e descobertas totalmente diferentes de tal critica.


1. A critica psicanalítica da razão e seu sujeito

Menciono esta forma de critica somente porque constitui um ponto de partida e um indispensável pré-requisito para a discussão da crítica filosófica da razão. A crítica psicanalítica -- cuja figura central naturalmente foi Freud -- consiste em demonstrar a impotência ou a inexistência de fato do sujeito autônomo e a irracionalidade de fato de sua aparente razão. Trata-se da descoberta de uma álter-razão no âmago do sujeito e da razão. Como seres físicos, como máquinas de desejo ou como sede de poder (Nietzsche), os indivíduos não sabem o que querem e o que fazem. O ego -- esse atrofiado resto do sujeito filosófico -- é, na melhor das hipóteses, um elo de ligação entre as exigências daquilo e as ameaças do eu.

O sujeito filosófico com sua capacidade de autodeterminação e logon didonai mostra-se um virtuose da racionalização a serviço de poderes estranhos ao eu. A unidade e a autotransparência do eu são desmascaradas -- são vistas como uma ficção. O sujeito descentrado da psicanálise é, em outras palavras, mais um ponto de ruptura entre forças psíquicas e sociais do que senhor sobre elas. É mais o cenário de uma cadeia de conflitos do que o diretor de um drama ou o escritor de um conto. Ao lado da psicanálise, a literatura de nosso século contribuiu com rico material para a fenomenologia do sujeito descentrado. No experimento da vanguarda literária, a qual, segundo Axel Honneth,

visa demonstrar esteticamente como o sujeito é envolvido num acontecimento que ultrapassa o horizonte individual do sentido,46

cruzam-se motivos de uma critica filosófica e psicológica do sujeito. Detenhamo-nos por um momento na psicanálise. Freud foi um, mesmo se cético, defensor do racionalismo e do iluminismo europeu. Solapou a fé na racionalidade do sujeito e no poder da razão, mas no intuito de reforçar as forças da razão e do ego. O horizonte normativo da critica de Freud constituía-se -- e nisso foi um iluminista -- de um decepcionado, desilusionado humanismo, um humanismo que teria chegado à razão e, dentro de certos limites, se tornado senhor sobre si mesmo. Independente de como isso tenha sido, as descobertas da psicanálise (as quais na realidade não eram tão novas assim) deixaram em aberto o que ocorreria com os conceitos de sujeito, razão e autonomia como categorias normativos. É difícil dizer em que sentido Freud os apoiava, mas de qualquer forma não podiam ser conceitos do tipo sujeito-filosófico cartesiano ou idealista; não podia ser a aceitação idealista de um desejo da verdade, de um diálogo incondicional ou de urna autodeterminação moral como uma alternativa racional aceita do princípio do prazer,da vontade de poder, de violência simbólica ou da economia da libido, pois a descoberta de Freud (e de Nietzsche) era a de que o desejo (ou sede de poder) sempre se introduziu como força incompreensível no interior do argumento racional e da consciência moral. Esta é uma descoberta somente se partimos das idealizações do racionalismo. Por enquanto, é incerto o que acontece com os conceitos de sujeito, de razão e de autonomia quando liberados da constelação racionalista e sacudidos pela psicanálise.


2. Crítica da razão "instrumental" ou "da identidade lógica" e seu sujeito.

Temos a ver com a radicalização da crítica psicológica do racionalismo. Esta forma de crítica apresenta-se já -- mas não pela primeira vez -- em Nietzsche, é radicalizada por Adorno e Horkheimer e levada adiante no pós-estruturalismo francês. Limitar-me-ei à versão apresentada em A dialética do Iluminismo, desenvolvida por Adorno. É bem verdade que de forma unilateral, mas espero que seja urna frutífera delimitação do terna.

