quinta-feira, 13 de março de 2014

POR UMA HISTORIOGRAFIA MARXISTA DA FILOSOFIA – Parte II


Nicolao Merker - (1931 – ), ensaísta, comunista militante, filosofo, historiador e  docente universitário italiano. 
Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a 47, Editori Riuniti, Roma, 1974.

Tradução: Frank Svensson

Nota do tradutor: O interesse pelo conteúdo do texto aqui apresentado deve-se ao fato de que crítica da arquitetura na formação de seus profissionais limita-se sobremodo à oferta de disciplina Teoria e História da Arquitetura limitando o conhecimento da mesma a sua historiografia.


A natureza especifica das ideologias filosóficas

Vejamos o que esses textos de Marx e de Engels apresentam de específico para uma situação marxista da historiografia filosófica. Ainda não temos indicações sobre a estrutura formal particular das categorias filosóficas, sobre a maneira conceptual e técnica como as categorias transmitem os conteúdos históricos, indicações que acreditamos poder extrair de outro texto de Marx no qual nos deteremos mais adiante. Não parece haver sido suficientemente analisado pela filologia marxista como fonte de um método válido também para a historiografia filosófica.

Primeiramente concluamos sobre os textos de que acabamos de falar. Eles nos dizem:

1° - que a economia determinando os eventos filosóficos somente de maneira muito mediata, não basta, para explicar a problemática de uma época, considerar exclusivamente o seu desenvolvimento econômico;

2º - que o material conceptual pré-existente exerce uma influência decisiva na maneira específica como cada época elabora seus próprios problemas filosóficos, quer dizer, que cada época não pode tomar consciência das solicitações objetivas histórico-materiais (ou das realidades concretas) senão graças a um veículo cultural bem determinado, constituído antes de tudo pela soma das ideias e das mediações conceptuais que cada geração recebeu das gerações passadas; e,

3º -  que, cada geração utilizando essa herança de mediações conceptuais num contexto de circunstâncias históricas diferentes, o ponto em que cada época atinge a mais alta consciência de suas próprias solicitações histórico-materiais coincide com o momento em que, para poder agir praticamente no contexto das circunstâncias históricas diferentes, a consciência da época rompe parcial ou completamente o esquema de mediações que herdou, superpondo ou mesmo substituindo esse esquema por novas elaborações teóricas, novas mediações, adaptadas em maior ou menor medida aos problemas que a nova práxis impõe.

Nem tudo é utilizado ou retomado da mesma maneira.  Engels, por exemplo, falando das relações suas e de Marx com o método lógico de Hegel, observava que esse método idealista não podia, bem entendido, ser empregado para tratar dos fatos obstinados da economia política.  Para desenvolver uma concepção de mundo que fosse mais materialista que todas as concepções anteriores, mas que, apesar disso, dentre todo o material lógico existente, era o único elemento ao qual se pudesse pelo menos ligar alguma coisa.29   Isso significa que o conjunto do material conceptual pré-existente, o conjunto das elaborações metodológicas anteriores foram essencialmente discriminados no sentido de que se afastaram deles os aspectos (Engels faz referência ao velho racionalismo metafísico de Wolff, que havia voltado à moda então), que não eram em nenhum caso adaptados aos problemas novos (a economia política, a concepção materialista da história).

Pelo contrário, tornam-se objeto de urna apreciação crítica os aspectos que, na forma que se apresentam (dialética hegeliana radicalmente abstrata, especulativa), estão absolutamente deslocados;30  por outras palavras, nem sequer estão por si mesmos adaptados às novas exigências histórico-materiais.  Podem contudo, da crítica profunda a que são submetidas -- como de fato, depois da crítica, apareceram na Introdução de 1857 à Crítica da Economia Política, de Marx -- as linhas de um método dialético novo, isto é, de uma maneira de compreender as abstrações adaptada às novas exigências histórico-materiais impostas pelo presente.

