quinta-feira, 25 de julho de 2013

CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA DIALÉTICA ENTRE O MODERNO E O PÓS-MODERNO -- Parte I.


Albrecht Wellmer -- Professor catedrático de filosofia da universidade de Konstanz, Alemanha.

Versão condensada de ensaio publicado em Artes – 1/1985, Frankfurt sobre o Meno.

Tradução: Frank Svensson


INTRODUÇÃO

O conceito de pós-moderno ou de pós-modernismo é um dos mais variados da literatura sobre arte, bem corno do debate sócio teórico do último decênio. A palavra pós-moderno liga-se a urna série de pós-conceitos e pós-teorias: sociedade pós-industrial, pós-estruturalismo, pós-empirismo, pós-racionalismo Nessa malha de pós-conceitos e pós-teorias parece articular-se urna passagem de época, cujos contornos ainda são imprecisos, confusos e ambíguos, mas cuja experiência central — a morte da razão — parece enunciar o fim definitivo de um projeto histórico: o projeto do moderno, o projeto do Iluminismo europeu ou mesmo o projeto da civilização greco-ocidental. Essa malha tem um quê de idéia fixa: de um ângulo visual conveniente pode-se descortinar ainda os contornos de uma radicalização do moderno, um iluminismo esclarecido quanto a si mesmo, um conceito pós-racionalista de razão. Desse ponto de vista, o pós-modernismo desponta como um marxismo desmitologizado, como uma continuação do avangardismo estético ou como uma radicalização da crítica lingüística.

Assim corno na crítica lingüística, podemos, nas pós-teorias, reconhecer a sobreposição de duas imagens: tanto um pathos do fim do Iluminismo corno um pathos de sua radicalização. Confundem por assemelhar um complexo contexto de fenômenos intelectuais, estéticos, culturais e sociais a imagens materiais, nas quais o observador, dependendo de índole e perspectiva, pode descobrir isso ou aquilo; o observador brinca com uma ambiguidade que de uma vez por todas foi transferida para o fenômeno ótico. Contrariam a compreensão de uma constelação histórica, mesmo se a ambiguidade está localizada no próprio fenômeno, radicalmente distinta da observação descobridora -- ou do descobrimento observado -- de uma imagem material, pela simples razão de que o observador pertence à própria história, e por isso mesmo não pode observá-la.

Quero salientar que não dá para apresentar nada de esclarecedor sobre o pós-modernismo fora de uma perspectiva teórica, filosófica, intelectual ou ética que em sua visão da atualidade ao mesmo tempo constitua um auto compreensão no tempo, a auto compreensão de um contemporâneo intelectual, emocional c voluntariosamente engajado.

O que segue não é, portanto, urna pesquisa de dois objetos bem definidos, o moderno e o pós-moderno, mas antes uma tentativa, às apalpadelas, de esclarecer uma perspectiva, na qual ambos os conceitos entram em relacionamento, e na qual as ambiguidades que caracterizam o moderno e o pós-moderno vêm à luz. Ao escolher a palavra dialética para caracterizar tais relações e ambiguidades e relações entre ambiguidades, fi-lo sem maiores pretensões filosóficas ou histórico-filosóficas. A palavra dialética deve aqui ser entendida sem conotações de verdade absoluta ou de história verdadeira. Uma tal compreensão da palavra dialética pode, se quisermos, ser tomada corno pós-moderna. O emprego da palavra dialética exclui, no entanto, um aspecto: a dissolução da dialética em pura energética como postulado por Lyotard.1  E com isso já comecei a desenvolver o meu entendimento do pós-modernismo.


APRESENTAÇÃO

Gostaria de iniciar com uma seleção a esmo de caracterizações do pós-moderno. Meu intuito é criar uma espécie de colagge, no qual as partes -- principalmente as citações -- são reunidas de tal forma que o pós-modernismo apareça como um campo simbólico ou conceptual com algumas linhas de força.
 
lhab Hassan, um representante do pós-modernismo norte-americano, caracterizou o momento pós-moderno como unn-making -- o que pode ser traduzido aproximadamente por desconstrução (aqui, por motivos de diferenciação, traduzido por desmontagem).

