sexta-feira, 17 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE II




Giulio Giorello  (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.

Tradução: Frank Svensson



II Reflexo e aprofundamento

A diferença entre Lenin e Rücker reside, a nosso ver, na correção que Lenin opôs à defesa do realismo como entendido por Rücker: não realidade última, mas realidade objetiva, refletida pela teoria. É preciso lembrar, no entanto, que a defesa do realismo feita por Rückert é antes de tudo uma defesa do atomismo mecanicista. Sua argumentação está fundamentada em duas partes distintas:

Existe fundamento válido para estimar que toda matéria é constituída de um certo número de partes (átomos, moléculas, ou mais genericamente de partículas)?

Podemos ter conhecimento da estrutura e das propriedades de que tais componentes elementares são dotados?

Rückert responde afirmativamente não obstante sinta necessidade de diferenciar profundamente as respostas. Uma resposta afirmativa à primeira questão não implica uma resposta afirmativa à segunda. Um exemplo: o mecanicista consequente  certamente sustentará que o calor que aparentemente não é um movimento, não é outra coisa que uma forma de movimento, mas será obrigado a observar:

O ponto de vista segundo o qual a estrutura da matéria será atômica – e o é de fato – para as teorias que apresentam posicionamentos precisos quanto às estrutura dos átomos; mas quando, como frequentemente ocorre, tais posicionamentos acarretam dificuldades, introduzem dificuldades novas e mais sutis, devemos lembrar que a hipótese fundamental segundo a qual a matéria é composta de partes capazes de movimentos independentes. Esclarecidas por meio de observações e raciocínios independentes do que possa ser a natureza e as propriedades de cada corpo.23


Nessas palavras está implícita a possibilidade de diferenciar a concepção genérica mecânica dos fenômenos da natureza (por exemplo, o calor) de um atomismo que se estrutura com hipóteses específicas que tentem a excluir as propriedades estruturais das partículas em movimento. Existe, portanto, distintas formas possíveis de mecanismo, conforme as hipóteses específicas que se esteja disposto a aceitar. Segundo Rücker isso não é devido somente a diferenças entre várias escolas as quais, na Inglaterra ou no continente europeu, tendem todas a se considerar mecanicistas (mesmo criticando-se entre si), mas também ao fato que, numa mesma pesquisa são possíveis graus sucessivos de análise da matéria.24

Mencionemos ainda um exemplo sugerido por Rücker e repetido por Lenin.25  Ao estudar a atmosfera admite-se ser uma combinação de gazes: oxigênio, azoto, árgon, gás carbônico, vapor d’água etc. A análise não se limita entretanto a isso. Podemos dar um passo além, por exemplo, decompondo o valor da água e do gás carbônico em seus distintos elementos, hidrogênio, oxigênio, carbono. Ou, observa Rücker, atingido esse ponto ninguém ousa dizer que substituímos um compreensível por muitos incompreen-síveis: os componentes do ar e do vapor d’água aparentam ser tão reais quanto o próprio ar. É isto razão para se limitar a esta pesquisa?

Atingimos o limite entre dados de fato e ficções? Não podemos dar um passo mais decompondo todo gás elementar numa combinação de átomos e éter? E, portanto alcançado tal ponto estabelecer um pare. Observamos que os átomos e as moléculas não podem ser diretamente percebidos, não podem ser nem vistos nem manipulados: isso são conceitos, que podem ser de certa utilidade, mas não podem ser considerados como realidades.26   Essa objeção pode, entretanto, segundo Rücker, ser descartada recorrendo a simples analogias: os anéis de Saturno, vistos em telescópio, aparentam uma massa compacta e são as considerações teóricas, de tipo matemático, que refusaram a opinião fundamentada por essa aparência, desde que a análise espectral reforçou as conclusões fundamentadas pelos cálculos.

Um físico que acredita na realidade dos átomos estima ter tantas boas razões para decompor um gás aparentemente contínuo como as tem para dividir em satélites os anéis de Saturno, aparentemente contínuos. Engana-se, não tem certeza que moléculas – e satélites – não possam ser vistos e manipulados separadamente ... 27

Na realidade, enquanto a experiência não oferece indicações as quais, corretamente interpretadas, implicam a negação de átomos e de moléculas, para Rücker há que reconhecer que as provas da realidade física, das entidades, descobertas aos distintos níveis de análise devem ser essencialmente diferentes, na medida em que forem condicionadas pelo nível considerado. Assim as observações por telescópio ou pelos sentidos não constituem evidências por níveis de análises mais profundas, como são aquelas que reconhecem os anéis de Saturno como constituídos de satélites ou que os corpos são formados de moléculas. Por outro lado, a realidade de moléculas e de átomos não será assegurada com absoluta certeza: entre as ficções da imaginação científica e uma representação perfeita da realidade, existe para Rückert uma via intermédia.29

