quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

NOVAS VILAS PARA O BRASIL COLÓNIA Planejamento espacial e social no século XVIII PARTE II


Roberta Marx Delson

Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto


Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em co-autoria com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.


A formulação de um plano de construção de vilas.

No final do século XVII foi descoberto ouro no interior acidentado a oeste da província do Rio de Janeiro. Esse acontecimento acarretou a avaliação do potencial da colônia por parte de Portugal e mostrou claramente que o governo precisava agir com presteza para garantir o controle imediato do rico território interiorano. As terras do sertão não podiam mais ficar sem supervisão, e os administradores, cientes disso, logo estabeleceram as primeiras medidas de um programa legislativo para redefinir os direitos sobre a terra e, ao mesmo tempo, estender a autoridade real.

Na formulação desse programa, foram levadas em conta quatro questões básicas. A primeira delas dizia respeito ao estabelecimento de uma regulamentação para áreas auríferas, prevendo-se a nomeação de funcionários reais. Isso visava a garantir o recebimento pela Coroa de um quinto das receitas oriundas da mineração, o quinto de praxe, e possivelmente evitar vendas ilegais a grupos estrangeiros. A segunda tarefa que se impunha era estabelecer uma jurisdição sobre os aventureiros (bandeirantes1  e boiadeiros que no decorrer do século XVII haviam sido os primeiros a explorar o agora precioso sertão, na sua maior parte sem nenhuma restrição da administração real. Em ligação com essa necessidade prioritária de reforma da lei e da ordem, havia a vontade da Coroa de conter a força crescente dos poderosos do sertão, indivíduos que se haviam enriquecido ampliando as suas concessões de terras originais como grileiros, fazendo valer os direitos de posse. Com o avanço do século, as autoridades da Coroa iam não só desafiar esses barões fundiários, mas procurar desbancá-los mediante a criação de minifúndios para lavradores. Estes se compunham principalmente de colonos europeus oriundos das possessões insulares atlânticas superpovoadas do reino, os quais eram considerados mais confiáveis e também mais propensos à agricultura do que seus contemporâneos bandeirantes.

Por último, os portugueses pretendiam ampliar os seus domínios territoriais à custa dos espanhóis, compreendendo que, com o estabelecimento de colônias lusas nas regiões recém-exploradas do Oeste e do Sul longínquos, seus rivais hispânicos na América ficariam em nítida desvantagem. Embora as reivindicações espanholas sobre a região a oeste do rio Tocantins (e a leste dos Andes) tivessem sido aceitas pelo Tratado de Tordesilhas (em 1494, na pequena cidade espanhola de Tordesilhas, fixou-se o meridiano situado a 370 léguas a oeste das ilhas Cabo Verde como limite entre as possessões espanholas e as portuguesas), esse patrimônio remoto nunca havia sido suficientemente colonizado para garantir a hegemonia espanhola. A Coroa portuguesa raciocinou corretamente (muito antes da aceitação internacional do princípio do uti possi de tis [como te apossaste]) que, se os lusitanos ocupassem efetivamente as terras reclamadas pela Espanha, no final das contas poderiam assegurar essas regiões para si.

Portanto, esses quatro objetivos condicionaram a politica portuguesa para as regiões interioranas do Brasil durante a maior parte do século XVIII. Os administradores lisboetas resolveram que uma ampliação da autoridade e uma redefinição dos direitos sobre a terra finalmente ) tinham de ser incorporadas a um plano de desenvolvimento intensivo para a hinterlândia brasileira. O mecanismo pelo qual o sertão seria n subordinado à autoridade real baseava-se na fundação de comunidades supervisionadas pela Coroa, as quais, com o tempo, formariam redes urbanas integradas, localizadas em pontos estratégicos do interior. Assim, o planejamento e o a desenvolvimento desses novos núcleos interioranos orientariam o processo de urbanização durante todo o século.2