Em A dialética do Iluminismo, Adorno e Horkheimer interpretam -- depois de Klage e de Nietzsche -- a tríade teórico-cognitiva -- sujeito, objeto e conceito -- corno uma relação de opressão e submissão, na qual a instância opressora -- o sujeito -- é ao mesmo tempo a vítima oprimida. A opressão da natureza interior da pessoa humana e seus anárquicos impulsos de felicidade são o preço para que o eu coeso seja formado, o que é necessário tanto para a autopreservação como para o domínio da natureza exterior e social. Correlata ao eu unitário é a razão que objetiva e sistematiza, totali-zante, considerada corno um meio de dominação: domínio sobre a natureza exterior, interior e social. A unificação e a sistematização exercidas pela razão, dado o seu caráter objetivador e instrumental-controlador, é, segundo Adorno e Horkheirner -- assim como Nietzsche e Klage --, baseado no caráter discursivo da razão, na lógica conceituai, ou melhor, na relação interna entre conceito, significado lingüístico e lógica formal. A lei da contradição é o sistema contido numa casca de noz, afirma-se em A dialética do Iluminismo. No cerne do pensamento discursivo manifesta-se um elemento de violência: urna submissão da realidade, um mecanismo de defesa, uma atitude de exclusão e domínio, uma ordenação dos fenômenos de forma a se deixarem controlar e manipular, uma tendência à paranoia sistêmica. A razão objetivadora. sistematizadora e instrumentalizadora encontrou sua expressão clássica nas ciências naturais mas, como Foucault mostra, as ciências humanas também se deixam enquadrar nessa ordem. Finalmente, todas as formas de racionalização dos tempos modernos (isto é: burocracia, direito formal, todas as instituições da economia formalizada da sociedade moderna), todas as manifestações dessa razão unificadora, objetivadora, controladora e disciplinadora.

Essa razão cria sua própria imagem da história: a imagem de um progresso que tem sua referência no ininterrupto desenvolvimento técnico e econômico da sociedade.   A razão, ou melhor, seus defensores confundem esse indiscutível avanço com avanço para algo melhor; consideram como o avanço da humanidade rumo à Razão. Esse jogo de palavras quer mostrar que o Iluminismo esperava algo melhor da razão do que só progresso técnico, econômico e administrativo: a eliminação da dominação e da loucura, a eliminação da ignorância e da miséria. Indo um pouco além do significado das palavras, mas não do espirito, em A dialética do Iluminismo, podemos acrescentar o seguinte: mesmo onde os propósitos do Iluminismo foram descobertos como uma bem-intencionada ilusão -- no idealismo pós-kantiano alemão e em Marx -- o totalitarismo da razão confirma-se num plano mais elevado, ou seja, numa dialética histórica, cuja razão se evidenciou no terror stalinista.

Para Adorno e Horkheimer evidencia-se, como já observei, não somente como um elo entre o ego-princípio sistematizador48 e o conceito ordenador e excludente.49  A consciência que conceitualmente objetiva e sistematiza, que atua segundo a lei da não contradição, é já de inicio uma razão instrumental da dissociação da vida, entre a consciência e seu objeto.50  A crítica da razão lógico-identificadora é portanto ao mesmo tempo urna critica da razão legitimadora. A quase enlouquecedora busca de segurança e domínio do pensamento identificador ganha expressão no hermetismo dos sistemas filosóficos, na pretensão fundamentalista de encontrar as mais extremadas bases filosóficas. No sistema de legitimação dos novos tempos -- de teoria do conhecimento até filosofia política e filosofia moral -- esconde-se um resto de mítica loucura, transposta à forma de discursiva racionalidade.

Faz parte, naturalmente, da dialética do Iluminismo que o mesmo sucessivamente destrua não só o mito, mas também todas as legitimações, ou seja, perfure todas as falsas imagens que a razão esclarecida pôs no lugar dos mitos: a razão torna-se finalmente positivista e cínica, um puro aparelho de poder. Esse aparelho de poder da razão tem se condensado na sociedade industrial a ponto de se tornar uni contexto ofuscador, no qual o sujeito -- uma vez o sustentáculo se mostra supérfluo. O indivíduo é reduzido às reações convencionais e às formas funcionais que objetivamente são esperadas dele. 51

