domingo, 12 de maio de 2013

SOBRE A TEORIA LENINISTA DO REFLEXO E DO APROFUNDAMENTO -- PARTE I




Giulio Giorello  (Milão, 1945 -- ),  Filosofo marxista, matemático, titular da cátedra de Filosofia da Ciência na Universidade de Milão. Colabora com o jornal Corriere dela Sera.

Tradução: Frank Svensson



I – Serão as ideias cópias das coisas?

A concepção de ciência baseada na física fenomenológica, bem como sua recusa da explicação mecânica dos fenômenos naturais, considerava as hipóteses matemáticas que permitiam em casos particulares o recurso à mecânica, somente para calcular certos resultados. Para Berkeley, uma hipótese matemática não era nada mais que um dispositivo engenhoso l  : nada revela sobre a natureza de um fenômeno físico, nem sobre suas propriedades particulares, na medida em que sua verdade não está em questão, mas só sua utilidade, sua exclusiva eficiência como instrumento de cálculo.
      
Em outros termos: a física fenomenológica não renuncia a explicação científica dos fenômenos, mas deixa de lado a compreensão do objeto explicado, a partir do momento que estima que a explicação acessível, graças ao trabalho do pesquisador, não pode permitir uma mais profunda penetração da natureza das coisas.

No capítulo V de Materialismo e empiriocriticismo, Lenin criticando a revolução moderna nas ciências naturais e o idealismo filosófico, justamente sobre esta questão, faz referência ao discurso inaugural (da cessão de física) no Congresso dos cientistas ingleses, tido em Glasgow em 1901.2

Nessa apresentação, Arthur W. Rickert compara as duas tendências da física contemporânea, o mecanicismo e a física fenomenológica, examinando os fundamentos da primeira tendência – existência dos átomos, natureza mecânica do calor, existência do éter – e os objetivos formulados por filósofos e cientistas, como Poincaré, Ward, Poyinting que, em medida distinta, aderem a concepção oposta. Trata-se de se pronunciar sobre as hipóteses que constituem a base das teorias científicas, em relação à definição e os objetivos da atividade científica, vista como aquela que se propõe não só demonstrar que muitos fenômenos, à primeira vista vistos como tendo pouca ou nenhuma relação com os mesmos, são ligados, mas também explicar as relações entre os mesmo..3

Uma vez aceito o ponto de vista da física fenomenológica, a teoria científica só pode ser aceita como um gigantesco apoio de memória, ou seja como um meio para trocar ordem por desordem codificando observações e leis segundo um sistema artificial e ordenando assim nosso conhecimento com um número relativamente pequeno de princípios fundamentais. Esta simplificação, introduzida por um esquema, o qual, por imperfeito que possa ser, nos permite deduções a partir dum reduzido número de princípios primeiros, tornando as teorias úteis do ponto de vista prático.4

Mas, contesta subitamente Rücker, é possível obter tais vantagens graças a axiomas, teorias baseadas em ideias completamente falsas?5 Uma situação que a filosofia da ciência bem conhece. Basta aqui um exemplo:6

Um geógrafo estuda a direção de um rio em se servindo de um mapa no qual os rios são indicados na cor azul. Nosso geógrafo está profundamente convencido que o mapa reflete a região que está a estudar a ponto de considerar que os rios são realmente azuis. Convicto disso ele determina a direção do rio. Direção exata, se for um bom mapa, mesmo se a dedução do geógrafo decorreu de uma falsa premissa.

Como o geógrafo do exemplo, comporta-se em geral o cientista, pelo menos o físico, que, observa Rücker, se habilita de representações da realidade dotadas de uma propriedade paradoxal; uma tal representação ou modelo, é por um lado extremamente diferente daquilo que são as coisas realmente; por outro lado, mesmo se a correspondência entre o modelo e o comportamento das coisas que deve representar, é provavel-mente imperfeito, contudo um é o fac-símile do outro.7

A correlação dos fenômenos naturais não pode ser compreendida na sua plenitude, mas pode ser explicada na medida em que possa ser imitada pelo modelo com boa margem de sucesso. Um modelo é um instrumento imaginário, construído artificialmente pelo homem, que pode ser aplicado ao setor da realidade em estudo justamente para que o comportamento das coisas que representa, ou seja, que imita, possa ser previsto graças à parte correspon-dente desse instrumento imaginário. 8

Os rios reais representados sobre o mapa não têm a mesma natureza, ou seja, não são feitos da mesma substância; mas o traço azul sobre o mapa imita curso d’água com precisão suficiente para permitir ao geógrafo prever a direção dos rios. Num segundo momento refletindo sua própria atitude, o geógrafo cessa crer ingenuamente que o rio é azul e reconhece que sobre um mapa criado artificialmente pelo homem, é uma coisa (azul) que se comporta como a coisa real (o rio). Está pronto então para a fase seguinte, a que permite ao cientista abandonar sua atitude ingênua em favor de uma atitude crítica.

