domingo, 9 de março de 2014

POR UMA HISTORIOGRAFIA MARXISTA DA FILOSOFIA – Parte I


Nicolao Merker - (1931 – ), ensaísta, comunista militante, filosofo, historiador e  docente universitário italiano.

Artigo extraído de Marxismo e storia delle idee, pp. 115 a 47, Editori Riuniti, Roma, 1974.

Tradução: Frank Svensson

Nota do tradutor: O interesse pelo conteúdo do texto aqui apresentado deve-se ao fato de que crítica da arquitetura na formação de seus profissionais limita-se sobremodo à oferta de disciplina Teoria e História da Arquitetura, reduzindol o conhecimento da mesma à sua historiografia..


Produção material e produção das idéias

Uma historiografia filosófica de orientação marxista ou materialista-histórica evidentemente não pode fazer abstração, como ponto de partida do seu método, das indicações sobre o caráter superestrutural dos próprios fatos filosóficos. Por outras palavras, dos problemas e dos sistemas da filosofia sob o seu aspecto de elaborações ideológicas correspondentes a estruturas econômico-sociais históricas). Indicações essas dadas por Marx em A Ideologia Alemã (1845-1846), no prefácio de Contribuição à Critica da Economia Política (1859), bem como em outras obras. A produção das ideias, das representações e da consciência -- reza uma passagem célebre de A Ideologia Alemã

...está de início direta ou indiretamente entressachada com a atividade material e com as relações materiais dos homens; ela é a linguagem da vida real.

Esse laço íntimo e direto significa que

são os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, que agem, tais como são condicionados por um desenvolvimento dado das suas forças produtivas e das relações a elas correspondentes, inclusive as formas mais amplas que essas relações podem assumir.

O desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos desse processo vital não se explica senão com base no processo real, já que mesmo as fantasmagorias do cérebro humano são sublimações que resultam necessariamente do processo da sua vida material que se pode verificar empiricamente e que se assenta em bases materiais.

      A isso acrescenta-se uma carta de Marx a Annenkov de 28 de dezembro de 1846:

( ) os homens, que produzem as relações sociais de conformidade com a sua produtividade material, produzem também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais; portanto, as categorias são tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem e elas são produtos históricos e transi-tórios.2

Chegamos enfim às célebres formulações de 1859 sobre o modo de produção da vida material, o qual condiciona, de modo geral, o processo social, político e espiritual da vida; por conseguinte, na impossibilidade de julgar uma época pela sua consciência de si, visto que é preciso, ao contrario, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forcas produtivas sociais e as relações de produção; e chegamos a seguinte constatação:

A humanidade nunca se propõe senão problemas que ela possa resolver; pois olhando mais de perto, ver-se-á sempre que o próprio problema só surge onde as condições materiais de resolve-lo  já existiam ou pelo menos estejam em vias de se concretizar.

É absolutamente necessário insistir, de vários pontos de vista (historiografia filosófica, método de pesquisa em historia da filosofia) no fato de que as alterações ideológicas dependem objetivamente das estruturas especificas de uma formação econômico-social. S6 desta maneira -- citando Marx mais uma vez, o Marx de A Ideologia Alemã -- é possível libertar a historiografia filosofica dessa maneira de proceder especulativa em todos os pontos, que consiste em achar que o filosofo extrai as suas teorias não "das relações reais existentes entre os outros homens e ele, mas que, em vez disso, as elabora graças a uma reflexão e uma vontade puras.4    Método em virtude do qual, transformando as relações reais em especulação, a filosofia liquida as relações reais, ou seja, as relações sociais existentes, como a realização imaginaria concreta das categorias que aparentemente e de forma abstrata haviam sido deduzidas precisamente dessas mesmas relações empíricas.

O quadro que Marx faz, por exemplo, da ética kantiana como ponto culminante da elaboração filosófica do século XVIII alemão é uma ilustração luminosa disso. Enquanto a burguesia francesa se alçava ao poder -- escreveu ele em A Ideologia Alemã, enquanto a burguesia inglesa, já emancipada politicamente, revolucionava a industria e dominava politicamente a Índia e, comercialmente, todo o resto do mundo, os burgueses alemães, impotentes, só conseguiram chegar a 'boa vontade'. Kant satisfazia-se com a simples 'boa vontade', mesmo ela não tendo nenhum resultado, e transferia para mais adiante a realização dessa boa vontade, a harmonia entre ela e as necessidades, os instintos dos indivíduos.

