domingo, 5 de janeiro de 2014

NOVAS VILAS PARA O BRASIL COLÓNIA Planejamento espacial e social no século XVIII Parte V




Roberta Marx Delson

Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto


Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em coautoria com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.



Um repertório dos princípios de construção: São Paulo e o Sul

Uma das melhores indicações da reação entusiástica que a nova política urbana suscitou entre os administradores portugueses foi a sua rápida propagação por todas as regiões da colônia. No Sul, os primeiros passos em direção à aplicação de planos diretores urbanos foram dados com atinência a programas de renovação de centros urbanos já existentes. Nos anos 1730 e até meados do século, a política portuguesa foi redirecionada para a formação de novas comunidades a fim de preservar as zonas sulinas das incursões espanholas. Foi nessa conjuntura que a Coroa financiou um extenso programa de imigração europeia, contratando engenheiros recém-formados para projetar e administrar as colônias subsidiadas. Embora uma apreciação detalhada do planejamento dos centros urbanos maiores fuja um pouco ao tema em pauta, naquela mesma época foram desenvolvidos certos conceitos básicos nesse tocante.

Nas cidades mais antigas, os portugueses estavam interessados principalmente em estabelecer a credibilidade do conceito de domínio público e a aceitação da soberania da Coroa sobre zonas até então despovoadas. A situação era particularmente precária no Rio de Janeiro, onde a destruição ocasionada pelo saque da cidade pelos franceses em 1711 havia obrigado muitos habitantes a procurarem novos domicílios. Ademais, a questão da disponibilidade de áreas tornou-se crítica depois de 1713, quando o engenheiro João Massé começou a executar a sua missão de construir um novo sistema de fortificações em torno da metrópole. A construção de uma muralha de contenção no único lado da cidade contíguo a terra plana ainda não habitada isolou a área principal onde o excesso de população se havia estabelecido. Para piorar a situação, em 1725 a Coroa proibiu a construção de mais casas na beira-mar.1  Com o acesso às duas áreas de expansão tradicionalmente utilizadas negado, os cidadãos apelaram para a Câmara Municipal, que então apresentou o caso à Coroa.2  Lisboa aproveitou a oportunidade para reforçar as prerrogativas reais em questões de terras, determinando que a orla marítima não podia receber mais habitantes, pois o mar e a praia eram de todos,3  porém revogando a proibição de construir nas planícies adjacentes à cidade.4

Uma situação semelhante havia surgido em São Paulo.  Com a partida de tantos paulistas em demanda dos campos auríferos, o centro da urbe (ambiciosamente promovida à categoria de cidade em 1711), havia perdido a noção de espírito coletivo e [havia sofrido] um abandono quase completo da vida municipal.5 Nessas circunstâncias, não é nada surpreendente que durante esse período o rossio, um grande terreno municipal reservado para o uso da comunidade e parte do patrimônio da cidade (e, por extensão, da Coroa), tenha sido parcelado e concedido a particulares. Essa prática estava tão profundamente arraigada que até mesmo o capitão-mor da cidade, Pedro Taques de Almeida, tinha tirado partido dela e mostrou-se indignado quando os seus direitos a essa terra foram contestados.6

Em relação tanto a São Paulo como ao Rio de Janeiro, o interesse imediato da Coroa tinha sido demonstrar que a sua autoridade em decisões sobre terras tinha maior peso que quaisquer costumes locais. Em alguns dos centros urbanos menos importantes do Sul, as primeiras décadas do século também foram marcadas por programas orientados para a redefinição dos direitos sobre a terra e seu uso. Em tais centros, como em projetos semelhantes para o interior, a reavaliação do desenvolvimento urbano  potencial foi confiada às autoridades da Coroa, e não às câmaras locais incapazes.  O levanta-mento administrado em Curitiba e Paranaguá, ambas pertencentes à Comarca de Paranaguá, ilustra a maneira como o governo real achava que podia intervir no desenvolvimento até então aleatório dessas antigas comunidades.