Recorramos a ainda uma analogia: Um homem num quarto escuro não consegue senão confusamente distinguir os objetos; se ele não esbarra com os móveis e não toma um espelho por porta, é porque vê até bem. Lenin usa essa mesma analogia: Não devemos evitar penetrar mais profundamente a natureza, nem pretender já haver retirado todos os véus do mistério do mundo circundante.30 

E finalmente Lenin cita com satisfação as últimas palavras do artigo de Rückert:

Nós ainda não formamos uma imagem nítida da natureza dos átomos ou da natureza do éter como meio dos mesmos. Tentei mostrar que apesar do caráter tateante de certas das nossas teorias, apesar das inúmeras dificuldades de detalhes que enfrenta a teoria dos átomos ... essa teoria é justa quanto a suas grandes linhas; os átomos não são conceitos auxiliares em ajuda a matemáticos embaraçados; trata-se de realidades físicas.31

Lenin substitui o termo inglês tentative nature por caráter de aproximação:32 novamente, na tradução de um termo de Rücker, encontramos o ponto de partida para uma observação leninista destinada a caracterizar o materialismo dialético no que concerne o problema do conhecimento: o conhecimento científico se desenvolve por aproximações sucessivas, pois nenhuma pode pretender atingir um universo definitivo, nem haver esvaziado todos os problemas. Aproximações precisamente, cada uma penetra mais profundamente a natureza que as precedentes, revelando seus limites.

O fato que erros tenham sido cometidos – observa Rücker em sua defesa apaixonada do mecanicismo – que certas teorias tenham sido propostas e aceitas durante um certo tempo (depois abandonadas) não desacredita necessariamente o método adotado.

Sobre esse ponto Lenin certamente concorda com Rücker. Já em Materialismo e Empiriocriticismo, Lénin não assume a defesa do materialismo mecanicista: remete frequentemente a físicos como Hertz ou Boltzman, a referência à concepção que tem como fundamentais as noções de matéria ou de energia querem esclarecer, não tanto uma validade intrínseca da concepção mecanicista a qual falta a fundamentação das críticas que lhe são dirigidas pelos defensores de Mach ou de representantes da física fenomenológica, em suma, não é errado por Lenin criticar o materialismo dialético, mas é errado o modo como é criticado.

Principalmente como em Ward, a crítica do materialismo dialético é o primeiro passo no sentido de uma forma de idealismo subjetivo. Como já afirmamos, o fato que numerosas teorias tenham sido ultrapassadas por outras mais refinadas, não desacredita necessariamente o método adotado, não implica necessariamente renunciar um função essencial de elaboração teórica entendida como qualquer coisa nada mais que uma simples ajuda memorial.

A solução particular oferecida por Rückert pode parecer insuficiente. Seus adversários, Poynting, Poincaré, Ward, puderam, se opor a ele – e de fato alguns o fizeram – tornando a história da física do século XIX um cemitério de teorias mortas que haviam pretendido ultrapassar os limites da experiência, mas a preço de um fracasso reticente: filogístico, calórico, corpúsculos portadores de luz e de calor. Partículas e átomos – elementos teóricos essenciais da posição mecanicista, mas não diretamente observáveis – não teriam também o mesmo destino? Mais uma vez, como já em Mach depois em Duhem, a história da ciência vai de encontro do mecanicismo e ao mesmo tempo, contra a afirmação de que teoria conheceria a realidade.

Aqui a defesa de Rücker mostra-se fraca. Por um lado repete:

É um erro considerar que em geral as teorias físicas, e em particular a teoria atômica, como se fizessem parte de um esquema que fracassaria deixando qualquer coisa sem explicação. As teorias físicas se desenvolvem ao principio partindo dos fenômenos que sensibilizam nossos sentidos. Quando não alcançam mais profundamente os segredos da natureza, é mais que provável encontrarem barreiras insuperáveis. Isso não significa, entretanto, que as premissas fundamentais sejam falsas e que a questão de saber se um obstáculo particular é sempre insuperável recebe raramente uma resposta confiável.34

Por outro lado, uma vez feita distinção entre as teorias mecanicistas que aceitam a ideia geral segundo a qual as substancias são compostas de partículas distintas, bem como as teorias que vão além, formulando teorias específicas quanto a suas propriedades estruturais empreendem viagens arriscadas. Rücker insiste sobre o fato  que na física. como em toda ciência, existem ideias fundamentais (root ideas) baseadas na razão e na observação que não podemos deixar de considerar como um aspecto da verdade.35 tal é precisamente a ideia básica da concepção atomista. Quanto a diferentes hipóteses específicas, nos pronunciaremos caso a caso. Se possível sobre sua validade e sobre o caráter adequado dos mesmos.

Esse ponto é de extrema importância: aqui aparece nitidamente a divergência entre Lenin e Rücker. Se bem que precisamente sobre este ponto, o materialismo dialético tem sido mal compreendido atribuindo-lhe teses que acordariam melhor com um realismo ingênuo o qual distingue as duas concepções e é justamente o apego de Rücker ao realismo, do qual as ideias de base da concepção atomista são um exemplo típico, senão o protótipo, de verdades que, uma vez consideradas não podem ser abandonadas, formando assim um nódulo de verdades incontestáveis.