Essa boa vontade de Kant é o reflexo exato da impotência, do desanimo e da miséria dos burgueses alemães, cujos interesses mesquinhos nunca conseguiram se desenvolver para incarnar os interesses nacionais comuns a uma classe, o que lhes custou serem explorados continuamente pelos burgueses de todas as outras nações ( ). Foi por isso que Kant isolou essa expressão te6rica das necessidades que ela exprimia. A vontade do burguês francês e suas determinantes, que eram motivadas pela situação material, ele as converteu em autodeterminações puras da vontade livre, da vontade em si e para si, da vontade humana, transformando-as assim em determinações conceptuais puramente ideológicas e em postulados morais.5   Portanto, com a conclusão final de que toda a filosofia alemã moderna, inclusive Hegel e seus epígonos de esquerda, é uma consequência das relações pequeno-burguesas alemãs.6  

Da mesma maneira, lembrando outro exemplo de Marx, foi a partir de uma crise real nas relações sociais, a partir da desagregação do mundo antigo por conflitos práticos que os filósofos antigos, os gregos da época de Alexandre, por uma procura que já era um sintoma da decadência interna desse mundo, foram impelidos a penetrar na verdade do seu mundo e, naturalmente, descobriram então que ele havia deixado de ser verdadeiro: Portanto, para apreciar corretamente o verdadeiro significado da última filosofia antiga na época da desagregação da Antiguidade, bastaria principalmente examinar a situação real imposta a seus adeptos sob a dominação romana.8

O que existe atrás desses exemplos dados por Marx é a exigência de efetuar o estudo das produções filosóficas de qualquer época que seja de modo a, antes de tudo, colocar essa época sobre o seu suporte econômico, como disse Mehring a respeito de suas próprias pesquisas sobre o século XVIII alemão. Sabe-se que, sem ir mais longe, o conceito da miséria alemã, o marasmo econômico-social e político de fundo que caracterizou a Alemanha durante os séculos XVIII e XIX, elevou-se ao nível de uma verdadeira categoria historiográfica.  Que se pense em Lukács, mas também, bem antes, em Ludwig Feuerbach, de Engels para explicar, justamente em relação com o módulo clássico do materialismo histórico, a gênese e as contradições teóricas da filosofia clássica alemã.
   
Ora, pôr uma época sobre seu suporte econômico é um ponto de partida necessário e justo da pesquisa filosófica por dois motivos:

1°) porque toda elaboração conceptual teórica é de modo geral, em cada época (de fato e abstração feita de outra coisa por ora), uma maneira de responder a e de ir à frente -- ao plano formal --- de solicitações histórico-materiais que emergem, em última análise, da estrutura econômico social dessa época; e

2°) porque, partindo dali, o historiador da filosofia obtém, para aprender o seu estudo, um ângulo visual que, pelo menos tendencialmente, subtrai a época ao relativismo subjetivista daquilo que ela pensa de si mesma.
Obtém-se assim um ponto de vista que não é forçado a se deter ante a descrição que uma dada época oferece dela mesma nem a aceitá-la de olhos fechados, quando seus representantes filosóficos proclamam, por exemplo, que se trataria de uma época determinada pela autoconsciência ou qualquer outra categoria análoga, como se a ideia ou o espírito puro não fossem, na realidade, as formas ideológicas de que os motivos reais de tal ou tal época se revestiram.9

