terça-feira, 18 de março de 2014

POR UMA HISTORIOGRAFIA MARXISTA DA FILOSOFIA – Parte III


Nicolao Merker

Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a 47, Editori Riuniti, Roma, 1974.

Tradução: Frank Svensson

Nota do tradutor: O interesse pelo conteúdo do texto aqui apresentado deve-se ao fato de que crítica da arquitetura na formação de seus profissionais limita-se sobremodo à oferta de disciplina Teoria e História da Arquitetura limitando o conhecimento da mesma à sua historiografia.


Vinculo histórico-funcional de antecedentes, de consequências, e circularidade de razio e de fato

Retomando a análise pela qual havia demonstrado a especificidade histórica da abstração muito geral que o trabalho representa em Smith, o caráter de abstração determinada que essa categoria tem, Marx observava que as categorias que exprimem e fazem compreender as relações complexas e evoluídas da sociedade burguesa permitem compreender ao mesmo tempo a estrutura e as relações de produção

de todas as formas de sociedade desaparecidas com as ruinas e os elementos com os quais ela foi cons-truida.  Certos vestígios, parcialmente ainda não superados, continuam a subsistir nela, e dos quais certos simples sinais, desenvolvendo-se, assumiram todo o seu significado.67  

Marx recomendava também uma prudência muito grande no método. Se é verdade que as formações históricas mais desenvolvidas constituem uma chave para as menos desenvolvidas, isso não pode ser admitido senão cum grano salis (com um grão de sal): 

1 -- porque a diferença especifica (ou a generalidade maior) das categorias que expressam as relações mais desenvolvidas não excluem aquelas que contem também, de maneira mais apagada e caricatural, etc., as formas precedentes menos desenvolvidas; e 

2 -- geralmente a forma posterior considera as formas passadas como etapas que conduziram ao seu próprio grau de desenvolvimento e, portanto, ela concebe-as sempre sob um aspecto unilateral.68

0 alcance dessas observações reside no fato de incidirem direta, por um lado, na questão da continuidade e/ ou descontinuidade na transmissão de um patrimônio categorial de uma época ou de uma geração para outra ao nível da estrutura formal interna das próprias categorias, e por outro lado, no problema do ponto de partida da analise historiográfica.
.
Na realidade, segundo o paralelismo marxiano entre tipos de abstração e tipos de sociedade, as categorias determinadas dentro das quais se exprime a ideologia da sociedade mais desenvolvida, ou sociedade burguesa, constituiriam da mesma forma uma chave para compreender as diversas formas de ideologias próprias das sociedades passadas. Mas a chave tem um perfil duplo: no interior das categorias conceptuais que correspondem à formação econômico-social mais desenvolvida e mais complexa subsistem, por um lado, resíduos não superados de ideologias pertencentes a formações econômico-sociais antigas e historicamente transatas e, apesar disso, numa medida maior ou menor, transferidas para a nova estrutura ideológica por intermédio do processo de transmissão do material de pensamento, enquanto que, por outro lado, certos elementos teóricos já presentes em embrião nas categorias originadas e utilizadas durante as épocas passadas, não se desenvolvem nem assumem todo o seu significado senão na época e na sociedade mais moderna ou mais ricamente articulada, nas quais só então eles se tornam praticamente verdadeiros, isto é, inteiramente correspondentes a um certo tipo (atual, moderno ou verdadeiramente presente") de práxis humana, social e específica).

No tocante à continuidade na utilização dos materiais de pensamento anteriores, esta ocorre tecnicamente graças aos elementos gerais que, nas categorias, são comuns a diversas épocas: e esse são os elementos que exprimem uma racionalidade ou uma problemática recorrente e geral devida antes de tudo ao fato de que — empregando as palavras de Marx -- em cada época o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são idênticos;69 por outras palavras, em cada época a produção das ideias é uma reprodução categorial do objeto. Assim, as ideias gerais como ser, devir, identidade e diferença, particular e universal, unidade dos contrários, unidade e multiplicidade, essência e fenômeno, necessidade, conteúdo e forma, matéria etc. representam, como resultados conceptuais, tentativas de estabelecer relações de coordenação e subordinação entre os objetos, um continuum categorial indubitavelmente comum a todas as épocas.