O momento pós-moderno é um momento de contradição que pressupõe uma radical desmontagem da consciência ocidental -- daquilo que Michel Foucault poderia chamar de “épisteme” pós-moderna. Eu chamo de desmontagem, apesar de atualmente existir toda uma enxurrada de outros termos, desconstrução, descentralização, desaparecimento, irradiação, desmistificação, desconti-nuidade, “defferance”, dispersão, etc. Tais termos expressam uma rejeição ontológica do sujeito tradicionalmente coeso, do cogito da filosofia ocidental. Expressam, também, uma composição epistemológica de fragmentos e rupturas, e o correspondente engajamento ideológico em favor de minorias políticas, sexuais e linguísticas. Pensar, sentir, agir e ler bem significa, segundo o “épistème” da desmontagem, rejeitar a tirania das totalidades: em cada atividade humana a totalização é potencialmente totalitária.2

Pode-se afirmar que o momento pós-moderno implica uma explosão do epistema moderno, onde a razão e seu sujeito -- como o lugar de coesão e totalidade -- desmorona. Observando melhor, trata-se naturalmente do desejo de destruir -- ou desconstruir -- o cogito, a razão totalizante, detentora de uma longa história na arte moderna.

Como sabemos, o desejo de desmontagem começou a manifestar-se mais cedo na arte, já na virada do século. Para Hassan, os esforços mais radicais na arte moderna estão reunidos e guardados na consciência pós-moderna: desde os “readymades” de Marcel Duchamps e as “collage” de Hans Arp até as máquinas autodestruidoras de Jean Tinguely e as obras conceptuais de Bruce Nauman um certo impulso fez-se presente, voltando a arte para si mesma no sentido de recrear-se a si mesma ...

O principal é que: num processo de desdefinição, no dizer de Harold Rosenberg, a arte torna-se, assim corno o artista, um fato sem contornos mais nítidos, na pior das hipóteses numa espécie de pesadelo social, na melhor das hipóteses numa abertura ou num início. Essa é a razão pela qual Jean-François Lyotard exorta o leitor a

abandonar o porto seguro que a categoria 'obra de arte' ou os signos em geral oferecem à consciência e numa atitude genuinamente artística não reconhecer nada além de iniciativas ou eventos, independente da área onde se apresentem.3

A oposição à razão totalizante e seu sujeito é sobremaneira um movimento em favor da obra de arte exclusiva e sua pretensão de unidade e sentido. Por isso o impulso a vanguardista, no qual a consciência pós-moderna é formada, tem de questionar não só a unidade do sujeito e da obra de arte como ainda o próprio conceito de arte. É forçado, expresso em termos sociológicos, a questionar a distinção de uma das esferas da arte no mundo moderno, separada do sistema tecnológico, da política e da ciência.

A partir das declarações programáticas de Hassan pode-se caminhar no sentido de uma estética neomarxista (segundo Adorno), bem corno no sentido de uma estética afirmativa, como quer Lyotard. Rejeitando a imposição da razão totalizante por parte do pós-modernismo, Frederic Jameson vê a possibilidade de um novo, por assim dizer dialógico conceito pós-moderno de razão. O que Jameson tem em mente podemos, junto com Adorno, caracterizar como a unidade da multiplicidade aleatória. O próprio Jameson fala de relações de diferenças.4

Lembrando-nos a estética de Adorno e a de Walter Benjamim, a caracterização da estética do pós-modernismo é vista por Jameson como uma estética alegórica, que explicitamente nega a estética do símbolo -- da totalidade orgânica --, indicando uma forma capaz de unir rupturas e desigualdades radicais sem eliminar as diferenças.5

A caracterização do pós-moderno leva-nos mais uma vez bem longe no passado da história da estética moderna. O que pode ser tomado como especificamente pós-moder-no é muito mais o fato de procurar uma ligação entre estética e política: para Jameson, a estética do pós-moderno é na realidade uma micropolítica descentralizada da neo-esquerda.6

A rejeição da unidade orgânica da obra de arte simbólica é correspondida, portanto, pela recusa das formas práticas e teóricas de totalização impostas de cima para baixo dentro do movimento trabalhista tradicional marxista. Urna ligação semelhante entre estética pós-modernista e uma micropolítica democrática descentrada aparece na caracterização da arquitetura pós-moderna feita por Charles Jencks. Poder-se-ia dizer que o pós-modernismo, na perspectiva de Jameson, defende uma nova e pós-racionalista forma de estética, de totalizacão psíquica e social (unidade, síntese). Não se trata de uma simples negação da razão totalizante e seu sujeito, mas da auto superação da razão e do sujeito (Castoriadis).

