segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

NOVAS VILAS PARA O BRASIL COLÓNIA Planejamento espacial e social no século XVIII Parte VI

Roberta Marx Delson

Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto

Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês, data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em coautoria com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.



O Marquês de Pombal e a Política Portuguesa de europeização

Com o falecimento de Dom João V, em julho de 1750, ascendeu ao trono português Dom José I. Governante indeciso, José I preferiu deixar o controle da política nas mãos do seu enérgico primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Na realidade, quem governou a nação e seu império ultramarino até 1777 foi Pombal, como ele é geralmente conhecido, que deu continuidade à tendência para o governo absoluto estabelecida pelo seu antecessor durante o período joanino. O marquês foi influenciado fortemente pelas filosofias intelectualistas da época e assumiu as suas responsabilidades administrativas com aquele zelo reformista tão característico dos defensores setecentistas do Iluminismo.

Em Portugal, Pombal procurou denodadamente sacudir a nação da sua letargia e incorporá-la ao curso das tendências da Europa do seu tempo.1 Para tanto, ele não só instituiu um programa de reorganização econômica, orientado para aumentar a margem de lucro do governo, como também procurou fazer com que os mecanismos administrativos operassem com maior eficiência mediante a centralização das funções governamentais. Os opositores aos seus planos claramente traçados não foram tolerados por muito tempo; os jesuítas, seus inimigos mais declarados, logo foram envolvidos numa conspiração para assassinar o rei, o que resultou na sua completa expulsão do reino em 1759.

Quanto ao Brasil, a visão de Pombal era igualmente clara: a autoridade real deveria ser ampliada pelo aumento do número de vilas no interior e pela sua integração num programa que procurasse aproveitar ao máximo as potencialidades dos territórios até então inexplorados. Para realizar isso, ele propunha a inclusão das populações indígenas no programa de construção de vilas, decidido como estava a transformar esses súditos da Coroa até então ignorados -- e menosprezados -- em membros importantes da sociedade brasileira. Naturalmente a supressão da proteção dos jesuítas às sociedades indígenas em 1759 ajudou o programa pombalino, porém na realidade os seus objetivos já estavam claramente traçados desde o início da década.

A meta geográfica imediata do plano de colonização indígena de Pombal era o Amazonas, que começara a adquirir uma importância econômica em consequência do abrimento da ligação fluvial Pará-Madeira-Guaporé entre Belém e Vila Bela, em Mato Grosso. Nessa região, Pombal foi auxiliado e favorecido pela presença do seu cunhado, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que administrou a capitania do Pará na qualidade de governador por toda a década de 1750. Este, nas suas próprias palavras, procurou fazer cumprir

as ordens determinantes de civilizar os índios, possibilitando-lhes adquirir um conhecimento do valor do dinheiro.., e acostumando-os com os europeus, não só ensinando-lhes português como incentivando casamentos entre índios e portugueses.2

 A tarefa revelou-se difícil devido a que os colo-nos portugueses do Amazonas eram uma gentalha inculta; principalmente nas regiões superiores do rio, tanto os missionários como os habitantes laicos tendiam a ser

um bando de grosseiros, despudorados e gananciosos, de pouco valor como divulgadores da civilização européia.3

Assim sendo, num esforço consciente para introduzir um novo elemento social no Amazonas, Pombal ordenou que se imprimisse um novo impulso ao programa de colonização com açorianos dos anos 1740 e que ele fosse incorporado ao seu plano de modernização dos índios. Os imigrantes recém-chegados seriam reassentados em povoações do Amazonas, onde poderiam servir de exemplos do comportamento digno europeu para os índios circunstantes. As próprias comunidades, edificadas em conformidade com o código de construção estabelecido no começo do século, seriam modelos de pensamento ordenado e racional: as praças regulares e bem traçadas, as ruas retas, as fachadas uniformes (ideias que aliás seriam utilizadas na reconstrução de Lisboa depois do terremoto de 1755) provavelmente fariam com que os índios aspirassem ao modo de vida europeu.

O programa de construção de novas vilas no Amazonas foi iniciado quase imediata-mente depois da ascensão do marquês ao poder. A despeito das probabilidades desfavoráveis, o governador Mendonça Furtado foi instado a iniciar um levantamento do Pará, logo em 1751, para avaliar as condições das comunidades existentes e determinar onde se poderiam estabelecer novos centros urbanos.4 Foram escolhidas duas áreas para povoamento imediato: a zona a leste da cidade de Belém, onde se concentraria a colonização com imigrantes das ilhas do Atlântico, conforme se decidiu, e as principais vias fluviais da bacia amazônica, compreendendo os rios Madeira, Tapajós e Negro. Em 1753 Mendonça Furtado pôde comunicar que havia escolhido a povoação já existente de Souza de Caeté para a localização de uma primeira vila oficial, que receberia o novo nome de Bragança, em homenagem à família real. O sitio tinha as vantagens da proximidade do Atlântico, embora um pouco afastado da beira-mar, e de ficar perto de um braço do rio Guamá, afluente do Tocantins. Prevendo um grande sucesso comercial para a comunidade, resultante da pesca e da agricultura, cujos produtos poderiam ser mandados para Belém, Mendonça Furtado pleiteou junto à Coroa a vinda de colonos brancos (casais) para povoarem a nova vila. Uma aldeia de índios (gente da terra) existente nas cercanias, explicou ele, estaria disponível como mão-de-obra suplementar para os agricultores, e também poderia ajudar no transporte das mercadorias para Belém em suas canoas. Uma escola onde as crianças índias pudessem aprender a língua portuguesa concorreria para facilitar a adaptação mútua desses dois grupos díspares.5

Na mesma carta, o governador preconizou a criação de duas outras redes de comunidades euro-indígenas, desta vez mais para o interior, nos rios Xingu e Tapajós. Um ano depois, Mendonça Furtado comunicou-se novamente com Lisboa, elogiando o projeto inicial de Bragança e salientando que ele havia tomado todas as providências que [ele] considerava necessárias para o crescimento... da aglomeração.6 Seu entusiasmo originou outras propostas urbanas, inclusive a criação da cidade de Borba, no local da antiga comunidade indígena de Trocano. Essa nova vila, localizada perto da confluência do rio Madeira com o Amazonas (no atual estado do Amazonas), destinava-se a servir de posto administrativo avançado na via fluvial comercial Guaporé-Madeira. Apesar de a atração de colonos para essa área remota ter se mostrado difícil, fazendo com que o bispo do Pará recomendasse à Coroa custear as despesas do seu assenta-mento,7  a localidade foi fundada com êxito em 1756.8  Aqui, as regras de alinhamento urbano foram seguidas fielmente,9  o que levou um visitante nos anos 1770 a comentar que a comunidade era uma grande praça de quatro lados com casas em quatro ruas.10 Dez anos depois, o famoso escritor sobre a região amazônica Alexandre Ferreira de Rodrigues afirmou, na sua Viagem Filosófica, que Borba era uma das poucas comunidades amazônicas que mereciam o título de vila.11