Deixemos a metáfora, se as leis da elaboração do modelo podem ser expressas por abstrações, como, por exemplo, formulas matemáticas. Uma vez obtidas tais formulas, podemos abandonar o modelo ... simplesmente instrumento auxiliar, útil para obter as equações, podendo ser abandonado uma vez construído o edifício dos símbolos matemáticos. 9

Uma vez adotado este ponto de vista, a física fenomenológica, tendo agora renunciado à tentativa de conhecer a natureza dos objetos mais que nos cercam além dos possíveis de se obter por observação direta, mas que nos permitem conhecer como se comportam em dadas circunstâncias. 10

O geógrafo entende que para determinar a direção do rio, nenhuma hipótese quanto a natureza do mesmo é necessária, nem o é saber se de fato é de cor azul ou mesmo de água, mas é necessário dispor de um sistema de símbolos que permitam deduzir sua direção. O mapa resume, congrega todos os fatos observáveis sobre seu curso d’água.  A física fenomenológica passa assim ao modo naturalista de pensar, ou mais precisamente à perspectiva concernente ao conhecimento da natureza. Lenin chama agnosticismo. Rücker diz a propósito:

Sem dúvida que esse seja o caminho mais fácil a seguir. Qualquer crítica é proibida, se, desde o início, admitamos não poder ir além das aparências; que nada podemos conhecer sobre a constituição dos corpos materiais; mas devemos nos contentar em formular uma descrição de seu comportamento graças às leis da natureza expressas em equações. 11

A reconstituição feita por Rüker da posição fenomenológico-agnóstica serviu para defender a concepção mecanicista, em particular da teoria atômica que ele estima essencial ao progresso da ciência. Postulados da crítica fenomenólogica resulta necessariamente em que a forma a mais elevada de teoria é aquela que doravante renuncia formar uma imagem mental clara da constituição da matéria. Aquela que expressa observações e leis naturais pela linguagem e pelos símbolos que conduzem a resultados verdadeiros, independente de qual seja nossa concepção da natureza real dos objetos em questão.
 
Desse ponto de vista, a teoria atômica não resulta tão falsa que desnecessária: ela pode ser considerada como uma tentativa de dar precisão contra a natureza de ideias vagas  que deverão continuar vagas. 12

Duas observações aqui se impõem: para evidenciar a proximidade e ao mesmo tempo a extrema distância entre Lenin e Rücker.

1) Rücker toca, nas palavras acima abordadas, o cerne de um problema destinado a reaparecer várias vezes na reflexão sobre a ciência do século XX. Aquele da neutralidade teórica da ciência, entendida por neutralidade teórica.13  A afirmação que as visões de mundo são essencialmente equivalentes, ou melhor, insignificantes para o desenvolvimento das distintas teorias científicas. Ponto de vista que pelo menos implica uma perspectiva da física fenomenológica, um princípio extensível à biologia, psicologia etc., e culmina numa atitude de tipo fenomenológico, acentuando a insignificância de nossa concepção da natureza real dos objetos considerados.

2) Rücker defende explicitamente a concepção mecanicista, em particular teoria atômica, na medida de estar convencido da legitimidade intrínseca da mesma. Contestar física fenomenológica e concepção mecanicista é uma verdadeira e justa luta em favor da verdade.14   Nessa luta o enfoque da física fenomenológica trata a matéria somente como nossos sentidos a conhecem e não pretende ir além da superfície. A passagem é amplamente ultrapassada por Lenin uma vez que a sensação é admitida como um primum, para fazer dessa nova física uma arma de ataque ideal do idealismo filosófico, Sobre esse ponto Rücker observa:

a) No que concerne a questão da constituição da matéria – e do modo que pode ser representada com precisão, devemos por em princípio uma vez por todas que a natureza das coisas é e deve restar ignorada;

b) mas não resulta imediatamente disso que sob a complexidade dos fenômenos superficiais que tocam (afetam) nossos sentidos não possa existir um mecanismo mais simples de existência do qual possamos obter uma prova indireta, naturalmente, mais decisiva.15

Quanto aos pontos a) e b) as convergências e divergências de Lenin e Rücker são significativas. Sobre o ponto a) a teoria oposta à vontade do materialismo dialético reconhecendo os limites que um programa dado de pesquisa enfrenta como limites internos ao mesmo, em certas condições históricas, e não como limites absolutos do conhecimento humano em sí (cf.§ 3. 2.);

Em b), Rückert esclarece como, mesmo premissas de uma filosofia que admite esses limites, não resulta necessariamente a impossibilidade de construir imagens sempre mais adequadas (ou pelo menos sempre mais simples) da realidade, em aprofundamento de nossas ideias sobre a constituição da matéria além da superfície das aparências.

