quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

NOVAS VILAS PARA O BRASIL COLÓNIA Planejamento espacial e social no século XVIII Parte I

Roberta Marx Delson

Tradução: Fernando de Vasconcelos Pinto


Roberta Marx Delson, nascida na cidade de Nova York, recebeu o seu MA (Master of Arts, mestrado em Ciências Humanas) e o seu PHD (Philosophy Doctor, doutorado) em Estudos Latino-Americanos e História na Universidade de Colúmbia. Lecionou na Universidade Estadual de Rutgers (em New Brunswick, estado de Nova Jersey) e na Universidade de Princeton (em Nova Jersey), e tem trabalhado como consultora em programas de estudos latino-americanos e também para o Serviço do Patrimônio Histórico do Estado de Nova Jersey. Atualmente é lente da Academia da Marinha Mercante dos Estados Unidos. Suas obras publicadas compreendem o presente livro, cuja edição original em inglês data de 1979, Readings on Caribbean History and Economics (Conferências sobre a História e a Economia do Caribe, 1980) e Industrialization in Brazil: 1700-1830 (1991), esta em co-autoria com John Dickenson, bem como muitos artigos especializados. Presentemente está elaborando The Sword of Hunger: A Latin-American History (A Espada da Fome: Uma História da América Latina), conjuntamente com o eminente brasilianista Robert M. Levine.



O mito das cidades brasileiras sem planificação

Os historiadores da América Latina há muito tempo vêm ensinando aos seus alunos que os espanhóis construíram cidades planificadas no Novo Mundo. Tornou-se quase axiomático falar entusiasticamente das ruas admiravelmente traçadas em cruz e das praças centrais em quadrado que caracterizavam as aglomerações urbanas da América espanhola, chamando-se a atenção do estudante para a legislação de planejamento bem elaborada que acompanhava a criação dessas comunidades.

Entretanto, esses mesmos historiadores tendem a infamar as vilas e cidades construídas pelos portugueses no Brasil. Segundo as opiniões geralmente aceitas, as cidades brasileiras originaram-se de povoações espontâneas não planificadas, em vez de obedecer a normas de planejamento metropolitano. A sapiência convencional conclui que esse crescimento aleatório só foi contestado no final da década de 1950, quando a criação da nova capital federal, Brasília, anunciou uma nova era de consciência urbana no Brasil. Poucos leigos (e mesmo historiadores) se lembram dos esforços de planificação envidados na construção de Goiânia, nos anos 1930, ou da utilização de um plano diretor na construção de Belo Horizonte no final do século XIX. Para os que aceitam o mito de que tradicionalmente não havia nenhuma regulamentação para a cidade brasileira, a ideia de que houve antecedentes de um planejamento urbano abrangente no Brasil datando do século XVIII deve parecer algo como uma anormalidade. É visando a documentar a história desse planejamento e analisar a sua motivação geopolítica que apresentamos a presente monografia.

Essa não é uma tarefa simples.  O estudante sequioso de conhecimento profundo da origem e evolução das vilas e cidades brasileiras verificaria que a sua investigação estaria terminada antes de começar, já que historiadores, arquitetos e geógrafos, indistintamente, têm tendido a descartar sumariamente o assunto. Típica das afirmações vulgares encontradiças sobre esse tema é esta opinião superficial de um arquiteto brasileiro:

As cidades [do Brasil] cresceram um tanto desordenadamente em torno de igrejas, que geralmente se localizavam na área mais alta disponível. As ruas e travessas..., ramificavam-se e serpeavam.1

Igualmente dogmática é a asserção de que as vilas e cidades brasileiras foram fundadas segundo uma configuração realmente extravagante.2

Entretanto, o mais prejudicial de todos é o conceito aventado por um célebre intelectual brasileiro de que

a cidade que os portugueses construíram no Brasil não é produto de uma reflexão, nem ela contradiz a conformação natural do terreno. ... [Ela não tem] nenhum rigor, nenhuma metodologia, nenhuma previsão.3