Numa passagem célebre do Prefácio da Contribuição à Crítica de Economia Política, Marx salientava que quando se quer estudar uma época de perturbações econômicas e sociais,

é preciso distinguir sempre entre a perturbação material (que se pode verificar de uma maneira cientificamente rigorosa) das condições econômicas da produção, e as formas ideológicas sob as quais os homens tomam consciência desse conflito e o levam até o  fim, 31

está implícito que o estudo das transformações das formas ideológicas não pode ter uma precisão da ciência natural, e isso justamente por causa da ação que todo o complexo material de pensamento das mediações conceptuais pré-existentes exerce ao nível das formas ideológicas, influenciando-as de forma variada. Por outras palavras, a distância entre a possibilidade da reconstrução exata da base histórico-material e a dificuldade, por outro lado, de controlar a correspondência que as elaborações histórico-conceptuais têm com a própria base depende do fato de não ser dito que, em regra geral, os instrumentos categoriais que os homens utilizam tenham, falando com propriedade, contido os interesses concretos da época. Esses interesses, por outras palavras, o ser social real de uma época, retratam-se na consciência do filósofo de preferência segundo módulos conceptuais pré-existentes. Segundo um patrimônio ideológico de mediações, por um lado, já fixado na esfera mais ampla da consciência social31  dessa época, e por outro lado, registrado em seguida de acordo com as diferentes combinações que se apresentam no quadro mais restrito da formação pessoal do indivíduo.

Na realidade o modo de transmissão do material pré-existente é tornado muito complicado pela morfologia específica das ideologias em geral e das construções filosóficas em particular. Essa foi a dificuldade posta em evidência por Gramsci quando observara que uma das características dos intelectuais como categoria social cristalizada, em outros termos, como categoria que se concebe ela própria como uma continuação ininterrupta no decorrer da história, é em primeiro lugar, ligar-se, na esfera ideológica, a uma categoria intelectual anterior por meio de urna mesma nomenclatura de conceitos.32   

O problema torna-se então o de examinar se realmente a identidade de termos assim constituida é também uma identidade de conceitos; examinar em que medida uma terminologia idêntica seria na realidade, eventualmente, empregada para designar conteúdos sociais realmente novos. Por fim, procurar quais grupos sociais, mesmo na situação nova, ainda estão no plano ideológico, imersos na cultura de situações históricas que precedem algumas vezes mesmo a ultrapassada mais recen-temente.33 

Num segundo tempo, observava ainda Gramsci, as filosofias, na qualidade de construções sistemáticas, são expressões puramente (ou quase) individuais,34  nas quais, ao lado do aspecto historicamente atual, isto é, correspondente às condições de vida contemporâneas. Estando em presença de uma ideologia historicamente orgânica, logo necessária a uma dada estrutura econômico-social, existe sempre uma parte que, seja por estar ligada às filosofias anteriores por puras necessidades exteriores e pedantes de arquitetura do sistema, seja simplesmente por refletir as idiosincrasias pessoais do filósofo,35  é abstrata, no sentido pejorativo do termo.  É por isso que, a fim de não con-fundir essas deformações individuais e arbitrárias do material de pensamento pré-existente com a ideologia como superestrutura organicamente necessária, Gramsci salientava o risco que existe em pensar que a filosofia de uma época se identifica com tal ou tal sistema individual: Ela é o conjunto de todas as filosofias individuais e de tendência, mais as opiniões científicas, mais a religião, mais o senso comum,36 ou ainda: ela não é a filosofia de tal ou tal filosofo, nem de tal ou tal outro grupo de intelectuais, nem de tal ou tal grande parte das massas populares, mas uma combinação de todos esses elementos que culmina numa direção determinada.37
    
Tendo em conta todas essas indicações, a filosofia de uma época aparece como um conjunto lógico-histórico constituído de uma espécie de média composta

a) das solicitações histórico-materiais que emergem como dificuldades históricas e exigências objetivas, ligadas so ser social, que os filósofos equacionam como problema e resolvem; e

b) das formas ideológicas ou de uma atividade histórico-racional que a consciência da época utiliza como função operacional (conscientemente ou não) para produzir as mediações e as soluções dessas solicitações e dessas dificuldades.


A validade ou o alcance histórico das filosofias

A partir de qual perspectiva uma historiografia filosófica marxista pode iniciar concretamente um reconhecimento e uma reconstrução dos dados de fato, isto é, daqueles fatos ideológicos circunstanciados e determinados constituídos pelas orientações, os métodos e os sistemas filosóficos (combinados com as opiniões científicas, a religião, o senso comum etc., conforme as observações de Gramsci)?

Será preciso antes de tudo, com escrúpulos filosóficos rigorosos, joeirando os documentos, ou seja, os textos, determinar o que os filósofos de uma época realmente quiseram dizer propondo suas soluções: dado que estas não representam outra coisa senão a maneira particular, histórico-racional, pela qual a consciência de uma época tentou transmitir certas solicitações histórico-materiais determinadas do seu tempo.  Uma primeira indicação sobre o grau de validade objetiva e de verdade das elaborações conceptuais -- por conseguinte, sobre o fato de que elas não são elucubrações individuais e arbitrárias -- é constituída pela medida segundo a qual elas apresentam uma certa homogeneidade e uma certa congruência funcional com as suas solicitações histórico-materiais, isto é, com os problemas reais (dessa época, dessa sociedade, dessas classes).  O processo de mediação devia esclarecer e conduzir a uma solução; por conseguinte, no plano teórico.