Uma outra linha vai do pós-modernismo de Ihab Hassan para a estética afirmativa de Jean-François Lyotard.  Em Lyotard -- o Lyotard do início da década de 1970 --, a crítica da razão totalizante aguçou-se no sentido de escapar do terror da teoria, da representação, do signo e da ideia de verdade. Lyotard critica Adorno por permanecer atado à categoria de sujeito e Artaud por não se afastar o suficiente do generalizado caminho da de-semiotica.8 Em ambos os casos trata-se -- conforme entendo Lyotard -- só de tentativas pouco entusiasmadas de romper com o pensamento representativo, com o terror do signo e do significado. Adorno mantém-se fiel à expressão, e Artaud, a uma gramática dos gestos. Lyotard postula a dissolução da semiologia em energética. Para Lyotard, o sujeito, a representação, o significado, os signos e a verdade são uma seqüência que deve ser rompida. O sujeito é um produto da máquina da representação e desaparece com ela.9  Nem a arte nem a filosofia tratam de significado ou de verdade, mas tão só de câmbios de energia, que não podem emanar de uma memória, de um sujeito, de uma identidade.10 A economia política transforma-se muna economia libidinal, liberada do terror da representação.

Essa bizarra interpretação pós-modernista, feita por Felix Guattaris e Gilles Deleuze, inspirada em L'Anti Oedipe, da passagem do capitalismo para o socialismo, é ao mesmo tempo um retorno de Adorno a Nietzsche e uma volta de Adorno rumo ao positivismo. Como Lyotard substitui o comportamento regulado pela construção e pela artistificação da representação pela vontade -- no sentido de querer o possível -- é impossível distinguir o pós-modernismo, assim como a dissolução da semiótica em energética, do behaviorismo. Nesse caso, não como em Skinner, um behaviorismo para engenheiros sociais, mas um behaviorismo que constitui o emolduramento cultural de um sistema social que se tornou behaviorista. Nesse ponto, o pós-modernismo torna-se uma ideologia sobre o pós-histórico; não é por acaso que o pathos do esquecimento passa a substituir o pathos da crítica no Lyotard dos anos 1970.

O termo momento pós-moderno pode aqui também ser entendido como um abrir e fechar de olhos. Essa é a fundamental categoria de uma consciência temporal pós-histórica que não só se descarregou do peso da herança platônica mas também do passado e do futuro. Nessa perspectiva, a resolução pós-moderna, valendo-nos das palavras de Lyotard, pode ser vista como um gigantesco processo de perda de sentido que levou à destruição de todas as histórias, referências e finalidades.11  Baudrillard parece-me mais consequente do que Lyotard quando na falta de história da sociedade pós-moderna observa uma paródia do já concretizado momento messiânico:

o futuro já veio, tudo já está aqui... Eu creio que não temos de esperar nem a concretização de uma utopia revolucionária nem uma hecatombe nuclear. A força explosiva já entranhou as coisas. Não há mais nada o que esperar... O pior, o pesadelo dos acontecimentos finais nos quais se baseavam as utopias, a metafísica esperança na história, etc. — o ponto final já está atrás de nós ...12

O pós-moderno é, portanto, uma consumada realidade histórico – não histórica, a morte do moderno já ocorreu. A sociedade pós-moderna seria então um imprevisto híbrido das visões teórico-sistêmicas e dos sonhos de Ludwig Klage, o renascimento do arcaico mundo imaginário a partir do espirito da moderna eletrônica.