A penetração no interior iniciou-se no final C do século XVI. Até então os esforços de colonização dos portugueses tinham se confinado de modo geral às zonas litorâneas, o que inspirou d a Frei Vicente do Salvador a famosa metáfora dos caranguejos agarrados à linha costeira.3   Entre os anos de 1532 e 1536, a Coroa portuguesa e dividiu o litoral do Brasil em 15 capitanias (ou c donatarias), largas faixas de terras concedidas a 12 homens de alto prestígio no reino. O donatário era obrigado a assinar uma escritura formal com a Coroa. De forma quase medieval, ele tornava-se diretamente responsável pelo crescimento e desenvolvimento do seu patrimônio e praticamente recebia carta branca no tocante à urbanização. No estágio de capitanias hereditárias, não havia nenhuma diretriz para o crescimento das povoações, e aos concessionários recomendava-se apenas que eles podiam:

 ...estabelecer todas as aldeias que quiserem além das povoações que se situarem ao longo da costa da dita terra e nas margens dos rios navegáveis, mas no interior eles não podem construí-las a menos de seis léguas de distância uma da outra, de maneira que possa haver pelo menos três léguas de terra de cada aldeia até o limite territorial da outra.4

A sorte estava lançada. Ao longo da costa, os donatários tomavam posse de imensos talhões de terra, ficando até 50 léguas (!) nas mãos de um único homem.Cada beneficiário, ou capitão-mor, por sua vez, tinha o direito de conceder terras de sesmaria a colonos dentro da sua capitania, cuja extensão o próprio donatário fixava. A prática da concessão de sesmos (grandes extensões de terras) teve origem na Idade Média, quando os senhores feudais buscavam avidamente voluntários para colonizarem os seus territórios. As novas comunidades assim formadas, o soberano concedia cartas, e um sesmeiro distribuía terra aos recém-chegados.6

Entretanto, o sistema de sesmarias foi mais amplamente utilizado no Brasil (onde grandes áreas de terras devolutas estavam imediatamente disponíveis), e a sua importância para o desenvolvimento do País não devia ser subestimado. Conjugada com a influência senhorial do sistema de donatarias, a prática da concessão de sesmarias literalmente institucionalizou o fenômeno dos latifúndios. Mesmo com a decadência da política da capitania particular e a tentativa bem-sucedida da Coroa de recomprar essas terras e estabelecer o controle real, processo que foi concluído no século XVIII, a configuração das concessões de terras das sesmarias persistiu. Acresce que muitas das terras concedidas gratuitamente no interior foram ampliadas pelo usucapião, ou direito de posse efetiva. Os funcionários do governo permaneciam nas cidades litorâneas, longes demais para intervir decisivamente nessa flagrante quebra da autoridade. Na ausência de fortes sanções governamentais, surgiram poderosas famílias interioranas, que tiravam o seu prestígio e influência da propriedade de vastos domínios particulares.7

Nessas condições, o sertão atuava como um poderoso ímã para aventureiros e habitantes das populosas comunidades litorâneas sedentos de terras. O célebre historiador brasileiro João Capistrano de Abreu foi o primeiro a assinalar a força de atração das terras do interior na sua obra-prima do final do século XIX Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil.8  Nessa obra original, o autor salientou que as entradas (expedições de exploradores destemidos ao sertão) poderiam ser mapeadas em ciclos cronológicos, começando com os boiadeiros, seguidos pelos caçadores de escravos silvícolas e depois pelos garimpeiros. Em vista disso, o século XVII poderia ser estudado como uma série de invasões não planejadas do sertão.

De acordo com a cronologia de Capistrano de Abreu, o estudo da história do interior do Brasil começa propriamente no final do século XVI, quando decretos proibindo o pastoreio nas redondezas dos centros urbanos litorâneos forçaram os boiadeiros a migrarem para a caatinga do Nordeste. As primeiras boiadas a penetrar no sertão foram conduzidas ao longo do rio São Francisco, em busca da preciosa água necessária aos animais.1 Embora os boiadeiros não tivessem a intenção preconcebida de colonizar a área, seus complexos pecuários, instalados em terras ocupadas ao longo do rio, logo cresceram e se transformaram em pequenas povoações, com a incorporação de ajudantes da fazenda e de famílias. Por todo o interior da Bahia, para o norte, em direção a Pernambuco, e, por fim, mais ao norte, até o Maranhão, o processo foi o mesmo: as boiadas realizavam a penetração inicial, e atrás delas pequenos grupos de colonos estabeleciam-se. Os currais resultantes desse povoamento (aldeias de criação de, gado), 1° proporcionavam uma renda escassa aos criadores sedentários, que vendiam os seus limitados excedentes aos boiadeiros que passavam.