A eficácia das elaborações individuais é diretamente proporcional à possibilidade e à capacidade, por parte dos intelectuais que as produzem, de coordená-las no âmbito de uma teoria geral, de um sistema orgânico de mediações conceptuais que sirva para consolidar as conquistas reais realizadas por toda a sociedade ou por uma nova classe histórica, e para atingir objetivos ulteriores (pensa-se, por exemplo, na filosofia dos Lumières como expressão filosófica da burguesia, que se estava tornando uma classe hegemônica).

Definitivamente, e aqui recorremos ainda a Gramsci, pode-se dizer que o valor histórico de uma filosofia pode ser 'calculado' pela eficiência 'prática' que ela adquiriu. Se de fato toda filosofia é a expressão de uma sociedade, essa filosofia deveria também reagir sobre a sociedade, ocasionar certos efeitos, positivos e negativos,38  e a medida segundo a qual ele é um fato histórico e não uma elucubração individual (tem, pois, um alcance histórico) é a medida precisa segundo a qual a filosofia superestrutural (ideo-logia) reage sobre a estrutura. Em suma -- ainda Gramsci --, a elaboração teórica é válida quando, construída sobre uma prática determinada, é uma teoria que, coincidindo e identificando-se com os elementos decisivos da própria prática, acelera o processo histórico em marcha, tornando a prática mais homogênea, mais coerente e mais eficaz em todos os seus elementos, quer dizer, potencializando-a ao máximo, ou então também quando, inversamente, uma posição teórica determinada tem a capacidade de organizar o elemento prático indispensável à sua utilização.39

Sob esse aspecto, os problemas que uma época deixa propostos e, por conseguinte, transmite e difere para posteriores problematizações e elaborações, são localizáveis e surgem, no plano teórico, no momento em que a mediação histórico-racional tentada diverge e afasta-se das solicitações histórico-materiais, evitando-se por eliminação na heterogeneidade ou por falta de congruência com elas. Nesse caso, então, as soluções propostas são ineficazes, mesmo colocadas do simples ponto de vista do seu funcionamento lógico, pois são metabases de outra espécie. Na realidade soluções de acomodação (ou de compromisso, de um ponto de vista ideológico) toda vez que, diante de situações problemáticas novas, as mediações conceptuais propostas tomam o caminho da menor resistência e pretendem resolver os problemas especificamente novos servindo-se de critérios metodológicos e de coordenadas aciológicas carregadas de peso pela tradição. Ou então quando as mediações categoriais, embora novas na sua forma, chegam a ter uma incidência apenas parcial sobre os conteúdos, visto que estes, como é o caso, por exemplo, em Hegel, são superados por aquelas e situados numa dimensão que afasta deles a especificidade material. Ao mesmo tempo que as soluções falhas porque não pertinentes, a filosofia de uma época (ou mesmo de um único  filósofo) transmite então o inventário de um conjunto de solicitações histórico-materiais detectadas mas mal dominadas, cuja permanência na qualidade de resíduo não mediatizado exerce uma ação perturbadora sobre todo o curso do pensamento ulterior. E no entanto, cada dificuldade objetiva que a permanência de resíduos não mediatizados representa constitui aqui, por sua vez, para o pensamento sucessivo, um estímulo para problematizar de novo esses resíduos e para elaborar instrumentos conceptuais mais funcionais em relação à sua mediação e à sua solução em perspectiva.

Em contrapartida, aqui está uma segunda indicação sobre a verdade ou a validade lógico-histórica das conclusões a que chegam uma época ou um filósofo: nos é dada pela medida em que as soluções das interrogações e dos problemas suscitados pelas solicitações histórico-materiais da época contribuíram com mais do que se lhes pedia. Apresentando mediações que esclarecem não só os aspectos particulares contingentes, mas englobam também os componentes mais gerais e tendentes ao universal. Ao mesmo tempo que as soluções particulares e bem sucedidas, a filosofia de uma época (ou mesmo um único filósofo) transmite neste caso um patrimônio de médias conceptuais que, em virtude da sua generalidade histórico-racional, contêm indicações de alguma maneira adequadas sobre a experiência das gerações sucessivas. O presente atual pode, assim, utilizar ou escolher como antecedentes lógico-históricos de sua própria problemática: em suma, como soluções parciais, apresentadas pela história, de problemas recorrentes da práxis humana.