Na década de 1720, Raphael Pires Pardinho, ouvidor-geral da Capitania de São Paulo, viajou para o sul, até essas penúltimas aglomerações urbanas do Estado, com a finalidade de introduzir melhoramentos e reformar essas vilas como se elas, fossem recriadas do começo.7 No conjunto de ordens de remodelação emitido posteriormente para a cidade de Paranaguá, procurou-se fazer exatamente isso; daí em diante as ruas seriam traçadas a cordel, e as casas não seriam mais construídas no mato, mas concentrar-se-iam na própria cidade, pegadas mesmo umas às outras. O raciocínio subjacente a essa diretriz era que as casas dispersas pelo mato estariam mais sujeitas a ataques (supostamente por índios) e também prejudicariam a homogeneidade da configuração da cidade.8

Como última providência, Pardinho mandou demolir a proliferação urbana em frente da Igreja Matriz a fim de criar um bulevar espaçoso que ia ter à igreja. Essa avenida para procissões deveria medir pelo menos 40 palmos (8,8m) de largura, para que a própria igreja se tornasse

mais decente e mais visível, um belo toque de monumentalismo barroco no interior brasileiro. Quanto a Curitiba, Pardinho, de forma semelhante, estatuiu que quem quisesse construir casas na cidade deveria primeiramente solicitar o consentimento da Câmara, que então designaria um terreno para construção previamente alinhado.9

Se administradores sem nenhuma instrução em arquitetura (como Pardinho) podiam aplicar o novo estilo urbano com tanto entusiasmo, era evidente que um engenheiro qualificado egresso de uma academia poderia supervisionar à urbanização com muito maior eficiência. Esses engenheiros militares, com sua formação superior e seus pendores pela matemática, encaixar-se-iam bem nos planos de Portugal para o Sul do Brasil. Além disso, a precisão e organização da mentalidade militar combinavam bem com o modelo de ordem que a Coroa estava procurando projetar no sertão.

No decurso dos anos 1730, a ciência da engenharia tinha se tornado quase uma paixão na Europa; o engenheiro militar mais famoso da época, Azevedo Fortes, foi contratado pela família real portuguesa para instruir ninguém menos que o príncipe Dom Antônio nos rudimentos da sua profissão. Uma nova classe social, no dizer do historiador Jaime Cortesão, havia surgido.10 Essa nova incorporação na escala social acarretava consequências extraordinárias: dantes, a construção e o projeto eram feitos ao sabor das contingências e da espontaneidade; agora havia uma elite com preparo científico capaz de abrir caminho para um desenvolvimento mais metódico da colônia.

As origens da engenharia militar no Brasil remontam ao século XVI. Por exemplo, quando o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, desembarcou na baia de Todos os Santos em 1549 com uma comitiva de colonos, funcionários e jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega, veio acompanhado por um arquiteto destacado pela corte. Porém o fato é que, até o começo do século XVIII, as oportunidades de brasileiros natos se instruírem nessa ciência eram extremamente limitadas. Os candidatos qualificados eram mandados a Portugal, onde aprendiam os fundamentos da arte da fortificação.12 Esse ensino compreendia uma instrução elementar em projeto e construção militar. Os instrutores portugueses utilizavam textos clássicos que iniciavam o estudante na prática romana da castrametação, a metodologia da planificação de acampamentos militares. Em meados do século XVII, um novo manual de castrametação, escrito por um engenheiro português, foi adotado nas escolas de engenharia. Essa obra dava um destaque especial à retilineidade, simetria e senso de proporção como pontos principais da construção militar.13

Na década de 1690, pela primeira vez, esse tipo de instrução tornou-se acessível no Brasil.14  Um decreto real de 1705 exprimiu a vontade de que os engenheiros militares residentes no Brasil ensinassem a pessoas interessadas a arte da fortificação.15   Foi assim que, no início do século XVIII, a instrução em arquitetura militar foi possível no Brasil, embora sem regularidade. Na Bahia, uma aula de engenharia militar funcionou descontinuamente durante todo o século, mas no Rio de Janeiro um programa de instrução formal não foi iniciado senão em 1735.