Enquanto àquela altura a produção pecuária se limitava essencialmente ao Nordeste, o ciclo da caça de escravos amerígenas estava concentrado no Sul em geral. O objetivo dos aventureiros escravistas que, partindo do altiplano ondulado de São Paulo, penetravam no sertão era incursionar pelas missões do Sul, onde os jesuítas haviam agrupado facilmente seus protegidos índios em prósperas comunidades agrícolas. Os caçadores de escravos vendiam então os índios capturados nas cidades costeiras já fundadas, aumentando assim a sua população e contribuindo muito pouco para o povoamento do interior.

Em meados do século XVI, a caça de escravos começou a diminuir em consequência de um programa de armamento levado a efeito pelos jesuítas, e um novo grupo de aventureiros surgiu, disposto a explorar o desconhecido. Este último grupo também teve origem em São Paulo, porém o seu intuito era a descoberta de minerais preciosos, e não a obtenção de escravos indígenas. Os paulistas pareciam particularmente bem adaptados à vida rude e penosa dos garimpeiros: certamente a vida na capital da sua província não os havia habituado aos padrões relativamente luxuosos do Rio de Janeiro ou da Bahia. Acresce que muitas vezes eles eram produto do caldeamento entre portugueses e índias, e ha-viam assimilado a experiência indígena de sobrevivência no interior agreste.

Organizados em grupos denominados bandeiras, os paulistas (junto com elementos de outras regiões costeiras) penetravam profundamente na hinterlândia e não raro eram recompensados com o achado de ouro em regiões que hoje fazem parte do estado de Minas Gerais. Em seguida às primeiras descobertas de ouro e pedras preciosas da década de 1690, um número crescente de bandeirantes mineradores vagueavam pelos planaltos ondulados do interior, tentando repetir os sucessos dos primeiros achados; en-quanto isso, iam deixando atrás de si uma trilha de pequenos campos de mineração construídos atabalhoadamente. Não obstante, esses campos precários constituíram os núcleos dos primeiros povoados realmente permanentes da região.

Nessas condições, a abertura inicial do sertão brasileiro ocorreu sem qualquer interfe-rência da fiscalização real. Os aventureiros que buscavam fortuna no tráfico de cativos indígenas, na criação de gado ou no garimpo de ouro prosseguiam tranquilamente nas suas atividades, certos de que aquelas regiões remotas estavam fora do alcance do braço da lei. Impor qualquer controle ali, no século XVII, era uma tarefa irrealizável pela Coroa, pois simplesmente não existiam vilas nem cidades onde os delinquentes pudessem ser julgados e, se preciso fosse, segregados do convívio social. Na falta de centros administrativos apropriados, a atitude da Coroa foi simplesmente ignorar por completo aquela situação. Só quando a atração exercida pelos achados de ouro despertou o interesse da metrópole e quando, concomitantemente, a hinterlândia começou a seduzir um grande. número de aventureiros é que os portugueses puseram em prática as primeiras providências necessárias ( para assegurar o controle do interior.

A década de 1690 marcou uma virada na História do Brasil: na mesma época em que correu a notícia da descoberta de ouro no sertão, o governo colonial proclamou a intenção de abrir oficialmente o interior. Uma batalha inevitável começou a delinear-se: o poder real em guarda contra a aristocracia agrária, essencialmente uma repetição da luta bem conhecida entre a Coroa e os donatários e, coincidentemente, um claro reflexo do tempo muito curto transcorrido desde a Idade Média. Entretanto, na passagem para o século XVIII, com a prática da sesmaria ainda gravada tão profundamente no interior,   a luta assumiu aspectos mais parecidos com a situação de nossos dias, pois o interesse público, aqui representado pela Coroa, desafiou os detentores da propriedade privada.  A preferência declarada dos portugueses pelos pequenos fazendeiros, e não pelos grandes latifundiários, fazia parte do seu ambicioso programa de reestruturação fundiária iniciado nos anos 1690. A Coroa ia implantar um projeto visionário e tão radical para a época que implicava em nada menos que uma reformulação completa da situação jurídica do solo colonial.11

Certamente não foi por mera coincidência que a primeira lei agrária formal foi elaborada na década em que se descobriu ouro em Minas Gerais. A lei de 1695, que limitava as concessões de sesmarias a uma extensão de quatro léguas de comprimento por uma légua de largura, visava a atingir não só as zonas de mineração, mas também áreas de terras agricultáveis. Embora essa medida tenha sido interpretada pelos administradores coloniais como um dispositivo para assegurar a ocupação efetiva da terra, seu efeito capital consistia em impedir que se reivindicassem propriedades extensas em zonas que pudessem revelar-se de valor pecuniário inestimável para a Coroa.