Jean-François Lyotard passou aos poucos a representar uma variante modificada do pós-modernismo. Uma variante inspirada tanto por Wittgenstein quanto pela Kritik der Urteilskraft (Critica da razão) de Kant. De forma sugestiva combina elementos de urna epistemologia pós-empírica (Feyerbend), uma estética modernista (Adorno) e um liberalismo político pós-utópico. A ruptura com a razão totalizante é apresentada agora por um lado como um adeus aos grandes contos -- à libertação da humanidade ou à criação da ideia 13 -- e, para as aspirações fundamentalistas de legitimações, finais, como uma crítica do -- sucedâneo ideológico da totalização. É apresentada por outro lado como uma rejeição às formas complementares do futuro no pensamento totalizante: utopias quanto à unidade, reconciliação e harmonia universal. Lyotard defende o pluralismo irredutível do jogo das línguas e salienta o inevitável caráter local de todos os discursos, acordos e legitimações.14  Poderíamos aqui falar, por exemplo, de um conceito de razão, pós-euclidiana, pluralista e descontínua, em oposição ao conceito de razão teórico-consensual de Habermas, o qual Lyotard apresenta como a última tentativa de se manter ligado à ideia de reconciliação totalizante, ou seja, à unidade de verdade, liberdade e justiça do idealismo alemão (ou da tradição marxista). Numa passagem característica, que não por acaso lembra a teoria anarquista do conhecimento de Feyerabend, Lyotard explica o significado de justiça ulterior ao consenso:

Reconhecer o múltiplo não traduzível, o intrincado jogo de línguas e não procurar reduzi-las entre si -- com uma regra que, apesar de tudo deve ser genérica: 'deixai-nos jogar... e deixai-nos jogar em paz.15

Em Lyotard, o pós-modernismo apresenta-se corno o resultado de um grande movimento de deslegitimação do moderno europeu. para o qual a filosofia de Nietzsche constituiu um documento inicial e central.16  Na minha opinião, o pensamento pós-moderno apresentou sua forma mais expressiva na filosofia de Lyotard. Quero ater-me mais um pouco ao problema da estética. Em Lyotard, o pós-modernismo estético apresenta-se caracterizadamente como um modernismo radicalmente estético -- corno se fosse a autoconsciência do modernismo.

Uma obra só se torna moderna se primeiro houver sido pós-moderna. O pós-modernismo nesse sentido não é o fim do modernismo mas a sua gênese, um estado que se repete.17

Já Adorno viu as características das modas estéticas dentro de uma contínua obrigação de renovação e solapamento do sentido e da forma. Ambas as tendências intimamente ligadas com a liberação das forças produtivas técnicas na sociedade capitalista e a correspondente destruição do contexto de intenções tradicionais:

Sinais de dissolução é o signo do moderno ..., explosão é uma de suas constantes. Energia anti-tradicionalista é como que um redemoinho que tudo absorve.18

De forma semelhante, Lyotard fala da vertiginosa aceleração que caracteriza o desenvolvimento das modas estéticas, que continuamente questionam todas as regras estabelecidas para a produção literária, artística e musical.  Para Lyotard – e aqui deparamos com um interessante paralelismo com Adorno ao qual voltarei mais adiante  --, a invariável nesse redemoinho anti-tradicionalista" é uma estética do sublime. O modernismo desenvolve-se no distanciamento do real como a sublime relação entre o pensável e o real.19   A diferença decisiva para com Adorno consiste, no entanto, em que o pós-modernismo completa essa estética do sublime sem tristeza e sem nostalgia.20         O pós-modernismo deveria, portanto, ser um modernismo sem tristeza, sem ilusão quanto a uma possível reconciliação dos jogos linguísticos, sem desejo do inteiro e do coeso, da reconciliação entre o conceito e o sentimento, da experiência transparente e comunicável.21  Em poucas palavras: um modernismo que com alegria c coragem aceita a perda de sentido, de valores, de realidade -- pós-modernismo como ciência divertida.

No artigo por mim citado, Lyotard fala de uma fase de exaustão. Sua defesa do modernismo estético não é menos dirigida contra uma variante do pós-modernismo -- ou compreensão do pós-modernismo  -- ainda não abordada por mim. Trata-se daquele pós-modernismo que na arquitetura expressa um novo ecletismo e historicismo, na pintura e na literatura um novo realismo ou subjetivismo e na música um novo tradicionalismo.