Tal como no Nordeste meio século antes, as dificuldades de conseguir colonos para as regiões longínquas da Amazônia eram agravadas pela necessidade de manter o controle numa zona muito distante da capital administrativa, Belém. As consequências negativas dessa situação precária para a soberania portuguesa nessa região foram percebidas por Mendonça Furtado durante a sua visita à zona do rio Negro em 1754. Posteriormente, ele sugeriu a Lisboa transformar essa região do alto Amazonas numa nova capitania, cuja base de operações seria uma nova vila a construir; essa comunidade não só substituiria Belém do Pará, dispondo de funcionários administrativos e de um tribunal na própria sede, como poderia também hospedar as comitivas estrangeiras cuja chegada ao território estava prevista para efetivarem os acordos de fronteiras já acertados entre os espanhóis e os portugueses no Tratado de Madri, em 1750. Em 3 de março de 1755, o governo da metrópole, concordando com a ideia de Mendonça Furtado, autorizou a criação de uma nova capitania e da vila de São José do Rio Negro.12

A exemplo de outras ordens que até então haviam servido de base para a fundação de novas capitais e vilas administrativas, a Carta Régia de 1755 que ordenava a criação da vila de Rio Negro preceituava um traçado urbano ordenado. A praça principal deveria ser demarcada em primeiro lugar, prevendo-se localizações para a igreja, a casa da câmara, a cadeia e outros prédios públicos. As casas deveriam ser construídas com o mesmo feitio externo, mas, quanto ao interior, cada [morador] poderia fazer o que lhe conviesse. Dever-se-ia ter o cuidado de manter essa uniformidade na construção, bem como na largura das ruas, a fim de que a vila apresentasse sempre a mesma beleza: Os terrenos para casas e pomares-hortas poderiam ser concedidos com generosidade aos colonos, contanto que eles obedecessem às novas disposições.13

A instrução inicial dos portugueses era situar a nova cidade na embocadura do rio Negro, porém Mendonça Furtado resolveu localizar o novo centro a montante, na aldeia de Mariuá (também citada corno Mariva), a uma longa distância da confluência do rio Negro com o Amazonas. Nesse local, a nova vila constituiria um ponto de observação a partir do qual as comunidades indígenas circunvizinhas poderiam ser mantidas sob controle. Além disso, como o bispo do Pará observou na sua carta em que aprovava a mudança de localização decidida por Mendonça Furtado, o novo sítio cumpriria a função de atalaia para vigiar as. atividades dos espanhóis e holandeses nessa parte da Amazônia, ao mesmo tempo em que serviria de entreposto para uma série de ervas medicinais colhidas nas imediações, as quais eram o principal produto de exportação da região.14

Malgrado essas metas ambiciosas, ainda em 1759 pouco progresso havia sido feito no sentido de transformar a aldeia de Mariuá na nova vila de São José (ou, como ela era mais comumente chamada, Barcellos). O sucessor de Mendonça Furtado, Manuel Bernardo de Melo e Castro, naquele ano instou junto ao Marquês de Pombal para que se reconhecesse a urgência de converter a aldeia numa vila antes da chegada das comitivas de fronteiras, a fim de comprovar a solidez da posição portuguesa. Em virtude de a reivindicação portuguesa da região ter se baseado no princípio da ocupação efetiva, era impensável que a colônia que receberia os negociadores tivesse um aspecto desleixado. Era necessário salvar as aparências, dando a impressão de que, mesmo na selva longínqua, prosperava um baluarte da cultura portuguesa. Nesse contexto, Melo e Castro salientou que faltavam urgentemente gêneros alimentícios do tipo produzido nas fazendas europeias, principalmente trigo e azeite, e que as provisões de vinho, vinagre, carne e sal também eram escassas. Ademais, naquele momento, em 1759, as edificações levantadas por ordem de Mendonça Furtado estavam completamente deterioradas.15

Por sorte o contingente português da comitiva de fronteiras já havia chegado a Barcellos. Os préstimos de Felipe Strum, um dos melhores engenheiros e cartógrafos mandados pelos portugueses ao Brasil, foram prontamente empregados no programa de remapeamento de Barcellos. Uma planta datada de 1762 (Figura 8A)16 mostra a extensão das modificações urbanas que se seguiram ao novo desenho de Strum. Em obediência às ordens de 1755, a cidade concentrava-se em torno de uma nova praça espaçosa, na frente da qual havia um terreno reservado para uma igreja paroquial de boas proporções. Ao que parece, a praça da comunidade primitiva foi abandonada na periferia da cidade, porque mudaram a orientação da malha urbana para longe desse centro, dando-lhe uma direção norte-sul. O centro da cidade aparece situado a pouca distância da margem do rio, onde são previstos embarcadouros para canoas. Na novapraça está assinalada uma sala de conferências para os delegados plenipotenciários; no entanto, a três quarteirões dali ficava um curral de tartarugas, o que indica que a cidade passou tempos difíceis sanando as suas características provinciais.
Fig. 8-A: Planta básica de Barcellos. no Rio Negro, tal como foi redesenhada por Felipe Strum, 1782.

Durante os anos seguintes, apesar dessa planta desenhada cuidadosamente, os registros mostram numerosos exemplos da necessidade de reconstruir as estruturas públicas. Um dos grandes problemas era que as edificações muitas vezes eram de madeira, um material de pouco valor prático na selva amazônica úmida, onde tudo apodrecia.17  Por exemplo, em 1768 os armazéns, o quartel e a residência do governador tiveram de ser reconstruídos (Figura 8B).18

Figura 8-B : O novo projeto para Barcellos, sem data.