Dois anos depois a Coroa promulgou uma lei ainda mais restritiva, reduzindo as sesmarias para três léguas por uma légua e prescrevendo, além disso, que entre uma concessão e outra se deveria deixar uma área de uma légua quadrada sem ocupação. Dessa maneira, a Coroa reservava-se um direito de via de acesso, ou um domínio público potencial, no caso de uma ocupação total da terra. O acesso assim obtido seria de imensurável importância na eventualidade de um conflito motivado por litígios em torno de estremas de terras (o que não era raro) e, ao mesmo tempo, garantiria o acesso a futuras zonas auríferas ainda não descobertas, acesso esse que poderia ser cortado por um conluio dos beneficiários de duas sesmarias contíguas.

A última lei do século XVII foi baixada em 1699.12  Ela fazia referência específica -- e isso tem um viso bem moderno -- ao cultivo útil como critério para manter a posse das terras de concessão, e ameaçava de expropriação quem deixasse de cumprir a prescrição. Conquanto esse corpo de leis provavelmente representasse mais uma veleidade do que uma determinação expressa da Coroa, e na realidade precisasse ser revisto depois, as leis revelam uma completa mudança da postura oficial. A burocracia portuguesa reconhecera que a colonização metódica do sertão só poderia ser levada       a efeito se a terra fosse distribuída equitativamente em pequenas parcelas a um grande número de indivíduos; a manutenção de grandes propriedades particulares no interior teria o efeito negativo de desencorajar o futuro povoamento.

Inequivocamente, era do interesse dos portugueses fazer cumprir essas leis tão rigorosa-mente quanto possível. Durante as primeiras décadas do século XVIII, houve múltiplos casos de processos do Estado contra grandes proprietários de terras que se recusavam a permitir que colonos se instalassem nas suas terras.13   Igualmente demoradas eram as demandas motivadas por questões de limites entre vilas vizinhas, um transtorno inevitável, em decorrência do qual a terra em litígio não podia ser facilmente adjudicada para fins de colonização.14  Conjuntamente com seu empenho em regularizar a distribuição da terra, os portugueses procuraram resolver a questão da propriedade das áreas de mineração reclamadas. Logo em 1700 o governador do Rio de Janeiro elaborou um código de mineração, que estabelecia o procedimento para a distribuição das áreas auríferas entre os garimpeiros. A lei determinava que todo aquele que descobrisse ouro tinha o direito de demarcar 60 braças quadradas (uma braça = seis pés = 1,8288m; 60 braças = 109,728m) para si, uma superfície igual sendo reservada para a ( Coroa e seu representante no distrito de mineração. Outros lotes auríferos eram delimitados e adjudicados de acordo com o número de escravos que o minerador tinha a seu serviço.[

Todavia, como o historiador Charles Boxer salientou, mesmo com esse sistema de loteamento claramente definido, os casos de corrupção eram comuns nas regiões de mineração.15   O suborno de funcionários da Coroa para obter lotes suplementares era notório. Mesmo onde a terra já havia sido distribuída de conformidade com as prescrições legais, não havia meio de impedir que os mineiros anexassem as concessões de outros aos seus lotes, ou que eles os vendessem por um bom preço. No caso da outorga de terra agricultável, a área de mineração tinha de ser severamente vigiada para impedir a incorporação de terras em larga escala e trapaças.