Porém, visto que o conjunto das circunstâncias históricas reais, variáveis e específicas (forças produtivas, relações sociais etc.), transmitidas por cada época à seguinte, impõe a esta última suas próprias condições de existência e imprime-lhe um desenvolvimento determinado, um caráter específico,70 os problemas novos que são, portanto, específicos dessa época, imporão também, todavia, que no interior desse continuum sejam pouco a pouco ultrapassadas à guisa de instrumentos específicos aos quais se referir, aquelas formulações categoriais que são adaptadas aos problemas determinados a resolver, ou, em suma, que constituem antecedentes lógico-históricos seus mais ou menos afastados.

Não é dito que esses instrumentos ordenam-se segundo uma coincidência mecânica entre a simples sucessão cronológica das categorias (ou seu continuum acrônico) e a utilização histórico-funcional destas, ou que, em suma, a ordem cronológica se identifi-que com a sua ordem lógica de utilização. Pelo contrário: Platão, por exemplo, não empregou indistintamente todo o patrimônio conceptual da filosofia grega anterior, mas unicamente, afinal de contas, as categorias (os gêneros supremos do ser e do não ser) que eram realmente úteis ao seu problema relativo à tauto-heterologia ou mediação da identidade da razão com a alteridade ou multiplicidade das coisas, e que, contudo, aplicadas a esse problema determinado, a essa fase determinada de desenvolvimento do mundo grego, receberam o cunho de especificidade que distingue a dialética de Platão da de Kant ou de Hegel. Da mesma maneira, a problemática mais original e mais viva de Aristóteles está ligada à maneira específica como ele ultrapassou, interpretou e empregou criticamente apenas alguns resultados da tradição filosófica anterior (um certo Platão, mas não Platão todo; uma certa acepção do principio de não contradição etc.), aqueles portanto, que eram realmente antecedentes lógico-históricos do seu objeto problematizado (ou presente de maneira problemática). E assim por diante, o assunto podendo se repetir até Hegel, Marx e Engels; para estes dois últimos, Hegel inteiro era evidentemente um precedente cronológico, mas nem todas as partes de sua filosofia eram um verdadeiro antecedente lógico-histórico.

A perspectiva histórica habitual, isto é, a sucessão cronológica por assim dizer natural das categorias, surge, desta forma, invertida. As categorias não se tornam determinantes como instrumentos de pensamento segundo a morfologia da sua sucessão diacrônica, mas, ao contrário, segundo a relação na qual se encontram no interior da filosofia ou da ideologia mais desenvolvida, segundo a ordem de não cronologia em que as utilizam a filosofia ou a ideologia sempre mais desenvolvida; essa ordem -- ressalta Marx referindo-se às relações existentes entre elas na sociedade burguesa moderna -- é exatamente o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou corresponder à sua ordem de sucessão no decorrer da evolução histórica,71 concebida como estritamente cronológica. Portanto, para as categorias filosóficas também -- à
luz do vínculo dialético, dentro de um patrimônio ideológico, entre os conseqüentes específicos atuais e seus antecedentes lógico-históricos --, o que Marx observou para as categorias econômicas também seria válido: o fato de que é inoportuno e errôneo dispô-las na ordem diacrônica segundo a qual elas foram historicamente, isto é, cronologicamente, determinantes. Mas se, considerando tudo o que acabamos de dizer, em cada época e formação econômico-social, em toda ideologia, em toda orientação ou todo sistema filosófico, a duração e a funcionalidade histórica dos instrumentos categoriais são reveladas por um vínculo passado/presente no qual, de uma vez por outra, é o presente, com suas solicitações problemáticas, que impõem a escolha de certos antecedentes e não de outros no passado, a tarefa do historiador da filosofia pareceria articular-se em torno dos seguintes pontos:

1) um equilíbrio filológico rigoroso na análise do objeto da pesquisa, a fim de compreender todas as suas características, sejam gerais, sejam específicas, isto é, o aspecto gera-abstrato das categorias na especificidade de suas transformações provocadas pelo presente histórico (pela formação econômico-social progressivamente presente) tanto quanto a característica determinada pela qual a abstração categorial em si se manifesta de uma vez para outra como abstração histórica (a respeito disso, pense-se outra vez no exemplo marxiano: a categoria trabalho em geral),