Vemos que para Adorno e Horkheirner o sujeito unitário, disciplinado, dirigido de dentro só num sentido temporário, é o correlato da razão instrumental. A tese deles não é muito diferente da de Foucault, quando o mesmo explica o sujeito como um produto do discurso moderno.52 Para Adorno e Horkheimer, entretanto, a desinte-gração do sujeito na sociedade industrial tardia constitui um processo regressivo.53 Implica que explicação e razão não participam da dialética destrutiva que procuram reconstruir. Adorno e Horkheimer prendem-se a um conceito enfático de Iluminismo que, para eles, implica o auto esclarecimento da explicação, ou seja, o esclarecimento lógico da identidade do caráter de seu próprio domínio e do caráter da natureza do sujeito. Isso não significa, no entanto, que a explicação ao mesmo tempo possa corrigir e superar-se a si em seu próprio meio, o meio da razão lógica quanto à sua identidade. Dessa forma, Adorno, em Negative Dialektik, procurou pensar a crítica do pensamento identificador até o fim. Postula aí uma filosofia que por meio do conceito se volta contra as tendências reificadoras do pensamento, o esforço conceitual torna-se o esforço de por meio do conceito superar o conceito.54  Adorno tentou precisar essa ideia com a ajuda do conceito de pensamento figurativo, ou seja, a ideia de um pensamento transdiscursivo do qual Mínima moralia é o melhor exemplo em toda sua obra.

Parece que nos afastamos muito da critica psicológica do sujeito, apesar de se haver afirmado que a crítica da razão lógica da identidade é uma radicalização da crítica psicológica. Fundamentarei agora a minha tese. Que Adorno e Horkheimer mantêm-se fiéis à unidade do eu e que entendem a desintegração desse eu unitário na sociedade industrial tardia como um processo regressivo pode parecer contrário à minha tese. A contradição desaparece, no entanto, se não compreendermos o eu unitário como o sujeito autônomo destruído por Freud, mas -- no sentido de Foucault -- como o correlato ou corno o produto do discurso do moderno: unia forma disciplinada-disciplinante para organizar os homens como seres sociais. Na origem desse eu unitário encontramos coação e não um ato de autônoma auto constituição.

A humanidade teve de sofrer uma terrível amputação para que o eu, o caráter objetivamente humano, pudesse formar-se e urna parte desse processo se repetir em cada infância.55

Isso até Freud poderia subscrever. A radicalização da crítica de Freud consiste no seguinte: Adorno e Horkheimer questionam justamente o conjunto de normas de racionalidade às quais Freud ainda se atinha: o caráter objetivo masculino. Para Adorno e Horkheimer, tais normas caracterizam um determinado estágio -- assim como a sociedade burguesa para Marx --, que, no entanto, estava determinada a desaparecer por meio da superação da razão. À luz de A dialética do Iluminismo apresenta-se no interior da psicanálise um elemento justamente do racionalismo que as idealistas formas de reflexão de Freud basicamente haviam destruído.

Um racionalismo, mas também poderíamos chamá-lo de realismo. Em relação ao realismo de Freud. Adorno e Horkheimer não estavam em condições de explicar como a auto superação da razão -- como a auto explicação da explicação -- poderia ser pensada corno um projeto histórico depois que por meio de sua critica da razão instrumental haviam destruído a ideia de Marx da auto superação da razão (burguesa). Foucault parece-me estar diante de um problema semelhante. Adorno esclarece a auto superação da razão relacionando mimese com racionalidade na filosofia e na obra de arte. Só é possível estabelecer urna relação com mudanças sociais interpretando a síntese sem opressão da obra de arte e a linguagem configurativa da filosofia – aporética --  como o acender de uma luz messiânica aqui e agora, como a previsão de uma real reconciliação.

A crítica da razão experimental exige uma filosofia da história da reconciliação, necessita de uma perspectiva utópica, caso contrário não pode ser entendida como critica. Mas se a história precisa tornar-se a outra história para livrar-se do ilusionismo da razão instrumental, a crítica da contemporaneidade histórica torna-se urna crítica do ser histórico — uma última forma da crítica teológica do vale das lamentações terrestre. A crítica da razão da identidade lógica parece desembocar ou em cinismo ou em teologia, a não ser que sem considerar as consequências se queira advogar em favor da regressão e da desintegração do eu -- urna alternativa que Klage considerou e, corno Adorno e Horkheimer, a qualquer preço queria evitar.