Durante um certo período, a Aula de Fortificação e Artilharia do Rio de Janeiro logrou um grande êxito; principalmente enquanto foi dirigida pelo brilhante José Fernandes Pinto Alpoim (cuja atuação na reconstrução de Mariana foi vista no capítulo anterior). Os alunos de Alpoim recebiam lições de geometria, trigonometria, de medição de alturas e distâncias e de levantamento topográfico.16 Além disso, esses futuros engenheiros militares aprendiam a calcular ângulos de tiro de artilharia e o uso do cordel (o popular cabinho, dos pedreiros, utilizado para traçar retas).17   Também existem provas que demonstram o interesse da Coroa em que os estudantes brasileiros fossem instruídos nas técnicas europeias mais modernas. Em 1767, por exemplo, a Coroa aconselhou o corpo docente da Aula do Rio a iniciar a instrução na metodologia de Bernard Forest de Belidor, um especialista militar francês que escreveu sobre as técnicas da arquitetura militar.18  A paixão pelo desenho francês era particularmente visível na atenção dada aos projetos de fortificação do marechal francês Sébastien le Prestre de Vauban.19  Seus modelos ainda eram ativamente empregados no Brasil setecentista, embora tivessem sido formulados na França um século antes.

Como se vê, nos anos 1730 os diplomados das Aulas de engenharia militar brasileiras estavam bem providos de conhecimentos, utilizáveis não apenas na construção de fortificações, mas igualmente preciosos para o planejamento de comunidades que constituíam postos avançados da Coroa nas regiões extremas do Brasil. Como esses, engenheiros estavam entre as poucas pessoas no Brasil que tinham um conhecimento profundo de matemática, muitas vezes eles eram consultados em projetos relativos à criação de novas comunidades. O seu conhecimento de planificação espacial e topografia, aliado à sua experiência em agrimensura, dava-lhes uma vantagem incontestável sobre construtores de cidades empíricos. Assim sendo, era lógico que as suas habilidades fossem empregadas não apenas em arquitetura militar, mas na construção civil também.

Um dos mais famosos diplomados da Aula de Fortificação em Portugal talvez tenha sido José da Silva Pais, que, além de projetista tecnicamente perfeito, era também um administrador talentoso. Seria ele que a Coroa finalmente encarregaria de iniciar um programa de povoamento da região dos pampas sulinos.

O Sul do Brasil começou a motivar a preocupação da Coroa depois da fundação do núcleo de Colônia do Sacramento em 1680 (defronte a Buenos Aires, dominada pelos espanhóis, na margem oposta do rio da Prata). Embora as escaramuças entre as forças portuguesas e as espanholas na Banda Oriental tivessem cessado depois da assinatura de um tratado de paz em 1715, nenhum esforço sério tinha sido feito para decidir a qual das duas potências, Portugal ou Espanha, a região platina cabia por direito. A posição portuguesa era frágil; entre São Paulo e Colônia do Sacramento, a única barreira que os portugueses possuíam contra uma eventual agressão espanhola era Laguna, uma comunidade insignificante. Para reforçar a sua posição, a Coroa incentivou a criação de outra comunidade na entrada da vastíssima lagoa dos Patos. Essa povoação não só resguardaria o interior de uma possível penetração dos espanhóis pelo litoral como poderia funcionar como ponto de partida para o desenvolvimento da lucrativa atividade de criação de gado.20

A data exata da fundação de Rio Grande a (na ponta sul da lagoa dos Patos, no seu sangradouro, hoje um dos maiores portos do Brasil) é incerta, mas a maioria dos historiadores concordam no ano de 1737, ou seja, uns dois anos de pois de um novo ataque espanhol à região.21  Em ir resposta a esse ataque, os portugueses apressaram-se em enviar uma expedição militar à entrada da lagoa para assegurar um ponto de apoio  mínimo na área. Conquanto alguns aventureiros de Laguna já tivessem demarcado terras para si na proximidade da lagoa, não era fácil ir atrair um grande número de colonos para uma si área praticamente indefesa.22

A Coroa transferiu a responsabilidade pela nova povoação para José da Silva Pais, que mediatamente se pôs a trabalhar, instalando e grupos de soldados na área e erigindo três obras ti de defesa para proteger a nova localidade.23   Pouco depois ele mandou seu representante, João de Távora, a Santos a fim de recrutar famílias de índios e operários para substituírem ti os soldados nas obras de construção, e também para aumentarem a população do povoado.24  Além disso, diversas famílias que haviam abandonado Colônia do Sacramento foram ter a Rio I Grande.25  Reconhecendo que esse contingente certamente não era suficiente para a formação de uma nova comunidade, Pais fez uma recomendação notavelmente perspicaz ao governador de São Paulo, sugerindo que novos colonos fossem atraídos para a nova localidade por um programa de colonização subsidiada. No quadro desse programa, a cada novo voluntário se prometeriam provisões suficientes para ele atravessar o período difícil de adaptação, ou até a comunidade se tornar autossustentável. O governador colaborou com Pais, e cada unidade familiar recebeu depois quantidades de feijão e lentilhas suficientes para sus-tentá-la até a primeira colheita e 10 a 12 bovinos e terra de pastio para iniciar a criação de gado.26