2) uma prudência igualmente rigorosa na distinção, para cada época e cada filosofia examinada, entre as formas mais desenvolvidas de ideologia e as tendências de desenvolvimento e as formas atrofiadas ou resíduos que se mantiveram, distinguindo-as, todavia, segundo a maior ou menor aderência das formas categoriais às reais estruturas econômico-sociais de fundo.  Não com base nas ilusões que as épocas ou os sistemas filosóficos criam acerca de si mesmos, como quando, por exemplo, à maneira da síntese historiográfica, especulativa, idealístico-hegeliana, eles concebem o passado unilateralmente, vendo suas formas como projeções ao avesso de forma última ou do último sistema, razão pela qual Hegel pôde tranquilamente concluir que não existe história verdadeira, já que não tratamos de um passado, mas do pensamento, no qual o que é histórico, isto é, o passado como tal, não existe mais, está - morto.72

3) uma escrupulosa elaboração histórica da articulação formal interna das categorias, a respeito da qual, como para concluir sua análise da Introdução de 1857, Galvano Delia Volpe observou: "a ordem histórico-cronológica ou puramente empírica e analítica das categorias (sistemas) deve ser substituída pela ordem exatamente inversa, que é a ordem sintético-analítica de médias hipotéticas de antecedentes e consequentes, donde todo conceito-médio, sendo a satisfação de uma solicitação presente ou histórico-material, satisfaz tanto a solicitação da experiência corno a da razão, mas só a satisfaz e só pode satisfazê-la experimentalmente: no sentido preciso de que a média de antecedentes e consequentes, longe de ser absoluta ou definitiva, só é verdadeira graças à sua corres-pondência esclarecedora com as solicitações histórico-materiais, ou efetivamente problemáticas, de que nasceram a pesquisa e o conceito-hipótese.73 

Sob esse aspecto, a média de antecedentes é, portanto, o modo categorial específico segundo o qual um consequente, relacionando-se a uma série de precedentes específicos (e não a todos sem distinções, mas aos que correspondem ao concreto a resolver e de uma vez a outra imposto pelas solicitações problemáticas ou pelas dificuldades da época da pesquisa atual), estabelece uma ligação funcional concreto-abstrato-concreto, isto é, entre o concreto da experiência presente da qual parte a pesquisa, as solicitações racionais mais gerais e mais recorrentes do passado consideradas elas também, entretanto, como abstrações não meta-históricas e determinadas; e finalmente a convergência das médias conceptuais -- ou, em suma, do patrimônio ideológico-histórico recebido, utilizado de maneira crítica e transformado pouco a pouco -- com as interrogações concretas e progressivamente presentes da práxis social.

Transfiramos esse círculo concreto-abstrato-concreto para a esfera de trabalho do historiador da filosofia, que deve analisar sistemas e orientações ideológicas já estabelecidos historicamente, em que o tema real ou concreto material já está elaborado pelo pensamento e, portanto, aparece como um resultado do pensamento, como um concreto de pensamento no qual o ponto de partida real e material (a sociedade ou tema real, segundo Marx) não é mais diretamente visível.

Como “concreto” inicial, teremos uma construção ideológica que, na qualidade de concreto de pensamento (qualquer que ele seja: a dialética descendente de Platão ou a tríada hegeliana, a crítica de Aristóteles a Platão ou a crítica de Marx a Hegel, as teorias ético-políticas do tempo da Reforma, ou a ideologia da filosofia das Luzes ou o Estado de direito kantiano e suas continuações, para enumerar alguns exemplos), já é por si mesma uma síntese de numerosas determinações conceptuais e, ao mesmo tempo, na medida em que o historiador trata dela, o objeto inicial da experiência para o próprio historiador, em suma, o fato a explicar. Esse objeto a analisar, com suas numerosas determinações, isto é, suas articulações formais particulares (quer gerais e comuns, quer pontuais e específicas) através das quais a sociedade ou tema real transparece mesmo assim ao longo de uma série complexa de anéis ou filtros de mediação, exige, no entanto, -- precisamente para evidenciar a dialética dessas articulações -- que se discerne nele os antecedentes lógico-históricos que estão ali por assim dizer embutidos. Exige, pois, que, do objeto analisado, se remonte ao continuum ou abstrato (histórico) das solicitações racionais do passado que convergem logicamente para o objeto ou o fato filosófico presentes.  Neste ponto, retraça-se de novo a viagem em sentido contrário, para o fato ou objeto de que partiu a pesquisa, esclarecido doravante como sendo uma totalidade complexa na qual a síntese-análise categorial de antecedentes e consequentes lógicos revela a disposição deste numa fase concreta da práxis social. Só então o historiador da filosofia terá respeitado as indicações do método científico correto de que falava Marx.