A crítica da razão da identidade lógica termina numa aporia na medida em que repete o esquecimento da língua no racionalismo europeu ao qual de certa forma criticara. A crítica da razão discursiva como razão instrumental é implicitamente ainda psico-lógica em Adorno e Horkheimer, isto é, é pensada intencionalmente e vive em silêncio no modelo de um sujeito formador de significado, o qual numa singularidade transcendental se volta para um mundo de objetos. A crítica da lógica de identidade ganha, entretanto, corno irei demonstrar, um outro significado desde que o mesmo não seja somente desmascarado psicologicamente, mas também submetido a urna problematização linguística. Evidencia-se então que também a razão instrumental se baseia numa práxis comunicativa. Esta não pode ser reduzida nem a urna subjetividade auto preservadora nem a uma subjetividade formadora de opinião, por ser constitutiva para a existência de um sentido linguístico. Eu gostaria de acrescentar que nem a redução complementar terá êxito, ou seja, a redução do sujeito à via própria do discurso ou do sentido linguístico. A terceira forma de critica da razão e do sujeito que eu quero abordar é a crítica linguístico-filosófica, a qual eu gostaria de chamar de reflexão wittgensteiniana por ser somente no Wittgenstein tardio que a encontramos formulada com plena agudeza.


3. A critica linguístico-filosófica do sujeito formador de opinião;

Aqui se trata da destruição filosófica da concepção racionalista de sujeito e de língua, principalmente da destruição da ideia de que o sujeito com suas experiências e intenções é a fonte dos significados linguísticos. Nós poderíamos -- no sentido de Wittgenstein -- falar de uma crítica da teoria dos nomes. Segundo esta teoria, os sinais linguísticos ganham sentido quando alguém -- um usuário dos sinais - atribui a algo dado (coisas, classes de coisas, experiências, classes de experiências, etc.) um sinal, ou seja, atribui de uma forma ou outra a um dado significado um nome. Urna tal teoria dos nomes parece estar profundamente arraigada na consciência filosófica ocidental - ou em seu pré-consciente; sobrevive também no empirismo radical até Russel, Eu classifico essa teoria linguística como racionalista porque -- implícita ou explicitamente -- se baseia no pressuposto do primado de um sujeito atribuidor de nomes e de significado e como este, noolens volens, compreende as idealizações da tradição racionalista -- principalmente a objetivação de significados corno dados, o que abarca a tradicional distinção entre racionalismo e empirismo. A crítica linguístico-filosófica da teoria linguística racionalista naturalmente não começa com Wittgenstein nem termina com ele. Creio, no entanto, que ele foi o seu mais importante defensor em nosso século. A filosofia de Wittgenstein compreende urna nova forma de cepticismo, o qual questiona até mesmo as certezas de Humes e de Descartes. Como posso saber do que falo? Como posso saber o que penso? 56  Por meio da crítica linguístico-filosófica é destruído o sujeito como inventor e juiz final de suas intenções de significado.

Nesse ponto poder-se-ia observar que a crítica da qual falo é um velho tema tanto na hermenêutica corno no estruturalismo. Urna observação que de certa forma se justifica. No entanto, como as consequências da crítica de ambas as escolas quanto a urna teoria intencionalista do sentido são fundamentalmente diferentes, prefiro começar pela forma mais rígida de reflexão crítico-linguística que encontramos em Wittgenstein. Além disso, farei referências ao pensamento de Castoriadis,57 que         é bem verdade tem sua origem numa outra tradição, mas mesmo assim em alguns pontos centrais pode ser visto como urna reformulação e um desenvolvimento das colocações de Wittgenstein.

Para desde logo eliminar reduções positivistas do tema: observando somente que sistemas de signos linguísticos são primários em relação à fala e às intenções do sujeito, uma condição necessária, na realidade não dissemos o principal. Essa descoberta tomada em si torna-se a semente de uma nova mistificação da relação-significado. O decisivo é, ao invés, esclarecer a própria relação-significado na forma em que e corporificada em códigos linguísticos, em jogos linguísticos -- uma relação que a filosofia antes de Wittgenstein não havia considerado. Os principais conceitos de Wittgenstein nesse contexto são os de regra e de jogo lingüístico, podendo-se destacar que o mais importante é o uso que Wittgenstein faz desses conceitos. As regras aqui tratadas não podem ser confundidas com o que normalmente entendemos como regras constitutivas ou reguladoras.