As recepções e as interpretações sucessivas de um patrimônio histórico representam na realidade, em sentido amplo, o índice da sua eficiência ou do seu alcance prático, isto é, da sua capacidade de atuar sobre os homens (ao nível da influência ideológica) bem mais longe que e além das realizações contingentes que esse patrimônio conceptual pode ter tido na práxis imediata, na sociedade e na ideologia do período durante o qual ele se constituía. Mas as maneiras particulares como a herança de uma época é acolhida ou repelida, a transcrição e a transformação ou ainda a intensificação diferente que essas solicitações problemáticas sofrem, a permanência de lugares comuns na sua avaliação ou a repetição de equívocos e deformações relativas à função do seu patrimônio concep-tual: toda a fenomenologia do processo de mediação graças ao qual as ideias de uma época passam às gerações sucessivas é um aspecto que tem uma incidência fundamental se quiser tentar determinar quais componentes de um patrimônio historicamente delimitado por solicitações, problemas e soluções estão historicamente esgotados. Por outras palavras, iniciaram e terminaram a sua função de ideias operativas (de ideologia) no âmbito circunscrito dessa época, e quais componentes, contrariamente, ainda têm algo a dizer numa transcrição ou avaliação moderna.

A recepção seletiva que as épocas sucessivas reservaram a um patrimônio anterior pode oferecer, desse ponto de vista, uma indicação que não é despresível no âmago do problema de saber quais são, numa época dada, as solicitações, os problemas e as soluções que, em relação à experiência e às necessidades do presente, devem ser considerados como precedentes puramente cronológicos, como acidentalidades históricas não essenciais e sem desenvolvimento possível, porque esgotadas de solicitações, problemas e soluções daquela época somente, e .que constituem, ao contrário, um a mais diacrônico, no sentido de que são antecedentes que o presente ainda pode escolher e utilizar para resolver suas próprias dificuldades.

Pode-se supor que esses antecedentes (justamente na medida em que são os antecedentes de um cronológico consecutivo, que é  entendido, pouco a pouco, como um presente em relação a seu próprio passado).  Contudo, devem ter necessariamente uma conotação diagnostica específica, que é na realidade a que os distingue dos puros momentos do passado.  Por outras palavras, que elas sejam, apesar da sua historicidade, isto é, na sua vinculação ao passado, elementos que correspondem de certa forma aos problemas que o presente apresenta. Pelo menos tendencialmente homogêneos nas estruturas problemáticas e nas soluções propostas e projetadas pelo presente. Em outros termos, o patrimônio das médias conceptuais (histórico-racionais), elaboradas por uma época do passado, pode servir, isto é, ser funcional no que se refere à experiência do presente ou ainda (concretamente) no que diz respeito aos problemas e interrogações que o presente deve resolver com sua própria práxis
.
Unicamente na medida em que a experiência atual do presente saiba localizar e escolher, nesse patrimônio, os antecedentes que não são negativos em relação às solicitações histórico-materiais com as quais, na práxis e em teoria, o presente deve acertar contas com os antecedentes que, em suma, não revelam uma orientação contrária à tendência ou à direção do progresso humano. A um antecedente dessa espécie aconteceria faltar, na realidade, a única conotação essencial que o transforma em antecedente lógico-histórico (no passado) de um consecutivo (isto é,  precisamente do presente, que se desenvolveu a partir desse passado e não de outro qualquer).  Uma conotação como essa consistindo nesse a mais da universalidade (histórica) graças ao qual uma solução ou uma mediação de problemas -- ou mesmo apenas uma tentativa de solução ou de mediação -- efetuada numa dada época passada não se esgotou nessa época, mas encerra elementos e sugestões que se projetam no futuro.


A morfologia das abstrações filosóficas

As ideias filosóficas são abstrações, no estilo bom ou mau desse termo: um concreto de pensamento; por outro lado, no entanto, a maneira particular como o real se deposita nos módulos categoriais faz correr o risco de que a autonomia relativa destes -- isto é, o fato de que eles estão, de um ponto de vista formal, ligados à realidade por intermédio do veículo ideológico-conceptual do patrimônio das abstrações transmitido pelas gerações anteriores -- seja considerada como uma autonomia absoluta, ou, em suma, que nasça a ilusão segundo a qual as ideias são puras e o pensamento é criador até mesmo do concreto, além do abstrato.