O plano de Pais obteve um sucesso retumbante. Em junho de 1738 ele pôde comunicar ao governador Gomes Freire de Andrade que, a cada visita que fazia a Rio Grande, achava-a mais populosa, e maior, e mais próspera.27   Menos de uma década depois, os portugueses adotaram o programa de Pais de colonização subsidiada para um projeto de colonização com imigrantes açorianos com assistência total, embora em 1676 a Coroa já houvesse tentado instituir uma política de financiamento real do transporte de colonos dos Açores e outras ilhas do Atlântico para o Novo Mundo.28

O Conselho Ultramarino considerava esses imigrantes -- cujas condições de subsistência nas suas ilhas de origem eram dificultosas, por causa do excesso de população29 -- como colonos excelentes para o Sul do Brasil. Achava-se que os imigrantes ilhéus eram um tipo de colono mais estável que o bandeirante. O conceito que se tinha do imigrante do arquipélago dos Açores e da ilha da Madeira era que ele era por natureza um agricultor, satisfeito em permanecer na terra; diversamente do seu contemporâneo bandeirante, o açoriano, com toda probabilidade, não se deixaria seduzir pelas perspectivas de enriquecimento rápido na mineração no Oeste.

No decorrer dos anos 1740, a Coroa estava firmemente resolvida a fomentar um programa de imigração maciça para a região Sul do Brasil. Os colonos açorianos que deveriam ser relocalizados na zona do estuário do rio da Prata não só iam assegurar um tipo de ocupação mais sedentária como iam desempenhar um papel importante no equilíbrio geopolítico da região platina. O ministro Alexandre de Gusmão (que era brasileiro), de tanto insistir, acabou convencendo a Coroa de que o único fator eficaz de contenção do poder espanhol no Sul seria a criação de um grande número de vilas.

O estabelecimento da povoação de Pais na lagoa dos Patos constituía apenas o primeiro passo para assegurar a área; toda a faixa de terra entre Rio Grande e Santa Catarina tinha de ser povoada com colonos permanentes para contrabalançar a influência espanhola. Assim sendo, o brilhante plano de Gusmão não só ampliaria o Brasil e complementaria a sua economia com gado do interior sulino, mas também, concomitantemente, fecharia e defenderia essa entrada [para o Brasil] com uma muralha humana.30   De um só golpe, seriam eliminados os problemas das intromissões espanholas, do povoamento e da distribuição de terras devolutas, assegurando-se uma população permanente e estabelecendo-se a autoridade real. Em suma, a ocupação efetiva seria a chave para a dominação e o controle legal. Quando Gusmão se reuniu com diplomatas espanhóis em 1750, estava em condições de argumentar em favor da reivindicação por Portugal da região do estuário do rio da Prata com base no uti possidetis e na ocupação efetiva realizada por aqueles mesmos colonos açorianos.

Gusmão aferrou-se ardorosamente ao plano de Pais de dez anos atrás como base do programa de imigração de açorianos. Cada colono receberia o mínimo necessário para um lar, mais animais e mantimentos, a fim de que o período de adaptação ao novo domicílio pudesse ser suportado mais facilmente. Além disso, as Instruções (Regimento) de 1747, que definiam o programa para cada nova comunidade criada para famílias açorianas, insistiam num traçado ordenado das ruas e elementos arquitetônicos. As instruções sobre o projeto das cidades eram detalhadas cm maior precisão nessa legislação do que em qualquer lei de planificação de vilas anterior promulgada para a hinterlândia brasileira.