As poucas tentativas sérias de resgatar a imagem negativa das vilas e cidades primitivas do Brasil têm mostrado uma tendência de racionalizar a predominância da disposição espontânea da cidade, em vez de contestar essa suposição infundada. Numa extremidade da gama de eruditos envolvidos nessa discussão está o historiador da arte Robert C. Smith, que sustentava que os centros urbanos do Brasil colonial eram essencialmente recriações das cidades medievais portuguesas, completas com ruas tortuosas e bairros congestionados.4  Todavia, uma analogia como essa lança uma sombra nefasta sobre todo o processo da urbanização do Brasil, pois induz o estudioso a considerar os centros urbanos brasileiros historicamente retrógrados e artisticamente atávicos.

Outros, numa posição mais intermediária, afirmam que os primeiros centros urbanos brasileiros funcionavam bem do ponto de vista administrativo, mas visivelmente careciam de qualquer plano diretor. Um comentarista dessa escola opinou que

...as vilas maiores dó Brasil colonial, qualquer que seja o grau em que a sua planta física tenha sido ajustada às condições locais e à topografia, representavam, como as vilas da  América espanhola, a intromissão de uma ordem metropolitana já pronta.5

Finalmente, situado na extremidade oposta s dessa gama de sábios, Luís Silveira observou que a característica espontânea das cidades e vilas brasileiras na realidade era uma bênção disfarçada:

A relutância dos planejadores portugueses de além-mar em adotarem um sistema geométrico regular, contrariamente ao que Robert Smith escreveu,... não me parece um arcaísmo, mas resultou de uma longa experiência metódica na criação sistemática de cidades.... Eu diria... que a cidade estruturada portuguesa, com a sua característica medieval, tende para a cidade perfeita, aquela em que cada elemento exerce uma função natural, e é superior às cidades com planta em xadrez..., que muitas vezes denotam uma clara falta de compreensão do conceito da cidade como um organismo vivo, funcional e intelectualmente ativo e, consequentemente, sujeito aos princípios gerais da biologia e da sociologia.6

Entretanto, independentemente de se aderir a um ou ao outro partido dessa controvérsia, a análise crítica do processo da urbanização inicial do Brasil ainda permanece largamente intocada pelos versados no período colonial. Em vez disso, os estudos levados a efeito concentraram-se no estabelecimento de tipologias heurísticas dos centros urbanos brasileiros, as quais, embora intrinsecamente úteis, proporcionam uma compreensão limitada da dinâmica do crescimento urbano. Um dos pioneiros nesse campo foi o geógrafo francês Pierre Deffontaines, que classificou as comunidades consoante uma análise funcional, i.e. arraiais de mineração, vilas de estrada de ferro, aldeias indígenas, etc.7 Utilizando um critério diferente, Rubens Borba de Morais diferenciou entre centros urbanos que se desenvolveram espontaneamente (e. g., arrai-ais de mineração) e os que deram mostras de intervenção direta (e. g., colônias militares).8  Certamente não se pode questionar a utilidade de divisões hierárquicas desse tipo para enfocar as variações estruturais no sistema urbano do Brasil. Porém essas tipologias são incapazes de fornecer uma análise processual em profundidade dentro de um arcabouço verdadeiramente histórico. Essa crítica aplica-se também à classificação de Marvin Harris e Charles Wagley,9  muito citada, bem como à obra que traz o título ambicioso de Como Nasceram as Cidades do Brasil, uma tipologia altamente conjetural de autoria de um antigo político brasileiro.10

Uma direção intelectual inteiramente diferente na pesquisa da urbanização do Brasil é a tendência de encarar as cidades e vilas como antitéticas da corrente principal da cultura brasileira. Os proponentes desse ponto de vista afirmavam que, historicamente, o Brasil tem sido dominado pela classe dos latifundiários, cuja visão era claramente rural, e não citadina. Fernão de Azevedo, por exemplo, focalizou o relacionamento discordante contínuo da cidade brasileira com o campo, em sua análise mais ampla do fenômeno da civilização industrial numa sociedade agrária,11  enquanto Gilberto Freyre escreveu com extraordinário entusiasmo sobre o papel do sobrado como difusor do sistema de valores da oligarquia latifundiária, sempre dentro do contexto urbano.12