Precisamente a historiografia pretensamente objetiva -- que consiste em conceber as relações históricas separadas da atividade,10   separadas, portanto, dos homens, que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, ao mesmo tempo transformam a sua realidade bem como seu pensamento e os produtos do seu pensamento11 -- acredita piamente no que cada época diz de si mesma e nas ilusões que entretém sobre si,12  toma ao pé da letra todas as ilusões dessas épocas e as ilusões filosóficas acerca dessas ilusões.13   Assim sendo, se a forma rudimentar como se apresenta a divisão do trabalho entre os indianos e entre os egípcios origina entre esses povos um regime de castas no seu Estado e na sua religião, o historiador objetivo, que efetuou a separação idealista entre os homens reais e suas representações, acredita que o sistema de castas foi a potência que engendrou essa forma social rudimentar,14 como também, em épocas menos recuadas, se esses historiadores da teoria pura se fundamentam com os temas históricos reais, como, por exemplo, o século XVIII tratado à maneira de Bruno Bauer, sucede-lhes dar apenas a história das representações, isolada dos fatos e dos desenvolvimentos práticos que constituem sua base.15

Assim, observará mais tarde Engels, o ideólogo que trabalha com um material puramente intelectual possui em todos os domínios superestruturais uma matéria que, segundo ele,

formou-se de maneira independente no pensamento das gerações anterio-res e que sofreu sua própria série independente de desenvolvimentos nos cérebros dessas gerações sucessivas,16 

razão pela qual, como Marx já observava em A Ideologia Alemã, uma vez admitido que só as ideias e os pensamentos dominaram a história passada, depois de transformada "a história real dos homens", torna-se muito fácil denominar história do 'homem' a história da consciência, das ideias ( ), das representações estereotipadas, e substituir a história real por ela,17  separar o reflexo ideal dos conflitos reais dos próprios conflitos18  e torná-lo independente; numa palavra, descrever um desenvolvimento e uma história das ideias, um puro encadeamento de ideias e ideias, depois de as haver separado dos indivíduos e de suas condições empíricas, que lhes servem de base.19  


Pôr tudo sobre um suporte econômico ?

E apesar disso, assentar tudo sobre uma base econômica não constitui um critério mais justo, nem um critério suficiente; ao contrário, é um critério perigosamente restritivo para urna historiografia filosófica marxista, que com isso seria reduzida a um esquematismo simplista, no caso em que as teorias filosóficas de uma época teriam de ser interpretadas como sendo condicionadas pela estrutura econômico-social de modo imediato, como se entre a base econômico-social e as elaborações conceituais (super-estruturais) existisse uma correspondência pontual mecânica e determinista. Se nos limitássemos a isso, o método teria precisamente as mesmas carências do materialismo do objeto, carências assinaladas por Marx em Teses sobre Feuerbach. de 1845; por outras palavras, tratar-se-ia (terceira tese) da simples doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação, que, esquecendo que são precisos homens para modificar as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado,20  detém-se na recepção teórica das circunstâncias materiais, no seu protocolo, sem chegar a propor os instrumentos conceptuais como outros meios formais graças aos quais, conscientemente ou não, e mesmo quando ele exclui isso em teoria, o filósofo exerce de fato uma intervenção prática nas próprias circunstâncias.

Todos nós -- escreveu Engels a Mehring em julho de 1893, preocupado como estava com a possibilidade de o critério metodológico marxiano se desnaturar em conclusões prematuras e unilaterais –

em primeiro lugar temos chamado atenção, e devemos ter chamado atenção principalmente para a necessidade de que as representações políticas, jurídicas e ideológicas em geral, assim como as ações mediatas dessas representações, sejam deduzidas dos fatos econômicos fundamentais. Todavia, assim fazendo, negligenciamos em seguida, em proveito do lado do conteúdo, o da forma, por outras palavras, o modo específico, segundo o qual essas representações etc. se constituam.21 

Essa exortação a uma escrupulosa prudência de método, em proveito da qual — apesar da dependência do pensamento (do lado do conteúdo) da realidade material (histórica, econômica) -- não se deveria abandonar apesar de tudo o estudo do lado da forma, isto é, a procura dos processos específicos de mediação pelos quais a realidade se traduz em pensamento, e o pensamento, em ação prática, essa exortação já estava implícita em outra carta célebre de Engels, esta dirigida a Joseph Bloch, de 21 de setembro de 1890, na qual Engels declarava:

... diante dos nossos adversários, deveríamos ter salientado o princípio essencial que eles negavam o (fator econômico, a produção etc.) e, naquela época, nem sempre achá-vamos o tempo, o lugar nem a ocasião de dar aos outros fatores que participavam da ação recíproca o seu lugar,22, ou seja, aos diferentes momentos da superestrutura que também exercem a sua ação no decorrer das lutas históricas e, em muitos casos, determinam a sua forma de uma maneira preponderante. 23