Somos colocados ante mais uma descoberta na imagem focal do pós-modernismo. Existe uma certa lógica interna quando, por exemplo, Charles Jencks descreve a re-descoberta da linguagem arquitetônica, seu novo contextualismo, ecletismo ou historicismo, corno especificamente pós-moderno. Mesmo a estética arquitetônica modernista de Jencks, que se afasta da tradição Bauhaus, baseia-se numa negativa do racionalismo do moderno em favor de um jogo com fragmentos e sinais, de uma síntese do diferente, de códigos duplos e de formas democráticas de planejamento.22

Há sem dúvida concordâncias entre por um lado o pós-modernismo de Jencks e de Venturi (multiplicidade e contradição contra simplificação, dualidade e tensão em vez de abertura, tanto/ como em vez de ou bem/ou mal. elementos de dupla função em vez de elementos de simples ação, cruzamentos em vez de elementos puros, vitalidade impura — ou totalidade problemática -- em vez de clara coesão, e por outro lado as ideias de Hassan e de Jameson.23  A ideia de Van Eyck quanto a uma clareza labiríntica se volta contra o ideal de uma clareza matemático-geométrica na moderna arquitetura e urbanismo, mas tem sua origem bem longe na história da estética do moderno. Uma imagem teórica semelhante reencontramos em Kandinsky e Schönberg, na fase de transição da pintura realista e da música tonal para a pintura abstrata e a música atonal. Aqui também a vanguarda pós-moderna se mostra uma continuação do modernismo estético e não uma ruptura para com o mesmo, pelo menos enquanto -- com Lyotard. Adorno e mesmo Barthes -- compreende a ruptura com regras dadas como constitutivas do moderno estético.

Em Jencks -- para ficar com o exemplo da arquitetura pós-moderna --, apresenta-se entretanto uma ambiguidade no pós-modernismo que, pelo menos nessa forma, esteve ausente das manifestações até aqui mencionadas. Dito de outra forma: Jencks descreve um fenômeno extremamente ambíguo; essa ambiguidade é dupla em sua estética pós-modernista em razão de quase não reconhecê-la. Aqui poderíamos, junto com Lyotard, protestar contra o uso em vão da palavra pós-modernismo. Em minha opinião, seria mais correto falar de uma ambiguidade dentro do próprio campo do pós-moderno que também concerne ao pós-modernismo.

No caso de Jencks, a ambiguidade reside em conceitos corno historicismo e ecletismo. É bem verdade que Jencks é consciente do fato desses conceitos possuírem conotações como exaustão, fuga e conservadorismo, mas acredita que a arquitetura pós-moderna contém a possibilidade de um ecletismo e de um historicismo autêntico, distinto daquele da virada do século. Examinando as criações da arquitetura do pós-modernismo real-- exatamente como o pós-modernismo examina as criações do funcionalismo real -- encontramos junto a impulsos avangardistas muito do que é mimoso, maneiristisco, pseudo-rústico e neoconfortável. É evidente que o teórico nunca consegue controlar plenamente o contexto social de seus conceitos, e as tendências ecléticas, historicistas c regressivas da atualidade não podem. por definição, ser transformadas em expressão de um ecletismo ou historicismo autêntico, tampouco como as criações do funcionalismo vulgar podem ser transformadas em manifestações de um funcionalismo autêntico. Cavando mais fundo, aparecem também as ideias sobre contextualismo e preservação dos modelos urbanos do centro das cidades, um lado neoconservador e até mesmo defensivo -- como se só fosse questão de preservar e restaurar um estado que o moderno praticamente destruiu. O neoconservadorismo dominante une-se aqui às tendências regressivas e privatistas da anticultura. O projeto cultural do moderno deságua em movimentos defensivos, enquanto a modernização técnica da sociedade progride ininterruptamente.

Com isso opino que o pós-modernismo -- o que é bem claro em Jencks -- tem parte numa ambiguidade profundamente arraigada no próprio fenômeno social. Trata-se da ambigüidade numa crítica do moderno -- e com crítica não penso somente numa critica teoricamente articulada, mas também num processo social no qual atitudes e orientações mudam -- uma critica que poderia pretender tanto a superação do moderno em direção de urna sociedade realmente aberta como urna ruptura com o projeto moderno (Habermas). Isso não deve naturalmente ser confundido com fugir da moderna caixa metálica da eletrônica, ou seja, mudança do Iluminismo em cinismo, irracionalismo e privatismo, na medida em que o pós-modernismo só é o mais recente programa avangardista ou somente uma modismo teórico, a consciência ainda obscura quanto a um fim ou a uma transição. Mas o fim de quê? E uma transição para o quê?