A questão controvertida na reflexão filosófica sobre a ciência da natureza ao início do século XX se expressa no seguinte dilema: As hipóteses que constituem a base das teorias científicas atualmente mais difundidas devem ser consideradas como descrições precisas da estrutura do mundo que nos cerca (exata descrição da constituição do universo que nos cerca) ou somente cômodas (convenientes) ficções.16

Rücker responde: descrições da estrutura do mundo, exatas até cero ponto. Citando justamente essa passagem para uso contra os companheiros, russos de Mach, Lenin retoma a questão: Para empregar os termos de nossa discussão com Bogdanov, Iouchkévitch e Cia: são cálculos da realidade objetiva, da matéria em movimento ou trata-se tão somente de metodologia, puro símbolo, formas de organização da experiência ? 17

Lenin retoma aqui o termo calculo diretamente de Rücker: o que é extremamente significativo. Para esclarecer a oposição entre as duas escolas, Lenin empresta o termo fundamental de uma passagem de Rücker onde afirma que nós temos razão para estimar que o esboço que nos dá a ciência, é em certa medida uma cópia (copy) e não um simples diagrama da verdade.18

Quando o geógrafo descobre que o rio não é constituído de cor azul, mas de água, ele certamente não precisa para tanto se servir de um mapa, entretanto, ele sabe indubitavelmente qualquer coisa sobre o rio: e é o rio e não o mapa o objeto de sua pesquisa. Adotar um concepção adequada dos objetos físicos constitui um sólido ponto de referência, mesmo se isso não tenha imediatamente consequências práticas.   O que não exclui finalmente que pesquisas e reflexões ulteriores possam fornecer uma representação mais precisa que a precedente, mais aproximada da realidade.

Aquilo que em Rücker é oposto entre a teoria atômica, ou seja, a física do mecanismo, por um lado e por outro é a física fenomenológica. Já em Lenin é uma oposição de tipo puramente filosófico entre uma física realista, da qual Rücker é o representante, e uma física simbolista, ou seja, fenomenista, para utilizar a terminologia de Ward.  Lenin escreve: a diferença entre as duas escolas da física contemporânea é somente filosófica, somente gnosiológica. A diferença fundamental entre as duas escolas consiste somente no fato que uma admitia a realidade “ultima” (deveria se dizer a realidade objetiva), refletida por nossa teoria19, enquanto a outra a nega e considera a teoria somente como uma sistematização de experiências, um sistema de empíreo-símbolos, etc.  20

Se, portanto Lenin traduz a natura última de Rücker como realidade objetiva, porque não também copia como reflexo ? 21   A ideia fundamental que nossas ideias refletem os objetos reais, ponto de ruptura com os partisans russos, de Mach mas também com a tradição empirista remontando a Berkeley nasce ela então, em Lenin, da retomada da temática realista, como aquela de Rücker, contra a física fenomenológica e suas conclusões anti-materialistas?

Atenção: a concepção de mundo e imagem da ciência do burguês Rücker não tem certamente nada a ver com o materialismo dialético de Engels, mas provém de uma forma de realismo mais difundida entre os físicos ingleses contemporâneos de Maxwell, uma forma de realismo considerada por seus adversários, como James Ward, como quase medieval.

O aspecto interessante da utilização de Rücker por Lenin reside no fato  do mesmo por sua proximidade com Rücker considera a oposição entre idealismo e materialismo no terreno das teorias científicas de seu tempo, visando uma solução adaptada à prática seguida pelos cientistas que lhe foram contemporâneos, sem dever portanto tomar a posição de Rücker a qual o idealista Ward 22, talvez com um pouco de razão, difama como metafísico.


N o t e s :

1. Berkeley, The Analyst, 50, Qu. 31, London-Dublin, 1734.

2. Lénine, Œuvres complètes, t. 14, p. 285, 286.

3. Arthur W. Rücker, Presidential adress, allocution présidentielle. The British Association at Glasgow, 1901, in The Scientific American Sup-72 planent, 1901, e 1 345 et 1 346, p. 21 561, Arthur William Rucker (18481916), professor de física em Leeds, depois em Londres, se ocupou em particular de géofísica e de eletromagnetismo.

4. Ibidem.

5. Ibidem.

6. Este exemplo é de Rücker e foi retomado por Lenin, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

7. Rücker, op. cit., p. 21 561.

8. Ibidem.

9. Ibidem.

10. Ibidem. 

11. Ibidem.

12. Ibidem. Esta citação e as precedentes foram tiradas do terceiro parágrafo do relatório de Rücker, intitulado La construction d'un modèle de la nature.

13. Segue aqui a distinção introduzida por L. Geymonat, em Scientia, septembre-octobre 1972, p. 753, que ele retoma em Scientia, janvier-février 1973, p. 7.

14. Rücker, Struggle for the truth.

15. Riicker, op. cit., Esta citação é tirada do quarto parágrafo do citado relatório (Degrés successifs dans l'analyse de la matière).

16. Riicker, ibidem, p. 21 561, no início do terceiro paragrafo.

17. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 286.

18. Rücker, op. cit., p. 21 561

19. C'est moi qui souligne.

20. Lénine, Matérialisme et empiriocriticisme, p. 290.

21.  Em russo (Lenin) como em inglês (Rücker), existem dois termos distintos para cópia e reflexo;  kopiha corresponde a copy e otratenie a reflection, o termo leninista de reflexo. Como veremos nos parágrafos 3 e 4, a noção de Lenin difere profundamente em vários aspectos da de Rücker.

22. James Ward (1843-1925), psicólogo e metafísico inglês, engajado numa interpretação de mundo no sentido teísta.


OBS. A seguir Partes II, III, e IV.

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