Sem se mostrarem intimidados por esses (reveses na renovação de vilas nas regiões remotas, os portugueses, sob a direção de Pombal, continuaram a pressionar os administradores do Brasil para civilizarem as localidades mais antigas. As recomendações sobre a maneira de realizar isso compreendiam instruções relativas à ordem em que aos novos prédios seriam construídos; antes de tudo, seria erigida a igreja; depois viria a residência do representante do governo.19  Naquela época, o uso de um traçado urbano regular tinha se tornado tão comum que um administrador local escreveu em 1757 informando que havia utilizado o modelo de costume, a fim de que o local que ele estava demarcando tivesse as características de uma vila bem fundada.20

A expulsão dos jesuítas em 1759 ensejou às autoridades portuguesas oportunidades ainda maiores de assunção do controle das comunidades indígenas. Quase imediatamente as denominações dessas antigas aldeias foram substituídas por nomes de cidades portuguesas;21  achava-se que isso dava uma impressão de civilização. Foram nomeados superintendentes laicos para administrar as comunidades, os quais eram ins-truídos a supervisionar as novas edificações para abrigar trabalhadores índios. As casas deveriam ser construídas com uniformidade e retilineidade, e as terras agricultáveis da localidade tinham de ser divididas em proporções iguais aos habitantes.22

O movimento de reforma urbana tinha um atrativo evidente; centros urbanos tão díspares como a cidade de Belém e aldeias indígenas em Mato Grosso foram submetidos a programas de remodelação rigorosos. Para Belém, Mendonça Furtado recomendou encarecidamente que os impostos locais fossem utilizados por um período de dez anos para reformar a cidade, que, na sua opinião, salvo pela sua grande população, pouco diferia das aldeias do sertão.23  Não surpreende que as suas propostas tenham acabado fomentando a pavimentação de ruas na cidade24  e a edificação de muitos prédios públicos, inclusive do Palácio dos Governadores, projetado pelo engenheiro italiano Antônio José Landi (Bolonha, 1708 - Belém, 1790).25
Na hinterlândia, nem mesmo a humilde vila de Cuiabá pôde escapar ao espírito reformista. Com a sua configuração inicial sem racionalidade,26 a comunidade havia crescido sem que nenhum esforço fosse feito para conter a ocupação da área de pastagem comum (rossio e logradouro). Na década de 1750, atendendo a um reque-rimento da Câmara Municipal de Cuiabá, o Conselho Ultramarino, em Lisboa, determinou que essa terra pública fosse devolvida para cultivo. Exigiu-se então que os proprietários das casas encravadas na área pública reconstruíssem as suas residências num terreno destinado especificamente a esse fim. Essa área seria previamente alinhada e subdividida em lotes, em ruas traçadas em linha reta. Dessa maneira, a autoridade e a ordem finalmente deixariam a sua marca na mais mal traçada de todas as povoações. Além disso, a devolução das terras públicas para uso da Câmara assegurar-lhe-ia uma renda fixa, tornando desnecessária a coleta de impostos específicos a cada vez que fosse executada uma melhoria pública.27

Figura (: Planta básica de São Miguel, 1765.

Em outras áreas de Mato Grosso e particularmente ao longo do rio Madeira, os portugueses procuraram consolidar os ganhos territoriais, reunindo as populações existentes em diversas novas aglomerações de projeto regulamentado. O caso da aldeia de São Miguel ilustra bem esse processo. Já tinha existido uma aldeia indígena naquele trecho do rio Madeira (a cerca de quatro léguas do Forte de Conceição), porém durante os anos 1760 ela tinha se mostrado inadequada. Havia chegado um contingente de índios há pouco repatriados das missões espanholas pelos portugueses, e a velha aldeia não tinha condições de alojá-los decentemente. Nessas circunstâncias, o capitão-geral João Pedro da Câmara, resolveu transferir a aldeia para longe dali. O novo complexo seria projetado com o formalismo [i. e. retilineidade] que convinha para a habitação e o conforto dos seus moradores.28  O esboço (Figura 9) que acompanhava a carta de Câmara dá uma ideia do grau de aquartelamento a que os trabalhadores índios seriam submetidos: longas alas de unidades residenciais em arranjo simétrico aparecem como alojamentos para os índios. Esses alojamentos estão dispostos de um lado e do outro de uma grande praça, em cuja frente estão as casas do administrador da comunidade e do vigário residente, e, por trás, um armazém para as frutas colhidas. O quarto lado da praça, defrontando o rio, é deixado aberto.29 

Figura 10: Planta básica de Balsemão. 1768.

Em 1768 foi oficialmente inaugurada mais uma comunidade indígena ao longo da via fluvial do Madeira, denominada Balsemão. Nela, as habitações dos trabalhadores eram constituídas por unidades de alojamento individuais pegadas, com paredes divisórias comuns, numa disposição semelhante à de São Miguel. Entretanto, diferentemente desta, as casas em Balsemão (Figura 10) formam a orla de grandes quarteirões (cuja área interna é dividida em pomares-hortas), proporcionando assim uma aparência decididamente menos militar à comunidade. A conformação das ruas é a malha ortogonal habitual, que vai ter a uma praça pública quadrada espaçosa. Os quatro cantos dessa praça são entalhados em ângulo reto, o que confere a essa composição um elemento de desenho incomum. O lado norte da praça é ocupado pela igreja, ladeada por unidades residenciais; oposta a ela, no lado sul, está a casa da câmara. Os centros dos lados leste e oeste são armazéns; os espaços restantes são preenchidos por casas para índios.30  De acordo com os documentos anexos,31 Luís Pinto de Souza Coutinho, capitão-geral na época da construção, teve pouca dificuldade em reunir os índios pasmas na sua nova comunidade. Por outro lado, os 400 soldados que se juntaram a ele nesse local devem ter representado um incentivo fortíssimo. Essa povoação foi tão bem-sucedida que Coutinho achou que bastavam apenas três administradores portugueses para tomar conta dos índios: um superintendente da comunidade, um vigário e uma pessoa não identificada cuja função era velar pelo bem-estar da população indígena, que totalizava cerca de 150 pessoas (56 homens, 46 mulheres, 27 meninos e 17 meninas). Entre os índios estavam inscritos dois príncipes da nação, embora não fosse frequente os planificadores do século XVIII atentarem para esse tipo de dado sociológico.