Levando em conta a morfologia geral histórico-racional das categorias ou produções ideológicas, o historiador da filosofia teria definitivamente uma chave para avaliar também a estrutura formal interna de um sistema filosófico, além das ilusões que esse sistema cria sobre si mesmo. Por exemplo, em Hegel, a ideia da mediação lógica e a idéia, correlativa, de sistema lógico, não é uma ideia-hipótese, no sentido de que entre a ideia racional-unitária de sistema e os dados filosóficos de fato que deviam ser explicados por intermédio dessa ideia se institui uma circularidade de razão e de fato (fato filosófico, ou seja, racional-histórico), Os dados de fato, as filosofias historicamente determinadas, eram vistos, pelo contrário, como manifestações mais ou menos completas da filosofia, ou seja, do idealismo absoluto, e elas não podiam, pois, sendo apenas manifestações, reagir sobre a ideia do sistema no sentido de exprimir as solicitações que eram diferentes deste; solicitações que, de uma ideia de sistema concebida de maneira problemática, hipotética, poderiam ter sido recebidas como solicitações suscetíveis (como fatos filosóficos múltiplos) quer de contribuir, integrando-a ou eventualmente até modificando-a, para a elaboração dessa idéia, quer mesmo de refutá-la ou de refutar também a idéia da totalidade especulativa e meta-histórica que está na base desta.

Portanto, a circularidade de que acabamos de falar é sempre o elemento decisivo que permite avaliar a estrutura e a funcionalidade formais internas de um sistema. Na realidade a relação entre a ideia de sistema e os dados filosófico-históricos instaura-se como urna tensão problemática na qual estes, na qualidade de co-elementos históricos na formação do sistema lógico, exprimem solicitações autônomas e tais que, em relação a elas, o sistema possa verificar experimentalmente sua própria capacidade mediadora e, assim, sua própria validade -- e então a crítica filosófica também permanece tendencialmente aberta e não condicionada pelo pressuposto de uma solução absoluta por a priori, realizada e definitiva; ou então a ideia lógica de sistema reduz a tensão problemática sob o denominador comum restritivo de sua própria auto mediação e apresenta-se como podendo resolver tudo -- e então não se pode mais falar dos dados filosófico-históricos corno de uma experiência (no sentido próprio do termo) em contato com a qual o filósofo se encontra, visto que, logo que ele se põe em contato com ela, essa experiência perde suas próprias referências e suas próprias solicitações particulares, para receber a marca da solução especulativa.

Mas lembramos aqui a crítica de tipo lógico que Marx teceu contra os processos de hipóstase em Crítica do Direito Político Hegeliano, de 1843: à superação por especulação dos fatos, de qualquer natureza que sejam, segue-se por consequência direta a transformação da especulação em empirismo, de um empirismo que não é mais controlado porque não é mais mediatizado. Disso resultará que em Hegel, por exemplo, esses elementos lógico-históricos ou fatos filosóficos particulares que, se bem que constando em sistemas anteriores, não haviam sido mediatizados por Hegel segundo a sua especificidade, mas imediatamente ultrapassados, agirão, no seu idealismo, como um resíduo insuspeito, perturbado filosoficamente, depois recebido acriticamente e por fim transtornando repetidas vezes o encaminhamento do pensamento hegeliano.


A localização da estrutura econômico-social por meio dos veículos categoriais

A dupla conversão denunciada por Marx, do empirismo em especulação e da especulação em empirismo, e as implicações metodológicas gerais da crítica marxiana sobre o processo de hipóstase, têm uma incidência direta e ao nível da conclusão sobre a questão capital da qual partiu toda a nossa exposição: isto é, de que maneira as relações sociais reais dos homens transparecem na produção das ideologias não em virtude de seu reflexo mecânico e imediato sobre as ideias, mas, ao contrário, filtrados pela estruturação completa do caráter formal das representações das categorias etc. As implicações da crítica marxiana na matéria indicam-nos na realidade também a complexidade articulada dos filtros formais através dos quais passa necessariamente uma situação histórica real-material (por outras palavras, uma fase determinada das relações econômico-sociais com todas as contradições reais que a caracterizaram) quando ela é registrada conceptualmente. Essas implicações indicam-nos outrossim que só uma análise atenta da estrutura formal específica desses filtros permite apreender de modo justo, nem mecanicista nem determinista, a maneira como a realidade material se reflete sobre e nas elaborações conceptuais de um filósofo.