Lyotard tem dado algumas respostas sugestivas para essas perguntas que merecem ser consideradas. Meu debate será no entanto parcialmente de caráter indireto. Após algumas considerações sobre a estética do sublime, em Lyotard. abordarei o tema da critica da razão e da língua, que figura em todas as variantes de pós-modernismo, a partir de alguma perspectiva diversa da de Lyotard. Ao mesmo tempo estou de acordo com Lyotard que uma grande parte dos problemas, das enrascadas, e das convulsões de nosso tempo se refletem nesse tema. Somente isso, se não outra coisa, motiva ver no pós-modernismo algo mais que urna efêmera moda em transição.


INTERMEZZO - STRETA

Retorno mais uma vez à observação de Lyotard quanto às atuais tendências de exaustão. É possível compartilhar sua opinião mesmo não estando de acordo com sua interpretação das mesmas. Minha divergência para com a interpretação de Lyotard é comparável àquela que Peter Bürger recentemente dirigiu à Adorno.   Bürger 24   critica a tese de Adorno que afirma sempre haver um nível do material estético o mais avançado a partir do qual podemos decidir o que num dado momento (ainda) é esteticamente possível ou não. A tese de Adorno é vaga demais para poder ser defendida. Bürger a aguça, no entanto, a tal ponto -- e nisso estamos de acordo -- que se torna simplesmente inaceitável. Bürger invoca não somente a polêmica de Adorno contra o neoclassicismo musical de Stravinskij em Philosophie der neuen Musik, mas também a seguinte interessante citação:

o fato de que pinturas abstratas radicais possam ser expostas em recintos de representação sem causar escândalo não justifica o retorno a uma arte figurativa que agrade a priori, mesmo que se escolha Che Guevara para ficar atualizada-mente bem com o objeto.25

Contra essa aparente total desvalorização de toda a arte realista atual, Bürger defende atitudes neorrealistas. Sua tese quanto ao envelhecimento do moderno não é menos uma tese sobre o envelhecimento do conceito de Adorno sobre o moderno. Contra Adorno, Bürger apresenta a seguinte tese:

Nas modas modernas plenamente desenvolvidas nenhum procedimento e nenhum material é objeto de tabu; o que é esteticamente possível é decidido pela obra exclusiva no contexto de uma determinada situação concreta.26

À tese de Adorno sobre o material mais avançado, Bürger contrapõe o pluralismo dos materiais e das técnicas. Considero que a tese de Bürger é correta enquanto -- como o próprio Bürger -- a entendemos como expressão tanto de dificuldade como de liberdade na arte moderna. Naturalmente temos de concordar com Adorno e Lyotard que não existe nenhum retorno estético: cada novo realismo dentro, por exemplo, da pintura, só pode ser um realismo ulterior ao academicismo superado pela fotografia e pelo filme. Mas na nova pintura podemos encontrar urna produtiva ação recíproca entre realismo fotográfico e realismo cinematográfico que não tem nenhuma relação com a volta ao academicismo. Contra isso Lyotard parece apresentar a tese de que experiências e técnicas realistas são excludentes. Nesse ponto há uma interessante e esclarecedora identidade entre Lyotard e Adorno: poder-se-ia dizer que ambos entendem a crescente falta de sentido como o princípio da arte moderna.27 Um princípio que tem sentido múltiplo já em Adorno: implica a negação da tradicional forma de conjugação de sentidos (a obra de arte orgânica) e a negação do sentido estético em correspondência à falta de sentido inerente à realidade capitalista. É bem verdade que em Lyotard o negativismo ganha outro direcionamento, mas é de sentido tão múltiplo como em Adorno. Negação de sentido significa para Lyotard a negação da representação e da própria realidade representada:

O moderno, independente da época em questão, nunca aparecerá sem abalar a fé e sem descobrir a falta de realidade da realidade, ao mesmo tempo em que descobre novas realidades.28