Mas a terra em si não era o único problema com que a Coroa se via a braços. Igualmente perturbadores eram os indivíduos que enxameavam sertão adentro, considerados uma casta particularmente detestável pelos observadores portugueses.  O potencial de conflito aberto saltava aos olhos, principalmente porque os canavieiros do Nordeste, fortemente premidos pelas recentes recessões provocadas pela concorrência do Caribe,16  abandonavam os seus canaviais aos bandos para tentar a sorte na mineração. Os paulistas eram infensos a esses intrusos (tanto aos plantadores como aos escravos) quase tanto quanto aos reinóis, portugueses que chegavam em grandes contingentes da metrópole com o fito de compartilhar da riqueza da terra. Se se quisesse evitar lutas armadas e fazer valer a lei e a ordem, era preciso tomar providências drásticas. Assim sendo, o governador do Rio cie Janeiro (sob cuja jurisdição a área de mineração estava) em 1682 foi encarregado de controlar as atividades dos vagabundos e desordeiros, seguindo o exemplo das ordens religiosas e agrupando tais elementos à força em povoações adrede criadas. Com efeito, a fraseologia das instruções oficiais reforça a impressão de comunidades clericais, pois nelas se faz referência explícita a reduzir a população errante, exatamente a mesma terminologia empregada pelos missionários nas suas reduções (aldeias).17 Agrupando-se esses andarilhos em povoações facilmente administradas, os infratores potenciais provavelmente seriam desencorajados e, ademais, os resultados positivos que se deveriam colher da administração firme e da ação da justiça podiam ser coadjuvados pela atuação de párocos. Pela sua lógica intrínseca, as instruções devem ter recebido forte apoio dos administradores coloniais, porque três anos depois, em 1696, o novo governador da capitania recebeu diretrizes semelhantes, desta vez instruindo-o a ampliar o programa mediante a construção de tribunais em que juízes itinerantes pudessem dar audiências.18

Evidentemente nem todos os governadores eram conscienciosos no cumprimento das novas diretrizes, ou então eram incapazes de pô-las em prática de modo a concretizar todas as suas potencialidades. Em consequência disso, em 1709 a Coroa foi obrigada     a renovar o edito para reduzir toda a gente que anda nas minas e povoaçoens.19   Por todo o século XVIII, ordens semelhantes para reunir os espalhados foram recebidas pelas autoridades regionais. O princípio era o mesmo, não importando a região onde a legislação determinasse a criação de comunidades, se na bacia amazônica, no Sul ou no Centro-Oeste da colônia. Como observou um famoso historiador, os portugueses estavam convictos, com justa razão, de que a construção de tais municipalidades era o melhor meio de civilizar e promover o povoamento do agreste sertão.19

A lógica da política da construção de vilas subsidiada pelo governo também era patente no trato do problema de manter o controle sobre o escoamento do ouro que estava sendo extraído. Era conveniente que povoações e vilas localizadas em zonas produtoras de minerais preciosos sediassem casas de fundição e instalações reais de cunhagem de moedas, enquanto funcionários residentes realizariam uma escrituração metódica das contas da mineração, restringindo assim as possibilidades do tráfico de contrabando. Além disso, se alguma fraude fosse cometida, os portugueses disporiam de autoridades judiciárias no próprio local, capazes de exercer a justiça.

Por essa mesma lógica pecuniária, também era evidente para os representantes da Coroa que as novas povoações iam facilitar o recebimento de impostos dos habitantes agora agrupados, que indubitavelmente haviam escapado a esses inconvenientes enquanto não houvera nenhum controle no sertão. Ademais, o próprio ato da criação de uma vila geraria renda suplementar para os cofres reais, porquanto a taxa devida pelo recebimento de um título de vila ia diretamente para o Tesouro Real. Assim, admira pouco que muitos acampamentos de mineração improvisa-dos tenham sido oficialmente convertidos em vilas; essas novas vilas eram necessárias para aumentar as rendas do Tesouro Real. 20