Além do grande número de intelectuais que se concentraram na influência supostamente onipresente dos latifundiários, há um grupo bastante numeroso que mostrou um interesse constante pelas contribuições dadas por diversos outros grupos sociais (e. g., imigrantes europeus ou garimpeiros) para o processo de urbanização. Finalmente, há uma literatura bastante vasta dedicada à história especifica de cidades grandes e pequenas. Esses estudos tradicionais amiúde fornecem excelentes antecedentes históricos, mas não conseguem situar o exemplo individual dentro do contexto mais amplo da proliferação urbana no Brasil.13

Independente das obras mencionadas nesta breve resenha literária, existem apenas quatro grandes estudos dedicados ao exame do panorama histórico e arquitetônico global do desenvolvimento urbano brasileiro dos primeiros tempos. Esses quatro exames são imensamente diferentes, em consequência das disciplinas muito diferentes que seus autores representam. Vilas e Cidades do Brasil colônia,14  por exemplo, é um inventário geográfico e cronológico de vilas e cidades fundadas no Brasil do século XVI ao século XIX. Cada século é estudado separadamente, e a obra fornece dados sobre a localização e a data de fundação de cada centro urbano criado oficialmente naquele período. Entretanto, ela concede pouca atenção ao planejamento e à forma das comunidades resultantes.

Em contrapartida, A Formação de Cidades no Brasil Colonial,15  ensaio escrito por um arquiteto praticante, compreensivelmente, preocupa-se mais com a forma e o traçado urbano. Nesse estudo, o autor examina diversos documentos importantes referentes à criação de vilas coloniais e conclui que a aplicação de planos diretores formais na realidade foi um sinal de urbanização retrógrada. De uma maneira inteiramente errônea (como mostraremos a seguir), ele afirma que os portugueses, oportunisticamente, simplesmente copiaram as plantas das cidades espanholas, quando as duas potências se reuniram para a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Ironicamente, vários dos códigos de construção que o autor apresenta no seu estudo (fora do contexto) foram elaborados no princípio do século XVIII, antecedendo assim o Tratado de Madri de várias décadas!

O terceiro estudo é mais precisamente uma interpretação convencional da evolução da cultura brasileira, em que os autores reproduzem diversos documentos de planejamento criativos e sugerem vagamente a existência de um código de construção abrangente. Infelizmente eles não vão além dessa tímida observação, deixando o leitor curioso, mas não apreciavelmente esclarecido.

O último estudo deste quarteto sem dúvida é o mais perceptivo e, claramente, o mais bem pesquisado. Valendo-se de material de arquivo relativo a questões municipais tais como pavimentação das ruas e alinhamento, o traçado de praças públicas, etc., Nestor Goulart Reis Filho,17 bem fundamentado, defende a existência de uma legislação portuguesa de construção de vilas para o Brasil, aplicada com sucesso variável desde a época da fundação de Salvador da Bahia, em 1549, até.1720. O autor desse estudo é ar-quiteto, mas sua obra, Evolução Urbana do Brasil, representa um avanço pioneiro na investigação histórica das comunidades brasileiras de antanho, pois lança mão de dados inovadores e decisivos para a história urbana que até então haviam sido ignorados pelos outros investigadores.

Não obstante, mesmo aceitando a asserção de Reis Filho de que existia um planejamento formal incipiente nos primeiros séculos da colonização portuguesa, seu estudo ainda deixa sem resposta diversas questões históricas fundamentais. Por exemplo, conjetura-se: até que ponto a política urbana estava estreitamente ligada aos objetivos mais gerais do governo? Além disso: os portugueses redigiram um código de planejamento abrangente, ou os exemplos citados representam apenas casos isolados? As vilas e arraiais situados fora do alcance geopolítico dos centros de governo primários, que constituem o enfoque principal da obra de Reis Filho, recebiam igual atenção da Coroa portuguesa? O que o período posterior a 1720 (ano em que a análise de Reis Filho termina e que na presente pesquisa consideramos crítico para a história do desenvolvimento urbano brasileiro) revela acerca dos problemas e exigências de um processo urbano que estava evoluindo rapidamente nas regiões interioranas do País, longe do litoral povoado? Finalmente, o planejamento urbano sistemático era conceitualmente excepcional, ou as preferências portuguesas eram um reflexo dos estilos artísticos em voga na Europa?