Durante toda a década de 1760, os administradores, desejosos de instituir o programa de urbanização e europeização do Marquês de Pombal, concentraram-se em corrigir o que eles julgavam ser erros cometidos nos núcleos urbanos mais antigos. O ouvidor do Pará, Ramos Mourão, partiu nos primeiros meses de 1762 para visitar pessoalmente as comunidades da região do rio Tocantins e da ilha de Marajó. Nas localidades onde não encontrou nenhum conceito de ordem, ele instituiu o novo regime urbano; nas povoações onde tinha reinado uma compreensão nebulosa do que constituía a cortesia, ele substituiu-a por uma noção já bem definida e bem aceita de civilidade europeia. Com relação a uma certa comunidade, ele mandou os habitantes repararem suas casas no prazo de dois anos e murarem seus pomares.32 E não apenas isso: o dom.) de cada pomar seria obrigado a plantar duas laranjeiras, um limoeiro, uma pimenteira, duas goiabeiras, dois cajueiros, dois mamoeiros e dois coqueiros. Não era permitido a ninguém construir casas sem consentimento prévio dos funcionários da câmara, que, por sua vez, providenciariam que as ruas fossem retas, largas e espaçosas e que as casas fossem construídas com uma mesma forma e um mesmo tipo de fachada, isso sendo conveniente para a beleza da vila. Por fim, construir-se-ia uma fornalha num local próximo para fornecer telhas para os tetos das casas, e nos anos vindouros, todo mês de outubro, os funcionários da câmara deveriam vistoriar as casas e pomares para certi-ficar-se de que as ordens haviam sido cumpridas.33

Em algumas localidades, a responsabilidade pelo alinhamento urbano foi confiada aos habitantes mais qualificados. Isso sucedeu, por exemplo, na criação da vila de Monte-Mor-o-Novo, no Ceará, onde Custódio Francisco Azevedo, residente no local e habilidoso no uso da prancheta, foi encarregado de traçar a planta da nova vila. Aqui também o risco da comunidade obedeceu ao formato usual: uma grande praça central alinhada, rodeada por casas uniformes, uma igreja, a casa da câmara e um açougue.34 Como orientação para o traçado do resto da vila, a Coroa recomendou que se usasse o código promulgado em 1755 para a criação da vila de São José do Rio Negro (Barcellos).35  Outras provas indicam que no tempo da criação de Monte-Mor, em 1764, eram comuns as recomendações oficiais para seguir as plantas de São José, conforme demonstra esta prescrição:

 ...determinados pela Lei de 6 de junho de 1755, serão praticadas, sempre que possível, as normas e o alinhamento ordenados para o estabelecimento da vila de São Miguel do Rio Negro.36

Ao que parece, em Monte-Mor não houve dificuldade em aplicar as diretrizes urbanas preceituadas; foi feito o levantamento topográfico da área, a terra foi distribuída e demarcada com vistas a garantir que as construções futuras seguissem a mesma orientação de alinhamento.37 

Duas outras comunidades, também no Norte do Brasil, ilustram a confiança depositada pelos portugueses nas técnicas de arquitetura e urbanismo durante a era pombalina. Tanto São José de Macapá como Nova Mazagão, no território do Amapá, foram desenhadas e demarcadas por equipes de especialistas qualificados em engenharia. Junto com as comunidades vizinhas, elas eram parte de um sistema econômico regional e ficaram sob a jurisdição da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, uma empresa monopolística criada pelo Marquês de Pombal em 1755 para explorar os recursos do extremo Norte da imensa colônia.

Figura 11: São José de Macapá, no Amapá, 1761 mostrando o desenho da praça dupla.

A construção de São José foi a primeira providência desse plano. Em 1751 os portugue-ses haviam reconhecido a necessidade de estabelecer um presídio militar e uma comunidade no local da antiga guarnição defensiva de Santo Antônio de Macapá. Essa fortificação, fundada em 1688 para defender o Amapá de eventuais incursões francesas vindas da Guiana limítrofe, afigurava-se inadequada pelos padrões de meados do século XVIII. Em face disso, a Coroa resolveu reforçar as defesas na zona, assentando uma população bastante numerosa na área circunjacente e remodelando as obras de defesa Em 1751 o capitão-mor João Batista de Oliveira foi mandado ao local para iniciar a formação de uma comunidade agrícola.38   Até dezembro do mesmo ano foram enviadas para a nova povoação quatro expedições de colonos (muitos dos quais provinham dos Açores e da ilha da Madeira), perfazendo talvez 300 pessoas; todavia, passaram-se vários anos até que a comunidade pudesse ser considerada viáve1.39 Relatórios do andamento dos trabalhos datando de 1757 referem que as obras da nova vila ainda estavam em curso; um ano depois a comunidade foi promovida a vila, apesar de inacabada.40

Uma carta de João da Cruz Pinheiro, o ouvidor que chefiava a equipe de demarcação, dá uma descrição do procedimento pelo qual a vila foi traçada. No seu relato, Pinheiro queixou-se de que havia levado dois dias de trabalho ininterrupto, do amanhecer ao anoitecer, para planejar uma comunidade com alicerces suficientes para ser permanente. Nessa povoação, como em outras localizadas perto de cursos ou coleções de água, os aterros para ruas e subdivisões para moradias tinham de ser planejados de modo a preservá-la com segurança das inundações perigosas. O mapa incluso à carta de Pinheiro mostra que ele conseguiu entremear a malha urbana na multiplicidade de pequenas lagoas alagadiças.40

Figura 12: São José de Macapá, detalhe da disposição das habitações, 1759. 

Os voluntários açorianos para a nova vila foram postos sob o comando do sargento-mor Thomaz Rodrigues da Costa, o oficial mais graduado do presídio. Homem bastante inteligente criterioso e cristão,42  da Costa foi judiciosamente escolhido por Mendonça Furtado e recebeu plena liberdade para desenvolver a comunidade como melhor lhe parecesse (Figura 11).43 Sendo engenheiro, da Costa apreciava sobremaneira a ordem  e o regulamento. Cada colono recebeu instrumentos, gado e sementes para plantar, e a cada um foi adjudicada uma unidade de moradia e exploração padronizada.44 Na realidade, isso foi uma repetição do plano de colonização com açorianos de 1747, porém o documento cartográfico do caso de Macapá é tão minudente que é possível visualizar exatamente como o plano foi executado. A planta, de 1759 (Figura 12), tem uma escala que permite calcular a dimensão de cada unidade residencial. De acordo com essa planta, cada casa tem uma fachada de mais ou menos 33 pés (10m ou 5,5 braças) e um comprimento de cerca de 18 pés (5,5m). O espaço interno é dividido em três pequenos compartimentos com um vestíbulo estreito. Como na maioria das comunidades construídas tendo em vista minimizar os custos, as casas de Macapá são pegadas umas às outras, com paredes comuns. Seu exterior é uniforme, como mostra o desenho do rodapé da planta; cada unidade tem três janelas simples sem ornato e uma porta com um dintel singelo. Atrás de cada casa há um lote comprido destinado ao cultivo de um pomar e horta e à manutenção dos animais domesticados e de galináceos. A disposição das ruas é em malha ortogonal, interrompida por duas grandes praças. A única função de uma dessas praças parece ser conter o pelourinho de praxe em toda municipalidade, enquanto a outra tem um caráter administrativo, compreendendo a igreja, a casa da câmara e o açougue.45  Próximo à praça administrativa fica o posto médico da vila, a casa do cirurgião.