Finalmente, numa carta a Conrad Schmidt de 27 de outubro de 1890, depois de observar que no século XVIII a filosofia e a literatura na França e na Alemanha certamente também foram resultado de um desenvolvimento econômico, Engels, todavia, particularizava logo que nesse domínio das superestruturas

a economia não cria nada diretamente dela mesma, mas determina a espécie de modificação e de desenvolvimento da matéria intelectual existente, transmitida pelos predecessores, e quase sempre de maneira indireta, pois são os reflexos políticos, jurídicos e morais que exercem a maior ação direta sobre a filosofia.24

Em 1892, no prefácio da edição inglesa de Socialismo Utópico e Socialismo Cientifico, Engels repetia ainda que as ideias jurídicas, filosóficas e religiosas não são derivações mecânicas e diretas da economia, mas os produtos mais ou menos distantes das relações econômicas dominantes numa dada sociedade.25

Consideremos ainda as passagens de A Ideologia Alemã referentes à maneira como cada geração utiliza para seus próprios fins e em situações modificadas o patrimônio ideológico do passado, e teremos uma ideia suficientemente completa das indicações que o historiador da filosofia pode encontrar na teoria geral do materialismo histórico. Em cada época da história, o mundo é

um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações cada uma das quais se erguia sobre os ombros da anterior, aperfeiçoava sua indústria e seu comércio e modificava seu regime social em função da transformação das necessidades.26

Por conseguinte, a história não é outra coisa senão a

sucessão das diferentes gerações, cada uma explorando os materiais ( ) que lhe foram transmitidos pelas anteriores, e por isso mesmo, cada geração continua, pois, por um lado, o modo de atividade que lhe é transmitido, mas em circunstâncias radicalmente transformadas e, por outro lado, essa geração modifica as antigas circunstâncias entregando-se a uma atividade radicalmente diferente.27

De modo que as gerações posteriores são condicionadas na sua existência ( ) pelas que as precederam, recebem destas as forças produtivas que acumularam e seus métodos de permutas, o que condiciona a estrutura das relações que se estabelecem entre as gerações atuais.28


N o t a s   b i b l i o g r á f i c a s :

01. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã. Paris, Editions Sociales, 1968,p. 51.

02. MARX, Karl. Estudos Filosóficos. Paris, Editions Sociales, 1968, p.149.

03.-. Prefácio de 1859 a Contribuição à Critica da Economia Política. Paris, Éditions Sociales, p. 5.

04. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, p. 78.

05. Ibidem, pp. 220-222
.
06. Ibidem, p. 223.

07. Ibidem, p. 159.

08. Ibidem, p. 165.

09. Ibidem, p. 71.

10. Ibidem, p. 71 (nota de Marx à margem).


11. Ibidem, p. 51.

12 Ibidem, p. 79.

13. Ibidem, p. 167.

14. Ibidem, p. 71.

15. Ibidem, p. 73. Marx faz referência a Geschichte der Politik, Kultur und Aufklãrung das achtzehnten Jahrhunderts (História da Política, da Cultura e do Iluminismo do Século XVIII), de Bruno Bauer. 2 vols.,Charlottenburg, 1843-1845.

16. MARX & ENGELS. "Carta a Franz Mehring de 14 de julho de 1893", in Estudos Filosóficos. Éditons Sociales, Paris, 1974, p. 249.

17. A Ideologia Alemã, p. 211.

18. Ibidem, p. 212.

19. lidem, p. 363.

20. MARX & ENGELS. Estudos Filosóficos, p. 48.

21. Obras Completas. Berlim, 1968, tomo XXXIX, p. 96
.
22. Estudos Filosóficos, p. 240.

23. Ibidem, p. 238.

24. Ibidem, p. 246.

25. Socialismo Utópico e Socialismo Científico. Éditions Sociales, 1969, 68. Ibidem, p. 170.

26. MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã, p. 55.

27. Ibidem, p. 65.


28. Ibidem, p. 481.


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