O Regimento de 1747 era um modelo de uniformidade e ordem. O planificador urbano era instruído a traçar ruas de não menos de 30 pés (1 pé = 30,48cm; 30 pés = 9,144m) de largura e a demarcar uma praça quadrada de 500 palmos (110m) de lado (aproximadamente o comprimento de um campo de futebol americano). Isso era desenhar em grande escala; evidentemente o objetivo era usar ao máximo o espaço disponível e obter uma perspectiva grandiosa. Em coerência com essa política, a instrução referente às casas dizia que elas deveriam ser construídas em boa ordem, deixando-se entre elas pomares-hortas. Antes da chegada  dos emigrantes, era preciso construir duas ou três dessas casas para servirem de abrigos temporários até o resto da cidade ser edificado.

Embora a disponibilidade de terreno certamente não fosse problema no Sul sub-povoado, a sensatez desse arranjo é questionável, porque o largo espaçamento das edificações com certeza conferia um aspecto espalhado à comunidade. É-se tentado a supor que a motivação disso tenha sido a aversão dos portugueses pelo apinhamento, considerando-se que já eram necessárias remodelações urbanas dispendiosas em centros urbanos tradicionais (como o Rio de Janeiro). Porém o Regimento de 1747 não faz nenhuma menção a esse fato.

Por conseguinte, não só o plano de Pais foi reutilizado e ampliado como o próprio Pais, agora na qualidade de governador de Santa Catarina, foi nomeado encarregado das novas comunidades. Foi-lhe dada a incumbência de supervisionar o levantamento topográfico das áreas, a instalação dos colonos e o cumprimento das promessas aos imigrantes, que compreendiam a distribuição de peixe fresco aos voluntários uma vez por semana e a doação de duas vacas e uma ovelha a cada casal.31  Contudo, apesar do seu dom de organização e da sua disciplina militar, Pais teve grande dificuldade em assentar as primeiras famílias. Dos cerca de 4 mil casais prometidos, só 950 haviam chegado até março de 1749. No decurso dos três anos seguintes, continuaram chegando famílias ao Sul, mas em número muito inferior às expectativas iniciais.32   Um fator de desencorajamento era a viagem penosa para o Brasil, durante a qual os homens e as mulheres eram rigorosamente separados e vigiados para evitar qualquer conduta indecente.33   Porém o mais decepcionante para os novos imigrantes talvez tenham sido as novas localidades, que, apesar das boas intenções em contrário, estavam mal preparadas para receber os recém-chegados.

Não obstante, no decurso de 1753 várias comunidades povoadas por açorianos haviam sido estabelecidas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina?34   Apesar de a ordem e o projeto terem sido sacrificados em proveito do assentamento rápido dos colonos, algumas das novas vilas conseguiram ajustar-se ao que o historiador-sociólogo Thales de Azevedo denominou novas normas urbanas.35 A nova política dos casais visivelmente foi produto da mentalidade do rei Dom João V; ela representava uma abordagem lógica e organizada da colonização do Brasil, que havia evoluído sob a direção desse monarca. Como protótipo para o povoamento de vilas, o Regimento de 1747 complementava o modelo de Aracaty, do mesmo ano, fornecendo orientação sobre as dimensões das novas comunidades. No Sul, a Coroa estava tão decidida a povoar a região que os administradores estavam dispostos a ampliar financeiramente o programa de construção de vilas até à colonização subsidiada e com toda assistência.  Dessarte, o planejamento de vilas tinha evoluído para a instalação de colonos patrocinada, e dai foi apenas um pequeno passo para o planejamento regional abrangente que seria aplicado amplamente na segunda metade do século, com o incentivo do Marquês de Pombal.


N o t a s :

(1) Recomendação do Conselho Ultramarino ao governador do Rio de Janeiro, de Lisboa, 5 de maio de 1725. AHU, Códice 227, fls. 89-89v.

(2) Uma carta ao governador do Rio de Janeiro datada de 10 de dezembro de 1726 (AHU, Códice 227, fls. 273-274) menciona a queixa da Câmara. Em 5 de abril de 1729, a Coroa confirmou a sua decisão (AHU, Códice 228, fl. 46), e no ano seguinte, em 25 de junho de 1730 (AHU, Códice 228, fl. 141v), respondeu negativamente a mais um requerimento da Câmara. Além de limitar fisicamente o crescimento da cidade, a nova muralha também cortaria os suprimentos de água. Sobre esse aspecto do problema, ver Gilberto Ferraz, João Massé e sua planta do Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 7 de setembro de 1958.