A composição de Macapá tem sido tachada de monótona e estéril pelos observadores da atualidade.46 Aos olhos do homem moderno, ela pode parecer assim; contudo, o atributo de uniformidade de Macapá constitui uma prova admirável da capacidade crescente dos administradores coloniais de supervisionarem o desenvolvimento de um centro urbano no Brasil. Acresce que, para a sua época, São José de Macapá representava o exemplo ideal do bom gosto em urbanismo; simetria e harmonia de perspectiva eram sinônimos de beleza para a mentalidade setecentista. Até mesmo a fortaleza construída em Macapá na década seguinte ilustra a preferência pela ordem e pela precisão geométrica do barroco.47 Seus quatro bastiões equidistantes, baseados nos modelos franceses de fortificação, continuaram a impressionar os que visitavam a comunidade. Mesmo décadas depois, em 1817, Aires de Casal comentou que Macapá tinha um forte magnífico, bem como boas ruas.48

Mazagão, a outra comunidade da região do Amapá, também mereceu considerável reflexão por parte da Coroa antes da sua fundação. Enquanto São José de Macapá prosperava, os portugueses sentiam a necessidade de mais colonos na região. A pequena distância de Macapá existia a pequena aldeia indígena de Santana, e, no final dos anos 1760, o capitão-geral do Pará, Fernando da Costa Athayde Teive, refletiu que a sua população podia ser transferida, para benefício de toda a zona.49  Para tanto, Domingos Sambucetti,50   engenheiro italiano comissionado pelo exército português, foi destacado para um novo local à margem do rio Mutucá, com o encargo de começar o levantamento preliminar para o estabelecimento da nova comunidade indígena.

Àquela altura, os portugueses estavam encontrando dificuldades em outros domínios do seu vasto império ultramarino. Seu último reduto no Norte da África, Mazagão, estava em decadência, e eles enfrentavam o difícil problema de reassentar os colonos dessa guarnição. A opção lógica para o reassentamento dos mazaganenses era o Brasil, que não só podia receber mais povoadores que Portugal ou suas ilhas do Atlântico como, de acordo com a mentalidade pombalina, beneficiar-se-ia com a introdução de elementos culturais europeus. Tirando partido dessa excelente oportunidade de povoamento, Athayde Teive, em consulta com Mendonça Furtado -- agora Secretário do Ministério de Ultramar --, procurou demonstrar que podia instalar facilmente o contingente deslocado de Mazagão na mesma colônia que estava sendo construída para os antigos moradores da aldeia indígena de Santana.51  Com os índios como trabalhadores braçais e os colonos europeus como fazendeiros, o capitão-geral anteviu um êxito infalivel para a nova vila.

Pouco depois de Sambucetti concluir o levantamento da área do rio Mutucá, Ignácio da Costa de Moraes Sarmento foi nomeado comandante da primeira expedição. Sarmento, homem de muita honra e alto prestígio,52  iniciou suas tarefas separando uma área que definia os limites da comunidade. Dentro dessa área, logo começou o trabalho de demarcar uma malha urbana de ruas e praças alinhadas e de construir alojamentos suficientes para os colonos esperados.53  Os índios de Santana forneceram a força de tra-balho para essa tarefa, coadjuvados por outros, recrutados nas aldeias indígenas de Melgaço e Obidos.54  É claro que Sarmento trazia consigo o modelo português de vila costumeiro, que preceituava um povoamento regulamentado. Não obstante Sambucetti ter advertido o governador de que o terreno acidentado poderia obrigar a alguns desvios da geometria habitual da planta básica portuguesa,55  parece que Sarmento, obstinada-mente, manteve-se fiel ao princípio da retilineidade e projetou a cidade envidando todos os esforços possíveis para manter a boa ordem. Para tal, o solo foi nivelado em 1770, e as ruas foram traçadas com quarteirões de mesmas dimensões e equidistantes (Figuras 13A e 13B).56  No final das contas, todos esses trabalhos, inclusive a construção dos lares, foram custeados pelo Tesouro Real.57

Figura 13 A: Esquema inicial de Mazagão no Amapá, sem data.

Os dados estatísticos existentes acerca de Nova Mazagão são abundantes pelos padrões da época. Em 1772 registrou-se que a localidade tinha 459 habitantes, sendo 383 cidadãos livres e 76 escravos. De acordo com um relatório, a força de trabalho necessária para construir a nova vila compunha-se de 122 índios.58  No final de 1772, esse grupo já havia construído 134 unidades habitacionais das quais 117 estavam ocupadas, tanto pela população livre como pela escrava.59

Figura 13 B: Nova Mazagão, aproximadamente 1800.

A nova vila satisfez as expectativas de Athayde Teive. Com o incentivo de um ano de sustento às, custas do governo, os mazaganenses estabeleceram-se rápida e definitiva-mente.60  Ao que parece, o seu orgulho por esse feito fê-los sentir-se superiores à média dos habitantes do Pará.61 Porém a sua pretensa superioridade não os impediu de comerciarem com seus vizinhos de Macapá. Essas duas comunidades, juntamente com outra povoação em Vistosa, formavam uma zona do arroz, cuja produção era embarca-da para Belém; essa zona constituía uma importante fonte desse produto para a capital.62

Figura 14 A: Detalhe de Lisboa no século XVI.

 Até 1778 esse sistema regional esteve sob a jurisdição da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão e, como tal, era submetido a frequentes fiscalizações administrativas. Em 1775 o novo governador do Pará, João Pereira Caldas, vistoriou cada uma das três vilas e exarou um relatório sobre o seu progresso. Para a vila de Mazagão, ele reco-mendou a construção de uma olaria destinada à produção de telhas, para o enobrecimento das casas e para evitar, assim, maiores riscos de incêndio. Uma instalação semelhante foi proposta para Macapá, que Pereira Caldas achou consideravelmente aumentada e lusificada em relação ao que ele observara na sua visita anterior, em 1773.63  Ali, no longínquo território do Amapá, estavam funcionando postos avançados viáveis da cultura e da autoridade portuguesa.