Como já foi assinalado, uma última razão para a decisão portuguesa de assumir o patrocínio de um programa de urbanização nas regiões interioranas derivava do desejo luso-brasileiro de ampliar os domínios territoriais em detrimento dos espanhóis. A pedra angular desse programa foi assentada em 1680, quando os portugueses fundaram a colônia de Sacramento na margem oriental (esquerda) do rio da Prata, no seu estuário, exatamente do lado oposto da cidade espanhola de Buenos Aires. Os espanhóis revi-daram imediatamente, criando o núcleo urbano de Montevidéu a jusante de Sacramento (e também na margem oriental), e uma luta pelo controle foi desencadeada. Os portugueses perceberam que, se quisessem sustentar a sua reivindicação da extremidade sul, era indispensável criar uma sólida linha de comunicação entre Sacramento e a povoação mais próxima sob o domínio da Coroa (em São Paulo). Como ficou comprovado no interior do Nordeste e na zona de mineração, a solução mais eficaz para manter a autoridade era fundar uma série de comunidades com habitantes permanentes, uma verdadeira fortificação humana responsável pela segurança da região. Muitas das povoações de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul devem a sua origem a esse esforço. Nos anos 1740 e nas décadas ulteriores, a Coroa procuraria incrementar a população adotando um programa de imigração oficial para a região, pelo qual colonos dos Açores superpovoados e de outras possessões portuguesas seriam reassentados no Sul.

Se o território sulino era de interesse fundamental para os portugueses, o Extremo Oeste o era mais ainda, pois a descoberta de ouro nas suas zonas interioranas subitamente conferiu a essa região uma importância estratégica imensa. Consciente disso, a Coroa seguiria no encalço dos acampamentos de bandeirantes em Mato Grosso e Goiás, tomando as providências legais necessárias para a criação de vilas e arraiais por-tugueses. No meado do século XVIII, a construção de uma cidade-capital no rio Guaporé e a fortificação de comunidades indígenas ao longo do sistema fluvial assegurariam a supremacia lusitana na região, um fato que foi reconhecido internacionalmente no Tratado de Madri, em 1750.

Portanto, em resposta a quatro estímulos interligados -- a distribuição de terras; a descoberta de ouro; a necessidade de implantar a lei e a ordem no sertão; e a ameaça pendente dos interesses espanhóis --, os portugueses resolveram-se a cobrir a hinterlândia com um sistema de cidades, vilas e povoações organizadas. Seus projetos racionais para levar a efeito essa empreitada que incluíram o emprego de planos diretores -- e seu êxito final constituem um dos aspectos mais notáveis da História do Brasil do século XVIII e serão estudados extensamente nos capítulos subsequentes. Todavia, é da máxima im-portância ressaltar aqui que os portugueses, profeticamente, reconheceram a necessidade de urbanizar a hinterlândia brasileira e de realizar uma reforma fundiária, isso há mais de 250 anos! Ironicamente, ainda hoje se discute o mesmo tema da criação de minifúndios e da comprovação do uso efetivo do solo nas grandes propriedades.  O que os portugueses empreenderiam e conseguiriam realizar num grau surpreendente durante o último século completo de administração colonial era nada menos que um repto frontal a todo o status quo colonial.


N o t a s :

(1) Na introdução de The Bandeirantes: The Historical Role of lhe Brazilian Pathfinders, de Richard M. Morse, editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1965), este reconstitui a origem da palavra bandeira. Originariamente, o termo era empregado para designar uma unidade militar portuguesa de 36 homens; porém ele também tem a cono-tação de causa defendida por um grupo organizado, pois é em torno da bandeira que o grupo se reúne. No contexto brasileiro, os homens que se incorporavam às expedições ao interior eram conhecidos pela denominação de bandeirantes, derivado de bandeira.

(2) Noutro texto, eu resumi essas asserções e comentei o êxito português em atingir esses objetivos. Ver "Colonization and Modernization in the Eighteenth-Century Brazil", de Roberta Marx Delson, in Social Fabri c and Spatial Structure in Colonial Latin America, de David j. Robinson, editor (University Micro-films International, Ann Arbor, Michigan, 1979), pp. 281-313.

(3) Frei Vicente. do Salvador, História do Brasil: 1 500-1627 , editada por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia (São Paulo, 1931), p. 19.

(4) Documento real de outorga da capitania de Pernambuco a Duarte Coelho Pereira, in A Documentary History of Brazil, de E. Bradford Burns, editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1966), p. 38. Charles R. Boxer, em The Golden Age of Bra-169 5 -17 50 ((Jniversity of California Press, Berkeley, 1969), à página 357, afirma que uma légua é igual a 3.755 1/15 passos geométricos. Segundo o The Random House Dictionaa of the English Language (edição de texto integral, Random House, Nova York, 1967), um passo geométrico é igual a cinco pés. Assim sendo, uma légua seria igual a pouco mais de 3,4 milhas, ou 5,472km, uma milha terrestre medindo 1.609,35m. Para os fins desta exposição, uma légua será considerada igual a 3,5 milhas (5.632,725m).