Os jogos linguísticos não são jogos, mas formas de vida: sucessões de atividades linguísticas e neolinguísticas, instituições, práticas e significados nelas corporificados. Que os conceitos de regra e de significado se referem um ao outro fica evidente pelo fato de que regras implicam uma práxis intersubjetiva, onde cada um tem de aprender que significados são essencialmente abertos. Ao falar do significado de uma expressão linguística, a identidade desse significado necessita ser dotada de um índex de não identidade tanto no que diz respeito à relação entre língua e realidade como entre orador e orador. Com isso, dissolve-se o significado como urna certa forma de objeto, algo idealizado, psicológico ou na realidade dado. Mesmo considerando o significado como uma relação -- x significa y ou x representa y --, é questão de unia relação específica, que não tem lugar na tradicional ontologia/lógica, o que Castoriadis já observou.58 As mais simples relações-significado -- por exemplo, a que une a palavra árvore com as árvores reais -- pressupõem um sistema interno de relações da língua, na qual possa funcionar como uma relação de representação.

Esse dever não pode apoiar-se em nada que não em si mesmo, pois relações significativas em primeiro lugar não podem ser individuais (na melhor das hipóteses, podem ser parcialmente explicadas, ou motivadas, num segundo nível, em segundo lugar a relação significativa como tal pode, junto com a regra que implica circularmente, somente ser motivada pelas necessidades em união, a qual tem de apoiar-se numa inequívoca regra significativa que por sua vez só pode existir independente da união.59

A critica linguístico-filosófica leva, assim como a psicológica, ao descobrimento de uma outra razão no interior da razão, mas em ambos os casos trata-se de diferentes outras razões. Enquanto a destruição psicológica do sujeito implica a descoberta de forças libidinosas (e poder social), a destruição linguístico-filosófica do subjetivismo, a descoberta de um quase-fato que precede qualquer intencionalidade e subjetividade, implica sistemas significativos linguísticos, formas de vida, um mundo manifesto linguisticamente de uma determinada forma. Não se trata de um inundo sem sujeito, sem seres humanos; pelo contrário, é uni mundo no qual os homens de diferentes maneiras podem ser eles mesmos. Essa reciprocidade dada num mundo linguisticamente revelado também pode ser interpretada como um entendimento na língua, mas então não podemos ter convenções em mente ou um consenso racional ou irracional. Trata-se antes de um entendimento que é constitutivo para poder diferenciar verdade de falso, racional de irracional. Em sua obra Pesquisas filosóficas, parágrafos 241 e 242, Wittgenstein ressalta:

Dizes, portanto, que o entendimento entre os homens decide o que seja certo ou o que seja falso? -- É o que as pessoas dizem que é certo ou falso; e no caso da língua os homens concordam... Não numa concordância de pontos de vista, mas de forma de vida. Se queremos ser compreendidos por meio da língua, é necessário não só uma concordância de definições, mas também (por mais raro que possa parecer) uma concordância de conceitos. Isso parece sustar a lógica, mas não o faz.

Nem o objetivismo estruturalista nem o cepticismo estruturalista fazem justiça ao enfoque fundamental de Wittgenstein. O primeiro não pode fazê-lo por desprezar a dimensão pragmática da não objetivável e essencialmente aberta relação significativa, o segundo não o pode porque relaciona a impossibilidade de objetivação dos significados linguísticos com a incontrolável não-identidade de cada uso particular dos signos. A vida do sentido linguístico não pode, no entanto, ser reduzida à vida anônima dos códigos linguísticos ou ser reportada a um jogo incontrolável entre diferenças. Tenho de abdicar da fundamentação de metade desta tese, no que concerne à fundamentação da outra metade, contentar-me-ei com algumas observações. A posição que critico poderia, valendo-me da formulação de Manfred Frank, ser sintetizada na tese que dada a possibilidade estrutural da repetição ... todo uso da língua é provido de um índex para mudanças incontroláveis.60

Com isso me refiro naturalmente a Derrida.61  É bem verdade que considero a critica que Derrida faz da compreensão objetivista dos significados linguísticos convincente -- a identidade do significado é formada em primeiro lugar na sequência de empregos dos signos, e a existência do significado linguístico detém a possibilidade de uma irredutível pluralidade na maneira de se usar as palavras, bem como uma possibilidade ilimitada de ampliação ou de rejeição do sentido linguístico. Só numa perspectiva internacionalista podemos afirmar que cada uso particular de um signo é provido de um índex para um incontrolável outro-ser.