Tomamos como exemplo a questão da origem e da natureza do proverbial conservadorismo de Hegel.

Na crítica feita pelo jovem Hegel em relação às condições alemãs, Lukács registra oscilações e incertezas que teriam posteriormente engendrado as formas mais diversas de ilusões socialmente necessárias, mas mais ou menos reacionárias, as quais de-terminaram o pensamento de Hegel até o fim de sua vida.74

Explicando as ilusões reacionárias como socialmente necessárias, isto é, reforçando o apesar de tudo justo critério da miséria alemã em categoria historiográfica que permitiria esclarecer imediatamente toda uma série de produções ideológicas, efetuar um salto da estrutura às superestruturas, ainda não sabemos evidentemente nada sobre a razão lógica do aparecimento destas nem de sua fenomenologia particular. Pelo contrário, o problema é ver como a conciliação (Lukács) com a sociedade burguesa que o conservadorismo de Hegel é tem, no interior da filosofia hegeliana, na sua morfologia, uma força específica que a faz funcionar e a torna logicamente coerente.

A dificuldade está próxima de sua solução quando se considera que a realidade histórica, não obstante ultrapassada por Hegel de maneira especulativa pela mediação ideal, continua a existir efetivamente com toda a autoridade e a materialidade de seus próprios conteúdos específicos; e que, nesse duplo tratamento que a realidade sofre no idealista Hegel (uma vez, de um ponto de vista descritivo, como realidade histórico-determinada; e outra vez de um ponto de vista interpretativo, como manifestação da ideia), o fato de tomá-la como uma manifestação da ideia naturalmente não elimina dela a materialidade manifesta e obstinada. Bem entendido, pode-se dizer também que, neste sentido, as ilusões chegaram a Hegel por intermédio do veículo conceptual que é o princípio dialético especulativo: o qual, dissolvendo a realidade de maneira especulativa (a transformação da realidade em especulação, segundo a crítica de Marx), mesmo assim deixa efetivamente subsistir, como antes, essa mesma realidade, cuja determinação especifica foi ultrapassada apenas pelo princípio, mas cujo conteúdo material real, tendo permanecido o mesmo, é apresentado corno força -- e, pior, com uma força agora incontrolada e viciosa: a transformação da especulação em empirismo, segundo a critica de Marx -- por meio justamente das diversas ilusões reacionárias (as classes como corporações, o poder legislativo concedido à camada essencial, ou seja, à nobreza de morgado, ao monarca hereditário etc.).

Em outros termos, o conservadorismo apresenta-se como uma consequência necessária, como o contra piso lógico de mediação idealista ou, enfim, como um aspecto do positivismo acrítico que Marx assinalou como sendo a consequência última da dialética de Hegel.75  Do que resulta que Hegel foi realmente o primeiro a expor larga e conscientemente as formas gerais do movimento da dialética;76  é por esse motivo que desse ponto de vista as categorias da sua filosofia exprimem tendencialmente as rela-ções mais desenvolvidas da sociedade burguesa; mas muito mais -- e, portanto, sem privilegiar prematuramente esse aspecto único do pensamento hegeliano -- convém não esquecer duas coisas.

Em primeiro lugar, Hegel é de fato um filósofo burguês, mas também um burguês alemão, imerso na miséria de uma classe que, estruturalmente, já existe com sucesso; mas que, no seu conjunto, ainda é fraca demais, pouco desenvolvida demais) para travar um embate decisivo com o velho regime e a caricatura informe sob a qual ele se apresentava nos Estados absolutistas alemães: daí os pesados compromissos pré-burgueses, como, por exemplo, as corporações semi-medievais, e as ordens ou Stãnde corporativistas, que nos trinta primeiros anos do século XIX ainda desempenham um papel fundamental na organização política da Alemanha.