(5) E. Bradford Burns, A History of Brnil (Co-lumbia University Press, Nova York, 1970), p. 24 et passim.

(6) Para conhecer as práticas de sesmarias no Portugal medieval, ver: Portugal, de J. B. Trend (Ernest Benn Ltd., Londres, 1957), p. 69; The Donatory Captaincy in Perspective: Portuguese Backgrounds to the Settlement of Brazil", de Harold B. Johnson, Jr., in HAHR, vol. LII, 1-3.2 2, maio de 1972, p. 211; e "A Portuguese Estate of the Late Fourteenth Century", de Harold B. Johnson, in Luso-Brazilian Review, vol. X, riº 2, inverno de 1973, p. 158.

7) Caio Prado Júnior, The Colonial Background of Modern Brnil (versão de Suzette Macedo, University of California Press, Berkeley, 1967), p. 220.

(8) João Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil (Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 21 edição, 1960); ver sobretudo as páginas 59-164. Myriam Ellis, em "The Bandeiras in the Geographical Expansion of Brazil", in The Bandeirantes, de Richard M. Morse, editor, às páginas 48-63, também disseca esse fenômeno cíclico.

(9) Segundo Caio Prado Júnior, op. cit., p. 216, era proibido criar gado em torno desses centros num raio de dez léguas marítimas. Essa disposição tinha por finalidade suprimir a competição pela área periurbana, necessária para a produção de gêneros alimentícios para os habitantes da cidade.

(10) Por exemplo, Pastos Bons, no Maranhão, e Currais Novos, no Rio Grande do Norte. Em "Embriões de cidades brasileiras", in Boletim Paulista de Geografia n.225 (março de 1967), à página 53, Aroldo Azevedo dá uma relação mais ampla de cidades-currais.
(11) Ruy Cirne Lima, Terras Devolutas: História, Doutrina, Legislação (livraria do Globo, Porto Alegre, 1935), p. 37.
(12) Todas essas determinações legais são analisadas por Charles R. Boxer na sua obra The Golden Age of Brnik 1695-1750, já citada.

(13) Por exemplo, em 1715 foi instaurado um processo do Estado contra o detentor de uma sesmaria na proximidade da vila de Conceição, motivado pelo fato de ele não permitir assentamentos de colonos na sua propriedade (AHU, Códice 241, fls. 321v. e 322).

(14) Ver, por exemplo, o processo movido pela Coroa referente a litígios jurisdicionais suscitados pela criação de uma vila na região mineira de Serra Fria-Barra do Rio das Velhas, datado de 12 de janeiro de 1720 (AHU, Códice 241, fls. 321v. e 322).

(15) Charles R. Boxer, op. cit., p. 52.

(16) Ver o artigo The Brazilian Sugar Cycle of the XVIIth Century and the Bise of the West Indian Competition, de Matthew Edel, in Caribbean Studies, vol. 9, ri2 1, abril de 1969, pp. • 26-33.

(17) Carta do rei Dom João V, o Magnânimo, ao governador do Rio de Janeiro, de 27 de dezembro de 1693 (ANRJ, Códice 952, vol. VI, Rio 253).

(18) Correspondência expedida de Lisboa por Dom João V ao governador Artur de Sá e Meneses, datada de 6 de novembro de 1696 (ANRJ, Códice 952, vol. XVIII, p. 101).

(19) Parecer do Conselho Ultramarino sobre o estado das minas, de 17 de julho de 1709 (AHU, Códice 232, fl. 259).

(20) Charles Boxer, op. cit., p. 47. Para conhecer mais detalhes sobre a anarquia reinante nas minas brasileiras, ver João Pandiá Calógeras, As Minas do Brasil e Sua Legislação (Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1904).

(21) Esse fato é assinalado na Carta Régia de 21 de abril de 1738 que dava permissão para fundar uma aldeia perto de Cuiabá. O texto reza:... e vos concede-se a faculdade para poderdes fazer huma aldeya de que ahi se necessitava pelo Rendimento da Fazenda Real. AHU, Goiás, Papéis Avulsos. 
(22) Ver os Capítulos IV e VI, mais adiante.



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