Por conseguinte, o objeto principal da minha exposição será um exame tanto dos requisitos administrativos do Brasil do século XVIII como das predileções arquitetônicas. A pesquisa sobre esse assunto lançou mais dúvidas sobre a ideia romântica de que o interior do Brasil foi penetrado principalmente por aventureiros. Seguindo os garimpeiros e caçadores de tesouros, a Coroa portuguesa ia estabelecendo a sua autoridade por meio de um sistema de comunidades criteriosamente planejadas construídas em regiões remotas. Influenciados pela descoberta de ouro na década de 1690 e diretamente ameaçados, os administradores metropolitanos buscaram ansiosamente os meios de ampliar o seu controle; um sistema racional de distribuição de terras, combinado com a construção supervisionada de vilas, constituiu o processo pelo qual o interior podia ser protegido contra um crescimento independente e descontrolado.

Nessas condições, a partir de 1716, quase todas as novas comunidades construídas no sertão foram subordinadas a um protótipo de planejamento de vilas, promulgado naquele mesmo ano para a criação da municipalidade de Mocha, na zona norte do Piauí.18   O conceito geral do traçado desse plano diretor era barroco, com ênfase em ruas retilíneas, praças bem delineadas (amiúde orladas por fileiras de árvores plantadas simetricamente) e numa uniformidade de elementos arquitetônicos. O resultado do uso reiterado desse modelo foi um tipo de vila padronizado que podia ser facilmente adaptado a regiões geográficas brasileiras muito diferentes. A mão-de-obra indígena não especializada (responsável pela maior parte das construções interioranas) podia ser empregada eficientemente, porquanto o domínio das técnicas de construção de um único conjunto de edificações básico permitiria a ereção de um número ilimitado de unidades habitacionais e administrativas, embora as edificações pudessem ser sobremodo monótonas.

Fisicamente, a construção de arraiais e vilas planificados no interior do Brasil no século XVIII representava o compromisso de Portugal com o absolutismo e com o Iluminismo. O xadrez da malha urbana não era apenas um requinte artístico, mas sim uma clara representação da imagem civilizada e europeizada que Portugal esperava projetar no interior da colônia. Para o administrador barroco, a regularidade eqüivalia a beleza, sofisticação, civilização e progresso (se bem que por interpretações estritamente etno-cêntricas). Como nos planos atuais de modernização e desenvolvimento, os portugueses esperavam mudar completamente -- e conseguiram-no em parte -- os sistemas de valores. Outras nações europeias podem ter se apaixonado pela imagem pintada por J.-J. Rousseau19 da ingenuidade da sociedade primitiva, mas os portugueses estavam decididos a elevar a população autóctone acima do seu estado de ignorância sem ne-nhuma ordem, não importando o custo nem quão ditosa a inocência pudesse ter sido. Por extensão, exigia-se que todos os colonos, inclusive os europeus, se ajustassem às novas regras urbanas e de comportamento; o programa era decididamente obrigatório.  A época da conscientização20  e da mobilização das massas que estavam por trás dos planos de desenvolvimento do governo estava muito adiante no tempo.