Depois de as ideias que dominam uma época serem separadas (...) das relações que decorrem de um estágio dado do modo de produção, torna-se fácil, observa Marx, estabelecer um laço místico entre as idéias dominantes sucessivas,40  apresentá-las como uma pura proliferação de ideias a ideias (como se, dirá Gramsci ironicamente, a história da filosofia tivesse um desenvolvimento porque a um grande filósofo sucede um filósofo maior41 ), e ao mesmo tempo considerar os pensamentos, as ideias, a expressão conceptual, tornada autônoma, do mundo existente, como o fundamento desse mundo existente. 42

Contudo, as ideias filosóficas -- e não só estas, mas também as abstrações conceptuais em geral -- são também produções humanas no sentido próprio do termo, produtos dos homens no campo da atividade mental da mesma forma como, na esfera da estrutura, são produtos dos homens o tecido de lã e o morim, bem como as relações sociais dentro das quais eles elabora o morim e a lã.

Isto representa, a partir de A Ideologia Alemã, uma aquisição definitiva nos escritos marxianos que, de um ponto de vista metodológico geral, alimenta também o discurso de Marx em Contribuição à Crítica da Economia Política.  Assim, a Introdução de 1857 parece-nos o texto do qual uma historiografia filosófica pode extrair indicações essenciais. Se é certo que a tarefa do historiador marxista da filosofia não é unicamente localizar o verdadeiro vinculo que liga as elaborações filosóficas (ideológicas) às relações subjacentes da produção material de uma dada formação econômico-social, mas principalmente explicar:

a) as mediações formais entre estas e aquelas ao nível de categorias ou de abstrações mentais. Seja, o lado formal, o modo especifico segundo o qual as representações ideológicas se constituem, Engels;

b) o processo de transmissão -- tecnicamente ligado a esse lado formal -- no decorrer do qual um patrimônio ideológico precedente passa à época sucessiva e, finalmente, a ação reciproca e de retorno que a ideologia (aqui sob a aparência de elaborações filosóficas) exerce sobre o terreno da estrutura econômico-social da qual ela nasceu.

Falando desses produtos da abstração que são as categorias da economia política, Marx as compara explicitamente aos produtos da consciência filosófica, ao ponto de incluir na lista que, no final da Introdução, enumera as questões ainda propostas e a desenvolver com base nos critérios de método estabelecidos para tratar das abstrações econômicas, mesmo o problema da historiografia filosófica. Entre os pontos a mencionar e que não devem ser esquecidos, há, com efeito, o que trata das relações entre a história idealista tal como foi descrita até aqui e a história real, e das diferentes espécies de história escrita até agora, inclusive a história dita objetiva, já fustigada por Marx em A Ideologia Alemã, e semelhante a ela, a história filosófica.43

Portanto, não parece arbitrário, pelo menos como hipótese de trabalho, tentar estender às categorias filosóficas e à sua história os enunciados de método estabelecidos por Marx para as categorias econômicas e seu desenvolvimento histórico.

A consciência filosófica -- escreve Marx na terceira secção (O método da economia política) da Introdução de 1857 -- é feita de tal modo que para ela o pensamento que concebe constitui o homem real e, em consequência, o mundo só aparece como real depois de concebido. Do ponto de vista da consciência, o movimento das categorias aparece como o ato da produção real (...) cujo resultado é o mundo. Do ponto de vista da consciência -- portanto, também do ponto de vista da consciência filosófica --, isso é tautológica mente exato,

na medida em que a totalidade concreta como totalidade pensada, como representação mental do concreto, é na realidade um produto do pensamento;44  por outras palavras, o conjunto da elaboração de conceitos a partir da visão imediata da representação (...) tal como aparece no espirito como uma totalidade pensada é um produto do cérebro pensante, que se apropria do mundo da única maneira que lhe seja possível.45

O fato de servir-se de abstrações para explicar o concreto -- e o espírito não tem outros meios -- é a maneira particular como o pensamento, não cria o concreto material (contra a ilusão idealista de Hegel!), mas simplesmente o reproduz sob a forma de um concreto pensado, como uma síntese de múltiplas determinações, logo unidade da diversidade.46

O verdadeiro ponto de partida de que se formam as categorias, a partir da visão e da representação (Marx já havia dito isso claramente em A Ideologia Alemã) é o real material, a economia, os modos de produção e as relações sociais, mas este é um ponto de partida que não é diretamente visível nas categorias, pois aparece nelas sob as formas como foi mediatizado pelo pensamento, pela reprodução mental do concreto material. Os filósofos também, assim como os economistas, de que Marx trata especificamente, passando da intuição e da representação do concreto a abstrações cada vez mais finas,47 a categorias mais gerais e mais simples, acabam sempre extraindo pela análise algumas relações gerais abstratas determinantes48 que constituem em seguida as estruturas conceptuais que são o arcabouço dos sistemas filosóficos.