Se por outro lado realmente queremos questionar a perspectiva intencionalista, uma tal afirmação implica um jogo com as palavras identidade e não-identidade, que carece de base firme, de um razoável uso da palavra significado. O quinau com a consideração de Wittgenstein é que a palavra significado aponta para a práxis de um uso comum da língua -- aquilo que chamamos de significado no singular só pode ser esclarecido considerando o fatual ou o possível, a pluralidade de situações de uso de um signo linguístico.

Essa práxis comum naturalmente só é acessível por meio da fala performativa dos participantes. A compreensão de significados, intenções ou textos não pode ser reconstruída como um conhecimento de fatos objetivos (significados) ou ser entendida como um fato psicológico objetivável. Uma maneira objetivista de ver só pode, aqui, conduzir a um ceticismo hermenêutico radical que ao fim dissolve o pró-prio conceito de significado. Não existe resposta para a cética pergunta como podes estar certo quanto à tua opinião? enquanto procurarmos uma resposta no mesmo espírito objetivista com que a pergunta foi feita.

O cético argumento permanece portanto sem resposta. Não é possível opinar nada sobre palavra alguma. Cada novo emprego é um salto no escuro; cada intenção pode ser interpretada de acordo com o que quer que queiramos. Não existe portanto nem concordância nem conflito.62

Dessa forma, S. Kripke procurou certa vez delimitar o problema que Wittgenstein deparara. A solução de Wittgenstein para o problema consiste, no entanto, como observara Kripke, não numa resposta para a cética pergunta, mas em recusar o esforço objetivista que se encontra no fundo da questão. A questão só pode ser respondida depois de pesarmos qual o papel que joga em nossa língua a distribuição de significados, intenções e compreensão. A solução desse cético paradoxo exige uma mudança de perspectiva. Lembrando-nos a gramática das palavras significado, opinião e compreensão, Wittgenstein esclarece-nos que o ceticismo hermenêutico radical perde sua base do ponto de vista do jogo linguístico dos participantes.

Opino que a palavra significado aponta para o conceito regra e respectivamente forma de emprego. Por isso não faz sentido dizer que urna rejeição incontrolável do significado ocorre em cada repetição de um signo linguístico, pois é impossível que alguém alguma vez tenha seguido.64   Pela mesma razão, a opinião anarquia" não pode ser dominada pela reintrodução de um sujeito interpretador, como M. Frank tentou fazer contra Derrida. Afirmar que os homens chegam ao significado dos signos que utilizam por meio da interpretação especifica para cada situação (ou seja, uma vez por todas) não é sair da posição do cético hermenêutico, pelo con-trário, seria o reemprego das premissas por ele destruídas. Se aceitamos que os signos linguísticos só ganham sentido específico por meio de um ato de interpretação, reintroduzimos em silêncio a opinião como fonte do significado. Torna-se incompreensível como outrem poderia entender o que eu opino, fica até incompreensível como eu mesmo o entenderia. Só entendemos de fato o papel do sujeito intérprete e a abertura dos significados linguísticos depois de pensarmos que a mudança e a ampliação perceptíveis da opinião linguística por meio do uso de regras gramaticais vêm acompanhadas de um índex a generalidades. Um novo emprego de uma palavra indica uma nova forma de emprego.

A descentração linguístico-filosófica do sujeito não legitima nem um objetivismo hermenêutico nem um anarquismo hermenêutico. Não justifica ainda menos as conclusões irracionalistas às vezes tiradas nos meios pós-modernistas. A crítica lingüístico-filosófica do sujeito não pode sem mais nem menos ser acoplada à crítica psicológica. A descentração linguístico-filosófica do sujeito não fere, à diferença da psicológica, o nosso narcisismo. Implica pelo contrário, a descoberta de um mundo comum revelado nas formas da razão e do sujeito (todas as formas possíveis do sujeito). Esse mundo comum, linguisticamente revelado, não é, no entanto, tal que possa derivar de uma economia libidinal ou de um desejo de poder. O corpo, o desejo de poder, a ambição estão presentes nesse mundo, mas linguisticamente revelados e dentro de uma contínua revelação linguística. Mesmo a coerção está presente nesse mundo, mas linguisticamente revelada e por isso sempre separada de seu alter-ego: da livre comunicação, do diálogo, da franqueza para com os outros, da cooperação voluntária.