A julgar pelo grande número de vilas e arraiais construídos durante o período de 1750 a 1777 (os 27 anos da era pombalina), o procedimento pombalino da planificação de cidades pode ser considerado senão um sucesso.64  Trabalhando com um paradigma de vila já estabelecido, Pombal aprimorou o processo e firmou o conceito de que a boa ordem urbana era uma marca do comportamento europeu (portanto, civilizado). Pouco importou se os habitantes dessas comunidades planificadas continuaram fiéis à sua dieta tradicional de mandioca, ou se eles mantiveram as suas maneiras grosseiras, como afirmou um historiador;65 pelo menos na sua aparência exterior, as comunidades planificadas deram mostras de um estilo de vida europeu.
Num certo sentido, o Brasil, com seu vasto sertão, serviu de campo de prova para os desenhos urbanos mais recentes saídos das pranchetas em Portugal. Embora os portugueses viessem fazendo experiências de planejamento urbano inovadoras desde a Idade Média, a oportunidade de construção em massa de novas cidades era restrita num país que havia sido povoado desde a Antiguidade. A vida urbana no Portugal sete-centista decorria com razoável estabilidade, até a manhã do dia 12 de novembro de 1755, quando um terremoto atingiu Lisboa. Imediatamente se determinou uma reconstrução completa da área do centro da cidade. Já que muitos dos conceitos urbanos aplicados naquele projeto foram os mesmos que vinham sendo empregados no Brasil, vale a pena examinar sua utilização no país-metrópole.

O sismo de 1755 destruiu uma grande parte do velho núcleo comercial do centro de Lisboa, o que requereu uma reconstrução urbana de proporções inauditas.66 Muitos engenheiros com formação em arquitetura civil apresentaram diversos projetos para reedificar a área; alguns deles propuseram reconstruir as ruas seguindo o mesmo traçado medieval (Figura 14A), ou conservando pelo menos algumas das antigas vias de circulação. Finalmente se adotou o único projeto que apresentava uma abordagem inteiramente nova; ele propunha uma 'rede' muito complexa, composta de oito ruas de orientação norte—sul e nove dispostas do leste para o oeste".67 Essas ruas seriam o meio de ligação entre duas importantes praças.

Figura 14 B: Novo projeto de Lisboa depois do terremoto de 01/11/1755.

O risco foi de autoria de Eugênio dos Santos, diplomado pela Aula de Fortificação por-tuguesa, e Carlos Mardel, engenheiro militar húngaro. A natureza racional do projeto para o bairro baixo de Lisboa empolgou o Marquês de Pombal, que o apoiou entusiasticamente. Como observou José Augusto França, o esquema era perfeitamente concorde com a política do marquês, servindo de representação gráfica da sua atitude ordenada em relação ao governo (Figura 14B).68

Na planta de Santos e Mardel, três ruas serviriam de artérias principais de tráfego inten-so e, ao mesmo tempo, seriam o eixo de direcionamento do trânsito de uma praça para a outra. Essas artérias tinham 60 palmos (13,2m) de largura, enquanto as ruas menos importantes tinham apenas 40 palmos (8,8m). Os prédios dessas vias tinham uma altura e uma fachada regulamentada, de modo que, num comprimento de 400 metros, não seria admitida a mínima variação, a menor fantasia. Além disso, para aumentar a composição homogênea do bairro, cada rua deveria ter a sua própria especialidade comercial. Embora a Idade média tivesse sido fértil em precedentes dessa especialização de ruas, os novos regulamentos, aliados às novas prescrições de construção, levaram muitos críticos a se queixarem da opressiva monotonia da planta. Em que pesasse essa objeção, a planta para a Baixa foi executada; o descumprimento do novo código resultava na recusa da permissão de construir no novo bairro.69

A praça principal da metrópole, o Terreiro do Paço, foi igualmente submetida aos novos padrões urbanos. Outrora uma praça pitoresca de formato irregular, ela era voltada para o mar, e nela ficava o palácio real. No novo projeto para a Baixa, a praça foi transformada no novo centro judiciário e de serviços públicos da nova Lisboa. Reprovou-se lhe o caráter comercial, pois nela ficavam a alfândega, os serviços públi-cos, o tribunal e o centro financeiro. Sua nova fachada reproduzia a ética empresarial da organização: três lados da praça foram ocupados com prédios idênticos, com arcadas do térreo ao primeiro andar e pilastras duplas,70  enquanto o quarto lado permaneceu aberto para o mar e para o império português longínquo. Do lado oposto ao paredão do mar, foi construído mais tarde um arco do triunfo que abria a perspectiva desse lado para a malha de ruas comerciais situada atrás dele.

O espírito das reformas da Baixa propagou-se por outros bairros de Lisboa,71  e até por outras cidades portuguesas (com especialidade o Porto). Embora a maior parte dos observadores europeus o ignorassem, os conceitos de desenho utilizados na reforma urbana da metrópole eram exatamente os mesmos que vinham sendo postos em prática no Brasil havia já meio século. Por exemplo, o projeto de Lisboa revela a mesma preocupação com o alinhamento e a uniformidade das ordens de 1716 para a criação de Mocha, no Piauí. O projeto da Baixa pode ter sido realmente, como França escreveu, um pensamento urbano dinâmico ímpar na Europa setecentista;72 porém os conceitos revelados na construção da capital do reino no final dos anos 1750 haviam sido aperfeiçoados pelos administradores e engenheiros portugueses no Brasil no decurso das décadas que antecederam o sismo.

As experiências portuguesas de planificação urbana no Brasil e a reconstrução posterior de centros urbanos em Portugal demonstram claramente que o governo real havia compreendido que a planificação urbana podia servir a fins administrativos práticos e, ao mesmo tempo, ser esteticamente agradável. Como em outras partes da Europa, para os portugueses, a planificação urbana tornou-se um instrumento da política estatal.73  A administração de Dom João V foi a primeira a compreender que um programa de construção de vilas encerrava uma potencialidade de ampliação da autoridade; Pombal interpretou essa fórmula como a condição indispensável do bom governo, acrescentando-lhe o seu reconhecimento da dimensão sociocultural do programa. O modelo de vila utilizado no Brasil em meados do século XVIII era apreciado não só pelo seu traçado ordenado e esteticamente agradável, mas também porque ele simbolizava um nível de europeização e sofisticação ao qual Pombal achava que o interior do Brasil devia aspirar. Sob a direção do marquês, a colônia foi totalmente impregnada de aplicações, tanto teóricas como práticas, da filosofia municipal iluminizada do século XVIII.


N o t a s :
(1) Donald E. Worcester, Brazil From Colony to World Power (Charles Scribner's Sons, Nova York, 1973), p. 47.

(2) Como já foi assinalado em Kenneth R. Maxwell, Conflicts and Compiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808 (Cambridge University Press, Londres, 1973), p. 15, as outras reformas do Marquês de Pombal no Brasil abrangiam a organização de companhias comerciais para asse-gurar o monopólio português de valiosos artigos de exportação, a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro e a reativação da cobrança do quinto real, a quota da coroa sobre a renda gerada no Brasil.

(3) David Sweet, "The `Conquese of Northeastern Brazil: Sketches for a People's History of Ex-pansion", ensaio, apresentado na Convenção da Associação Americana de História, Nova Or-leans (Louisiana), dezembro de 1972, pp. 21-22.