Métodos realistas tais como a fotografia e o filme contrapõem-se a essa tendência estética de irrealizar a realidade na medida em que têm a ver com a estabilização da referência, ou seja, com a reprodução da realidade de tal forma que se apresente reconhecível -- o realismo como confirmação do sentido como tal.29

A estabilização da referência, a confirmação do sentido, significa para Lyotard, em última análise, que a conceituação estética equipara-se à cognitiva. que a aptidão determinante da conceituação substitua a refletora.30 Se uma vez igualamos representação à conceituação, podemos chamar Kant por testemunha-capital do pós-modernismo. O que Kant disse sobre o gênio como definidor de regras se iguala ao princípio da crescente negação da representação:

Um artista ou um escritor pós-moderno encontra-se na mesma situação que um filósofo; o texto que escreve, a obra que cria, em princípio, não são dirigidos por regras estabelecidas e não podem ser julgadas segundo uma conceituação determinante, por meio da aplicação de categorias comuns a esse texto, a essa obra. Tais regras e tais categorias é o que a própria obra ou texto pesquisam. O artista e o escritor trabalham portanto sem regras para estabelecer regras para aquilo que virá a ser.31

A crescente negação da representação torna-se idêntica àquela nova negação apresentada por cada obra de arte para com a arte anterior.

Lyotard compreende o caráter não conceitual e transdiscursivo da arte -- que Kant analisara -- como uma negação e representação (estética). Se é que o entendo bem, a ideia subjacente é a seguinte: em cada representação estética de algo, aquilo que por meio da apresentação fica manifesto caracteriza um momento conceituai no objeto estético: uma pintura não é como pintura de um objeto, de um interior, de uma paisagem, uma pintura pura no sentido de ser um objeto estético. Enquanto a arte representa, faz parte de um discurso para o que foi chamada a superar. O conceito de apresentação estética aproxima-se assim do conceito de interpretação conceituai e a determinação da arte passa a ser a de negar a representação. Com isso, a ideia de Kant do belo artístico apresenta-se como um inaceitável híbrido que o desenvolvimento da própria arte foi obrigada a questionar. Assim só nos resta escolher entre urna estética do ornamento e urna estética do sublime. Sob o pressu-posto de que essa seja a única escolha, todo aquele que considera a arte importante irá junto com Lyotard escolher a estética do sublime.

O paralelismo entre Adorno e Lyotard fica evidente: ambos definem a crescente negação de significado -- respectivamente da representação -- como principio da arte moderna, mas justamente nesse movimento negativo a arte se apresenta para ambos como um número absoluto. Para Adorno, a obra de arte é a presença aparente -- sensorial daquilo que não pode ser pensado nem produzido --, a realidade numa condição de reconciliação. Para Lyotard, a arte torna-se uma alusão àquilo que se pode pensar mas não produzir. Mostrar que algo existe, que pode ser imaginado sem que possa ser visto ou mostrado, essa é a contribuição da arte moderna.

A pintura moderna procura representar algo que não é possível representar.32  A diferença em relação a Adorno é evidente, bem como o comum entre os dois: em Lyotard, a aparência estética é desprovida de conteúdo utópico, mas também para si está absolutamente ancorado naquilo que se manifesta.33

Que a obra de arte justamente no movimento que nega o significado -- respectivamente a representação -- alude o absoluto pode ser um pensamento de certa profundidade. Minha crítica concerne à instrumentação filosófica desse pensamento em Lyotard, mas também em Adorno. Naturalmente -- quero acentuar -- isso implica uma certa deturpação, quando eu igualo a negação de significado (Adorno) à negação de representação (Lyotard). O que me interessa é, no entanto, a semelhança estrutural entre Adorno e Lyotard, a qual consiste no seguinte: tanto para Adorno como para Lyotard o conceito de arte apresenta-se de forma negativa para um conceito sobre o conceito (o pensamento identificador, a representação), que tem suas raízes numa tradição nietzschiana de critica linguística e critica racional e que, do ponto de vista de filosofia linguística, me parece problemática.