Em certo sentido, temos, corno insiste Wittgenstein, de reconduzir as palavras a seu emprego normal. Fica claro que a filosofia do desmascaramento total se nutre da mesma metafísica racionalista que anuncia destruir. Se ao invés trouxermos as distin-ções entre realidade e imagem, entre veracidade e mentira, entre coerção e diálogo, entre autonomia e heteronímia para o terreno a que pertencem, não é mais possível afirmar (a não ser sob forma de má metafísica) que o desejo de verdade é um desejo de poder; o diálogo, coerção simbólica; a fala, verossímil terror; a consciência moral, um reflexo de interiorizada coerção; ou que a pessoa autônoma é uma ficção, um mecanismo de auto opressão ou um bastardo patriarcal etc. Com outras palavras: a crítica linguístico-filosófica do racionalismo e do subjetivismo dá-nos motivo para de uma nova forma refletir sobre opinião, justiça e autodeterminação, mas ao mesmo tempo faz-nos desconfiar daqueles que nietzschianamente buscam fazer da crítica psicológica do sujeito uma afirmação, ou seja, desconfiar de todos os propagandistas de uma nova era que procuram livrar-se da herança platônica e substituir argumento por retórica, o desejo de verdade por desejo de poder, teoria, pela arte da palavra, e ética, pela economia do desejo. Quanto a isso podemos afirmar: já vimos disso o bastante.

N o t a s :

45. Ibidem.

46. Ver Axel Honneth. Kritik der Macht. Foucault und die Kritische Theorie. (Teoria do poder. Foucault e a teoria critica.), tese de doutorado. Berlim, 1982, p. 138.

47. Ver Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, Upplysningens dialektik (dialética do Iluminismo), Gotemburgo, 1981.

48. Ver de Theodor Adorno Negative Dialektik. Gesammelte Schriften (Dialética Negativa, Obras reunidas), vol. 6. Frankfurt sobre o Meno, 1973, p. 36.
49. Ibidem, p. 21.
50. Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 27 e a seguir.

51. Ibidem, p. 43 e a seguir.

52. Ver de Michel Foucault Überwacheni und Strafen (Controle e castigo). Frankfurt sobre o Meno, 1976, p. 238 e a seguir.

53. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 27 e a seguir.

54. Ver Negative Dialektik, op. cit., p. 27.

55. Ver Upplysningens dialektik (A dialética do Iluminismo), op. cit., p. 49 e a seguir.

56. Saul A. Kripke refere-se a esse ponto no chamado argumento privado em Wittgenstein on Rules and Private Language (Wittgenstein em róis e linguagem privada), Oxford, 1982.

57. Cornelius Castoriadis. Gesellschaft als intaginãre Institution (Sociedade como instituição imaginária), Frankfurt sobre o Meno, 1984.

58. Ibidem, p. 416.

59. Ibidem, p. 520.

60. Manfred Frank, Was ist Neostrukturalismus? (O que é neo-estruturalismo?). Frankfurt sobre o Meno 1984, p. 511.

61. Derrida é um escritor por demais conciso para que eu aqui possa fazer-lhe justiça. Refiro-me a uma única imagem do pensamento, à qual penso que Frank reproduz de forma correta. Ver J. Derrida, Signature event context (Contexto Glyph. The John Hopkins Studies I (1977); e limited Inc, em Glyph. The John Hopkins Síndica II (1977); fora isso, não quero defender a posição de Searle contra Derrida; ver J. R. Searle Reitering the differences. A reply, to Derrida", GIvph. The John Hopkins Studies I (1977).

62. Kripke op. cit., p. 55.

63. Eu digo o ceticismo hermenêutico radical. Não quero naturalmente contestar que possa fazer sentido dizer que o sentido nos textos de um escritor para ele não esteja "presente". Isso implica portanto que eu não defendo uma teoria intencionalista de interpretação. Mas terá o mesmo sentido se eu disser que o significado de uma determinada palavra não esteja presente? Acho ser cabível afirmá-lo em certos casos e em outros não. Se afirmamos não ser possível nenhum caso em que seja plausível, introduzimos um novo critério do plausível. Creio, no entanto, que os motivos para tanto advêm menos da autocrítica da língua do que da autocrítica das teorias intencionalistas do significado.

64. Ludwig Wittgenstein, Filosofiska undersökningar (Pesquisas Filosóficas), Estocolmo 1978, parágrafo 199.
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A seguir: Parte IV e V.

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