Lemos em Marx que logo que esses fatores isolados, isto é, as relações gerais, se tornaram mais ou menos fixados e abstraídos, os sistemas econômicos tiveram início: mas não pode haver dúvida sobre a analogia entre o processo de formação dos dois tipos de categorias, econômicas e filosóficas, e dos sistemas que a elas se relacionam, pois o texto de Marx o destaca intencionalmente.

Os materiais de que trata o historiador da filosofia não são, pois, o concreto real, o ponto de partida verdadeiro, mas o abstrato, as categorias, as formas conceptuais, as abstrações já estabelecidas, o concreto já mediatizado e elaborado pelo pensamento numa síntese de múltiplas determinações em que ele aparece (... ) como resultado, não como ponto de partida, se bem que na realidade, na qualidade de concreto material do qual partiu o processo todo inteiro, ele seja o verdadeiro ponto de partida e, em consequência, também o ponto de partida da visão imediata e da representação.49

Portanto, mesmo a mais simples e a mais geral das categorias jamais pode existir sob outra forma que não seja a de relação unilateral e abstrata de um todo concreto, vivo, já dado.50  A unilateralidade e a abstração provêm do fato de que, se o processo se interrompe neste momento, isto é, no momento em que, da intuição e da representação do concreto, se passou às abstrações categoriais, a plenitude do concreto representado é reduzida a uma abstrata determinação,51  quer dizer, perde seu próprio valor de co-elemento gnóstico na síntese cognitiva, e a representação em si, superada na pura abstração, adquire, ao contrário, um conteúdo caótico que é inteiramente empírico  não  mediatizada, isto é controlada.  Só fazendo novamente a viagem em sentido contrário a partir das formas categoriais gerais abstratas, para chegar de novo aos pontos de partida reais, ao concreto real já dado (ou tema real), mas não, desta vez, a representação caótica de um todo, mas urna rica totalidade de determinações e de relações numerosas,52  se chega ao método científico correto e se obtém a justa e correta reprodução do concreto pela via do pensamento,53  ajusta e correta síntese de múltiplas determinações, nem abstrata nem unilateral, isto é, justamente, não forçada indevidamente, mas na qual -- como em todo método teórico, e o método historiográfico é indubitavelmente teórico -- o tema, a sociedade, permanece constantemente presente no espírito como dado primordial.54

Examinamos assim, seguindo o texto da Introdução de 1857, que círculo complicado as produções humanas que as categorias são (exprimindo formas de existência, condições de existência determinadas de uma sociedade dada55 ) descrevem, reproduzindo, bem ou mal, corretamente ou não, o concreto material, que papel determinante assume, nesse processo de reprodução, o lado formal específico dessas categorias, de que falava Engels.

É a esse lado formal que precisamos voltar agora, seus diferentes aspectos permitindo-nos conduzir para uma solução a dificuldade principal de uma historiografia marxista da filosofia, isto é, dar sucessão histórica do patrimônio categorial, da transmissão deste de uma época para outra ao nível de formas ideológicas, uma explicação que não seja nem mítica nem mística (o vínculo místico entre ideias dominantes sucessivas: Marx), mas materialístico-histórica sem, contudo, recair nos esquemas mecanicistas legitimamente denunciados pelo marxista Galvano Delia Volpe pelo que eles são, ou seja, junções empíricas, extrínsecas, entre superestrutura e estrutura, com, por exemplo, Plekhánov tinha o costume de fazer.56


Características comuns gerais e específicas determinadas das categorias

Comecemos perguntando-nos, com Marx, o que torna gerais as categorias gerais, isto é, as abstrações mais simples cuja ligação com seus próprios dados primeiros reais não é imediatamente visível.