As semelhanças gramaticais de fundo entre a crítica linguística e racional de Adorno e a de Lyotard manifestam-se sob forma de homologias estruturais entre a crítica do pensamento identificador e a crítica do signo representado. É em razão dessas premissas comuns que tanto Adorno como Lyotard são incapazes de indicar o que na obra de arte a faz algo mais que só um número do absoluto, ou seja, a complexa forma pela qual a arte se relaciona com a realidade.34  Em ambos os casos parece tratar-se de um profundo dogmatismo quanto à teoria: assim como a arte em Adorno é amarrada à negação do significado por causa de sua conceituação, em Lyotard é fixada da mesma forma à negação da representação. Assim como a crítica do pensamento identificador é a chave da estética de Adorno, a crítica da representação é a chave da estética pós-moderna de Lyotard. O problemático são as premissas filosófico-linguísticas e racionais comuns a ambos por constituírem uma crítica inacabada da lógica da identificação. No que tange a Lyotard, só posso apresentar aqui esta pressuposição; em relação a Adorno, voltarei mais adiante.


N o t a s :

1. Jean-François Lyotard, Intensitãten (As intensidades). Berlim, 1978, p. 104.

2. Ihab Hassan, The critic as innovator: the Tutzing statement in X frames (A crítica inovadora: a afirmativa de Tutzing em X frames), America Studies (Estudos Americanos). Caderno i-10• 1, 1977, p. 55.

3. Ibidem, p. 57.

4. Uma entrevista com Frederic Jameson, Diacritics, vol. 12, outono de 1982, p. 82.
 5. Ibidem, p. 83.

6. Ibidem.

7. Ver Jean-François Lyotard., Apathie in der theorie (Apatia na teoria), Berlim, 1979, p.36.

8. Ver Jean-François Lyotard, Essays zu einer affirmativen Esthetik (Ensaios sobre uma estética afirmativa), Berlim, 1978, p. 17.

9. Ibidem, p. 21

10. Ibidem, p. 121.

11. Tod der Moderne. Eine Diskussion (Konkursbuch); A morte do moderno. Uma discussão (A falência do livro)), Tübingen 1983, p. 25.

12. Ibidem, p. 103.

13. Jean-François Lyotard, Das postmoderne Wissen (O saber pós-moderno), Bremen, 1982, p. 121.
14. Comparar ibidem, p. 123.

15. Conversa entre Jean-François Lyotard e J. P. Dubost, ibidem , p. 131.

16. Comparar ibidem, p. 71 e a seguir.

17. Jean-François Lyotard, Resposta à questão: o que é o pós-moderno?, Post-moderna tider? (Tempos pós-modernos), Nordstedts, Estocolmo, 1986.

18. Theodor W. Adorno, Ásthetische Teorie (Teoria estética). Frankfurt sobre o Meno, 1970, p. 41.

19. Jean-Francois Lyotard Resposta à questão... , op. Cit.

20. lbidem.

21. Ibidem.

22. Ver Charles Jencks, Die Sprache der postrnodernen Architektur (A arquitetura pós-moderna). Stuttgart, 1978; e Albrecht Wellmer, "Arte, indústria e arquitetura", Arquitetura e Conhecimento, n°. 1, Brasília, Ed. Alva, 1994

23. Ver Jencks, op. cit., p. 87.

24. Peter Burger. "Das Altern der Moderne!" ("A velhice do moderno!"), Adorno-Konferenz 1983 (editado por L. von Friedeburg e J. Habermas), Frankfurt sobre o Meno, 1983, p. 177 e a seguir.

25. Ästhetische Theorie (Teoria estética), op. cit., p. 315 e a seguir. Comparar Bürger, op. cit., p 186.

26. Ver Bürger, op. cit., pp 191 e 194.

27. Ver Allbreeht Wellrner, "Sanning, sken, fõrsoning" ("Verdade, imagem, reconciliação"). Dialektiken mellan dei moderna och dee postmoderna dialética entre o moderno e o pós-modemo), Symposion, Estocolmo/ Lund, 1986.

28. Jean-François Lyotard, "Resposta à questão... ", op.cit.

29. Ibidem.

30. Ibidem.

31. Ibidem.

32. Ibidem.

33. Ibidem.

34. Ver Allbrecht Wellmer, Sanning, sken, fõrsoning (Verdade, imagem, remição). Dialektiken mellan dei moderna och det postmoderna (A dialética entre o moderno e o pós-moderno), Symposion, Estocolmo / Lund, 1986.

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A seguir: Partes II, III. e IV.

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