Embora o ponto mais salientado neste trabalho sejam os projetos de povoamento do século XVIII, minha pesquisa começa na década de 1690, quando a descoberta de ouro nas montanhas de Minas Gerais precipitou uma importante reconsideração do valor da terra, do seu uso e da sua distribuição. Começando com um exame dos motivos e pressupostos subjacentes ao programa de construção de vilas dos portugueses, eu passo a apresentar um estudo de casos particulares das comunidades efetivamente construídas durante esse espaço de tempo, as quais são analisadas em ordem cronológica e por região geográfica (o Nordeste, o Centro-Oeste e o Sul). Nos Capítulos VI e VII são examinadas as reformas do período pombalino (1750-1777), com destaque para os administradores responsáveis pelo cumprimento das novas diretrizes urbanas. O estudo termina com o reinado de Da Maria I, no final do século XVIII (mais precisamente de 1777 a 1792, quando ela começou a apresentar sinais de loucura e seu filho, D. João, depois D. João VI, assumiu a regência), embora os capítulos finais contenham uma descrição sumária da direção que o planejamento urbano no Brasil seguiria posteriormente.

A maior parte dos casos de planificação examinados na exposição do livro referem-se ao traçado de comunidades relativamente pequenas, ou seja, povoados, aldeias e vilas. Entretanto, numa amostragem de casos mais limitada, será apreciado o planejamento urbano de grande escala, no nível de cidade. Lamentavelmente, não existe nenhum termo de uso corrente na América para denominar a gama de atividades de planificação para aglomerações variando de 50 a mais de 10 mil habitantes. Empregar o termo planejamento urbano (ou seu equivalente desenho urbano) para este caso pode ser desorientador, porque, embora geralmente ele seja aceitável, traz a conotação de centro urbano de grande porte, que claramente não se aplica à maioria das comunidades do Brasil antigo. Uma alternativa seria inventar uma perífrase que abrangesse todos os tipos de planejamento,21 como o termo eqüística do arquiteto grego Konstantinos Apostolos Doxiadis (1913-1975); porém isso poderia revelar-se contraproducente, pois tenderia a tornar a questão ainda mais confusa. A rubrica planejamento urbano, ou planejamento de vilas, é preferível a qualquer uma das opções supracitadas, uma vez que define o fenômeno do planejamento sem discriminar o fator demográfico.

Por conseguinte, em todo o resto desta dissertação, o termo projeto de vila será substi-tuído por planejamento urbano, significando uma abordagem do traçado de elementos arquitetônicos num Centro habitado, sem consideração do seu tamanho ou função. A única distinção importante que se deveria fazer seria entre as comunidades que receberam um planejamento sistemático subsequente e, depois de fundadas) e as que foram construídas obedecendo desde o início a uma regulamentação.

Visto que os critérios empregados para distinguir entre vilas e cidades no período colonial eram no mínimo arbitrários, não procurei estabelecer categorias demográficas diferentes para umas e outras; apenas baseei-me no reconhecimento oficial da Coroa portuguesa. Em incontáveis casos, o critério para elevar oficialmente uma aldeia à categoria de vila baseava-se apenas na necessidade de instalar funcionários do governo numa área ainda não superintendida. Entretanto, em outras conjunturas, a criação legal de uma vila marcava o início de um grande projeto de planificação urbana, bem como a instalação da administração governamental. Num nível mais alto, quando as vilas eram promovidas a cidade, com frequência sofriam uma ampla remodelação urbana com a finalidade de lhes dar uma aparência consentânea com seu novo título.

Por conseguinte, o verdadeiro significado das cartas régias que conferiam formalmente o título de vila não era o reconhecimento do crescimento físico do arraial ou aldeia, mas sim a percepção pragmática de que, dentro daquela área específica, era preciso assumir determinadas responsabilidades administrativas. As vilas tituladas ganhavam o privilégio de uma câmara municipal, cujos membros eram incumbidos de deveres que foram delineados originariamente na Idade Média:

As câmaras tinham patrimônio e fonte de renda próprios e não dependiam do Tesouro Real, ou seja, dos fundos públicos das suas respectivas capitanias. O patrimônio era constituído de terras que lhes haviam sido concedidas no ato de criação da vila, terras reservadas para o rossio (passeio público), para a construção de prédios públicos e para a criação de parques públicos e de uma gleba comunal. As câmaras eram autorizadas a conceder algumas dessas terras a particulares ou arrendá-las. Ruas, praças, vias de acesso, pontes, fontes públicas e outras infraestruturas também eram consideradas partes do seu patrimônio.