Em segundo lugar, todavia e principalmente, é preciso não esquecer que na filosofia hegeliana do direito esses aspectos antiquados, atrofiados, menos desenvolvidos que as relações sócio-políticas, depositam-se como escórias em virtude de um mecanismo lógico irresistível, se bem que sem o conhecimento do filósofo: isto é, que o empirismo, uma vez superado pela especulação que, em proveito das formas gerais do movimento da dialética, esquece as particularidades históricas dos conteúdos, vinga-se, introduzindo-se sub-repticiamente no corpo da especulação e autorizando, por esse meio, uma legitimação especulativa de instituições pré-burguesas mesmo. Então o modo específico corno a estrutura econômica e as relações sociais existentes entram tão frequente e tão massivamente na filosofia de Hegel, e nela se refletem grosseiramente, não depende tanto da realidade alemã atrasada, que não pode ser censurada por existir, quanto, de preferência e antes de tudo, dos veículos conceptuais e dos instrumentos categoriais de que Hegel lançou mão para mediatizar essa realidade.

A via que leva estruturas econômico-sociais à sua reprodução nas superestruturas ideológicas não parece, portanto, nem curta nem simples. E, paralelamente, os problemas que se propõem a uma historiografia filosófica marxista não parecem mais fáceis.
             
Estes resumem-se em:

1) não perder de vista o caráter superestrutural dos fatos filosóficos; por conseguinte, partir, evidentemente, de uma análise atenta da estrutura econômico-social de uma época, mas sem por isso esquecer o modo formal especifico como as ideologias se constituem;

2) avaliar o processo de transmissão histórica das ideologias de uma época para outra segundo o critério do alcance prático (no sentido amplo) das próprias ideologias, isto é, do seu funcionamento quanto à solução das dificuldades que o "presente" histórico oferece progressivamente;

3) efetuar a elaboração formal, nas suas características gerais comuns e específicas determinadas, como aparecem pouco a pouco no continuum da transmissão;

4) entretanto, não considerar esse continuum nem como pura sucessão cronológica ou diacrônica, nem na qualidade de ordem meta-histórica de puras ideias, mas sim na qualidade de média de antecedentes e de consequentes lógico-históricos cuja ordem e cuja ligação funcional são provocadas e impostas de uma vez para outra, em toda época em todo sistema ideológico, por dificuldades presentes que se devem resolver; em suma, sempre, por uma práxis social determinada.

Parece-nos que só seguindo esse caminho, caminho certamente longo e complicado, feito de provas e novas provas, de constantes cotejos entre a continuidade racional-histórica ou histórico-funcional das elaborações filosóficas e a experiência dos fatos ideológicos determinados de que trata o historiador, é que a história da filosofia pode tornar-se uma ciência. Neste sentido, pelo menos onde ela própria é dominada também por aquela lógica específica do objeto específico77  que Marx fazia valer contra as hipóstases idealistas que consistiam em, em toda parte reconhecer unicamente as determinações do puro conceito; lógica que impõe, bem ao contrário, não só reconhecer os fatos filosóficos como fenômenos superestruturais históricos, mas ainda analisá-los com um método adaptado justamente à especificidade do modo for-mal segundo o qual esses fatos ideológicos se relacionam à estrutura.


N o t a s  b i b l i o g r á f i c a s :

66. MARX & ENGELS. O Capital. Éditions Sociales, tomo I, p. 182.

67. MARX, Karl. Contribuição à. .. , p. 169. George Wilhelm Friedrich Hegel. Vorlesungen über die

68. Ibidem, p. 151.

69. Ibidem, p. 170.

70. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, p. 70.

71. MARX, Karl. Contribuição à. .. , p. 171.

72. Nas Lições berlinenses de história da filosofia de 1825-1826:
George Wilhelm Friedrich Hegel. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie  (Lições de História da Filosofia). Leipzig, J. Hoffmeister, 1940, p. 133.

73. DELLA VOLPE, Galvano. A Lógica como Ciência Positiva" (1965), atualmente em Obras , tomo 4, p. 484.

74. LUKÁCS, Gyõrgy. O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista (ainda não traduzido).

75. A respeito do positivismo acrítico de Hegel; ver Marx, Crítica do Direito Político Hegeliano. Éditions Sociales, 1975, e Manuscritos de 1844, Éditions Sociales, 1968, pp. 131-140.

76. Marx, no famoso prefácio da 2' edição (1873) do primeiro volume de O Capital. Éditions Sociales, p. 29.

77. MARX, Karl. Crítica do Direito Político Hegeliano.

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