(4) Recomendações do Rei a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de maio de 1751. AHI, Livro 343/2, nª 29.

(5) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, de 11 de outubro de 1753. AHU, Pará, Caixa 16.

(6) Carta de Mendonça Furtado, de 13 de setembro de 1754. Registro de Cartas, BNL-CP, n2 159.

(7) Carta do Bispo do Pará a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Pará, 31 de janeiro de 1756. Esse documento está reproduzido em MCM, vol. III, p. 905.

(8) Como está assinalado em "Resumo histórico de algumas fortalezas e povoações", AHI, Lata 256, Maço 2, Pasta 7.

(9) Cópia da carta de S. Mag.de a Mendonça Furtado, de 3 de março de 1755. Essa carta instruía o governador a alinhar as ruas de Borba. BNRJ, 1-31, 28, 41, n2 6.

(10) Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, "Diário da viagem que em vizita e correição das povoaçoens da Capitania de S. José do Rio Negro fez o ouvidor e intendente geral da mesma... no anno 1774-1775". BMSP, MSS C, 52.

(11) Como citado em Ernini Silva Bruno, Amazônia, vol. I, op. dl., p. 83.

(12) Carta Régia, de Lisboa, 3 de março de 1775, endereçada a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. BNRJ 1-31, 28, 41, n2 4.

(13) Ibidem.

(14) Carta do bispo do Pará a Mendonça Furtado, do Pará, 13 de maio de 1775. AHI, Livro 430/ 4/2, n2 35.

(15) Carta de Manuel Bernardo de Mello e Castro a Sebastião José de Carvalho, Pará, 2 de no-vembro de 1759. ABAPP, vol. VIII (1913), pp. 99-106.

(16) Figura 8A - Vila de Barcellos, 1762, MIGE, n" 1005; Figura 8B - Planta da nova villa de Barcellos, aproximadamente 1770. BNRJ-SI, 24-3-1.

(17) Isso está dito na "Memória sobre o Governo do Rio Negro", 1762. AHI, Livro 340/4/4, nº 42.

(18) Correspondência de Fernando da Costa Athayde Teive a Mendonça Furtado, Pará, 2 de julho de 1768. AHI, Lata 195, Maço 4, Pasta 4.

(19) Carta do Capelão Antônio Machado a Mendonça Furtado (?), Missão de N. S. da Piedade, 6 de abril de 1756. BNL-CP, 622, fls. 166-167.

(20) Carta de José Marq.e da Fon.a Castelho a Mendonça Furtado, de 20 de dezembro de 1757. BNL-CP, 624, fls. 188-188v. Castelho declara ter utilizado "a ordinária planta p.a q. ficace... e se construhir com as qualidades q deve ter hua bem fundada Villa.".

(21) Essas mudanças de nomes deram-se entre 1757 e 1760. Uma representação do Tribunal da Mesa de Consciência datada de 13 de janeiro de 1760 ordenou que as denominações de várias missões jesuíticas cujo controle o Estado havia assumido fossem mudadas. AHU-CA, Bahia, 4791.

(22) Dois estudos recentes acerca da atitude portuguesa para com as missões podem ser encontrados em Daniel Sweet, op. cit., e Colin M. MacLachlan, "The Indian Labor Structure in the Portuguese Amazon, 1700-1800", in Dauril Alden (editor), Colonial Roots of Modern Brazil (University of California Press, Berkeley, 1973), pp. 199-230.

(23) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, Pará, 21 de fevereiro de 1759. ABAPP, voL VIII (1913), p. 52.
(24) Antônio Rocha Penteado, Belém: Estudo de Geografia Urbana, 2 vols. (Universidade Federal do Pará, Belém, 1968), p. 109.
(25) O engenheiro italiano Antônio José Landi veio para o Brasil para acompanhar a comitiva de demarcação de fronteiras. Gal. Aurélio de Lyra Tavares, op. cit., p. 110
(26) Ver capitulo IV.

(27) Parecer do Conselho Ultramarino, de 25 de setembro de 1758. AHU, Códice 239.

(28) Carta de José Pedro da Câmara a Mendonça Furtado, de 17 de dezembro de 1765. Esse documento está apenso à planta 71 do Catálogo AHU-Iria.

(29) Projecto de novo apuzento p.a os Indios da Aldeya de S. Miguel, 1765. AHU-Iria, n2 71.

(30) Planta de uma povoação na cachoeira Girão do rio Madeira delineada pelo capitão-geral de Mato Grosso Luís Pinto de Sousa Coutinho, 1768. In AHI-IA, na 75.

(31) Carta de Luís Pinto de Sousa Coutinho a Mendonça Furtado, Fortaleza da Conceição, 30 de novembro de 1768. AHI, Lata 275, Maço 5, pasta 9.

(32) Isso foi registrado por Artur César Ferreira Reis em “Aspectos da Amazônia na sexta década do século XVIII", in RSPHAN, vol. VIII (1944), p. 68.

(33) Posturas e Taxas da Vila de Conde. Como citado ibidem, p. 70.

(34) Termo da Demarcação e Assignação do Terreno da real vila de Monte-Mór o Novo da América, in RIC, vol. V (1888), p. 265.

(35) A recomendação foi emitida em 12 de abril de 1767. RIC, vol. VII (1890), p. 106. Parece que essa ideia havia impregnado o pensamento de muitos administradores portugueses. Por exemplo, em 1763 o governador do Pará (Melo e Castro) emitiu um informe no sentido de que no futuro todas as comunidades recebessem nomes, "como é de costume em povoações civilizadas". Todas as casas seriam construídas com uniformidade e retidão", e os funcioná-rios da câmara seriam encarregados de subdividir a área da vila, que depois seria adjudicada em partes iguais aos habitantes. Pará, 23 de janeiro de 1763, como citado in Ferreira Reis, op. cit., p.69.

(36) Ver "Termo pelo qual se assignou o districto d'esta vila e o Patrimonio d'ella e para Rocio pasto commum dos gados dos seus moradores". RIC, vol. VIII (1891), p. 269.

(37) Ibidem. Monte-Mor o Novo atualmente tem o nome de Baturité; fica no Ceará, perto do rio Maranguape.
(38) "Instrução que levou o Capitão-Mor João Batista Oliveira quando foi estabelecer a nova vila de S. José de Macapá", Pará, 18 de dezembro de 1751. MCM, vol. I, p. 115

(39) A carta de Mendonça Furtado a Alexandre Metelo de Souza Menezes, do Pará, 20 de dezembro de 1751, menciona essas expedições. MCM, vol. I, p. 22.