Aplicando a essas produções humanas que são as categorias (abstrações) filosóficas o que Marx diz das categorias (abstrações) econômicas, diremos que todas as épocas da produção, portanto, da produção filosófica também, têm certas características comuns, certas determinações comuns. A abstração em geral é uma abstração racional na medida em que, salientando e precisando bem os traços comuns, ela nos evita a repetição do processo mental em virtude do qual esse elemento comum foi, pouco a pouco, no decorrer da história do pensamento, destacado graças à comparação dos outros elementos colaterais do objeto de análise em questão. Isso significa que, dentre as características de uma categoria, algumas pertencem a todas as épocas, outras são comuns a algumas apenas; e certas dessas determinações categoriais aparecerão comuns tanto à época mais moderna como à mais antiga, e, sem elas, não se pode conceber nenhuma produção,  inclusive, por conseguinte, a produção das ideologias também. Mas "esse geral, isto é, o elemento comum abstrato, requer em si, para poder aparecer, dados primordiais históricos reais concretos; veremos isso mais adiante.

Nessa passagem, Marx ilustra a estrutura das abstrações gerais, com o exemplo das línguas, exemplo muito claro para mos-trar que aqui também se trata do movimento das categorias filosóficas; da mesma forma, em A Ideologia Alemã ele havia evidenciado o vínculo estreito que liga a linguagem e a filosofia: a realidade imediata do pensamento é a linguagem ; não obstante, na linguagem filosófica, os pensamentos, na qualidade de palavras, têm um conteúdo próprio.58  Esse conteúdo particular, isto é, o material categorial diversificado e diversamente articulado que a filosofia utiliza, compreende também, no entanto, justamente, as abstrações gerais.

A Ideologia Alemã havia dado uma apreciação fortemente restritiva dessas abstrações gerais. Visto que, destacadas da história real, essas abstrações não têm absolutamente nenhum valor, sua função historiográfica é, no máximo, servir para classificar mais facilmente a matéria histórica, isto é, muito simplesmente, indicar a sucessão de suas estratificações particulares, fornecer uma síntese dos resultados mais gerais que é possível abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens.59  A verdadeira dificuldade, a saber, a utilização das categorias no contexto determinado, diz-nos ainda Marx logo depois, começa quando nos pomos a estudar e a classificar uma matéria concreta e circunstanciada; e só superamos essa dificuldade partindo de premissas que resultem do estudo do processo de vida real e da ação dos indivíduos de cada época60'. A dificuldade deixada em aberto aqui, que é simultaneamente de natureza lógica e histórico-metodológica, chega a uma solução, na Introdução de 1857, com a localiza-ção: a) dos aspectos gerais e comuns a diversas épocas das categorias; b) de suas diferenças específicas ou determinadas conforme cada época, c) do fato de que as mesmas abstrações muito gerais, em virtude das premissas reais que as provocaram, são, por sua vez, indício de condições históricas particulares e mesmo só são práti-camente verdadeiras no contexto destas. 

Voltando ao exemplo das línguas, no qual a exposição anterior de A Ideologia Alemã nos autoriza a substituir o termo línguas pelos de filosofias ou ideologias: daí resulta que de certa forma as filosofias ou as ideologias mais desenvolvidas têm leis e determinações comuns com as que são menos desenvolvidas; enquanto que, por outro lado, elas são dessemelhantes em relação a esse elemento geral, justamente em virtude dessa especificidade que constitui seu desenvolvimento, histórico, evidentemente.

O método correto da análise historiográfica faz então com que, nas determinações que valem para a produção em geral, portanto, também para a produção das filosofias e das ideologias, se isole o aspecto da sua unidade ou da sua comunidade durante várias épocas61   (aliás uma unidade e uma comunidade de fato, impostas pelo fato material, já assinalado por Marx em A Ideologia Alemã, de que esses pensamentos estão realmente ligados entre si pela base empírica 62); mas que, em proveito do lado comum, que, sem o que seria apenas uma má abstração unilateral, não se esqueça a diferença essencial,63 neste caso a conotação histórica específica com que se apresentam as categorias filosóficas no decorrer das diversas épocas .e que lhes confere a sua validade e a sua verdade prática; ao nível das ideologias.

Entretanto, por outro lado -- e isto é descoberta de Marx na Introdução de 1857 o caráter de maior abstração formal que as categorias mais simples e muito gerais têm é, ele mesmo, um lado formal historicamente determinado, no sentido de que corresponde a (e de que é provocado por) relações reais que são próprias de uma sociedade desenvolvida.