3) Correspondência de Alexandre Metalho de Souza, Frei Varges e outros (conselheiros) ao governador do Rio de Janeiro, de 10 de janeiro de 1732 (AHU, Códice 228, fl. 198v).

(4) Numa carta do Conselho Ultramarino ao governador do Rio de Janeiro, datada de Lisboa,    4 de janeiro de 1732, a Coroa resolveu acatar a opinião da Câmara local e dos engenheiros consultores (AHU, Códice 228, fl. 197).

(5) Ernesto Ennes, Pedro Taques de Almeida e as terras do Conselho ou rossio da vila de São Paulo Congresso Luso-Brasileiro de História (Lisboa, 1940), p. 195.

(6) Ibidem, pp. 202-203.

(7) Treslado dos capítulos de correição desta Vila de Nossa Senhora de Paranaguá este anno de 1721, contido em Moysés Marcondes, Documentos para a história do Paraná: 1ª Série", in Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba; à página 140, essa publicação reproduz a carta de Pardinho explicando os objetivos da sua visita. Estou grata ao historiador Sérgio Buarque de Holanda pela sugestão de consultar essa fonte.

(8) Moysés Marcondes, op. cit., artigo 84 do Treslado.

(9) ...que ao menos terá [a rua] quarenta palmos de largo, por ficar assim mais decente, a vista à mesma igreja.... Moysés Marcondes, op. cit., artigo 85 do Treslado.

(10) Treslado dos provimentos de correição que nesta vila fes, a deixou para bom Regimen da Republica e bem comum d'ella, 0 D.zor Raphael Pires Pardinho, 1721. A documentação completa da correição de Pardinho consta do artigo Provimentos de correições, 1721-1812 in Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba, vol. VIII (1924), p. 16 (artigo 37).

(11) Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri (Instituto Rio Branco, Rio de Janeiro, 1951), vol. 1, parte 1, pp. 320-321.

(12) Para esta exposição sobre a engenharia militar portuguesa de antanho, recorri às seguintes fontes: Robert C. Smith, Jesuit Buildings in Brazil, in Art Bulletin, vol. XXX, n2 3 (setembro de 1948), especialmente o apêndice intitulado Portuguese Military Engineering in Brazil; general Aurélio de Lyra Tavares, A Engenharia Militar Portuguesa na Construção do Brasil (Secção de Publicações do Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 1965); Sousa Viterbo, Expedições Científico-Militares Enviadas ao Brasil, vol. II (Edições Panorama, Lisboa, 1964); Adaílton Sampaio Pirassununga, O Ensino Militar no Brasil: Período Colonial (Biblioteca do Exército, Rio de Janeiro, 1958); e C. Ayres de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português, vol. V (Imprensa Nacional, Lisboa, 1910).

(13) Luís Sertão Pimentel, Tratado de Castrametação ou Alojamento dos Exércitos (1650?), vol. I, BNL-MSS riQ 1648. Uma explanação dos princípios de castrametação romana pode ser encontrado em Lewis Mumford, The City in .History: Its Origins, Its Transformations and Its Prospect (Harcourt, Brace and World, Nova York, 1961), p. 207.

(14) Adafiton Sampaio Pirassununga, op. cit., p. 4.

(15) Robert C. Smith, Jesuit Buildings in Brazil, in op. cit. Em 1700, Antônio Rodrigues Ribeiro foi promovido a sargento-mor engenheiro da cidade e finalmente nomeado professor da sua especialidade na Aula.

(16) Essas matérias foram tratadas por Alpoim no seu Exame de Bombeiros, como mencionado em Pirassununga, op. cit., p. 18.

(17) José Fernandes Pinto Alpoim, Exame de Artilheiros que Comprehende Arithmética, Geometria e Artilharia (Lisboa, 1744). ANRJ, Secção de História.

(18) Belidor algumas vezes era chamado Ballidoro na correspondência oficial. Cf. Pirassununga, op. cit., pp. 21-22. Uma das obras que Belidor deixou foi Sumário de um Curso da Arquitetura Militar, Civil e Hidráulica (cerca de 1720).