As rendas da câmara provinham dos aluguéis que ela tinha o direito de receber sobre terras arrendadas e de tributos locais (taxas), autorizados por lei ou por permissão especial do rei. A câmara podia reter dois terços da renda municipal, porém um terço tinha de ser entregue aos representantes do Tesouro na capitania.22

Embora fuja aos objetivos deste trabalho estudar o papel da câmara municipal, os dados apresentados aqui dão a entender que, pelo menos com referência ao século XVIII, a incumbência tradicional da câmara de supervisionar a distribuição de terras foi eliminada. Outros privilégios tradicionais foram reduzidos pelas intromissões reais nos direitos municipais de distribuição de rendas, no traçado da sede municipal, etc., e, visto que a própria Coroa se encarregava cada vez mais de empatar capital em projetos de construção no interior, a independência relativa da câmara como uma unidade auto-administrada diminuiu proporcionalmente. Só no final do século as câmaras locais fariam valer os seus direitos novamente, reassumindo lentamente a iniciativa no desenvolvimento da vila, independentemente do governo metropolitano. Então, com toda evidência, qualquer discussão sobre o desenvolvimento urbano traz à baila não apenas a questão da configuração topográfica, mas atinge algumas das questões políticas momentosas do Brasil do século XVIII.

As provas documentais utilizadas neste estudo foram colhidas em arquivos municipais, na correspondência oficial (tanto dentro do Brasil como com a metrópole) e no currículo das academias militares que formavam os engenheiros responsáveis pela maior parte das novas construções urbanas. Nos casos em que as provas documentais eram inadequadas ou obscuras, lancei mão de fontes cartográficas para confirmar as minhas conclusões; as excelentes plantas de cidades disponíveis nas mapotecas tanto de Portugal como do Brasil fornecem provas notáveis da homogeneidade dos projetos de planificação das vilas do Brasil colonial.


N o t a s :

(1) Henrique Mindlin, Modern Architecture in Brazil (Reinhold Publishing Co., Nova York, 1956), p. 1.

(2) Richard M. Morse, Formação Histórica de São Paulo: De Comunidade a Metrópole (Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1970), p. 10.

(3) Sérgio Buarque de Holanda, As Raízes do Brasil (José Olympio, Rio de Janeiro, 3a edição, 1956), p. 152. Além dessa obra, uma relação parcial dos livros cujos autores aceitam o mito da vila colonial brasileira não planificada compreende: Blake McKelvey, American Urbanization: A Comparative History (Scott, Foresman & Co., Illinois, 1973); Nelson Omegna, A Cidade Colonial (José Olympio, Rio de Janeiro, 1961); Walter D. Harris, Jr., The Growth of Latin-American Cities (University of Ohio Press, Athens, Ohio, 1971); e João Boltshauser, Noções da Evolução Urbana nas Américas (Faculdade de Arquitetura da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968).

(4) Robert C. Smith, Colonial Towns of Spanish and Portuguese America, in Journal of the Soci0 of Architectural Historian, volume XIV, n2 4, 1956, p. 7. Este autor, em Baroque Architecture, in Portugal and Brazil, H. Livermore, editor (Oxford University Press, Londres, 1953), pp. 349-384, defende a tese de que as cidades brasileiras têm um caráter medieval.

(5) Richard M. Morse, From Community to Metropolis: A Biography of São Paulo, Brazil (University of Florida Press, Gainesville, 1958), p. XVII.

(6) Esta citação está contida numa pequena sinopse em Luis Silveira, Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas de Ultramar (4 volumes, Lisboa, sem data), volume I, p. 24.

(7) Pierre Deffontaines, “The Origin and Growth of the Brazilian Network of Towns", in Geographical Review, vol. XXVIII, julho de 1938, pp. 379-399.

(8) Rubens Borba de Morais, "Contribuições para a história do povoamento em São Paulo até fins do século XVIII", reeditado em Boletim Geográfico, ano III, n2 30, setembro de 1945, pp. 821-829.