Da análise da categoria de Smith sobre o trabalho em geral, Marx conclui de fato que essa abstração mais simples, que a economia política moderna coloca em primeira ordem e que exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, não aparece, contudo, sob essa forma abstrata como verdade prática, isto é, sob seu aspecto histórico, especifico, determinado de abstração, senão na qualidade de categoria da sociedade mais moderna,64  neste caso a sociedade industrial no que se refere à categoria do trabalho em geral. Mas um pouco mais acima, no texto da Introdução de 1856, Marx havia aplicado sua formulação às abstrações em todos os domínios, e não unicamente às da economia política: as abstrações gerais, quaisquer que sejam, no fim de contas só têm nascimento com o desenvolvimento concreto mais rico, em que uma característica surge como comum a muitos, como comum a todos. Deixa-se então de poder penar isso apenas sob uma forma particular.65  O que Marx dirá mais tarde em O Capital acerca das épocas econômicas -- é menos o que se fabrica que a maneira de fabricar, os meios pelos quais se fabrica" -- parece, portanto, convir também à produção das ideologias, no interior da qual a característica distintiva certamente não é o produto, isto é, a ideologia como tal, mas mesmo o modo como é produzido.  Por outras palavras, é a articulação diversificada e específica dos instrumentos categoriais de que se serve o pensamento que nos permite decididamente distinguir, mesmo ao nível formal, as diferentes épocas filosóficas.

Neste ponto da análise do texto de Marx, parece-nos que os critérios metodológicos para uma historiografia marxista da filosofia começam, a se delinear cada vez melhor.

O objeto da análise é constituído pelas superestruturas filosóficas e sua morfologia histórica. Esta é caracterizada por uma sucessão histórica de elaborações categoriais, pela transmissão e a recepção ou pela transformação -- de uma época para outra -- de um patrimônio ideológico. Porém transmissão, recepção e transformação se fazem precisamente por intermédio dos veículos que são não as categorias como entidades mentais indiferenciadas (ou, pior ainda, como hipótese em relações conceptuais eternas e válidas para todos os contextos históricos), mas na verdade as categorias articuladas conforme as suas características comuns a várias épocas e especificas de uma época determinada; portanto, é através do jogo e da ligação dialética das duas características desse elemento conotativo formal que transparecem, através do filtro das categorias sob a ótica do seu emprego histórico, os condicionamentos materiais
.
Se este é o resultado metodológico que parece legítimo deduzir da Introdução de 1857, resultado que influencia diretamente o trabalho do historiador da filosofia, isto é, daquele que trabalha no campo muito particular das produções ideológicas, é preciso salientar enfim que, justamente sob essa ótica, a Introdução, estabelece uma ponte entre as formulações marxianas clássicas do materialismo histórico e as observações de certo modo autocriticas de Engels a esse respeito.  Oferecem ao problema das relações estrutura/superestrutura a indispensável solução integrativa ao nível da analise técnico-formal das categorias.  A Introdução, por conseguinte, representa realmente um texto-chave que não se pode ignorar, uma metodologia marxista da historiografia filosófica.


N o t a s  b i b l i o g r à f i c a s :

29. “Apreciação da Contribuição à Crítica da Economia Política”, in Das Volk, 6 e 20 de agosto de 1859, in Estudos Filosóficos, pp. 127.

30. Ibidem.

31. Marx, Karl Contribuição ... pp 4, 5.

32. Gramsci, Antonio: O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce, Roma, 1971. p. 175..

33. Ibidem.

34. Ibidem.

35. Ibidem.

36. Ibidem.

37. Ibidem.

38. Ibidem.

39. Ibidem

40. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã. pp. 77-78.

41. GRAMSCI, Antonio. O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce.

42. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, pp. 77-78.

43. MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política, pp. 172-173.

44. Ibidem, p. 165.

45. Ibidem, p. 166.

46. Ibidem, p. 165.

47. Ibidem, p. 164.

48. Ibidem, p. 165.

49. Ibidem, p. 165 (grifos em itálico de Nicolao Merker).

50. Ibidem, p. 165.

51. Ibidem, p. 165
.
52. Ibidem, p. 165.

53. Ibidem, p. 165
.
54. Ibidem, p. 166.

55. Ibidem, p. 170.

56. DELLA VOLPE, Galvano. A Lógica como Ciência Positiva", 1950; atualmente em Obras, sob a direção de I. Ambrogio. Roma, 1972-1973, tomo 4, p.590.

57. MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política, pp. 150-151.

58. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, p. 489.

59. Ibidem, pp. 51-52.

60. Ibidem, p. 52.

61. MARX, Karl. Contribuição à. , p. 151.

62. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, p. 80

63. MARX, Karl. Contribuição à. , p. 151.

64. Ibidem, p. 169 (grifos em itálico de Nicolao Merker).

65. Ibidem, p. 168.


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