(19) O fascínio pelo mal. Vauban é perceptível nas fortalezas construídas em Mato Grosso (Príncipe da Beira) e Pará (São José de Macapá).

(20) Carta do Conselho Ultramarino de 1732 em resposta à sugestão do governador de São Paulo, Rodrigo Cézar de Menezes, de 28 de junho de 1726, para encontrar colonos para Rio Grande de São Pedro. Lisboa, AHU, Rio Grande de São Pedro, Papéis Avulsos.

(21) Ver o estudo dessa questão em Dauril Alden, Royal Government in Colonial Bank with Special Reference to the Administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779 (University of California Press, Berkeley, 1968), pp. 77-78.
(22) Alden conta que as primeiras sesmarias nessa região foram outorgadas em 1733. Ibidem, p.79.

(23) Informação obtida em Paranhos Antunes, Origens dos primeiros núcleos urbanos no Rio Grande do Sul, in Anais do Segundo Congresso de História e Geografia Rio-Grandense, vol. 11 (1937), p. 362. Os três fortes foram São Miguel, Santana e Jesus, Maria, José.

(24) General Borges Fortes, O Brigadeiro José da Silva Paes e a fundação do Rio Grande, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ano XIII, III trimestre (1933), p. 79.

(25) Ibidem, p. 83.

(26) Ibidem. A carta em que Pais recomendava o programa estava datada de 12 de abril de 1737.
(27) Ibidem, p. 107.

(28) Uma das primeiras áreas cogitadas para a colonização açoriana foi o Maranhão. Ver Ordens e disposições para o transporte de duzentos casais dos Açores para o estado do Maranhão, in Jaime Cortesão, Antecedentes do Tratado, parte III, vol. II, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri  p. 399. Essa ordem está datada de 23 de junho de 1676.

(29) Depois de meados do século XVIII, os colonos açorianos seriam complementados com imigrantes dos domínios portugueses do Norte da África. Da mesma forma, colonos de algumas regiões de Portugal (principalmente de Trás-os-Montes) eram incentivados a se transferirem para o Brasil.
(30) No entanto, Pais já havia sugerido essa providência dez anos antes. Cf. Dauril Alden, op. cit., pp. 81-82, e Jaime Cortesão, op. cit., parte I, tomo II, p. 248.

(31) O plano de Gusmão está contido na Provisão Régia, dirigida a Alexandre de Gusmão... pela qual o Monarca ordenou o transporte e estabelecimento dos colonos das Ilhas dos Açores para a Ilha de Santa Catarina e continente do Rio Grande de São Pedro, de 9 de agosto de 1747. In Jaime Cortesão, op. cit., parte III, VII, pp. 452-457.


(32) Arthur Ferreira Filho, História Geral do Rio Grande do Sul: 1503-1964 (Editora Globo, Rio de Janeiro, 31 edição, 1965), p. 33. (33) As condições para o transporte dos casais estão especificadas com precisão no Regimento de 1747; as mulheres deviam ser mantidas isoladas durante a viagem, e seus alojamentos eram inacessíveis até mesmo aos esposos. (34) Segundo Ernâni Silva Bruno, op.cit.,vol. V, pp. 74-75, foram fundadas várias povoações em Santa Catarina, entre elas Conceição do Estreito, Lombas e São José do Ibiquari. Em seu requerimento de promoção, José Carlos Ramalho, capitão-engenheiro, relata a sua atuação no projeto de uma nova comunidade em Santa Catarina, em 1755. Esse documento está catalogado em Eduardo de Castro e Almeida, Inventário dos Documentos de Ultramar de Lisboa (Rio de Janeiro), 1913-1936), Secção Rio de Janeiro, n° 18.825. Daqui em diante, esse catálogo será da sua rival vizinha, Vila Rica) e receberia uma aparência condizente com a sua nova função. Ordenou-se proceder à construção da nova cidade com toda a brevidade, enquanto os fundadores da cidade foram exortados a apoiar uma planta básica previamente traçada, que previa o crescimento futuro da cidade". Por sorte dos marianenses, José Fernandes Pinto Alpoim (1695-1765), coordenador da Aula de Fortificação e Artilharia no Rio (uma espécie de escola de engenharia informal; ver o Capítulo V),

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