O rigor das demonstrações matemáticas por um lado, as observações de outro – o que é uma das conquistas da reflexão sobre a ciência do nosso tempo – jamais é absoluta. Submissa ela também a um desenvolvimento continuo, não fornece nenhuma garantia definitiva: e uma vez reconhecido este fato, não se pode admitir verdades incontestáveis e ao mesmo tempo reconhecer o desenvolvimento crítico contínuo de uma ciência. Um conjunto estranho de dogmatismo, historicismo e pragmatismo pode talvez constituir uma defesa do materialismo mecanicista moribundo (no tempo de Rücker) ou morto (hoje), mas nem defensores independentes nem adversários esmerados podem fazê-lo passar por materialismo dialético. 

Elevar-se a conhecimentos sempre mais profundos da realidade, não na ilusão de chegar cedo ou tarde a esvaziá-lo, mas com plena consciência de se aproximar pouco a pouco, significa o aprofundamento dos problemas fundamentais, que partem de premissas as quais, consideradas apenas como um aspecto da verdade não podem ser postas em discussão ou submetidas a severos controles. Nessa perspectiva, um abismo separa a análise por etapas sucessivas de Rücker daquela de inexauribilidade dos elétrons da qual fala Lenin. Se o átomo é decomposto e se não é indivisível, um salto qualitativo foi dado, e não se deve diminuir o sentido considerando o elétron como um componente último da matéria. Último somente para o nível da análise considerada pela ciência em 1908, mas não em absoluto. A aproximação sucessiva sofre verdadeiros saltos qualitativos quando resulta de uma renovação audaciosa dos postulados de nossas teorias e de uma mudança radical das próprias categorias do conhecimento. Se aproximação sucessiva é uma expressão que pode induzir a erro, deve-se lembrar de que com Lenin esses termos indicam aprofundamento de nosso conhecimento, ligado à ideia constantemente repetida, de extrema flexibilidade das categorias.36  Pensar que são fixadas uma vez por todas é típico de um materialismo metafísico, mas não do materialismo dialético do qual a tese das ideias fundamentais nada mais é que uma variante.

Ela não considera que a proposta de uma nova teoria passe por toda uma série de mediações: a avaliação da importância dessas questões – que não podem ser simplesmente remetidas à constatação do fato de que existem limites talvez insuperáveis – a análise lógica dos problemas, a escolha de instrumentos conceituais e também as referencias do contexto de outras teorias, não só não se sucedem numa ordem temporal determinada uma vez por todas, mas comportam frequentemente atrasos, decalagens, diferenças, quando não mudanças bruscas e radicais já mencionadas. Tudo isso é, a nosso ver, a característica do materialismo dialético em relação às concepções – realismo de Rücker, materialismo mecanicista de Mach ou idealismo de Ward – que não veem na história da ciência nada mais que uma história de catástrofes. Quanto aos aspectos aos quais já fizemos alusão, têm frequentemente sido sublinhados, a partir de Lenin, por historiadores marxistas da ciência; geralmente, no entanto, -- e referimo-nos principalmente aos estudos marxistas ocidentais – limitados ao contexto político.

Há ainda esse limite: sem redução, segundo nosso ponto de vista, completamente injustificado do materialismo integral tal qual Lenin concebia o de Marx e Engels, e em todo caso , uma má compreensão da noção leninista de aprofundamento, o qual, em sua complexidade, permitiu melhor apropriar-se como mesmo o sentido político dos câmbios fundamentais do desenvolvimento científico não se captam plenamente senão tendo em conta a significação objetiva da posição de um problema e das soluções propostas.


N o t e s :

23. Rücker, obra. cit., p. 21 571. Esta citação faz parte do paragrafo cindo do relatório sobre a estrutura granular da matéria.

24. Ibidem, p. 21 561.

25. Ibidem, paragrafo quatro do relatório. Retomado por par Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

26. Esta citação e as que precedem são tiradas de Riicker, obra. cit., p. 21561.

27. Ibidem.

28. Ibidem, p. 21 562.

29. Conforme o último paragrafo de Rücker intitulado os limites da teoria física.

30. Lénine Matérialisme et empiriocriticisme, p. 287.

31. Rücker, obra. cit., p. 21 573.

32. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 288.

33. Rücker, op. cit., p. 21 572. A citação é tirada do paragrafo seis  do relatório consagrado às propriedades fundamentais da matéria.

34. Ibidem, sou eu que sublinho.

35. Ibidem.

36. O termo flexibilidade por sua vez não induzindo a erro não permite pensar que o aprofundamento é realizado somente por modificar localmente uma teoria dada. A certos momentos do desenvolvimento, teorias inteiras são criticadas globalmente e numa tal crítica, das categorias antigas podem ser desprezadas e ideias, tomadas por fundamentais.


OBS. Em seguida as partes III e IV.

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