(9) Charles Wagley e Marvin Harris, "A Typology of Latin-American Subcultures", in Dwight B. Heath e Richard N. Adams, editores, Contemporary Cultures and Societies of Latin-America (Nova York, 1956), pp. 42-69.

(10) Plínio Salgado, Como nasceram as cidades brasileiras (Edições Ática, Lisboa, 1946). Urna tipologia comparativa que coteja as comunidades urbanas da América espanhola, da portuguesa e da inglesa pode ser encontrada em João Boltshauser, Noções de Evolução Urbana nas Américas, 3 volumes (Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968).

(11) Fernão de Azevedo, "A cidade e o campo na civilização industrial", in Obras Completas, vol. XVIII, pp. 213-229. Ver também: Waldemiro Bazzanella, "Industrialização e urbanização no Brasil", in América Latina, vol. VI, n21, janeiro-março de 1963, pp. 3-26; e Manuel Diegues Júnior, Imigração, Urbanização e Industrialização (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, série VI, "Sociedade e Educação", vol. 5, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1964).

(12) Gilberto Freyre, The Mansions and the Shanties: The Making of Modern Brasil (Sobrados e Mocambos: A Formação do Brasil Moderno), edição e tradução de Harriet de Onis (Alfred A. Knopf, Nova York, 1966).

(13) Na bibliografia constante do final deste trbalho será encontrada uma relação de muitos desses estudos. Informamos o leitor de que as revistas geográficas do Brasil constituem uma rica fonte de material sobre o desenvolvimento de muitas cidades, grandes e pequenas, menos bem conhecidas. Um exemplo desse tipo de trabalho é Paulistas e Mineiros: Plantadores de Cidades, de Mário Leite (EdArt, São Paulo, 1961).

(14) Aroldo Azevedo, "Vilas e cidades do Brasil colonial", in Boletim nº 208, Geografia nº11, 1956, pp. 1-96, da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo. A obra Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, 1963), é uma análise pioneira do desenvol-vimento urbano brasileiro sob o aspecto da geografia humana. Todavia, o exame do período colonial da História do Brasil constitui meramente uma parte secundária da obra, que trata principalmente do crescimento urbano mais recente.

(15) Paulo F. Santos, A formação de cidades no Brasil colonial V Colóquio Internacional de estudos luso-brasileiros, Coimbra, 1968.

(16) Tito Lívio Ferreira e Manoel Rodrigues Ferreira, História da Civilização Brasileira: 1500- 1822 (Gráfica Biblio Ltda., São Paulo, 1959).

(17) Nestor Goulart Reis Filho, op. cit. A obra A Cidade Colonial, de N. Omegna (José Olympio, Rio de Janeiro, 1961), foi excluída desta análise, porque o seu tema é mais precisamente um exame da estrutura social colonial com matizes francamente românticos. Da mesma maneira, A Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério da Educação e Cultura, Rio de janeiro, 1963), não foi considerada, porque aborda apenas sumariamente a urbanização do período colonial.
(18) Veja-se a análise detalhada no capítulo III.

(19) Jean-Jacques Rousseau, Social Contract, 1762. Reeditado por Modern Library, Nova York.

(20) Em oposição ao conceito de educação de adultos por meio da experiência cotidiana, o termo conscientização é empregado aqui com o significado de a transformação completa da consciência das pessoas que as faria compreenderem os parâmetros políticos da sua existência e as possibilidades de mudarem a sua situação pela ação política. Essa definição foi extraída de The Homeless Mind: Modernisation and Consciousness, de Peter Berger, Brigitte Berger e Hansfried Kellner (Vintage Books, Nova York, 1974), p. 76.

(21) Veja-se o exame das definições de planejamento urbano na obra de Charles Abrams The Language of Cicies: A Glossag, of Terms (Avon Books, Nova York, 1972), p. 48.


(22) Caio Prado júnior, The Colonial Background of Modern Brasil (versão para o inglês de Suzette Macedo, University of California Press, Berkeley, 1969)

2 comentários:

  1. Boa noite! Ainda é possível encontrar o livro da Roberta Marx Delson para comprar? O senhor sabe aonde eu poderia comprá-lo?
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