(40) Carta de Mendonça Furtado à Coroa, Pará, 10 de abril de 1757. BNL-CP, 162, fl. 19v.

(41) Correspondência de João da Cruz Diniz Pinheiro a Mendonça Furtado, de 2 de abril de 1755. BNL-CP 624, fls. 64-65.

(42) Essa é a opinião de Manuel Bernardo de Melo e Castro, expressa numa carta a Tomé Joaquim da Costa, datada do Pará, 30 de janeiro de 1760. ABAPP , vol. -VIII (1913), p. 126.

(43) Figura 11 - Planta da Villa de S. Jozé do Macapá, 1761. AHU-Iria, ri2 24; Figura 12 - Planta Ichnographica das cazas... de S. José de Macapá para os novos povoadores, 1759. MIGE, n2 1015.

(44) A esse respeito, ver Artur César Ferreira Reis, "Guia histórico dos municípios do Pará", RSPHAN , vol. XI (1947), p. 286.

(45) Esse modelo de praça dupla foi visto pela primeira vez na Salvador quinhentista; foi empregado reiteradamente no século XVIII.

(46) Por exemplo, Santos, op. cit., p. 62.

(47) Praça de S. José de Macapá, 1771, MIGE, n2 1227.

(48) Manuel Aires de Casal, Geografia Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil (1817) (Edições Cultura, São Paulo, 1943), vol. II, p. 52

(49) Isso está concorde com a exposição contida em "Município de Mazagão", ABAPP , vol. IX (1916), pp. 398-399.

(50) Sambucetti, de origem genovesa, trabalhou como engenheiro na comissão portuguesa de fronteiras da Capitania do Rio Negro. Ver Lyra Tavares, op. cit., p. 126.

(51) "Município de Mazagão", op. cit., pp. 403-404.

(52) Ibidem, op. cit., pp. 398-399. Mendonça Furtado emitiu essa opinião a respeito de Sarmento.

(53) Ver Artur César Ferreira Reis, Território do Amapá: Perfil Histórico (Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1949), p. 65.

(54) "Município de Mazagão", op. cit., p. 399. Colin M. MacLachlan, op. cit., p. 218, registra que, em 1774, 19 aldeias indígenas forneceram trabalhadores para fins de construção em Vila Nova de Mazagão.

(55) Ver a carta de Sambucetti ao governador Athayde Teive, de 13 de março de 1770, como citada em "Município de Mazagão", op. cit., p. 405.

(56) Figura 13A - Levantamento inicial da Vila Nova de Mazagão, sem data. MU-CI, na 24; Figura 13B - Planta da Vila Nova de Mazagão, aproximadamente 1800. MIGE, n2 1017.

(57) Ferreira Reis, op. cit., p. 66. Isso também consta no "Município de Mazagão", op. ci t., p. 403. Ver também "Relação das famílias que vão estabelecer-se na praça de Mazagão, por ordem de Sua Magestade". IHGB, Lata 354, Doc. 16.

(58) Essa informação demográfica está contida na carta de Gama Lobo de Almada (encarregado da comunidade), de 15 de dezembro de 1772, como citada em "Município de Mazagão", op. cit., p. 413.

(59) "Município de Mazagão", op. cit., p. 412

(60) O programa de manutenção por um ano segue o modelo traçado para as comunidades açoria-nas em 1747. Ver "Município de Mazagão", op. cit., p. 412, n2 45.

(61) Ferreira Reis, "Guia histórico dos municípios do Pará", op. cit., p. 289.

(62) Em seu relatório citado em "Município de Mazagão", op. cit., p. 419 (sem data), Gama Lobo observa que em 1778 Macapá exportou 16.136 alqueires de arroz, Mazagão exportou 3.317 1/2, e Vila Vistoza, 2.230 (o alqueire era uma medida de capacidade variável de uma região para outra; o alqueire de Lisboa equivalia a 13,8 litros). Uma análise dos princípios dire-tores econômicos durante a era pombalina pode ser encontrada em Kenneth R. Maxwell, "Pombal and the Nationalization of the Luso-Brazilian Economy", in HAHR, vol. XLIII, ri2 4 (novembro de 1968), pp. 608-663.

(63) Relatório de João Pereira Caldas a Martinho de Mello e Castro, Pará, 5 de novembro de 1775. IHGB-CU, Arc. 1.1.3, pp. 352v-355.

(64) Eu diria que foram construídas pelo menos 35 vilas e arraiais.

(65) Ver David Sweet, op. cit. et passim.

(66) Um relato sucinto do acontecimento e suas consequências pode ser encontrado em Luís Soriano, História do Reinado de El-Rei D. José (Typographia Universal, Lisboa, 1867), vol. II, pp. 92-93.

(67) Ver José Augusto França, Lisboa Pombalina e o Iluminismo (Livros Horizonte, Lisboa, 1965), p. 74. Salvo outras remissões, esta explanação é baseada no excelente estudo de França.

(68) Figura 14A - Planta de Lisboa no século XVI, tirada de G. Braun, Civitas Orbis. Terrarum; Figura 14B - Planta elaborada pelos arquitetos Eugênio Carvalho e Carlos Mardel superposta a uru mapa de 1660 para a reconstrução do Rossio. Reproduzida com autorização da editora de E. A. Gutkind, Urban Development in Southern Europe: Spain and Portugal, vol. III: Internacional History of a City Development (The Free Press, Nova York, 1967), pp. 62 e 67.

(69) Consulta do Rei, Lisboa, 16 de setembro de 1756. Reproduzida em Antônio Delgado da Silva, Supplemento à Collecção de Legislação Portugueza (Typographia Luis Correa da Cunha, Lisboa), vol. 1750-1762, nota 413.

(70) Robert C. Smith, The Art of Portugal. 1500-1800 (The Meredith Press, Nova York, 1968), p. 105.

(71) Por exemplo, pelo bairro do Rato. A Resolução do Rei datada de 4 de agosto de 1767 exigia o realinhamento e a regulamentação de toda construção futura em torno das cidades já existentes (sem especificar se isso também se aplicava às colônias de ultramar). Delgado da Silva, op. cit., vol. 1763-1790, p. 158. Depois dessa época, os portugueses empenharam-se na construção de novas cidades em larga escala também na sua pátria. De acordo com Luís C. Moncada, Um iluminista Português do Século XVIII (Saraiva e Companhia, São Paulo, 1941), p. 103,0 sábio português Verney propôs no final dos anos 1760que o governo criasse novas cidades em estradas principais de tráfego intenso “para acelerar o comércio”.

(72) Augusto França, op. cit., p. 85.


(73) E. A. Gutkind, op. cit., pp. 31-32 .

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